Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
315/05.1TCGMR.G2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: PROCURAÇÃO
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
DAÇÃO EM PAGAMENTO
Data do Acordão: 06/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / TRANSMISSÃO SINGULAR DE DÍVIDAS / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 595.º, N.º2, AL. B), 770.º, AL. A), 837.º.
Sumário :

1. A administração da justiça cível não constitui uma actividade de natureza burocrática, pressupondo o exercício pró-activo de todos os poderes conferidos aos tribunais, de modo a evitar que, mediante atribuição de excessivo relevo a determinados factos ou argumentos laterais, sejam desconsiderados outros que, devidamente integrados no ordenamento jurídico, sustentam com mais naturalidade e razoabilidade a justa e equilibrada composição do litígio.

2. A co-assunção da dívida, traduzindo uma modificação subjectiva da relação obrigacional, permite que alguém assuma a co-responsabilidade pelo pagamento da dívida de um terceiro (art. 595º, nº 2, al. b), do CC).

3. Desde que tal seja consentido pelas partes, a dação em pagamento, como forma de extinção de obrigações, tanto pode ser feita em benefício do credor como de terceiro (art. 770º, al. a), do CC.

4. Não existe abuso de representação por parte do procurador que, ao abrigo dos poderes que lhe foram conferidos pelo mandante, assume uma dívida titulada por cheques sacados por terceiro e avalizados pelo mandante, independentemente de o seu beneficiário ser ou não o titular da relação jurídica subjacente.

5. Também não se verifica abuso de representação se o procurador efectivou a favor do beneficiário dos cheques a dação em pagamento de imóveis, ao abrigo da mesma procuração que autorizava que a mesma fosse efectuada tanto a favor do portador dos cheques como do titular da relação subjacente.

A.G.

Decisão Texto Integral:
I - AA e BB, Ldª,

instauraram a presente acção declarativa contra

1ºs - CC e DD,

2º - EE,

3ºs - FF e GG,

e

4ºs - HH e II

pedindo, relativamente aos 1ºs e 2º RR.,que se reconheça a validade da aquisição pelo A. de imóveis que lhe foram transmitidos por dação em cumprimento outorgada ao abrigo de uma procuração subscrita pelo 2º R., que se reconheça o direito de propriedade e se condenem os referidos RR. na entrega desses prédios que ocupam.

Subsidiariamente, contra todos os RR., pediram a declaração de nulidade, por simulação, fraude à lei ou ofensa aos bons costumes, dos contratos de compra e venda que efectuaram entre si, bem como a condenação dos 1ºs e 2º RR. no pagamento de uma indemnização equivalente ao actual valor dos prédios, mercê do incumprimento da promessa que outorgaram.

Alegaram que a sociedade A. prestou serviços à sociedade JJ, Ldª, para pagamento dos quais esta, representada pelos sócios-gerentes, CC e LL, sacou diversos cheques no valor de € 133.344,78, os quais vieram a ser devolvidos por falta de provisão.

Instaurado o processo criminal contra tais gerentes, o mesmo findou com desistência da queixa depois da subscrição de um acordo de pagamento da dívida que foi fixada em € 139.663,41, através da entrega de um cheque visado de 10.000.000$00 e de mais 60 cheques de 300.000$00.

Ficou ainda acordada a entrega aos AA. de uma procuração com poderes irrevogáveis a favor do advogado da A. subscrita pelo 2º R. conferindo ao procurador designado poderes para efectuar a qualquer dos AA. a dação em pagamento de dois imóveis, caso a dívida não fosse paga.

Uma vez que foi interrompido o cumprimento escalonado da dívida, o procurador designado pelo 2º R. outorgou escritura de assunção de dívida e de dação em cumprimento dos prédios a favor do A.

Numa primeira acção que foi intentada pelo A. contra o 2º R. foi julgada procedente a reconvenção pela qual este pedira a declaração de ineficácia da transmissão da propriedade dos imóveis, com fundamento em que o mesmo abusara dos poderes de representação.

Os RR. contestaram e pugnaram pela improcedência da acção, tendo os AA. replicado.

Depois de uma primeira decisão em que foi considerada procedente a excepção de caso julgado relativamente aos pedidos principais, decisão essa que foi revogada, foi proferida sentença que julgou improcedente os pedidos principais e procedente o pedido subsidiário de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda de imóveis, por simulação.

Os AA. e os RR. apelaram e a Relação julgou improcedente a apelação dos AA. e parcialmente procedente a apelação dos RR. apenas quanto a matéria de custas.

Recorreram ambas as partes para este Supremo.

No seu recurso de revista os AA. suscitam essencialmente as seguintes questões:

a)    O A. é credor dos valores titulados pelos cheques, sendo devedores os 1º e 2º RR., sendo que o 1º R. é devedor porque assumiu a dívida, que confessou no contrato por si subscrito, enquanto o 2° R. é devedor por ter avalizado cheques tornando-se co-responsável pelo seu pagamento, concedendo poderes ao Dr. MM para transmitir a propriedade dos imóveis a qualquer dos AA.

b)    O acórdão recorrido manteve erradamente as respostas aos indicados pontos 1º a 6°, ao invés do estava provada por documentos, designadamente um extraído da contabilidade da A., o que significa que era ónus de prova dos RR. contrariar a sua veracidade, nos termos do art. 44°, nºs 1 e 2, do Cod. Com.

c)    Para efeitos de procedência do pedido subsidiário da al. g), deve considerar-se provada a celebração de um contrato-promessa de assunção de dívida e de dação em pagamento celebrado entre o 2° R. e o A, reconhecendo-se aos AA. um direito de indemnização que equivalha, pelo menos, ao valor dos cheques que não foram pagos.

d)   Deve ser modificada a decisão sobre custas na proporção do decaimento.

 

Houve contra-alegações.

 

No seu recurso de revista os 1ºs e 2º RR. concluem essencialmente que o comportamento dos AA. revela a existência de abuso de direito quanto à invocação da simulação contratual.

 

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

 

II – Matéria de facto (devidamente ordenada, de forma lógica e cronológica):

1.      A A. Sociedade BB, Ldª, dedica-se à indústria de tinturaria de fios e bobinagens com intuito lucrativo, no exercício da qual, sob prévia encomenda, prestou serviços de tingimento de fios à Sociedade JJ, Ldª, a qual, depois o negociou e vendeu, recebendo o respectivo preço.

2.   Para pagamento do preço desses serviços, a Sociedade JJ, Ldª, representada pelos seus sócios-gerentes, CC, aqui 1º R., e LL, emitiu, sacou e entregou à sociedade A. diversos cheques que totalizavam 26.733.288$50 (€ 133.344,78).

