Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
598/08.5TBCBR.C1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA ROCHA
Descritores: PROPRIEDADE INDUSTRIAL
PATENTE
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
PUBLICAÇÃO
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NULIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 01/27/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I - Patente é um direito privativo de propriedade industrial que visa proteger uma invenção, dando resposta a um problema técnico, assim se distinguindo a invenção protegida pela patente da simples descoberta.
II - No domínio do CPI de 1940 era vedada a concessão de patentes de alimentos e de produtos farmacêuticos, alicerçando-se tal proibição na necessidade de impedir a criação de monopólios, não só para prevenir a especulação dos preços, como também por razões de saúde pública.
III - Com o CPI de 1995 o nosso ordenamento jurídico passou a permitir a protecção de substâncias químicas e produtos ou preparados farmacêuticos (art. 48.º, n.2), assim transpondo para o ordenamento português uma regra que já existia na Convenção da Patente Europeia (art. 52.º, n.º 4).
IV - Há que distinguir entre direito à patente e o direito de patente: - o primeiro (direito à patente) corresponde a um direito subjectivo do inventor a um certo comportamento da administração, oponível a esta, e que nasce com a solicitação da concessão, reunidos que sejam os requisitos da patenteabilidade; - o segundo (direito de patente) nasce e constitui-se com a concessão, a que corresponde um direito igualmente subjectivo de exploração económica do evento, em regime de monopólio e oponível erga omnes.
V - Não se tendo estabilizado, aquando da entrada em vigor do CPI de 1995, a decisão do INPI sobre a concessão requerida pelas autoras, ainda durante a vigência do CPI de 1940, a Administração Pública não pode deixar de considerar a lei nova, o que vale por dizer que a situação cai na previsão da parte final do n.º 2 do art. 12.º do CC.
VI - Qualquer alteração que não afecte os elementos essenciais e característicos da patente, modelo, desenho ou registo poderá ser autorizada, no mesmo processo, desde que devidamente fundamentada e publicada (art. 26.º, n.º 1, do CPI de 1995).
VI - O art. 26.º, n.º 1, do CPI ao exigir certas formalidades para alterações ou correcções da patente, aplica-se apenas às relações jurídicas já constituídas, depois de concedido o direito de propriedade industrial sobre o qual incidem, e não às situações jurídicas ainda não consolidadas, pendentes de decisão da Administração.
VII - Assim, uma vez que a patente das autoras foi pedida na vigência do CPI de 1940 (como patente de processo), tendo contudo sido examinada e concedida na vigência do CPI de 1995 (aprovado pelo DL n.º 16/95 de 24-01) – o que lhe permitiu a inclusão de reivindicações de produto – não estavam as mesmas impedidas de, no âmbito da fase administrativa, incluir no pedido de concessão as reivindicações de produto, sem qualquer necessidade de publicação das alterações.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1.
AA AND COMPANY LIMITED e BB PORTUGAL - PRODUTOS FARMACÊUTICOS, LDA, propuseram na Vara de Competência Mista de Coimbra acção declarativa, com processo ordinário, contra CC - INDÚSTRIA FARMACÊUTICA, S.A., pedindo que a ré seja condenada a não importar, manipular, embalar, colocar em circulação, vender ou pôr à venda, directa ou indirectamente, quer em Portugal, quer para exportação, o produto farmacêutico designado por “DD” ou sob quaisquer outros nomes comerciais, contendo a substância activa “O...”, e bem assim a pagar uma sanção pecuniária compulsória, à razão diária de € 500,00, em caso de eventual incumprimento dessa condenação.
Em síntese, alegam que a 1ª autora é titular da patente de invenção portuguesa nº ..., concedida em 21 de Abril de 1997, além do mais, para protecção da substância activa com utilidade farmacêutica denominada O..., com 22 reivindicações de produto, encontrando-se tal patente em vigor até 21 de Abril de 2012.
Por sua vez, a 2ª autora, que se dedica à distribuição e venda de produtos farmacêuticos, é a detentora da licença para a exploração (e comercialização), em Portugal, da substância abrangida na referida patente.
A ré, tendo em vista a colocação no mercado do seu medicamento genérico O... B..., o qual assenta naquela substância activa, integrando o medicamento Z..., originalmente produzido e comercializado pelas autoras, já requereu, junto do INFARMED, a autorização de introdução no mercado (AIM) e, junto da DGAE, a necessária atribuição de preço.
O genérico da ré irá ser vendido a menos 35% do que o produto das autoras, o que, só nos anos de 2007 e 2008, implicará, para estas, a perda em lucros cessantes, de € 8.200.000,00.
Assiste-lhes o direito exclusivo de explorar a sua invenção, bem como de impedir terceiros de introduzir no comércio o produto objecto da patente.

Contestou a ré, começando por invocar, por via de excepção, que as alterações que as autoras provocaram no pedido inicial de patente, alargando-o ao produto O... e enxertando­-lhes reivindicações, nunca foram alvo de publicação no Boletim da Propriedade Industrial, pelo que, em função dessa omissão, o objecto patenteado padece de nulidade, ou, pelo menos, de ineficácia ou inoponibilidade diante de terceiros, como é caso da ré.
A O... produzida pela ré resulta de um processo de fabricação diferenciado e autónomo face ao inscrito pela patente das autoras.
Os pedidos ao INFARMED e à DGAE são lícitos e não infringem os direitos das autoras.
Em reconvenção, peticiona que se declare a nulidade, ou ineficácia, ou inoponibilidade dos actos/títulos da PT ... e, em qualquer caso, se condenem as autoras a pagar-lhe, a título de lucros cessantes, a quantia que vier a liquidar-se em execução de sentença pela não comercialização do produto “DD” ou outros contendo a substância “O...”, em Portugal e no estrangeiro, desde a data da citação das autoras para contestarem a reconvenção.

Replicaram as autoras, sustentando que a publicitação referida pela ré apenas se aplica às patentes já concedidas, concluindo pela improcedência da excepção e da reconvenção.

Declarando-se, desde logo, habilitado a conhecer do mérito da causa, o Mº Juiz proferiu saneador-sentença, no qual, após julgar a acção totalmente procedente, condenou a ré em todo o pedido ali formulado. Mais julgou improcedente a reconvenção, absolvendo as autoras dos respectivos pedidos.

Inconformada, a ré recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, que revogou o saneador-sentença, julgando a acção totalmente improcedente, e absolvendo a ré de todo o pedido formulado, como julgou procedente a reconvenção e, em função disso, declarou a patente n° ... inoponível à ré.

Irresignadas, as autoras pedem revista.

Concluíram a alegação do recurso pela seguinte forma:

A tese sustentada na decisão recorrida, levada ao limite, coloca em crise todo o sistema jurídico de concessão de patentes, em Portugal, desde, pelo menos, o Código da Propriedade Industrial de 1995 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro;
E, consequentemente, faz recair sobre o Instituto Nacional da Propriedade Industrial a responsabilidade objectiva relativamente à concessão de direitos de patentes que, por um alegado erro administrativo (a falta de publicação das alterações de reinvindicações de uma patente, na sua fase de pedido), seriam inoponíveis a terceiros, como optou por julgar o tribunal a quo a patente sub júdice;
A aplicação do C.P.I. de 1995 no momento da concessão das patentes cujos pedidos foram efectuados ao abrigo do C.P.1. de 1940 - e que se encontravam pendentes - tem sido secundada por toda a jurisprudência que se pronunciou sobre essa questão, incluindo o próprio acórdão recorrido;
De acordo com o disposto no art. 26°, nº1, do C.P.I. de 1995, impunha-­se apenas que as alterações que não afectassem os elementos essenciais de uma patente, modelo, desenho ou registo deviam, para poderem ser autorizadas, ser objecto de publicação;
Esse preceito legal - como resulta claramente da sua letra - aplicava-se apenas a direitos privativos de propriedade industrial já concedidos e não na sua fase de pedido;
Os recursos previstos no art. 26°, n1, in fine, do C.P.I., (...) para efeitos de recurso, nos termos dos artigos 38º e seguintes, são, indubitavelmente, os recursos judiciais das decisões de autorização, por parte do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, de alterações (não essenciais) de direitos já concedidos; diferentemente, o meio próprio de impugnação das decisões do INPI, durante a fase do pedido, inter alia, de uma patente, não é o recurso judicial, mas sim a reclamação administrativa, o que também comprova que o disposto no art. 26°, nº1, do C.P.I. de 1995, não se aplica aos pedidos de protecção de direitos de propriedade industrial, mas, apenas, a direitos já concedidos;
Para além da cristalina redacção da lei, a consequente prática seguida pelo Instituto Nacional da Propriedade Industrial em relação à tramitação de todos os pedidos de patente confirma, igualmente, o que vem de ser dito: as alterações introduzidas nas reivindicações durante a fase de um pedido de patente nunca são publicadas, sendo uma realidade transversal à vigência do C.P.I de 1995 e actual C.P.I.;
Desde 1985 (ainda na vigência do C.P.I. de 1940), também ao abrigo do C.P.I. de 1995 e, ainda também, do actual Código da Propriedade Industrial de 2003 (aprovado pelo Decreto-Lei nº 36/2003, de 5 de Março e alterado pelos Decretos-Leis nºs 318/2007, de 26 de Setembro, 360/2007, de 2 de Novembro e 143/2008, de 25 de Julho e pela Lei nº 16/2008, de 1 de Abril), as reivindicações de uma patente não eram (e não são) nunca publicadas, ou seja, nem na publicação do pedido de patente, nem na publicação do aviso de concessão da patente, sendo apenas publicado o resumo do pedido de patente, que não contém as reivindicações;
Por uma questão de interpretação sistemática do próprio Código da Propriedade Industrial de 1995, se não eram (e não são, ao abrigo do C.P.I. de 2003) publicadas as reivindicações de um pedido de patente, não faz sentido, por maioria de razão, sustentar que alterações às reivindicações de um pedido de patente devessem (e devam) ser publicadas;
Muito embora o Tribunal a quo sustente, claramente - e bem - que o disposto no artigo 26°, nº1, do Código da Propriedade Industrial de 1995, aplica-se, apenas, a direitos já concedidos e não à fase administrativa dos seus pedidos, a verdade é que acaba por tomá-lo como uma espécie de base interpretativa, para concluir que as alterações das reivindicações da PT ... deviam ter sido objecto de publicação e, em consequência, declará-la inoponível à ré;
Sustenta-se no acórdão recorrido que a falta de publicação das novas reivindicações da patente em causa traduz a violação de um requisito legal tendente à protecção de eventuais lesados, asserção que se encontra totalmente incorrecta, porquanto sempre seria permitido a terceiros - como foi - a interposição de recursos da decisão de concessão da PT ..., mesmo considerando que não foi publicada - como não devia ter sido - a alteração das suas reivindicações;
Resulta da decisão recorrida uma contradição insanável, na medida em que nela se afirma, expressamente, que o art. 26°, nº1 do C.P.I. de 1995, não se aplica aos pedidos de patente (mas apenas a patentes já concedidas), ao mesmo tempo sustentando-se, a partir do mesmo preceito legal, que as alterações das reivindicações deviam ter sido publicadas;
E nem se diga que se operou uma espécie de interpretação a contrario do art. 26°, nº1, do C.P.I. de 1995, quando se diz, por virtude do estatuído no art. 26º, nº1, do CPI de 1995 (cfr. o art. o 25º, nº 3, do CPI de 2003), a simples alteração de elementos não essenciais da patente já concedida também é publicada; é que, se essa disposição legal não se aplica a pedidos de patente, não pode servir para, interpretada a contrario, justificar a necessidade da publicação de alterações de reivindicações, justamente, na fase do pedido de patente;
Por outro lado, encruzilhando-se no seu próprio raciocínio - quando afasta, e bem, a aplicação do disposto no art. 26°, nº1, do CPI de 1995 - acaba o tribunal a quo por sustentar a necessidade da publicação das alterações das reivindicações da PT ... com base em dois argumentos que comportam um notório erro na interpretação e aplicação da lei;
O primeiro argumento, consubstanciado numa tentativa de harmonização (é o próprio Tribunal a quo que opta pelo itálico ...) dos regimes do C.P.I. de 1940 e C.P.I. de 1995, é incompreensível, porquanto, sendo o regime aplicável aos autos o do C.P.I. de 1995, nada justifica o recurso ao C.P.I. de 1940, nem mesmo numa perspectiva de qualquer analogia integradora de uma lacuna, de todo inexistente no C.P.I. de 1995;
E, se nessa lei aplicável não se encontra fundamento para a aludida publicação, esta não pode ser alcançada através de uma injustificável e inusitada harmonização com o regime anterior (C.P.I. de 1940);
O segundo argumento - que é, aliás, a tentativa de fundamentar na lei aplicável o sentido jurídico do entendimento perfilhado - acaba também por ser incompreensível, na medida em que o tribunal a quo invoca expressamente as disposições dos arts. 28°, nº1 e 62°, nº1 do CPI de 1995, disposições estas que nada dizem acerca daquela publicação;
De facto, o art. 28°, nº1 do C.P.I. de 1995 determina, “apenas”, que “Os actos que devem publicar-se, nos termos do presente diploma, serão levados ao conhecimento das partes e do público por meio da sua inserção no Boletim da Propriedade Industrial”; e, por sua vez, o art. 62°, nº1, do C.P.I. de 1995, “apenas” dispõe que: “Da apresentação do pedido no Instituto Nacional da Propriedade Industrial publicar-se-á aviso no Boletim da Propriedade Industrial, com a transcrição do resumo”;
Não estando previsto no art. 26º, nº1, do C.P.I. de 1995, qualquer acto que deva publicar-se quanto aos pedidos de patente e não estando prevista no art. 62º, nº1, do C.P.I. de 1995, a publicação das alterações ocorridas num pedido de patente, mas apenas a publicação do pedido, com a transcrição do resumo (ou seja, sem as reivindicações), apenas resta dizer que a conclusão do tribunal a quo padece não só de contradição insanável, como de erro na interpretação e aplicação da lei;
O princípio geral da legalidade e tipicidade, aplicável também às causas de nulidade de direitos privativos de propriedade industrial consagrados na lei, deve, igualmente, ser considerado em toda esta matéria;
Na verdade, mesmo que se considerasse, aqui por dever de patrocínio, que a falta de publicação das alterações de reivindicações de patentes consubstanciasse uma “preterição de formalidades susceptíveis de pôr em causa o resultado final do processo” (art. 32°, nº1, al. b), do C.P.I. de 1995) - no que, em face de tudo quanto antecede, não se concede - sempre seria afastada esta causa de nulidade, por dois motivos;
Por um lado, a previsão de uma nulidade deve ser precisa e clara, o que resulta do aludido princípio geral da legalidade e tipicidade, nomeadamente das causas de nulidade; por outro lado, até se vai mais longe, também no âmbito do dever de patrocínio: mesmo que se pudesse integrar tal questão - no que também não se concede - no conceito vago e indeterminado de “preterição de formalidade”, sempre se deveria, como é evidente, curar de saber-se se seriam “(...) susceptíveis de pôr em causa o resultado final do processo” (art. 32°, nº1, al. b), do C.P.I. de 1995);
E, nesta matéria, entronca o próprio acórdão recorrido, que conclui - e bem - que não existe uma infracção susceptível de por em causa o resultado final do processo, pelo que não determina a nulidade do título de propriedade industrial prevista no art. 32º, nº1, al. b), do CPI de 1995;
Não exigindo a lei (C.P.I. de 1995 e de 2003) a publicação das reivindicações (as inicialmente pedidas ou posteriormente alteradas) como uma condição (processual ou substantiva) para a obtenção de um direito de patente, o incumprimento dessa formalidade - que não existe - nunca poderia ser causa ou fundamento de nulidade desse direito, aliás constitucionalmente consagrado e atribuído (Constituição da República Portuguesa, art. 42°- 2);
Mas, partindo dessa premissa - nos termos em que foi colocada no aresto recorrido - acaba por resultar também do mesmo uma outra contradição insanável;
Com efeito, lê-se naquele que a (suposta) falta de publicação das alterações das reivindicações da PT ... não integra, portanto, uma infracção de formalidade susceptível de pôr em causa o resultado final do processo, pelo que não determina a nulidade do título de propriedade industrial prevista no art. 3 2º, nº1, al. b), do CPI de 1995, lendo-se também, no entanto, que a patente concedida às autoras não pode produzir efeitos em relação a terceiros, sendo ineficaz perante a ré, ora apelante, o que conduziu à decisão de “declarar a patente nº ... mencionada em I dos factos provados inoponível à ré”;
Ora, se o direito é válido, não faz qualquer sentido que seja inoponível à ré e a terceiros;
Não se conhece nenhum direito privativo de propriedade industrial que, sendo válido, seja inoponível a terceiros, sob pena de se esvaziar, completamente, o escopo dos direitos conferidos pelos mesmos, nomeadamente quanto à sua oponibilidade e eficácia perante terceiros (no caso de uma patente, cfr. art. 101º, nº 2, do C.P.I., art. 96°, nº 2, do C.P.I. de 1995);
Em face do exposto, a decisão recorrida padece de contradição insanável e erro na interpretação e aplicação da lei, acabando por violar o disposto nos artigos 26°, nº1, 28°, nº1, 62°, nº1 e 96°, nº 2, do C.P.I. de 2005 e art. 101°, nº 2, do C.P.I., pelo que deve ser revogada.

A ré contra-alegou, pronunciando-se pela manutenção da decisão recorrida e concluindo nos seguintes termos:
A questão colocada pelas recorrentes é de contradição insanável e erro de interpretação e aplicação da lei. Como se alcança do acórdão recorrido, é inquestionável o acerto da decisão e não resulta do mesmo nenhum dos vícios que lhe vêm apontado pelas recorrentes, pelo que o recurso não tem fundamento e deverá, por isso, improceder;
Nas suas conclusões 2), 3) e 4), as recorrentes colocam questões que não passam de mera falácia, porquanto não é a decisão aqui em causa que coloca em crise o sistema de concessão de patentes em Portugal, uma vez que da mesma apenas resulta a correcta aplicação da lei e do direito. Por outro lado, tais conclusões configuram também uma constrangedora ameaça ao Estado Português, da qual nem se alcança o fundamento. A verdade é que, na perspectiva da recorrida, o Estado Português defraudou os interesses opostos aos das recorrentes ao proteger indevidamente um direito que não lhes é oponível - PT ...;
A jurisprudência invocada pelas recorrentes (ainda que douta) não assume relevo, por não apreciar a única questão aqui em causa - a da eficácia relativa da patente PT ... quanto à recorrida;
Quanto à aplicação da lei no tempo, do acórdão posto em crise resulta claramente que, embora com reservas, é aceite a aplicação do regime instituído pelo CPI de 1995 à patente em apreço nos autos;
No entanto, em tal aresto afasta-se a tese perfilhada pelas recorrentes de que as alterações substanciais ao pedido de patente que estas haviam formulado (de processo) e que a transmutaram em (também) patente de produto, poderiam e deveriam ter ocorrido em segredo, sem que se assegurasse os direitos de terceiros através de publicação. Em nosso modesto entender, como já vimos defendendo, nem seria necessário exorbitar das normas expressas no CPI, quer o de 1995, quer o de 2003, para já não falar no de 1940, para se concluir que a alteração em causa nestes autos (alteração substancial ao objecto de uma patente) carecia de publicação;
A título de exemplo, repare-se na força resultante da aplicação das disposições contidas na Parte Geral do CPI, Capítulo II, no que concerne às normas relacionadas com a prioridade de apresentação, designadamente do CPI de 1995, o art. 11°, nº 7 e no 10, e do CPI de 2003, o art. 11°, nº 13;
A este propósito, não resistimos à reprodução do teor do art. 11°, nº 10 do CPI de 1995: “Até ao momento da decisão (portanto, ainda enquanto pedido de patente, dizemos nós), poderão autorizar-se outras rectificações, como as do nome ou sede do requerente, desde que sejam pedidas em requerimento suficientemente fundamentado e devidamente publicadas”;
De tais excertos legais é legítima a conclusão de que as exigências de publicidade são transversais a todos os actos de procedimento de concessão de patentes (mesmo os actos menores) antes da decisão e, portanto, na pendência do que as recorrentes designam como “pedido de patente”. O que não ocorreu no presente caso;
As recorrentes alegam que as reivindicações não são publicadas, tentando iludir a questão de fundo. Seguindo de perto o raciocínio das recorrentes, nada mereceria publicação;
As alterações substanciais a um pedido de patente pendente (tal como o primeiro pedido de patente) devem ser publicadas na forma prescrita na lei. Isto é, devem sê-lo através do resumo da invenção, de modo a que seja mais facilmente perceptível aos interessados qual o âmbito das alterações introduzias no procedimento;
Repare-se que as alterações substanciais ao pedido de patente aqui em causa, correspondentes às referidas no facto provado XIV do acórdão recorrido, não foram feitas por “resumo”, mas resultaram de substanciais modificações nas reivindicações da patente ora em apreço;
O acórdão recorrido não acolhe a construção argumentativa das recorrentes no que concerne à tentativa de perfilar a questão aqui em apreço de uma única e mitigada perspectiva interpretativa da lei no sentido de a mesma acolher em exclusivo os interesses destas. Para as recorrentes, o que importa agora é iludir a questão fulcral (falta de publicação das alterações substanciais ao pedido de patente), socorrendo-se do regime instituído pelo CPI de 1995, como se do mesmo tal obrigação não resultasse, por um lado, e, por outro, como se desse regime derivasse o afastamento dos Princípios Gerais de Direito da certeza e da tutela da confiança de terceiros e ainda todo o regime geral de eficácia “erga omnes” dos actos constitutivos de direitos e respectivas excepções, designadamente no que concerne à basilar necessidade de publicidade dos mesmos;
A decisão recorrida aceita a aplicação do CPI de 1995 ao pedido de patente pendente à data da sua entrada em vigor (PT ...), conquanto se assegurem os direitos de terceiros pelo mecanismo da publicação dos actos. Sobretudo, dos actos que impliquem o alargamento do objecto de protecção relativamente ao pedido original;
Relativamente às conclusões 5), 6), 7). 8) e 9) das recorrentes, com o devido respeito pelos raciocínios aí expendidos, é verdade que a resposta a todas as questões também aí colocadas está no final da conclusão 9), na qual se reconhece expressamente (como não poderia deixar de ser) que há-de haver publicação de um aviso com resumo do pedido de patente;
E esse é o vício de que padece o procedimento em apreço nestes autos: a falta de publicação de aviso com resumo do pedido de patente de PRODUTO enxertado no pedido de patente de processo pendente;
Aliás, tais questões são resolvidas sem qualquer margem para dúvidas pelo acórdão recorrido, na página 17 e nota de rodapé (4) e na página 18;
No caso presente, as alterações substanciais às reivindicações deram causa a protecção derivada de uma patente de um produto químico ou farmacêutico que, antes da entrada em vigor do CPI de 1995, era proibida expressamente. O que ocorreu foi a atribuição de um direito novo no ordenamento jurídico português;
Só por si, independentemente da existência de qualquer norma que o exigisse expressamente, tal ocorrência deveria, pelo seu carácter absolutamente excepcional, ter sido publicada para protecção de terceiros;
Não há erro na interpretação e aplicação da lei, nem contradição, no acórdão recorrido, no que concerne à referência à norma do artigo 26°, nº1, do CPI de 1995, como se alcança da mera leitura das considerações tecidas a este propósito nas páginas 13 e 17 da decisão. A interpretação feita pelas recorrentes ao sentido com que é referida tal norma na decisão recorrida é, no mínimo, abusiva. Não se vê que a mesma se sirva de tal preceito como base interpretativa para declarar a ineficácia relativa da patente aqui em causa;
As recorrentes pretendem que se enquadre a questão em apreço nas questões do dia-a-dia do “sistema de propriedade industrial”, como se a mesma se resumisse a um mero diálogo entre examinador e requerente, centrado na análise às reivindicações de um pedido de patente, na pendência de um procedimento normal;
Porém, a questão central nos presentes autos é excepcional e está muito bem delimitada no acórdão recorrido, da seguinte forma (vide página 17): “a não publicação das alterações, que afectem os elementos essenciais e característicos a partir do momento da publicação mencionada no artigo 62°, nº1, traduz a violação de um requisito legal tendente à protecção de eventuais lesados, cuja falta implica a ineficácia do acto administrativo de concessão da patente”;
É iniludível que o que aqui está em causa é o alargamento do objecto da patente (PT ...), que era de processo, a um outro objecto - o produto (O...). O que interessa para o caso é a omissão de publicação do resumo da invenção, do qual se pudesse extrair o alargamento do âmbito de protecção da patente a conceder a uma nova espécie de patentes (até então proibida) - produtos químicos e farmacêuticos;
E, neste caso, as reivindicações são, elas mesmas, atacáveis, dependendo, para isso, da publicação do respectivo resumo no Boletim de Propriedade Industrial (artigos 28° e 62° do CPI de 1995);
Aplicando-se a nova lei (CPI de 1995), como decidiu o acórdão recorrido, qualquer alteração aos elementos essenciais e característicos do pedido (no caso configurando a alteração o alargamento do âmbito de protecção a um novo direito), a partir do momento da publicação mencionada no artigo 62°, nº1, do CPI de 1995 (ou do artigo 19º do CPI de 1940), sem publicação de novo aviso com transcrição do resumo no Boletim da Propriedade Industrial, corresponde à violação de um requisito legal tendente à protecção de eventuais lesados;
A referência “a latere” neste contexto ao artigo 26° do CPI de 1995 apenas sugere o que é um dos princípios mais basilares do Direito, ou seja, o que é para o mais é para o menos (ad maiore, ad minus);
Aos procedimentos administrativos, como é aqui o caso, aplicam-se as normas do Código do Procedimento Administrativo (CPA), entre as quais se alcança a referida na decisão recorrida - artigo 130°, nº 2;
A alteração ao objecto do pedido de patente pendente e que não foi publicada, cerceou à recorrida os meios de reclamação no procedimento administrativo de concessão de patente quanto ao conteúdo das alterações introduzidas nas reivindicações;
Mas, mais grave, é que tal condicionante inibiu também a recorrida de usar os restantes meios jurisdicionais permitidos para questionar a validade da patente aqui em causa, uma vez que o objecto que foi publicado não permitia a conclusão de que se tratava de uma patente de produto;
A questão da nulidade não é susceptível de apreciação nestes autos de recurso, porquanto a decisão é, nessa parte, favorável às recorrentes, não devendo ser apreciada;
Quanto à inoponibilidade e ineficácia da patente em causa - PT ... -, relativamente à recorrida, o que está em causa é a eficácia relativa dos direitos, da qual resulta que, em determinadas circunstâncias (como são as dos autos), um determinado direito (como é o da PT ...), tendencialmente com eficácia “erga omnes”, é limitado (relativamente) quanto a um concreto sujeito (a recorrida, no caso sub judice);
Citando o Professor Orlando de Carvalho, “Direito das Coisas”, edição policopiada, Coimbra, FDUC, 1977 (pág. 12, 2a parte das lições): “princípio da publicidade: princípio de que, sendo um direito erga omnes, o direito das coisas deve ser conhecido ou cognoscível das pessoas que virtualmente ele afecte, designadamente de terceiros (...) é óbvio que o aspecto externo do direito real tem que exigir uma publicidade suficiente para se dar a conhecer a terceiros um fenómeno que, por definição, lhes diz respeito”;
Citando o Professor Carlos Alberto da Mota Pinto, em “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª Edição actualizada, Coimbra Editora, que, nas páginas 605 e 606: “O conceito de ineficácia em sentido estrito definir-se-á, coerentemente, pela circunstância de depender, não de uma falta ou irregularidade dos elementos internos do negócio, mas de alguma circunstância extrínseca que, conjuntamente com o negócio, integra a situação complexa (fattispecie) produtiva de efeitos jurídicos. (...) A ineficácia será relativa se se verificar apenas em relação a certas pessoas (inoponibilidade), só por elas podendo ser invocada (o negócio, embora eficaz noutras direcções, é inoponível a certas pessoas). (...) Os negócios feridos de ineficácia relativa produzem, pois, efeitos, mas não estão dotados de eficácia relativamente a certas pessoas. Daí que sejam, por vezes, apelidados de negócios bifrontes ou negócios com cabeça de Jano, numa alusão a uma divindade da mitologia latina, representada na estatuária por uma figura com duas caras”.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.
Estão provados os seguintes factos:
Foi pedida em 23 de Abril de 1991 (reivindicando a prioridade da patente GB9009229, de 25 de Abril de 1990), tendo sido concedida em 21 de Abril de 1997 e estando válida até 21 de Abril de 2012, a PT ..., da titularidade da ora 1ª autora, " BB AND COMPANY LIMITED", sob a epígrafe “Processo para a preparação de um derivado de T..., útil como produto farmacêutico”, que corresponde à patente base da “O...”, protegendo substância activa “O...” e o respectivo processo da sua obtenção (cfr. certificado e certidão da dita PT ... emitidos pelo I.N.P.I. que figuram como docs. nºs 7 e 8 nos autos de procedimento cautelar apensos).
Encontra-se devidamente averbado no Instituto Nacional da Propriedade Industrial um Contrato de Licença de Exploração da PT ... concedido pela 1ª autora à 2ª - "BB PORTUGAL - PRODUTOS FARMACÊUTICOS, LDA" (acordo das partes e mesmo doc. nº 8 dos autos de procedimento cautelar apensos).
Entre os produtos farmacêuticos da ora dita 1ª autora conta-se o medicamento “Z...”, lançado no mercado português em 1997.
Que se trata de um antipsicótico, destinado, nomeadamente, ao tratamento da esquizofrenia e dos episódios maníacos, moderados a graves, disponível sob a forma de comprimidos revestidos, contidos em embalagens tipo blister.
E em cuja composição figura a substância activa denominada “O...”.
A “CC - INDÚSTRIA FARMACÊUTICA. S.A”, ora ré, requereu junto do Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (INFARMED) - actualmente Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde, I.P. - a Autorização de Introdução no Mercado (A.I.M.) do medicamento “DD”, A.I.M. essa que foi aprovada em 26 de Abril de 2007.
A composição do medicamento “DD” assenta precisamente na substância activa “O...”.
A patente concedida à 1ª autora comporta 22 reivindicações conforme o respectivo certificado.
A ré já pediu a aprovação à Direcção-Geral das Actividades Económicas da atribuição do preço do medicamento “DD”.
A ré não tem consentimento ou licença da lª autora para comercializar, em Portugal, o princípio activo “O...”.
A patente … foi pedida na vigência do Código da Propriedade Industrial de 1940, aprovado pelo Decreto nº 30.679, de 24 de Agosto de 1940, como patente de processo.
Mas examinada e concedida na vigência do Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, o que permitiu a inclusão de reivindicações de produto.
A PT … apresenta vinte e duas reivindicações, referentes a composto (1 a 3), composto para utilização como fármaco (4), utilização do composto no fabrico de um medicamento (5 a 9), composição farmacêutica (10 e 13 a 16), forma de dosagem (11 e 12), injecção farmacêutica (17 a 19), processo para preparação (20) e intermediário do processo (21 e 22), conforme docs. 7 e 8 da providência cautelar apensa.
A reivindicação 3 diz especificamente respeito à “O...”.
As mencionadas reivindicações de produto, que implicaram uma alteração do pedido de patente que inicialmente fora apresentado pelas autoras, nunca foram objecto de qualquer publicação, nomeadamente no Boletim da Propriedade Industrial.

3. O Direito.

As autoras pretendem fazer valer um direito de propriedade industrial resultante da titularidade e licenciamento de uma patente de invenção portuguesa, a PT nº …, concedida em 21 de Abril de 1997, além do mais, para protecção da substância activa com utilidade farmacêutica denominada O..., com 22 reivindicações de produto, encontrando-se tal patente em vigor até 21 de Abril de 2012.

A 1ª instância deu total acolhimento à pretensão das autoras, considerando que, sendo aplicável ao caso ajuizado o C.P.I de 1995, fora plenamente lícita, porque permitida, a atribuição da protecção nos termos em que efectivamente se verificou, não se detectando em tal atribuição a preterição de quaisquer formalidades que pudessem conduzir à sua nulidade ou disposição legal que impusesse a publicação de alterações ao pedido de patente anteriormente apresentado.

Já a Relação de Coimbra, sem pôr em causa a aplicação do aludido diploma legal de 1995, ainda que com fundamentos diferentes, entendeu que, embora não sendo caso de nulidade do título de propriedade industrial, a transformação do pedido de patente inicialmente formulado pela 1ª autora em patente com reivindicações de produto não foi acompanhada da indispensável publicação no Boletim da Propriedade Industrial, conforme era exigido pelos arts. 62º e 28º do CPI de 1995, pelo que não podia produzir efeitos em relação a terceiros, sendo ineficaz perante a ré.

A patente é um direito privativo da propriedade industrial que visa proteger uma invenção, ou seja, vem dar resposta a um problema técnico, assim se distinguindo a invenção protegida pela patente da simples descoberta.
Não existe uma definição legal de invenção.
Na perspectiva mais tradicional, ainda hoje dominante na Europa, como refere Luís Couto Gonçalves (Manual de Direito Industrial, 2ª ed. pags. 56 e 57), “a invenção surge como um ensinamento para uma acção planeada, com a utilização das forças da natureza susceptíveis de serem dominadas, para a obtenção de um resultado causal previsível”.
“Para ser patenteável - continua o mesmo Autor -, o mesmo é dizer, para ser protegida como coisa em sentido jurídico, é necessário que a invenção seja legalmente possível, lícita e preencha os requisitos de patenteabilidade, ou seja, a novidade, a actividade inventiva (originalidade) e a susceptibilidade de aplicação industrial.
A noção de invenção patenteável e os requisitos de objecto e de patenteabilidade são hoje, aliás, praticamente comuns às legislações nacionais dos diferentes países europeus, situação explicada pela fortíssima influência uniformizadora da Convenção da Patente Europeia – CPE (arts. 52º a 57º).
(…) Todavia, deve reconhecer-se que o conceito de invenção tem vindo a ser questionado, nos últimos anos, especialmente em relação ao duplo requisito de tecnicidade (solução e problemas técnicos). O conceito tradicional de invenção técnica (technological arts) começa a ser confrontado com o conceito mais amplo e menos exigente de invenção-útil (useful arts), pelo que a patente pode alargar o seu âmbito a actividades não estritamente técnicas”.

No domínio do C.P.I. de 1940, cuja vigência só cessou em 1.6.95, o § 3 do art. 5º vedava a concessão de patentes de alimentos e de produtos farmacêuticos (patentes de produto) e § 4 deste normativo esclarecia que a proibição abrangia, no mais, quaisquer substâncias químicas.
Mas tais normas não impediam a protecção do processo de os obter, nem as “máquinas” ou “aparelhos” destinados ao fabrico daqueles alimentos, produtos farmacêuticos e químicos.
Esta impossibilidade de tutelar tais realidades alicerçava-se, dizem Remédio Marques e Nogueira Serens (Direito, Ano 138º (2006) V, pag. 1015) “na necessidade de impedir a criação de monopólios sobre os medicamentos (bem como os produtos alimentares), não só para prevenir a especulação dos preços de venda destes bens essenciais, mas também por razões de saúde pública.
(…).
O advento do regime democrático, e extinção dos organismos corporativos e do regime de condicionamento industrial, bem como a adesão de Portugal à CEE inverteram totalmente os valores por cujo respeito se haviam excluído as invenções de produtos químicos e farmacêuticos deste subsistema da propriedade industrial.
Não sendo necessário esperar pelos acordos do GATT, que deram origem, em finais de 1994, à Organização Mundial do Comércio, em matéria de propriedade industrial, passou-se a impedir que os Estados aderentes discriminassem certos sectores tecnológicos, no que à patenteabilidade dizia respeito - basta atentar no disposto no art. 27º/1 do Acordo TRIPS (Anexo IV ao acordo que instituiu a Organização Mundial do Comércio). Mas logo no Tratado de Adesão da República Portuguesa à então Comunidade Económica Europeia, o Estado Português obrigara-se a aderir, o mais tardar até 1 de Janeiro de 1992, à Convenção da Patente Europeia (Convenção de Munique de 1973, com início de vigência em 1.1.1978).
Ora, como a Convenção da Patente Europeia prevê a patenteabilidade das substâncias químicas e dos fármacos, os requerentes das patentes europeias, cujos pedidos fossem apresentados junto do Instituto Europeu de Patentes, passaram a poder designar Portugal como Estado de protecção de patentes europeias respeitantes àquelas realidades.
O C.P.I de 1940 não foi, porém, objecto de alteração com vista à abolição da norma que impedia a concessão do direito de patente às invenções de fármacos, preparações farmacêuticas e de outras substâncias químicas (patentes de produto), de modo a harmonizar o regime das patentes nacionais requeridas e sujeitas a exame junto do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) com o das patentes europeias respeitantes aos mencionados inventos.
Somente em 1.6.1995, no que respeita às patentes nacionais, o nosso ordenamento jurídico passou a permitir a protecção de invenções de substâncias químicas e produtos ou preparados farmacêuticos. De facto, o art. 48º/2 do CPI de 1995, por mor de transposição de uma regra que já existia na Convenção da Patente Europeia (art. 52º/4), passou a autorizar a patenteabilidade dos produtos, substâncias ou composições utilizados na execução de métodos de diagnóstico e de tratamento cirúrgico ou terapêutico aplicados ao corpo humano ou animal.
Assim, tornou-se controverso, pelo menos no que aos interesses dos requerentes de patentes de produtos e preparados farmacêuticos diz respeito, saber o destino dos pedidos nacionais de patentes destes produtos, formulados junto do INPI antes de 1.6.95 e apreciados em data posterior, mais precisamente, surge a dúvida sobre o destino dos pedidos nacionais de patentes de produtos desta natureza, apresentados junto do INPI antes do dia 1.1.92, mas cujo exame tenha sido realizado e tenham sido objecto de acto administrativo de concessão já na vigência, no nosso País, da Convenção da Patente Europeia e de CPI de 1995”.

Como atrás dissemos, as instâncias aplicaram ao caso em apreço o CPI de 1995, sendo também certo que as partes, neste aspecto, não apresentam qualquer discordância.

De acordo com o disposto no art. 12º, nº1, do C.Civil, a lei só dispõe para o futuro e, ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.
E acrescenta o nº 2 que, quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.

Os problemas da sucessão de leis no tempo suscitados pela entrada em vigor de uma LN (v. Baptista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, pags. 229 e seguintes) podem, pelo menos em parte, ser directamente resolvidos por esta mesma lei, mediante disposições adrede formuladas, chamadas disposições transitórias, que podem ser de carácter formar ou material.
Porém, a maior parte das vezes ou para a grande maioria dos casos o legislador nada diz em especial sobre a lei aplicável a situações em que se suscita um problema de conflito de leis no tempo. O jurista é, então, remetido para o princípio da não retroactividade da lei, nos termos do citado art. 12º, cabendo à doutrina, à lei e à jurisprudência apurar um critério racional e preciso que permita definir a retroactividade, ou seja, que permita desenhar com nitidez a linha de confins que separa o âmbito de competência (de aplicabilidade) da LA e da LN.
“Desenvolvendo o princípio da não retroactividade nos termos da teoria do facto passado, o art. 12º, nº 2, distingue dois tipos de leis ou de normas: aquelas que dispõem sobre os requisitos de validade (substancial ou formal) de quaisquer factos (1ª parte) e aquelas que dispõem sobre o conteúdo de certas relações jurídicas e o modelam sem olhar aos factos que a tais situações deram origem (2ª parte). As primeiras só se aplicam a factos novos, ao passo que as segundas se aplicam a relações jurídicas (melhor: Ss Js) constituídas antes LN, mas subsistentes ou em curso à data do seu IV”.
À parte isto, o nº 2 do art.12º deixa entrever a possibilidade de leis que regulem o conteúdo das relações jurídicas atendendo aos factos que lhe deram origem (sem abstrair destes factos).
Posto isto, a teoria da aplicação das leis no tempo poderia ser sintetizada, “distinguindo entre constituição e conteúdo das Ss Js. À constituição das Ss Js (requisitos de validade, substancial e formal, factos constitutivos) aplica-se a lei do momento em que essa constituição se verifica; ao conteúdo das Ss Js que subsistam à data do IV da LN aplica-se imediatamente esta lei, pelo que respeita ao regime futuro deste conteúdo e seus efeitos, com ressalva das situações de origem contratual relativamente às quais poderia haver uma como que “sobrevigência” da LA”:

Há duas grandes categorias de patentes: a patente de produto e a patente de processo.
A primeira incide sobre uma entidade física, uma coisa corpórea, um produto, um dispositivo, uma composição, uma substância, uma máquina, enquanto que a de processo recai sobre uma actividade, sobre um método ou um procedimento de utilização.
A patente depende de registo, que é constitutivo e dá origem ao direito de patente.
À fase anterior - que é o caso dos autos -, em que o interessado formula o seu pedido, corresponde um direito diverso: o direito à patente.
Trata-se de situações diversas a que correspondem direitos distintos: direito à patente, a que correspondente um direito subjectivo do inventor a um certo comportamento da administração, oponível a esta, e que nasce com a solicitação da concessão, reunidos que sejam os requisitos da patentabilidade e direito de patente, que nasce e se constitui com a concessão e que corresponde um direito igualmente subjectivo de exploração económica do evento, em regime de monopólio e oponível erga omnes.

Podemos, então, concluir que, não se tendo estabilizado, no caso ajuizado, aquando da entrada em vigor do CPI de 1995 a decisão do INPI sobre a concessão requerida pelas autoras, pois que durante a pendência de um pedido de patente não existe ainda uma situação jurídica constituída, mas sim uma situação jurídica a constituir, a administração pública não pode deixar de considerar a nova lei, o que vale por dizer que a situação em apreço cai na previsão da parte final do nº 2 do art. 12º do C.Civil.

Decorre dos factos dados como assentes que a patente … foi pedida na vigência do Código da Propriedade Industrial de 1940 como patente de processo. Porém, foi examinada e concedida na vigência do Código da Propriedade Industrial aprovado pelo Decreto-Lei nº 16/95, de 24 de Janeiro, o que permitiu a inclusão de reivindicações de produto.
A PT … apresenta, com efeito, vinte e duas reivindicações, referentes a composto (1 a 3), composto para utilização como fármaco (4), utilização do composto no fabrico de um medicamento (5 a 9), composição farmacêutica (10 e 13 a 16), forma de dosagem (11 e 12), injecção farmacêutica (17 a 19), processo para preparação (20) e intermediário do processo (21 e 22), sendo certo que reivindicação 3 diz especificamente respeito à substância activa “O...”.

Nos termos do disposto no art. 26º/1 do CPI de 1995, qualquer alteração que não afecte os elementos essenciais e característicos da patente, modelo, desenho ou registo poderá ser autorizada, no mesmo processo, desde que devidamente fundamentada e publicada, para efeitos de recurso, nos termos do disposto nos arts. 38º e seguintes.

Referem Remédio Marques e Nogueira Serens (ob. cit., pag. 1051) que o “objecto do pedido de patente é determinado pelo teor ou conteúdo das reivindicações, de modo que a alteração das reivindicações não pode consistir numa transformação radical dessas reivindicações dirigida a suprimir o conteúdo original e a inserir no seu lugar, o que, embora compreendido na descrição, não havia sido inicialmente reivindicado”.
Acompanhamos inteiramente esta posição, mas já, com o devido respeito, divergimos da opinião desses mesmos Autores, quando defendem que o art. 26º/1 “deve aplicar-se à fase administrativa destinada à apreciação do pedido de patente”.
Na verdade, como atrás dissemos, o direito à patente e o direito de patente são duas realidades jurídicas distintas, sendo certo que esse normativo está direccionado para as realidades jurídicas já constituídas.
Isso mesmo faz notar José Mota Maia (Propriedade Industrial (Almedina, V. II), ao advertir que a referida norma se relaciona com “alterações ou correcções depois de concedido o direito de propriedade industrial sobre o qual incidem”.
O que significa que não estavam as autoras impedidas de incluir no pedido de concessão as reivindicações de produto.

Dispõe o art. 120º do CPI de 1995 que, além dos casos previstos no art. 32º, a patente é nula quando o seu objecto não satisfizer os requisitos de novidade, actividade inventiva e aplicação industrial; quando a epígrafe ou título dado ao invento abranger objecto diferente e quando o seu objecto não foi descrito de maneira que permita a execução por qualquer pessoa competente na matéria.
Prescrevendo, por seu turno, o art. 32º, nº2, que a declaração de nulidade pode ocorrer enquanto subsistir o interesse nessa declaração.
E o art. 34º, nº1, que a declaração de nulidade ou anulação só podem resultar de decisão judicial em acção intentada pelo Ministério Público ou qualquer interessado (nº 2).

As instâncias, contrariando a pretensão da ré, não encontraram razões para a declaração da nulidade. E é esta, sem dúvida, a realidade emergente dos factos dados como provados, certo também que este segmento decisório nem sequer é questionado.

Mas se as instâncias convergiram na apreciação desta questão, já divergiram no que toca à necessidade da publicação das alterações ao pedido de patente anteriormente apresentado.
Para a 1ª instância não existia disposição legal que impusesse a publicação de alterações. Mas para o tribunal recorrido, a transformação do pedido de patente inicialmente formulado pela 1ª autora em patente com reivindicações de produto não foi acompanhada da indispensável publicação no Boletim da Propriedade Industrial, conforme era exigido pelos arts. 62º e 28º do CPI de 1995, pelo que não podia produzir efeitos em relação a terceiros, sendo ineficaz perante a ré.

É este, sem dúvida, o cerne do recurso.
A Relação faz apelo, na defesa da sua posição, à interpretação do princípio plasmado no aludido art. 26º.
Mas, depois de afirmar que “nada aponta para que esta última norma se aplique à fase administrativa destinada à apreciação do pedido de patente”, conclui:
«…Já se sublinhou que a situação que os autos documentam não é de alteração de pedido formulado ao abrigo do Código de 1995: é antes de uma mera harmonização processual da nova pretensão deduzida às novas regras substantivas, seguindo a nova tramitação prescrita. Consideramos assim que a mesma norma - o aludido art. 26º, nº1, do C. de 95 - embora acolha inequivocamente o princípio da estabilidade ou intangibilidade das reivindicações respeitantes aos elementos essenciais das invenções, não podia prejudicar a mera adequação dos pedidos pendentes ao abrigo do C.P.I. de 1940. Aliás, não está aqui em causa uma mudança total ou parcial de categoria das reivindicações de processo para reivindicações de produto, no domínio do CPI de 1995, mas sim a simples adaptação ou conformação do pedido de patente, em função de novos elementos adicionais ao objecto da patente (nacional) de processo que havia sido requerido em data anterior ao início da vigência deste diploma inovador. Em si mesma, a alteração em apreço, produzida após a publicação do pedido, não implica, tão pouco, a preterição de formalidades legais que constituiria fundamento de recusa da patente, nos termos do art. 25°, nº1, al. c), do CPI de 1995. E muito menos a preterição de formalidades susceptíveis de pôr em causa o resultado final do processo, que constitui fundamento de nulidade do direito de patente, nos termos do art. 32°, nº1, a1. b), do mesmo Código. Haverá, deste modo, que concluir que a proibição legal de alteração dos elementos essenciais e característicos da patente, decorrente do preceituado no art. 26°, n°1, do CPI de 1995, embora se reporte a direitos de propriedade industrial já concedidos, não tolhia a harmonização dos pedidos que transitavam do regime proibitivo precedente.
(…)
O art. 28º do Código de 1995, tal como o presente art. 29º do actual, prescreve que os actos que devam publicar-se são levados ao conhecimento das partes e do público por meio da sua inserção no Boletim da Propriedade Industrial, funcionando essa publicação como notificação directa às partes.
De acordo com o nº 2 do artigo 130º do Código do Procedimento Administrativo, «a falta de publicidade do acto, quando legalmente exigida, implica a sua ineficácia».
Segundo o art. 62°, nºl, do Código de 1995 (cfr. os arts. 19°, n°1, do Código de 1940 e 66°, nº1, do Código de 2003), da apresentação do pedido no INPI será publicado aviso no BPI, com a transcrição do resumo. Por virtude do estatuído no art. 26°, nºl, do CPI de 1995 (cfr. o art. 25°, nº 3, do CPI de 2003), a simples alteração de elementos não essenciais da patente já concedida também é publicada. Logo, a não publicação das alterações que afectem elementos essenciais e característicos a partir do momento da publicação mencionada no citado art. 62°, nº1, traduz a violação de um requisito legal tendente à protecção de eventuais lesados, cuja falta implica a ineficácia do acto administrativo da concessão da patente. Não integra, portanto, uma infracção de formalidade susceptível de pôr em causa o resultado final do processo, pelo que não determina a nulidade do título de propriedade industrial prevista no art. 32º, nº1, a1. b), do CPI de 1995. Refira-se, a propósito, que a apresentação do resumo do invento tem a vantagem de permitir apreender, com maior facilidade e rapidez, o seu objecto e obter apreciável economia de espaço na publicação, dada a frequente extensão das reivindicações, não sendo o preceito que prevê tal apresentação mais do que uma norma com significado processual… .Com a modificação do objecto a patentear nenhum argumento pode ser avançado para se defender que os terceiros a ela se não podem opôr, tal como acontece com o normal contencioso administrativo do pedido de patente - cfr. os arts. 66, n° 2, do CPI de 1995 e 17º, nº 1 do Código actual.
Em suma: decorre da matéria provada que a transformação do pedido de patente inicialmente formulado pela 1ª autora em patente com reivindicações de produto não foi acompanhada da indispensável publicação no Boletim da Propriedade Industrial, conforme era exigido pelos arts. 62º e 28º do CPI de 1995 (correspondentes aos actuais arts. 66º e 29º). Em consequência, a patente concedida às autoras não pode produzir efeitos em relação a terceiros, sendo ineficaz perante a ré, ora apelante».

Que dizer?
Em anotação ao art. 9º do C.Civil, dizem Pires de Lima e Antunes Varela ( C.C.Anotado, Vol. I, 4ª ed., pags. 58 e 59) que “o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei.
Quando, porém, assim não suceda, o Código faz apelo franco, como não poderia deixar de ser, a critérios de carácter objectivo, como são os que constam do nº 3”.
E Baptista Machado (ob. cit., pag. 188), pronunciando-se sobre a posição do Código Civil sobre o problema da interpretação, refere:
“A letra (o enunciado linguístico) é, assim, o ponto de partida. Mas não só, pois exerce também a função de um limite, nos termos do art. 9º, nº 2: não pode ser considerado como compreendido entre os sentidos possíveis da lei aquele pensamento legislativo (espírito, sentido) “que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”. Pode ter de proceder-se a uma interpretação extensiva ou restritiva, ou até porventura a uma interpretação correctiva, se a fórmula verbal for sumamente infeliz, a ponto de ter falhado completamente o alvo. Mas, ainda neste último caso, será necessário que do texto “falhado” se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação”.

Dispõe o art. 28°, nº1, do C.P.I. de 1995, que “Os actos que devem publicar-se, nos termos do presente diploma, serão levados ao conhecimento das partes e do público por meio da sua inserção no Boletim da Propriedade Industrial”
Por sua vez, o art. 62°, do mesmo diploma legal determina que “Da apresentação do pedido no Instituto Nacional da Propriedade Industrial publicar-se-á aviso no Boletim da Propriedade Industrial, com a transcrição do resumo”.
Ora, as alterações a que se refere o citado art. 26º, que, para poderem ser autorizadas, no mesmo processo, têm de estar devidamente fundamentadas e publicadas, para efeitos de recurso, de acordo com os critérios interpretativos referidos, não se referem às situações jurídicas ainda não consolidadas, isto é, que ainda estão pendentes da decisão da administração, como é o caso dos autos, mas apenas às realidades jurídicas já constituídas.
É, sem dúvida, o que decorre do nº1 deste preceito legal: “Qualquer alteração que não afecte os elementos essenciais e característicos da patente (sublinhado nosso)…”.

E não se diga que a necessidade da publicação das alterações das reivindicações da PT ... decorre da necessidade harmonização com o regime anterior (C.P.I. de 1940), que autorizava, irrestritamente, a alteração das reivindicações, oficiosamente sugerida ou solicitada pelo requerente, durante o procedimento de patenteabilidade, havendo apenas, nos termos do § 4 do art. 172º, o cuidado de realizar uma nova publicação, com vista à apresentação de novas reclamações, se o pedido fosse “sensivelmente diferente” do que se havia já publicado, já que este regime não é, aqui, aplicável, mas antes o que decorre do CPI de 1995.

De resto, o resumo do evento não é mais que um documento, que deve ser apresentado, em duplicado, com o requerimento do pedido de patente de invenção (cfr. arts. 57º e 58º, al. d)) e, mesmo no domínio do CPI de 1940 (cfr. art. 15º, § 4), servia exclusivamente para fins de informação técnica, não sendo tomado em consideração para qualquer outra finalidade, designadamente para determinar a extensão da protecção requerida e, consequentemente, para tutelar as expectativas de terceiros interessados quanto ao âmbito total de protecção da patente, o mesmo sucedendo com o CPI de 2003 (cfr. art. 62º, nº 6, al. b)).

Assim, já podemos concluir que assiste razão às recorrentes.

4.
Face ao exposto, e sem necessidade de outras considerações, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, para ficar a valer a decisão da 1ª instância.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 27 de Janeiro de 2010

Oliveira Rocha (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista