Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
31/13.0TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: DESERÇÃO DA INSTÂNCIA
PRESSUPOSTOS
NEGLIGÊNCIA
DECISÃO JUDICIAL
CASO JULGADO FORMAL
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I - A norma a que alude o art.º 281.º n.º 1 CPCiv funciona ope judicis, e não ope legis, pelo que a instância só pode considerar-se deserta depois de apreciados expressamente todos os requisitos da norma, os quais, além da passagem do tempo, abrangem a “negligência das partes”.

II - Se o despacho ou despachos que antecederam o despacho recorrido, tinham apenas um sentido declarativo ou enunciativo (“os autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º do Código de Processo Civil”), não constituem caso julgado formal para a necessária decisão que declare a deserção da instância, nos termos da norma em causa.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

As Partes, o Pedido e o Objecto do Processo

Liminorke, SGPS, S.A., propôs a presente acção com processo comum de declaração contra Deloitte & Associados, SROC, S.A.

No decorrer da acção foram admitidos como intervenientes principais, pelo lado passivo, a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A., e a Companhia de Seguros Açoreana, S.A.

Foram também admitidos como intervenientes acessórios, pelo lado passivo, AA, BB de CC, DD, EE, FF, GG, HH, II, JJ e Privado Holding, SGPS, S.A.

Na audiência prévia, realizada em 08/11/2019, foi proferido despacho saneador, julgada improcedente a excepção de ilegitimidade e fixado o objeto do litígio.

Relativamente aos temas da prova foi proferido o seguinte despacho:

“(…) Sucede que no caso dos autos as partes apresentaram articulados:

- Petição inicial com 202 artigos

- contestação com 611 artigos

- Réplica com 127 artigos

- 12 contestações apresentadas por outros tantos chamados (intervenção acessória)

- tudo isto distribuído por 17 volumes de processo físico, composto por 3601 folhas.

Nos termos do art.º 7º do Código de Processo Civil estão as partes obrigadas a cooperar e concorrer para uma justa, breve e eficaz composição do litígio pelo que se afigura consentâneo convocar as partes para a actividade relativa à delimitação dos termos do litigio e à selecção dos factos relevantes/temas da prova, solicitando a sua colaboração nesta tarefa de seriação da matéria de facto e responsabilizando-as pela “condensação” do processo.

Assim, concedo às partes o prazo de 30 dias para os referidos efeitos findos os quais, deverá ser junto aos autos o “projecto” conjunto contendo os factos já assentes e os que, por se mostrarem controvertidos, constituirão temas da prova, que constituirá base de trabalho a apreciar na continuação desta audiência prévia, a realizar no dia 12 de Dezembro de 2019, pelas 14:00 horas.”

Por requerimento de 05/12/2019 e respetivas declarações de adesão, a A., a R. e os intervenientes GG, HH, JJ, Açoreana Seguros, S.A., AA, EE, FF, DD, AIG EUROPE, Seguradoras Unidas, informaram que:

“1.º Imediatamente após a audiência prévia, foram encetadas diligências no sentido de dar cumprimento ao doutamente ordenado por V. Exa. – apresentação de projecto conjunto contendo os factos assentes e temas de prova.

2.º No entanto, até à presente data, dado, designadamente, o número de intervenientes no processo, a dimensão das peças processuais e as questões aí suscitadas, não foi ainda possível dar por concluídos os trabalhos.

3.º Não obstante a evolução dos trabalhos com vista à apresentação do projecto supra referido, será ainda necessário fazer ajustes aos projectos em discussão (projectos individuas já apresentados) e a unificação dos mesmos num documento final.

4.º Pelo exposto, as partes, não obstante os esforços desenvolvidos, não estão ainda em condições de dar cumprimento ao ordenado em sede de audiência prévia, até ao dia 6/12/2019. Assim, requer-se a V. Exa. que se digne prorrogar, até ao dia 14/01/2020, o prazo para cumprimento do doutamente ordenado em sede de audiência prévia.

Mais se requer que seja dada sem efeito a data de 12/12/2019 designada para continuação da audiência prévia, procedendo-se ao seu reagendamento face à ora requerida prorrogação de prazo até 14/01/2020.”

Em 06/12/2019 foi proferido o seguinte despacho:

“Atento o requerido dou sem efeito a data designada para a realização da audiência prévia, designando em sua substituição o dia 11/02/2020, pelas 14.00, e não antes por indisponibilidade de agenda. As partes devem juntar aos autos o projecto conjunto contendo factos assentes e temas da prova até ao dia 31 de Janeiro de 2020. Desconvoque e notifique.”

E em 06/02/2020 foi proferido despacho do seguinte teor:

“Em sede de audiência prévia realizada a 08/11/2019 foram as partes convocadas, ao abrigo do princípio da colaboração a juntar aos autos um projecto conjunto contendo os factos assentes e aqueles que consideram controvertidos, que constituirá objecto de trabalho em nova sessão de audiência prévia que logo se agendou para 12/12/2019.

Em 5/12/2019 vieram as partes, por requerimento conjunto, solicitar a prorrogação do prazo para apresentação do projecto até 14/01/2020, porquanto não estavam reunidas as condições para dar cumprimento ao ordenado.

Por despacho de 06/12/2019 deferiu-se o requerido designando-se para a continuação da AP o dia 11/02/2020 com a expressa menção de que as partes deveriam juntar aos autos o projecto conjunto até ao dia 31/01/2020.

Decorrido tal prazo e até esta data, nada foi junto aos autos. A complexidade dos autos e a extensão dos articulados desaconselha a realização da AP, sem a análise criteriosa de projecto elaborado pelas partes nos termos anteriormente ordenados e aceite sem qualquer oposição.

Assim, dou sem efeito a diligência agendada para o dia 11/02/2020.

Os autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281º do Código de Processo Civil.

Desconvoque e notifique.”

Por requerimentos de 19/11/2020 e de 20/11/2020 a interveniente Generalli e a R. requereram a declaração de extinção da instância por deserção.


As Decisões Judiciais

Em 20/11/2020, foi proferida a seguinte decisão, em 1.ª instância:

“Por despacho de 06/02/2020 foram as partes notificadas de que os autos aguardariam o impulso processual, sem prejuízo do disposto no art.º 281º do Código de Processo Civil.”

“Dispõe o artigo 281º, nº 1 do CPC que se considera deserta a instância quando, por negligência das partes, o processo se encontrar a aguardar impulso processual há mais de seis meses.”

“No caso dos autos, atento o tempo já decorrido desde a notificação de tal despacho, sem que as partes tenham vindo juntar aos autos projecto conjunto contendo os factos assentes e aqueles que se consideram controvertidos e que constituiriam objecto de trabalho em audiência prévia a agendar (conforme despacho de 8/11/2019 e 06/12/2019) ou invocar qualquer causa justificativa de tal falta, há que concluir pela verificação da sua negligência.”

“Pelo exposto, julga-se extinta a instância, por deserção – art.º 277º, al. c) e 281º ambos do Código de Processo Civil.”

Tendo a Autora recorrido de apelação, o Tribunal da Relação veio a revogar a referida decisão, determinando o prosseguimento dos autos.

Para o efeito, fundamentou:

- não é qualquer impasse no processo que justifica a extinção da instância por deserção, mas são seus pressupostos cumulativos a falta de impulso processual das partes, mormente do Autor, para o prosseguimento da instância (de natureza objectiva) e a inércia imputável a negligência das partes (de natureza subjectiva), o que exclui os casos em que o impasse não possa, ou não deva, ser superado oficiosamente pelo tribunal, num processo cada vez mais marcado pelo impulso oficioso do juiz – art.º 6.º n.º 1 CPCiv;

- é certo que as partes não juntaram ao processo o impetrado “projecto conjunto de seriação do processo e condensação da matéria de facto”, mas tal omissão não consubstancia falta de prática de acto que a lei imponha à parte (ónus processual) e não é impeditiva do prosseguimento da tramitação normal do processo, com a prolação do despacho que enuncie os temas de prova;

- o despacho datado de 08/11/2019 não constituiu sequer uma ordem dirigida às partes, mas sim uma solicitação dirigida às partes – e não apenas à A. – sendo certo que sem a cooperação entre A., R. e intervenientes não seria possível apresentar projeto conjunto;

- perante a falta de apresentação do projecto impunha-se que o Tribunal retomasse a tramitação normal do processo, com marcação da realização de audiência prévia, designadamente com o objetivo de proferir o despacho a que alude o art.º 596.º, nº 1, ex vi artº 591º, nº 1, al. f) do CPC;

- os ónus processuais estão previstos na lei, não assumindo tal natureza o mero efeito da advertência constante de despacho judicial, “sem prejuízo do disposto no artº 281º do CPC”;

- o artº 6º CPCiv rege sobre o dever de gestão processual; constitui ressalva a este dever o ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes (cfr. nº 1 do artº 6º); essa direção implica a concessão de poderes tendentes a assegurar a regularidade da instância e o normal andamento do processo, só excecionalmente cabendo às partes o ónus de impulso processual subsequente, ligado ao princípio dispositivo; aquilo que foi solicitado às partes no processo não constitui qualquer ónus processual dessas mesmas partes – ou seja, não está abrangido pela ressalva do artº 6º, nº 1, pelo que devia o juiz a quo promover o normal prosseguimento do processo;

- a decisão recorrida incorreu em errada interpretação e aplicação da norma do artº 281º do C.P.C.


Inconformada com o assim decidido, a Ré Deloitte recorreu de revista, tendo o respectivo requerimento sido, em 2.ª instância, rejeitado.

Igualmente se julgou improcedente a invocação de nulidade, constante das alegações de revista.

 

Todavia, tendo a Recorrente reclamado, nos termos do art.º 643.º n.º 1 CPCiv, veio a revista a ser admitida, tendo sido entendido pelo relator, de forma resumida:

“Em determinadas situações previstas no n.º 2 do art.º 629.º, designadamente nos casos previstos na al.a) desse n.º 2 (os casos em que o recurso é sempre admissível), “a revista normal é de admitir, independentemente da natureza e do teor do acórdão da Relação; afinal os motivos que em tal preceito levaram a prevenir a recorribilidade ilimitada sobrepõem-se àqueles que motivaram o legislador a restringir o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, já que além podem estar em causa interesses que atinam com as regras de competência absoluta, com o regime do caso julgado ou com a certeza do direito que é assegurada pela uniformização jurisprudencial” (Autor e op. cit., pg. 292).”

(…) “Na hipótese dos autos, invoca-se a violação do caso julgado formal, constituído na sequência dos anteriores despachos de 8/11 e de 6/12 de 2019, que deram origem ao despacho de 6/2/2020, que por via de não ter sido junta pelas partes o projecto contendo os factos assentes e os controvertidos, enquanto temas de prova, junção em que as partes tinham assentido, determinou que “ao autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º do Código de Processo Civil”.

“Sendo o caso julgado formal um constituinte da noção de “caso julgado”, cabe o mesmo na previsão das normas do art.º 629.º n.º 1 al. a) parte final e 671.º n.º 2 al. a) CPCiv.”

A Recorrente/Ré formula as seguintes conclusões:

25. Os parágrafos 1. a 14. e das presentes conclusões, demonstram, já de forma clara, que o Acórdão recorrido incorreu em violação do caso julgado formal previsto no artigo 620.º do CPC e, ainda, na nulidade por omissão de pronúncia prevista no artigo 615.º, n.º 1 - al. d), do CPC ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC.

26. Sem prejuízo disto, reitera-se que, através de decisões proferidas em 8 de Novembro de 2019 (decisão proferida em audiência prévia), em 6 de Dezembro de 2019 e 6 de Fevereiro de 2020, a 1.ª Instância impôs um ónus de impulso processual sobre os sujeitos processuais relativos à apresentação do projecto da matéria de facto na fase de saneamento.

27. Seja por se entender que o Despacho de 6 de Fevereiro de 2020 seria imediata e autonomamente recorrível ao abrigo do artigo 644.º, n.º 2 - al. c), do CPC (por, em substância, ter suspendido a instância até apresentação do projecto da matéria de facto), seja por se entender que a ora Recorrida Liminorke não impugnou a final – ao abrigo do artigo 644.º, n.º 3, do CPC – nenhum dos aludidos três despachos no recurso de apelação interposto da sentença de deserção proferida pela 1.ª Instância, estas decisões interlocutórias transitaram em julgado. E, por conseguinte, adquiriram força de caso julgado formal, nos termos do n.º 1 do artigo 620.º do CPC.

28. Caso se entenda que o Despacho de 6 de Fevereiro de 2020 seria autonomamente recorrível, nenhuma destas três decisões interlocutórias transitou em julgado nos 15 ou 30 dias seguintes à sua notificação das partes, precisamente porque a sua impugnação é diferida para o recurso da sentença final.

29. No entanto, ainda com base no pressuposto de que nenhuma das três decisões interlocutórias acima referida seria autonomamente recorrível, a ora Recorrida Liminorke tinha o ónus de as impugnar a final, ao abrigo do n.º 3 do artigo 644.º do CPC, aquando da interposição do recurso de apelação da sentença proferida pela 1.ª Instância, que decretou a deserção.

30. No entanto, a ora Recorrida não incluiu a impugnação a final destas três decisões interlocutórias no objecto do recurso de apelação que veio a interpor contra a sentença de deserção proferida pela 1.ª Instância, tal como impunha o artigo 644.º, n.º 3, do CPC. A ora Recorrida incumpriu este ónus no recurso de apelação interposto da sentença da 1.ª Instância.

31. Por conseguinte, por força da aplicação conjugada dos artigos 620.º, n.º 1, e 644.º, n.º 3, do CPC, as decisões interlocutórias de 8 de Novembro de 2019 (decisão proferida em audiência prévia), em 6 de Dezembro de 2019 e 6 de Fevereiro de 2020 adquiriram força de caso julgado formal, aquando da interposição do recurso de apelação pela ora Recorrida (atento o objecto desse recurso).

32. Assim, mesmo que o Acórdão recorrido tivesse discordado do teor das decisões interlocutórias de 8 de Novembro de 2019 (decisão proferida em audiência prévia), em 6 de Dezembro de 2019 e 6 de Fevereiro de 2020, o Acórdão recorrido não podia ter ido contra o ónus de impulso imposto por estas decisões interlocutórias, porque estas decisões já tinham adquirido força de caso julgado formal aquando da apreciação do recurso de apelação.

33. Por conseguinte, ao revogar a sentença de 1.ª Instância (que decretou a deserção da instância), com base no fundamento de que a 1.ª Instância não poderia ter decretado a deserção por não podia ter imposto um ónus de impulso processual não expressamente previsto na lei, o Acórdão recorrido incorreu na violação do caso julgado formal e do artigo 620.º, n.º 1, do CPC.

34. Isto consubstancia fundamento de recurso de revista em todos os casos, por força dos artigos 629.º, n.º 2 - al. a) in fine, 671.º, n.º 2 - als. a), do CPC.

35. Em face do exposto, é forçoso concluir que o Acórdão recorrido violou o caso julgado formal e o artigo 620.º, n.º 1, do CPC dos citados Despachos de 8 de Novembro de 2019 (decisão proferida em audiência prévia), em 6 de Dezembro de 2019 e 6 de Fevereiro de 2020, pelo que o presente recurso de revista de ser julgado procedente, o Acórdão recorrido revogado e, em consequência, ser determinada a extinção da instância por deserção, nos termos decretados pela sentença proferida pela 1.ª Instância em 20 de Novembro de 2020.

36. O Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 - al. d), do CPC ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC.

37. No capítulo 3.4. das contra-alegações (artigos 191. a 213. das páginas 33 a 37) da então Apelada Deloitte (ora Recorrente) em resposta ao recurso de apelação interposto pela Liminorke da sentença de 1.ª Instância, a então Apelada Deloitte suscitou a questão de caso julgado dos Despachos da 1.ª Instância de 8 de Novembro de 2019 (audiência prévia), em 6 de Dezembro de 2019 e 6 de Fevereiro de 2020, em virtude do facto de o recurso de apelação não ter incluído a impugnação a final destes três Despachos.

38. Ainda que assim não fosse, o caso julgado formal consubstancia uma questão de conhecimento oficioso, pelo que o Acórdão recorrido tinha a obrigação de a ter conhecido e apreciado.

39. No entanto, o Acórdão recorrido não apreciou esta questão, o que configura uma nulidade, por omissão de pronúncia, ao abrigo do artigo 615.º, n.º 1 - al. d), do CPC ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC, o que constitui fundamento de recurso de revista, por força do artigo 674.º, n.º 1 - al. c), do CPC, pelo que cabe aqui suscitar esta nulidade.

40. Ora, considerando que o Acórdão recorrido não conheceu da aludida questão relativa à ofensa do caso julgado, o mesmo incorreu em nulidade, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.º, n.º 1 - al. d), do CPC ex vi artigo 666.º, n.º 1, do CPC, o que determina a sua anulação e substituição por outra decisão que determine a deserção da instância, nos termos proferidos pela sentença de 1.ª Instância.


Por contra-alegações, a Autora pugnou pela rejeição do recurso de revista, por inadmissível.

Factos Apurados

Os factos apurados no processo são os que constam supra do relatório e, designadamente, do teor das decisões judicias proferidas.

Conhecendo:


A questão colocada pela revista é a de saber se, do despacho proferido em 6/2/2020, do seguinte teor dispositivo: “dou sem efeito a diligência agendada para o dia 11/02/2020; os autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281º do Código de Processo Civil”, decorria caso julgado formal, para o despacho proferido em 1.ª instância (entretanto revogado, na Relação) que julgou extinta a instância por deserção, nos termos do disposto nos art.ºs 277.º al. c) e 281.º CPCiv.

Diga-se, desde logo, sem prejuízo da análise do julgado, que a decisão recorrida tem apoio efectivo em jurisprudência do Supremo Tribunal de Jusiça.

São exemplos os Acs. STJ 3/10/2019, pº 1980/14.4TBVDL.L1.S1 (Maria Rosa Tching), de 2/5/2019, pº 1598/15.4T8GMR.G1.S1 ou Col. II/57 (Bernardo Domingos) e de 5/7/2018, pº 105415/12.2YIPRT.P1.S1 (Abrantes Geraldes).

Nos termos da apontada jurisprudência, adequando-a ao caso dos autos, a deserção da instância, tal como prevista no artº 281º nº 1 CPCiv pressupõe a verificação cumulativa de duas exigências: uma de natureza objectiva (falta de impulso processual das partes maxime do autor, para o prosseguimento da instância) e outra de natureza subjectiva (inércia causada por negligência).

Este último requisito subjectivo deve ser interpretado no sentido de apenas fazer relevar a paragem imposta pelo cumprimento de um ónus, a omissão de um dever que impeça o normal prosseguimento dos autos.

É o caso do falecimento das partes, sem que se promova a habilitação dos sucessores, é o caso da renúncia ao mandato conferido pelo autor (nos casos em que é obrigatória a constituição de advogado) ou é o caso da falta de comprovação do registo da acção, quando este registo constitua ónus do autor.

No caso dos autos existiu uma efectiva omissão das partes, relativamente ao facto de não terem atendido ao despacho que colocou o processo a aguardar o respectivo impulso processual, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º CPCiv.

Tal omissão justificou a decisão posterior de extinção da instância, por deserção.

Todavia, tal como afirmam as decisões citadas deste Supremo Tribunal, essa pronúncia anterior não fazia actuar, por si e independentemente de ulterior pronúncia, o disposto na norma legal relativa à deserção da instância, que verificasse não apenas o requisito objectivo da norma do art.º 281.º CPCiv, mas também e sobretudo o requisito subjectivo (inércia causada por negligência), interpretado no sentido de apenas fazer relevar a paragem imposta pelo cumprimento de um ónus, a omissão de um dever que impedisse o normal prosseguimento dos autos.

Essa pronúncia ulterior não decorria já do despacho prévio de 6/2/2020, ou nos despachos anteriores, em termos que pudessem considerar um juízo posterior dessa natureza como um obiter dictum, posto que um juízo já contido em tais despachos anteriores.

E torna-se evidente que a omissão das partes não era impeditiva de o processo prosseguir ou significasse que o acto eventualmente omitido viesse a ser absolutamente necessário para o processo prosseguir.

Impunha-se que o processo prosseguisse e a decisão de 6/2/2020, que colocou o processo a aguardar, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º CPCiv, não continha, como bem salientou o acórdão recorrido, uma ordem dirigida às partes, mas apenas uma solicitação dirigida quer à Autora, quer à Ré, isto é, dirigida à colaboração de todas as partes, não sendo adequado que uma omissão de todos se reflicta, por via de um eventual caso julgado formal, em efeito da extinção da instância, instância esta iniciada e decorrente do petitório da Autora – extinguindo pois, exclusivamente, a pretensão desta Autora.

“Sem prejuízo do disposto no art.º 281.º do Código de Processo Civil”, como constante do despacho judicial em crise, não anuncia a aplicação inexorável de uma norma ope legis, mas apenas a ponderação posterior ope judicis.

Nesse sentido, a instância só pode considerar-se deserta depois de apreciada expressamente a “negligência das partes”, a que alude o art.º 281.º n.º 1 CPCiv, razão pela qual os despachos que antecederam o despacho recorrido tinham apenas um sentido declarativo ou enunciativo, não um sentido constitutivo, em concreto.

O tempo (seis meses) constitui-se apenas e tão só como um dos requisitos da deserção da instância, pois que, a par do requisito tempo, surge a relevância do requisito subjectivo - “negligência das partes”.

A paragem do processo pode ter causas simplesmente radicadas na impossibilidade de dar cumprimento, por acordo, à fixação dos factos provados e dos temas da prova – essa paragem pode não ser imputável a culpa das partes, mas apenas às suas posições divergentes, aliás já expressas no processo, e que cabe ao tribunal solucionar.

Como se escreveu no Ac. S.T.J. 2/5/2019 cit., “pode concluir-se com absoluta segurança que a paragem do processo não resulta do incumprimento de um ónus por parte da autora, mas sim de uma errada opção do tribunal na gestão do processo; assim sendo, tal paragem não pode ser imputada à recorrente, porquanto ela não deixou de cumprir qualquer ónus, apenas deixou de exercer uma faculdade; ora o não exercício duma faculdade, ao contrário do não cumprimento dum ónus, não acarreta qualquer penalização, embora possa acarretar um prejuízo ou a perda dum benefício; estando demonstrado que o processo não esteve parado mais de seis meses por incumprimento de um ónus do autor, nunca tal paragem lhe pode ser imputável a título de negligência, porquanto ela é devida ao próprio tribunal e não a qualquer das partes; assim sendo, não estando verificados os pressupostos da deserção da instância, nunca o tribunal a poderia ter declarado; impõe-se pois a revogação da decisão que julgou deserta a instância, devendo os autos prosseguir seus termos.”

Fazemos nossa a exposta doutrina assumida por este Supremo Tribunal de Justiça.


Concluindo:

I - A norma a que alude o art.º 281.º n.º 1 CPCiv funciona ope judicis, e não ope legis, pelo que a instância só pode considerar-se deserta depois de apreciados expressamente todos os requisitos da norma, os quais, além da passagem do tempo, abrangem a “negligência das partes”.

II - Se o despacho ou despachos que antecederam o despacho recorrido, tinham apenas um sentido declarativo ou enunciativo (“os autos aguardarão o impulso processual das partes, sem prejuízo do disposto no art.º 281.º do Código de Processo Civil”), não constituem caso julgado formal para a necessária decisão que declare a deserção da instância, nos termos da norma em causa.

Decisão:

Nega-se a revista.

Custas pela Recorrente.


STJ, 24/5/2021


Vieira e Cunha (relator)

Ana Paula Lobo

Manuel Tomé Soares Gomes