3.      Apresentados a pagamento nas datas neles apostas, esses cheques foram devolvidos por falta de provisão porque a Sociedade JJ, Ldª, representada pelos referidos sócios-gerentes, não provisionara, nem eles próprios, a conta.

4.   Em consequência, em 14-12-94, a sociedade A. participou criminalmente contra os CC e LL por lhe terem passado e entregue cheques no montante total de 26.733.228$50 que foram devolvidos pelo banco sacado por falta de provisão.

5.      Tal participação deu origem a um processo-crime, no âmbito do qual foi apresentado pedido de indemnização cível no valor de 28.542.683$00 e no qual foi ordenada a prisão preventiva de LL, sendo o R. CC sujeito a prestação de TIR, apresentação semanal no posto policial e proibição de se ausentar para o estrangeiro.

6.     O A. tem o domínio e o controle absolutos sobre a A.

7.      Não tendo sido paga à sociedade A. a quantia referida em 2., o R. CC diligenciou junto da mesma no sentido de desistir da queixa referida em 4., tendo a sociedade A. respondido que estava disposta a negociar.

8.      Após contactos e negociação, os respectivos advogados chegaram ao desfecho negociado do dissídio.

9.       Nesse processo, a sociedade A. foi representada pelo Dr. MM e o R. CC pelo Dr. NN.

10.       Entre a sociedade A. e os 1º e 2º RR., CC e EE, ficou assente que estes assumiriam como sua e para todos os efeitos a dívida à A.

11.    O R. CC aceitou e assumiu a responsabilidade pessoal pela dívida à sociedade A. e foi nesse âmbito que os 1º e 2º RR. celebraram o Protocolo referido em 12.

12.     Em 27-1-97 foi realizada uma transacção na qual a sociedade A. (representada pelo seu gerente, o 1º A. AA) e o1º R. CC subscreveram o Protocolo junto a fls. 43 e segs., no qual ficou acordado consolidar em 28.000.000$00 a dívida titulada pelos cheques e respectivos juros.

Diz-se no referido Protocolo, além do mais, que:

Para pagamento dos montantes titulados pelos cheques e respectivos juros, o que tudo acordam consolidar em 28.000.000$00, o segundo outorgante entrega ao gerente da primeira, AA, os seguintes valores ...”.

O segundo outorgante entrega também uma procuração com poderes necessários, bastantes e irrevogáveis passada por EE ao advogado Dr. MM para este, em nome do dito mandante e no interesse deste e do aqui 2º outorgante, assumir todas e quaisquer dívidas, actuais ou futuras, até ao montante em capital de 18.000.000$00, que o 2º outorgante, seu pai, tenha ou venha a ter para com AA ou para com BB, e para que, em extinção destas dívidas, efectue dação em pagamento a qualquer uma das referidas entidades dos seguintes prédios …” (“Campo d …” e “Campo d …”).

13.     A sociedade A. e o R. EE convencionaram que este subscreveria os cheques referidos no Protocolo mencionado em 12. na qualidade de avalista, como subscreveu, e que passaria ao então advogado da A. uma procuração irrevogável.

14.     Para pagamento do valor referido em 12., o R. CC fez entrega ao A. BB, na indicada qualidade (de gerente da Sociedade BB, Ldª), da quantia de 10.000.000$00, em cheque visado, e de 60 cheques de 300.000$00 cada um (18.000.000$00 no total), o 1º datado para 28-2-97 e os restantes para o último dia dos meses subsequentes (sendo de notar que nos cheques se indica como beneficiário o A. BB e que, como referido, deles consta uma declaração de aval ao sacador aposta pelo R. EE).

15.    Por instrumento notarial lavrado no 1º Cart. Not. de Guimarães, em 28-1-97, o R. EE declarou que, no interesse dele e do R. CC, seu pai, constituía seu procurador o Dr. MM, a quem conferia os poderes necessários, bastantes e irrevogáveis para assumir todas e quaisquer dívidas, actuais ou futuras, até ao montante em capital de 18.000.000$00, que o referido CC tenha ou venha a ter para com BB ou para com a Sociedade BB, Ldª, e para que, em extinção das dívidas referidas em 12., qualquer que seja o montante e até ao dito limite, efectue transmissão, a título de dação em pagamento, a qualquer uma das duas referidas entidades, do prédio rústico denominado Campo d …, sito no Lugar de …, Lordelo, Guimarães, inscrito na respectiva matriz sob o art. …, com o valor patrimonial de 24.117$00, e do prédio rústico denominado Campo d …, sito no Lugar de …, Lordelo, inscrito na matriz respectiva sob o art. …, com o valor patrimonial de 13.180$00, ambos formando o descrito na CRP de Guimarães, sob o nº 341.

Diz-se textualmente na referida procuração que, “no interesse dele mandante e de CC, seu pai, constitui seu procurador o Dr. MM … a quem confere os necessários, bastantes e irrevogáveis poderes para assumir todas e quaisquer dívidas, actuais ou futuras, até ao montante em capital de 18.000.000$00, que o referido interessado CC tenha ou venha a ter para com AA ou para com BB, e para que, em extinção destas dívidas, qualquer que seja o montante e até ao dito limite, efectue transmissão, a título de dação em pagamento a qualquer uma das referidas entidades, dos prédios que seguir se descrevem …”.

16.    O Dr. MM foi constituído mandatário do R. EE para os actos descritos porque ficou combinado que o faria, e tudo faria, para, desse modo, assegurar que esse R. EE não violaria os compromissos assumidos perante os seus verdadeiros constituintes.

17.     Em face da entrega referida em 14., a sociedade A. apresentou requerimento para desistência de queixa no processo-crime, declarando-se paga dos valores titulados pelos cheques (“face a este pagamento, a sociedade primeiro outorgante entrega ao segundo requerimento para desistência de queixa nesse processo …”).

18.     Iniciado o conjunto de pagamentos, o R. CC só pagou 14 dos 60 cheques, num total de 4.200.000$00 correspondentes aos meses de Fevereiro de 1997 até Março de 1998.

19.     O R. CC declarou o extravio dos cheques e não consentiu que o banco sacado pagasse qualquer outro, declarando falsamente que os extraviara, o que levou a que o banco sacado deixasse de pagar os demais 46 cheques que o R. CC entregara ao gerente da A.

20.       Após o referido em 19., o A. não apresentou mais cheques a pagamento.

21.    O Dr. MM tomou conhecimento da devolução dos cheques por pagar e, no dia 16-9-98, por escritura pública lavrada no 2º Cart. Not. de Guimarães, em que interveio em representação do 1º outorgante R. EE (sendo 2º outorgante o A. AA), declarou que o R. CC era devedor, naquela data, ao A., da importância de 13.800.000$00, que assumia para o seu representado, o R. EE, aquela dívida e que, para pagamento integral dela, dava em pagamento ao A. AA, o que este declarou aceitar e, em consequência, reconhecer a extinção total da dívida assumida, o prédio rústico denominado Campo d …, sito no Lugar de Paço de …, Lordelo, Guimarães, inscrito na respectiva matriz sob o art. …, com o valor patrimonial de 24.117$00, e o prédio rústico denominado Campo d…, sito no Lugar de …, Lordelo, inscrito na matriz respectiva sob o art. …, com o valor patrimonial de 13.180$00, ambos formando o descrito na CRP de Guimarães sob o nº 341.

Diz-se em tal escritura que:

Declarou que, em nome do seu representado, que o pai do constituinte, dele primeiro outorgante, CC … é devedor, nesta data, ao segundo outorgante (AA)da importância de 13.800.000$00 resultante de negócios entre ambos celebrados. Que pela presente escritura, ele primeiro outorgante assume para o seu representado EE essa dívida de 13.800.000$0.

Ainda e por esta escritura, em nome do seu representado, dá ao segundo outorgante …(os dois prédios que identifica) para pagamento integral da dívida assumida.

Declarou o segundo que aceita estes contratos de assunção de dívida e de dação em cumprimento nos termos exarados e, em consequência, reconhece a extinção total da dívida”.

22.     Através da acção nº 69/03, o A. AA visava o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre os imóveis denominados Campo d …, inscrito na matriz sob o art. … e Campo d…, inscrito na matriz sob o art. … e a condenação do R. EE a entregá-los imediatamente e a abster-se definitivamente de os usar ou fruir ou de praticar quaisquer actos que constituíssem turbação ou esbulho da propriedade do mesmo A. ou da respectiva posse.

23.     Tal acção foi contestada pelo R. EE, alegando que o Dr. MM agiu sem poderes e com abuso dos que lhe foram conferidos, mediante a referida procuração, alegando a anulabilidade dos negócios por usura, uma vez que o seu pai CC apenas decidira negociar em estado de necessidade e pediu ainda a declaração de ineficácia em relação a si da transmissão da propriedade dos referidos imóveis, operada pela escritura de assunção de dívida e de dação em cumprimento celebrada em 16-9-98, por ter sido celebrada com abuso de poderes do mandatário.

24.     Por acórdão da Relação de 24-3-04, confirmado por acórdão do STJ de 11-1-05, transitado em julgado, tal pedido reconvencional foi julgado procedente (decidindo “declarar ineficaz em relação ao R. EE, por ter sido celebrado com abuso de poderes do mandatário do primeiro outorgante, a transmissão da propriedade dos imóveis identificados nos autos, operada por meio da escritura de assunção de dívida e de dação em cumprimento celebrada em 16-9-98”), sendo julgado improcedente o pedido do A. AA.

25.    Por escritura pública outorgada em 31-3-93, no Cart. Not. de Santo Tirso, os RR. CC e mulher declararam vender ao R. EE, pelo preço de 8.500.000$00, que declararam ter recebido, os seguintes prédios:

- Por 6.000.000$00, a fracção autónoma designada pela letra O, 1º andar esq., destinada a habitação, do prédio urbano sito na Av. …, Vila do Conde, descrito na CRP competente sob o nº …, na mesma registado a favor do vendedor pela inscrição G-1, afecto ao regime da propriedade horizontal, inscrito na matriz sob o art. …, com o valor patrimonial correspondente à fracção de Esc. 1.149.725$00;

- Por 1.250.000$00, o prédio rústico denominado Campo d …, sito no lugar de P…., freguesia de Lordelo, Guimarães, inscrito na matriz respectiva sob o art. …, com o valor patrimonial de 24.117$00 descrito na CRP de Guimarães sob o nº …, de que é parte, conjuntamente com o seguinte;

- Por 1.250.000$00, o prédio rústico denominado Campo d…, sito no lugar de P…, da mesma freguesia de L…, inscrito na matriz respectiva sob o art. … e descrito na CRP de Guimarães sob a parte restante do nº …, com o valor patrimonial de 13.180$00.

26.    Por escritura pública de 29-3-94 celebrada no Cart. Not. de Santo Tirso, os RR. CC e mulher declararam vender aos RR. FF e mulher, pelo preço de 8.000.000$00, uma casa de habitação de cave, r/c, r/c elevado e 1º andar, sita no lugar de P…, Vila …., Santo Tirso, inscrito na matriz predial urbana sob o art. … e descrita na CRP de Santo Tirso sob o nº …/...

27.    Os RR. FF e mulher declararam vender o prédio identificado em 26., com reserva de propriedade até integral pagamento do respectivo preço, aos RR. HH e marido II, conforme escritura pública de 20-3-95 do Cart. Not. de Santo Tirso, mediante o pagamento do preço declarado de 9.000.000$00.

28.     Por escritura pública de 11-7-96, celebrada no Cart. Not. de Santa Maria da Feira, os RR. FF e mulher declararam vender o prédio identificado em 26. e respectivo recheio ao R. EE.

29.    Há mais de 20 anos e até à presente data que os RR. CC e mulher, por si e seus antepossuidores, usam e ocupam o prédio identificado em 26., tirando do seu uso proveitos e rendimentos como se fossem seus donos, utilizando-o como sua casa de habitação, à vista de toda a gente, ininterruptamente, sem oposição de ninguém.

30.     Antes e depois das escrituras referidas em 25. a 28. sempre foram os RR. CC e mulher que dispuseram de todos os referidos prédios, ocupando-os, usando-os e fruindo-os, como coisa sua, exclusivamente.

31.     A R. HH foi pessoa de confiança do R. CC a e empregada de escritório da Sociedade JJ, Ldª.

32.     Todos os outorgantes das escrituras referidas em 25. a 28. agiram com o propósito ou intenção de manter os prédios aí identificados na posse efectiva dos RR. CC e mulher.

33.    Os vendedores e compradores identificados em 25. a 28. não quiseram comprar ou vender os aludidos prédios.

34.      Os vendedores e compradores identificados em 25. a 28. bem sabiam, à data da outorga das escrituras respectivas, que os RR. CC e mulher estavam numa difícil situação económica, em função de dívidas do R. CC.

35.    Os imóveis referidos em 25. a 28. têm um valor real de € 585.000,00.

 

III – Decidindo:

1. Quanto ao recurso de revista dos AA.:

1.1. Relativamente aos RR. CC e mulher e EE pretendem os AA. que se reconheça a validade do negócio de transmissão dos imóveis que, através de dação em cumprimento, foi operada da esfera jurídica do R. EE para a do A. AA, e que se condenem aqueles RR. na restituição dos referidos prédios.

Tal negócio já foi objecto de discussão e de apreciação numa primeira acção que o A. AA instaurou contra o R. EE, onde este deduziu reconvenção pedindo a declaração de ineficácia da referida transmissão, por abuso dos poderes de representação do procurador que a efectivou, acção em que foi proferida decisão que julgou improcedente o pedido do A. e procedente o pedido reconvencional.

Porém tendo sido suscitada na presente acção a excepção do caso julgado, verifica-se que por decisão transitada em julgado (acórdão da Relação) foi julgada improcedente, com fundamento na diversidade dos sujeitos que intervieram em cada uma das acções.

Deste modo, não sendo possível retomar a discussão em torno da referida excepção de caso julgado, mais não resta do que considerar que, relativamente aos pedidos principais que foram formulados na presente acção pelos AA. contra os RR. CC e mulher e EE visando o reconhecimento da validade da transmissão dos imóveis e a condenação desses RR. na sua entrega, não existe obstáculo que impeça a apreciação do respectivo mérito, tanto mais que, como os AA. alegam e lhes foi reconhecido, a causa de pedir em que sustentam tais pretensões, não coincide com a causa de pedir que estava subjacente ao pedido reconvencional formulado na primeira acção.

 

1.2. Os AA. impugnaram a decisão da matéria de facto relativa aos pontos 1º a 6º da base instrutória, mas tal pretensão improcede, na medida em que a respectiva decisão decorre da apreciação de meios de prova submetidos à livre apreciação das instâncias, matéria que está excluída da esfera de atribuições deste Supremo Tribunal.

Na verdade, todos os argumentos que foram apresentados pelos recorrentes se relacionam com o modo como a Relação reapreciou a impugnação da decisão da matéria de facto, não havendo motivos para considerar que, ao exercer esse poder, desrespeitou os parâmetros legais de ordem adjectiva ou substantiva.

Sendo impugnados alguns pontos da decisão da matéria de facto, a Relação procedeu à reapreciação dos meios de prova que foram invocados, sujeitos à livre apreciação. Além disso, não se verifica que tenha sido desrespeitado algum meio de prova a que seja atribuída força probatória plena, nem tão pouco se aceita o argumento de que relativamente a elementos decorrentes da “contabilidade” da sociedade Autora recairia sobre a parte contrária o ónus de prova de factos que os contrariassem.

Tal não decorre de qualquer norma legal, nem sequer do art. 44º do Cód. Com., norma que se limita a prescrever um regime de prova aplicável nas relações entre comerciantes, sem qualquer conexão com o caso concreto em que estão em causa alegados suprimentos feitos pelo sócio à sociedade. Tão pouco essa solução encontra justificação nas práticas comerciais e contabilísticas que o caso presente bem ilustra, em que se intrometem interesses da sociedade e dos sócios, como se não houvesse duas esferas jurídicas autónomas, assumindo, na realidade, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade.

Enfim, dentro da distribuição de funções na orgânica judiciária, é reservada a este Supremo Tribunal uma parcela mínima de intervenção na fixação da matéria de facto provada e não provada, não se encontrando motivo algum para sindicar a decisão que foi proferida e que foi confirmada pela Relação.

Por outro lado, atenta a manutenção da decisão da matéria de facto, nem sequer revela qualquer interesse a apreciação do que foi alegado no art. 24º da petição que, quer de forma isolada, quer em conjugação com outros elementos, não interferiria de modo algum na solução jurídica do caso.

Por conseguinte, improcedem todas as questões suscitadas em torno da decisão da matéria de facto, importando avançar para a análise da matéria de direito.

 

1.3. Esquematicamente decorre da matéria de facto apurada o seguinte:

Para pagamento do preço de serviços que a Sociedade Autora prestou a uma outra sociedade, JJ Ldª, esta sacou cheques que, uma vez apresentados a pagamento, foram devolvidos por falta de provisão, o que determinou a apresentação de uma participação criminal contra os respectivos sócio-gerentes, entre os quais o R. CC.

No âmbito desse processo-crime, foram decretadas medidas de coacção contra os aludidos sócios-gerentes, o que determinou que o R. CC procurasse obter uma solução negociada para que, mediante desistência da queixa, se pusesse termo a tal processo. Iniciaram-se por isso as negociações tendentes a resolver a situação, nas quais cada uma das partes foi representada por advogado: a sociedade ora A. pelo Dr. MM e o R. CC pelo Dr. NN.

Assim:

- Tais advogados chegaram a um desfecho negociado do dissídio, ficando assente, entre a Sociedade A. e os RR. CC e EE, que estes assumiriam como sua e para todos os efeitos a dívida da outra sociedade JJ, Ldª;

- O R. CC aceitou e assumiu a responsabilidade pessoal pela dívida à sociedade A., e foi nesse âmbito que o R. CC celebrou em 27-1-97 uma transacção com a Sociedade A. (representada pelo seu sócio-gerente, o A. AA), subscrevendo um Protocolo no qual foi consolidada em 28.000.000$00 a dívida correspondente aos valores dos cheques e respectivos juros;

- No âmbito da mesma negociação, a Sociedade A. e o R. EE convencionaram ainda que este subscreveria os cheques referidos no Protocolo como avalista e que passaria ao advogado da Sociedade A. uma procuração irrevogável conferindo-lhe poderes para assumir dívidas do seu pai CC e para efectivar a dação em pagamento de imóveis ou à Sociedade A. ou ao A. AA;

- Na concretização desse acordo, o R. CC entregou ao A. AA, na qualidade de gerente da Sociedade A., além de um cheque visado no valor de 10.000.000$00, 60 cheques pré-datados de 300.000$00 cada um, com vencimento mensal a partir de 28-2-97, cheques que eram da sua conta pessoal, com aval ao sacador dado pelo R. EE, cheques esses em que figurava como beneficiário o A. AA;

- No dia imediato - 28-1-97 - por escritura pública, o R. EE outorgou procuração irrevogável na qual, no seu interesse e de seu pai CC, mandatava o Dr. MM, advogado da Sociedade A., com os poderes necessários para assumir todas e quaisquer dívidas, até ao montante de 18.000.000$00, que o seu pai tivesse ou viesse a ter para com AA ou para com a Sociedade A. Declarou ainda que para extinção dessas dívidas conferia ao procurador poderes para efectuar a transmissão de dois prédios rústicos, a título de dação em pagamento, ao A. AA ou à Sociedade A.;

- Concretizada a negociação com a entrega dos cheques e da procuração, a Sociedade A. desistiu da queixa criminal, declarando-se paga dos valores titulados pelos cheques;

- O Dr. MM foi constituído mandatário do R. EE para os actos descritos porque ficou combinado que tudo faria para assegurar que o R. EE, mandante, não violaria os compromissos assumidos perante os seus verdadeiros constituintes (a Sociedade A. e o A. AA);

- Porém, o R. CC só pagou 14 dos 60 cheques, tendo declarado o extravio dos demais, o que levou a que o banco sacado deixasse de os pagar.

- Por causa disso, o Dr. MM, no dia 16-9-98, outorgou escritura pública onde declarou que assumia para o seu representado, EE, a dívida restante de 13.800.000$00 que o R. CC tinha para com o A. AA e que em pagamento dessa dívida dava os prédios rústicos Campo d… e Campo d…., declaração esta a que se seguiu a do outro outorgante, o A. AA, reconhecendo a extinção total da dívida.

 

1.4. Como já se disse anteriormente, não está em causa na presente acção reapreciar o que já foi decidido na primeira acção instaurada pelo A. AA contra o R. EE e no qual este formulou e viu reconhecido o pedido reconvencional de declaração de ineficácia da transmissão, por dação em pagamento, dos dois prédios rústicos referidos.

Não exercendo tal decisão eficácia de caso julgado na presente acção, importa verificar se procede ou não o pedido de reconhecimento da validade da transmissão dos imóveis que foi operada através da dação em pagamento outorgada pelo Dr. MM, em representação do R. EE, ao abrigo da procuração que este subscreveu no âmbito do processo de regularização de uma dívida.

O que desde já se pode afirmar a este respeito é que as instâncias, confrontadas com a floresta de factos e de argumentos, se fixaram em determinados pormenores formais que impediram a verdadeira percepção dos termos do conflito que se arrasta entre as partes. Olvidando certos factos que foram considerados provados e privilegiando argumentos jurídicos de duvidosa consistência, o resultado que acabou por ser afirmado pela 1ª instância e confirmado pela Relação é de todo insustentável, não alcançando o objectivo primário de qualquer processo que é o de assegurar a justa decisão da causa. De uma forma que nos parece inadmissível, as instâncias e, designadamente, a Relação, acabaram por chancelar a solução menos satisfatória, quer em termos do direito substantivo formal, quer em termos da justeza material, afrontando com isso as regras da razoabilidade, filtro primário de qualquer decisão judicial.

A situação retratada pela matéria de facto apurada não favorece uma inequívoca definição das posições jurídicas assumidas por cada um dos intervenientes. Contudo, as dificuldades de percepção, neste e noutros casos semelhantes, devem ser resolvidas pelos tribunais de uma forma que sejam valorizados os aspectos de ordem material ou substancial, remetendo os de ordem formal para o seu devido lugar, de modo que, não sendo descurados, não sejam também hipervalorizados.

A administração da justiça cível que aos tribunais compete não constitui uma actividade de natureza burocrática, pressupondo, sim, o accionamento pró-activo de todos os poderes que permitam, em simultâneo, a justa, sustentada e equilibrada composição do litígio. No “encontro das águas” que formam a amazónica selva argumentativa, tal implica que sejam privilegiados os argumentos razoáveis que fluem das águas mais claras de um dos rios (o “rio solimões”), em lugar de seguir na corrente de águas turvas formada pelos artifícios especiosos que vêm do “rio negro”.

Ora, a Relação, que aqui teria um papel ainda mais importante na percepção do resultado adequado, deixou-se enredar em artifícios e argumentos arrimados em determinados factos isolados, mas que perdem todo o sentido e valor quando integrados no circunstancialismo mais vasto que rodeou o caso.

Vejamos:

De entre diversas possibilidades que o sistema jurídico e a liberdade contratual permitiam para alcançar a regularização da dívida, os reais interessados engendraram uma forma de alcançar este desiderato, sendo de todo incompreensível que, no final do percurso, seja a parte relapsa a obter dos tribunais, a quem cumpre assegurar a tutela dos direitos subjectivos, o acolhimento para a sua actuação que traduz o incumprimento das obrigações assumidas livremente.

Jamais deveria ter-se perdido a noção de que, em face da situação debitória inicial, ocorreu a desistência da queixa criminal apresentada pela Sociedade A., a qual teve como contrapartida o compromisso assumido pelos 1º e 2º RR. de efectivo pagamento da dívida que emergia da emissão de um cheque sem provisão.

Sendo esse o objectivo dos sujeitos quando procuraram regularizar o litígio, guiados pela bússola da sensatez e da justiça material, é de todo incompreensível que no âmbito de um processo judicial que visa a satisfação efectiva do direito de crédito violado se enverede pelos caminhos ínvios a que conduziram os enviesados argumentos apresentados pelos 1ºs e 2º RR. sob a capa de uma aparente sustentação legal.

Ora, a Relação, em vez de apreciar o litígio com a naturalidade que emerge do conjunto ordenado de factos que ilustram cada uma das etapas, procurando no ordenamento jurídico a resposta adequada, limitou-se a dar sequência aos argumentos formais com que os 1ºs e 2º RR. procuraram mascarar a realidade, acabando por confirmar o resultado iníquo que os mesmos pretendiam e pretendem, sustentados numa estratégia – devidamente assessorada – de fuga às responsabilidades que inequivocamente assumiram relativamente ao pagamento da dívida e que prosaicamente se traduz em “desculpas de mau pagador” que os tribunais não devem nem podem chancelar.

 

1.5. O litígio iniciou-se a partir de uma relação creditícia que vinculava unicamente a Sociedade A. que prestou os serviços e a Sociedade JJ, Ldª, que os recebeu e que sacou para seu pagamento cheques que não obtiveram provisão.

Porém, a partir do momento em que se despoletou a responsabilização criminal dos sócios-gerentes desta sociedade, a relação creditícia sofreu modificações de ordem objectiva e subjectiva.

Para que o R. CC se livrasse de eventuais consequências penais, foi necessário (necessidade que ele mesmo sentiu e que procurou resolver) encontrar um mecanismo de regularização da dívida que, sendo aceite pela Sociedade A., garantisse efectivamente o direito de crédito que emergia dos cheques sem provisão.

Ocorre que numa área em que dominava inteiramente a liberdade contratual, no processo de regularização da dívida não intervieram apenas os sujeitos inicialmente implicados, mas também, ao lado da A., o seu sócio-gerente, AA, e ao lado do R. CC o seu filho EE. Aquele porque detinha a larga maioria do capital da Sociedade A., de natureza familiar; este porque era o formal detentor da garantia patrimonial constituída pelos imóveis que lhe haviam sido transmitidos pelos seus pais (num anterior episódio “clássico” de fuga às responsabilidades que se traduziu na alienação simulada do património imobiliário da esfera dos pais para a do filho).

Neste contexto, por razões de segurança e de eficácia, a garantia de satisfação daquele direito de crédito da Sociedade A. far-se-ia através da previsão da possibilidade de ser outorgada a dação em pagamento de prédios, a qual foi antecipadamente autorizada pelo R. EE a favor do A. ou da Sociedade A., através da subscrição de uma procuração irrevogável que conferia ao advogado desta sociedade os poderes para de forma mais segura zelar pelos interesses patrimoniais da e do seu sócio-gerente.

Assim, em termos objectivos, o que se iniciara como uma relação jurídica entre duas sociedades comerciais, sustentada num contrato de prestação de serviços e no saque e aceite de cheques, converteu-se numa outra relação jurídica mais complexa, em que até o montante do crédito e as condições de pagamento foram modificadas.

Por seu lado, no plano subjectivo:

a) O R. CC, interessado em livrar-se da responsabilidade criminal e civil (pedido cível) associada à emissão de cheques sem provisão, assumiu uma posição devedora autónoma derivada simultaneamente do reconhecimento da dívida, da outorga do Protocolo e do saque de cheques;

b) Quanto à Sociedade A., ante a falta de garantia patrimonial que pudesse ser conferida pelo R. CC (ou pela sociedade JJ, Ldª), exigiu e obteve o comprometimento do seu filho, o R. EE, em cuja esfera se encontravam os prédios que poderiam garantir a satisfação do crédito;

c) Assim, o R. EE associou-se ao seu pai através do reconhecimento da dívida, da declaração de aval aposta nos cheques e da outorga da procuração a favor do mandatário da sociedade A., conferindo-lhe poderes para assumir dívidas e para efectuar a dação dos imóveis em pagamento da dívida que fosse reconhecida;

d) Finalmente, o A. AA, embora interviesse no processo de regularização da dívida como representante legal da Sociedade A., acabou por figurar também como beneficiário directo dos cheques nominativos que foram sacados pelo R. CC e avalizados pelo R. EE.

 

1.6. A resolução de litígios implica que se tenha uma percepção, tão completa quanto possível da realidade integrada ainda pelo circunstancialismo que rodeia os factos. Mas em lugar de se privilegiarem certos factos isolados, importa que, como ocorre com a pintura impressionista, se aprecie todo o quadro fáctico de forma distanciada, postura que os tribunais estão aptos a adoptar, considerando a autonomia conferida aos respectivos juízes. Passo essencial para evitar que, através de um seccionamento da realidade, se impeça uma correcta, justa e formal integração da realidade, mediante o acolhimento de argumentos jurídicos inconsistentes e artificiais que acabem por contrariar o direito material.

A inequívoca situação de incumprimento relativamente a 46 cheques que foram sacados pelo R. CC e avalizados pelo R. EE e a insistência de um e de outro numa solução que nega ao credor a possibilidade de obter o cumprimento da dívida deveriam ter impulsionado uma outra solução mais razoável do que aquela que foi declarada no acórdão recorrido.

Se o enredo de argumentos com que o R. EE conseguiu, na primeira acção, a declaração de ineficácia da dação em cumprimento, já permitiam duvidar da sua consistência, tais dúvidas transformam-se agora em certeza quanto à inexistência de fundamento válido para contrariar os efeitos da dação em cumprimento que foi efectuada pelo procurador que mandatou especificamente para o efeito, quando somos confrontados com factos adicionais que permitem uma melhor percepção da realidade.

Existem exigências formais que não podem ser dispensadas quando se trata de analisar o conteúdo e interpretação de documentos como a procuração irrevogável que concedeu os poderes para assunção de dívidas e para a efectivação da dação em cumprimento. O mesmo se diga quanto ao conteúdo e interpretação da escritura pública que materializou a assunção da dívida e concretizou a dação em cumprimento dos bens imóveis. Tais exigências e limites formais impõem-se a todas as partes e a este Supremo Tribunal, não podendo ser ultrapassadas com argumentos que se foquem em aspectos de natureza material.

Mas nada disso está em causa na presente acção em que o que verdadeiramente importa é se, respeitados tais requisitos formais, é possível colher da realidade que se apurou efeitos que decorrem do funcionamento do princípio da liberdade contratual que levou os sujeitos intervenientes a modelar, da forma como bem entenderam, os seus interesses, direitos e obrigações. Por outras palavras, se, no quadro dos negócios formais que foram outorgados, é possível encontrar justificado motivo para a regularidade da dação em pagamento que foi declarada pelo advogado da Sociedade A., actuando em representação do R. EE, no âmbito dos poderes que por este lhe foram outorgados.

E a resposta é positiva, no pressuposto de que as declarações prestadas pelas partes não se restringem às que ficaram a constar do Protocolo de regularização da dívida, da procuração ou da escritura pública de assunção de dívida e de dação em pagamento dos imóveis, devendo ser ponderadas ainda com outras prestadas livremente pelas partes, sem condicionalismos de ordem formal, reflectidas pela matéria de facto provada e que se traduzem designadamente na assunção por parte dos 1º e pelo 2º RR. da dívida que era inicialmente da sociedade.

 

1.7. Afastando do juízo apreciativo da matéria de facto toda a tralha de argumentos laterais e concentrando-nos no essencial, depara-se-nos uma situação que nada tem de incomum.

Ultrapassados os limites da relação que inicialmente unia a Sociedade A. e a outra Sociedade a quem os serviços foram prestados, pelo facto de o R. CC se ter vinculado autonomamente através da celebração de uma transacção (Protocolo) com a Sociedade A. que envolveu o saque de cheques, a intervenção na regularização da dívida do seu filho EE, para além de estar formalmente apoiada na procuração irrevogável, encontra no contexto referido toda a justificação.

Tendo sido transferida para a esfera jurídica do filho EE o património imobiliário dos RR. CC e mulher, àquele pertencia a garantia patrimonial capaz de satisfazer o crédito cujo montante foi consolidado, assim se compatibilizando os interesses de todos os intervenientes:

a) O interesse do R. CC que se via livre da responsabilidade criminal e do pedido de indemnização cível;

b) O interesse da Sociedade A. que pretendia tão só o reembolso da quantia em dívida;

c) O interesse do R. EE que, tendo beneficiado da transferência do património, foi chamado a assumir a responsabilidade debitória do seu pai, apondo o aval nos cheques e subscrevendo uma procuração irrevogável para efeitos de assunção de dívidas do seu pai e de dação em pagamento de imóveis próprios;

d) Finalmente, o interesse do A. AA que, embora não surgisse nem como credor inicial, nem como outorgante directo da transacção (onde interveio apenas como representante da Sociedade A.), acabou, no entanto, por figurar como beneficiário dos cheques sacados pelo R. CC e avalizados pelo R. EE, por razões que não cabe apreciar e que encontram apoio no princípio da liberdade negocial.

Será (seria?) assim tão difícil encontrar no ordenamento jurídico sustentação para a pretensão dos AA. que eliminasse a possibilidade de acolher os argumentos formais arrolados pelos 1ºs e 2º RR?

Esta pergunta retórica já contém em si a resposta que adiante será justificada.

 

1.8. A matéria de facto revela-nos que, na fase em que a dívida emergente do cheque sem provisão foi consolidada, os RR. CC e EE declararam a co-assunção da dívida que inicialmente pertencia à sociedade JJ, Ldª.

É o que resulta da prova de que “entre a A. os 1º e 2º RR. CC e EE ficou assente que estes assumiriam como sua e para todos os efeitos a dívida (da sociedade) à sociedade A.”, assim se compreendendo, por um lado, os termos da transacção que ficou a constar do Protocolo assinado pela sociedade A. e pelo R. CC e, por outro, o facto de este R. e do R. EE terem, respectivamente, sacado e avalizado os cheques nominativos que foram entregues ao A. AA.

Tal conclusão é ainda mais assertiva quanto ao R. CC, na medida em que se provou também que “aceitou e assumiu a responsabilidade pessoal pela dívida à A. sociedade e foi nesse âmbito que os 1º e 2º RR. celebraram o Protocolo”.

Esta figura da co-assunção da dívida encontra previsão no art. 595º do CC, constituindo uma forma natural de constituição de obrigações (modificação subjectiva) que, pertencendo inicialmente a um determinado devedor, passa a ser compartilhada por outro ou outros interessados que se lhe associam ao abrigo da liberdade negocial. Assunção de dívida que, como ocorreu, podia emergir de um contrato entre o novo devedor e o credor, sem necessidade sequer do consentimento formal do antigo devedor (que, em todo o caso, derivava do facto de um dos assuntores ser sócio-gerente da primitiva devedora).

O acordo de vontades determinante da co-assunção da dívida decorria simplesmente dos aludidos factos, não carecendo de posterior formalização que foi reservada para a eventualidade de se revelar necessário executar a dação em pagamento dos imóveis em caso de incumprimento da obrigação nos termos reforçados que se referiram.

Porém, ainda que porventura se pudesse afirmar que aqueles factos integravam apenas um compromisso referente a uma futura assunção de dívida, carecendo de posterior concretização, a matéria de facto apurada não deixaria de preencher tal exigência, na medida em que na escritura pública outorgada pelo procurador do R. EE, ao abrigo da procuração que este último livremente subscreveu, ficou exarado, “em nome do seu representado, que o pai do constituinte, dele primeiro outorgante, CC … é devedor, nesta data, ao segundo outorgante (AA)da importância de 13.800.000$00 resultante de negócios entre ambos celebrado”e que “pela presente escritura, ele primeiro outorgante, assume para o seu representado, EE, essa dívida de 13.800.000$0”.

Ora, na eventualidade de se concluir que a execução da assunção de dívida foi diferida para momento posterior – o que já anteriormente se contrariou - só uma excessiva argumentação formal poderia levar a recusar esse mesmo efeito jurídico à declaração negocial exarada pelo procurador do R. EE.

 

1.9. Não se ignora que, como decorre dos factos provados, os cheques foram entregues ao A. AA na sua qualidade de representante legal da Sociedade A., credora primitiva, qualidade em que também interveio na transacção exarada através do Protocolo.

Mas, para o estrito efeito de legitimar a co-assunção de dívida, não pode desconsiderar-se, com a ligeireza assumida pelos recorridos e com a facilidade revelada pelo acórdão recorrido, que era o A. AA que figurava como beneficiário dos cheques nominativos sacados pelo R. CC e avalizados pelo R. EE, sendo, assim, titular inequívoco de um direito de crédito de natureza cambiária oponível tanto ao sacador como ao avalista.

O saque e o aval de cheques bancários constituem formas de constituição da obrigação de pagamento do respectivo montante, valendo independentemente da existência de alguma relação subjacente. Como muito justamente é acentuado pelos recorrentes, tais operações cambiárias não podem ser tratadas, nem pelos obrigados cambiários, nem muito menos pelos tribunais, como actos inconsequentes. Efeito tanto mais incompreensível quanto se verifica que, no caso, os cheques foram sacados e avalizados no interesse exclusivo dos obrigados cambiários, como forma de o sacador, pai do avalista, se livrar definitivamente da responsabilidade criminal e civil que decorria de anterior emissão de cheques não provisionados.

Assim, confrontados com cheques que um dos obrigados, com aval de outro co-obrigado, livremente sacou e entregou ao seu legítimo portador, é inconcebível que os tribunais neguem o que com mais naturalidade emerge desses títulos e que se conclua, como no acórdão recorrido, contra as mais elementares regras da LUC, que nenhum efeito se extrai desse facto relativamente a qualquer dos obrigados cambiários, com a mera justificação de que a obrigação primitiva tinha como sujeitos formais outros interessados (duas sociedades que celebraram um contrato de prestação de serviços).

Nesta medida, na data em que foi outorgada a escritura de assunção de dívida e de dação em pagamento, não existia qualquer impedimento para que, em face da aludida relação cartular decorrente dos cheques sacados e avalizados, o procurador designado pelo R. EE assumisse, em nome e no interesse deste, a co-responsabilidade pelo pagamento de um crédito de que o A. AA era formalmente titular.

Para o efeito, não devem sobrevalorizar-se eventuais implicações decorrentes do facto de tal beneficiário ser sócio-gerente da sociedade (sócio largamente maioritário, juntamente com a sua mulher), matéria cujo interesse não extravasa dos limites societários, sendo mais adequado que se assuma, com a naturalidade que os factos revelam, que, independentemente da titularidade da relação material de onde emergiram os cheques (de início o contrato de prestação de serviços entre as duas sociedades e, num segundo momento, o acordo de regularização da dívida entre o R. CC e a Sociedade A.), por razões que os interessados por certo terão ponderado, o A. AA passou a figurar como credor formal do R. CC, sacador (e também do R. EE, avalista), deste modo encontrando plena justificação a assunção da dívida que em nome do R. EE foi declarada pelo seu procurador que para o efeito antecipadamente mandatara.

Neste contexto, não existe motivo algum para se concluir que houve qualquer situação de abuso da representação levada a cabo pelo advogado da Sociedade A. que simultaneamente fora indicado como procurador do R. EE, ao abrigo de uma procuração irrevogável subscrita no interesse não apenas do mandante como ainda de terceiros.

 

1.10. Confirmada, assim, a existência de uma obrigação que foi assumida livremente pelo R. EE (a par da que assumira o R. EE), fica justificado o passo seguinte que foi dado pelo mesmo procurador: a dação em pagamento efectuada ao A. dos prédios que foram indicados.

Também quanto a este aspecto são insustentáveis e vazios de conteúdo os argumentos formais que as instâncias acolheram dando uma incompreensível e injustificável cobertura a uma estratégia de fuga à responsabilidade pela qual os 1ºs e 2º RR. se vêm orientando.

A dação em cumprimento constitui uma forma de extinção de obrigações que também encontra arrimo na liberdade contratual (art. 837º do CC).

Como já se referiu, o R. EE, ante a necessidade de o seu pai CC se ver livre da responsabilidade emergente de cheques sem provisão, acordou livremente, a par do reconhecimento da dívida, a subscrição de uma procuração irrevogável conferindo ao procurador designado (e que era o advogado da sociedade A.) poderes para, em seu nome, assumir e extinguir dívidas do seu pai “qualquer que seja o montante e até ao dito limite” mediante a “transmissão, a título de dação em pagamento a qualquer uma das referidas entidades, dos prédios que seguir se descrevem …” (Campo d… e Campo d…).

Foi este precisamente o resultado que emergiu da escritura de dação em pagamento na qual o seu procurador declarou que, assumindo para o representado a dívida do R. CC, no valor de 13.800.000$00, “em nome do seu representado, dá ao segundo outorgantepara pagamento integral da dívida assumida”dois prédios que identificou.

O facto de o beneficiário da dação em cumprimento ser o A. AA, e não a sociedade A., não tem os efeitos que as instâncias projectaram, seguindo uma linha de raciocínio que, em vez de interrogar o sistema jurídico, para do mesmo obter a resposta adequada, se limitou a cavalgar mais uma vez a onda da desresponsabilização formada pelos argumentos apresentados pelos 1ºs e 2º RR.

Na verdade, como já se disse, o A. AA não deixava de ser credor do R. EE, atento o facto de os cheques que este sacara e que o R. EE avalizara terem sido passados a seu favor. Nesta medida, a dação em pagamento dos imóveis que o beneficiou directamente constituía uma forma legítima e alternativa de extinguir essa obrigação.

Mas ainda que assim não fosse, ou seja, ainda que a qualidade de credor pertencesse exclusivamente à Sociedade A., sendo terceiro o A. AA, nem assim a conclusão se alteraria, uma vez que, atento o disposto no art. 770º, al. a), do CC, não existia impedimento legal – dentro da referida liberdade contratual – a que a prestação fosse feita a terceiro.

Ora, no caso, a procuração que foi subscrita pelo R. EE autorizava que a “dação em pagamento” fosse feita “a qualquer uma das referidas entidades”, isto é, tanto à Sociedade A., como ao seu sócio-gerente, o A. AA.

 

1.11. Por conseguinte, mais não resta do que reconhecer ao A. AA, verdadeiro e único interessado na procedência dos pedidos principais, a validade da dação em pagamento que teve por objecto os dois imóveis, atento o complexo de factos que esteve subjacente à actuação do procurador que foi designado pelo obrigado e dador EE.

Reconhecimento esse que deve ser acompanhado tanto do reconhecimento da qualidade de proprietário dos prédios, por via da dação em pagamento, como ainda da condenação dos RR. CC e mulher e EE na sua entrega àquele A.

 

2. Atenta a procedência do antecedente recurso, com procedência dos pedidos principais, a decisão recorrida deverá ser reformulada, ficando prejudicado o acolhimento dos pedidos subsidiários atinentes à declaração da nulidade contratual por simulação.

Pelos mesmos motivos, fica prejudicada a apreciação do recurso interposto pelos RR., na medida em que se dirigiram exclusivamente ao modo como foi acolhido o pedido subsidiário de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda que entre os RR. foram outorgados.

 

IV – Face ao exposto, acorda-se em:

a)       Julgar procedente o recurso de revista interposto pelos AA., de modo que, em revogação e substituição do acórdão recorrido, se reconhece a validade da aquisição do direito de propriedade dos imóveis Campo d…, sito no Lugar de …, Lordelo, Guimarães, inscrito na respectiva matriz sob o art. …, com o valor patrimonial de 24.117$00, e do prédio rústico denominado Campo d…, sito no Lugar …, Lordelo, inscrito na matriz respectiva sob o art. …, ambos formando o descrito na CRP de Guimarães, sob o nº …, que, a favor do A. AA, foi efectuada através da escritura de dação em pagamento outorgada pelo procurador do R. EE, ao abrigo da procuração irrevogável;

b)       Reconhecer ao mesmo A. AA o direito de propriedade sobre tais imóveis;

c)        Condenar os 1ºs e 2º RR. na entrega desses imóveis ao A. AA;

d)      Considerar prejudicada a apreciação dos demais pedidos que foram formulados pelos AA.;

e)      Considerar prejudicada a apreciação do recurso de revista interposto pelos RR.

Só o facto de, por fás e por nefas, o R. EE, ter conseguido na anterior acção uma decisão favorável impede que seja apreciada negativamente a conduta processual dos RR. para efeitos de aplicação das sanções inerentes à litigância de má fé.

As custas referentes a ambos os recursos de revista e as custas das instâncias ficam a cargo dos 1ºs e 2º RR., sendo a taxa de justiça agravada, nos termos do art. 530º, nº 7, do CPC, e 6º, nº 5, do RCP.

Notifique.

Lisboa, 18-6-14

Abrantes Geraldes

 

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva