Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17657/20.9TSLSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: DIREITOS DE PERSONALIDADE
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
TRIBUNAIS PORTUGUESES
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REQUISITOS
DOMICÍLIO
CAUSA DE PEDIR
PRINCÍPIO DA COINCIDÊNCIA
PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE
PRINCÍPIO DA NECESSIDADE
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO NOME
JOGADOR DE FUTEBOL
JOGO
Data do Acordão: 02/29/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Constitui entendimento constante do STJ que os tribunais portugueses dispõem de competência internacional, nos termos do art. 62.º, al. b), do CPC, para decidirem acções em que um profissional de futebol que exerceu predominantemente a sua actividade em Portugal, pede indemnização por danos causados pela utilização não consentida do seu nome e imagem em videojogos produzidos nos EUA e divulgados por todo o mundo.

II - Este critério é de manter ainda que o autor não resida em Portugal, por estar colocado num clube estrangeiro onde actua como profissional de futebol, se concomitantemente tiver alegado factos que denotam uma conexão relevante com o ordenamento jurídico português, como seja, a nacionalidade, ter feito sua formação em Portugal, jogado em clubes portugueses e representado a Selecção Nacional nos escalões jovens.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA, futebolista profissional, residente na República do ..., demanda a R., Electronic Arts Inc, com sede na Califórnia, Estados Unidos da América, pedindo que a R. seja condenada:

«[A] pagar ao Autor, a título de indemnização por danos patrimoniais de personalidade, pela utilização indevida da sua imagem e do seu nome, a quantia de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros), de capital, acrescida dos juros vencidos (…) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal (…)»;

«[A] pagar ao Autor montante nunca inferior a € 5.000,00 (cinco mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescido, também, dos juros vencidos (…) e dos juros que se vencerem até integral pagamento, à taxa legal (…)».

Como fundamento do seu pedido alegou, em síntese, que é futebolista profissional, de nacionalidade portuguesa, tendo feito em Portugal a sua formação, exercendo actualmente a sua profissão no ..., ao passo que a R. é uma empresa líder no entretenimento digital interativo que produz e comercializa os jogos denominados FIFA, FIFA MANAGER FIFA, e FIFA ULTIMATE TEAM – FUT, os quais fazem uso da imagem, nome e características pessoais do A., sem autorização deste.

Alegou também que tais jogos são vendidos e difundidos em Portugal, e em todo o mundo, termos em que conclui serem afetados os seus direitos de personalidade.

A R. apresentou contestação, além do mais arguindo a incompetência internacional dos tribunais portugueses.

Foi proferida sentença que desatendeu a excepção e julgou o tribunal internacionalmente competente para a acção, considerando que «os elementos de conexão relevantes para a atribuição da competência do presente Tribunal são os previstos nas alíneas b) (localização de alegados danos em Portugal, quer pela difusão de suportes materiais, quer de acessos “on line”) e c) do artigo 62.º do CPC (interesse da boa administração da justiça, decorrente do facto de o A ter o seu centro de interesses profissional, em ambiente digital, localizado em Portugal- espaço EU)».

A Ré interpôs recurso desta decisão, mas sem sucesso, pois que a Relação de Lisboa, por acórdão de confirmou a sentença.


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Ainda inconformada, a Ré interpôs recurso de revista, ao abrigo do disposto no art. 629º, nº2, alínea a) do CPC, concluindo como segue as respectivas alegações:

1. O presente recurso de revista impugna o acórdão de 02.03.2023 do TRL, pelo qual se declarou a competência internacional do Juízo Local Cível de Lisboa para tramitar esta ação, recurso admissível nos termos do art.º 629.º, n.º 2, alínea a) do CPC já que está em causa a infração de regras de competência internacional.

2. A ré considera a decisão ilegal, com base na violação de lei substantiva, processual e da própria Constituição da República Portuguesa, destacando-se, entre outros, as seguintes normas e princípios jurídicos: – princípio de interpretação autónoma dos Estados-Membros, princípio da coincidência, princípio da causalidade, princípio do Estado de Direito, princípio da proteção ou tutela da confiança, princípio da soberania, princípio da igualdade, princípio do processo equitativo e da igualdade das partes, princípio da tutela jurisdicional efetiva, princípio do dispositivo, princípio do contraditório, princípio do dever de obediência dos tribunais à lei, princípio da separação dos poderes e o princípio do primado do direito europeu;

– art.º 2.º, 8.º, 13.º, n.º 1, 20.º, n.º 4, 203.º e 204.º da Constituição da República Portuguesa;

– art.º 1.º, 9.º e 351.º do CC;

– art.º 5.º, n.º 1, 62.º, 71.º, n.º 2 e 608.º, n.º 2 do CPC;

- art.º 22.º e 38.º, n.º 1 da LOSJ.

3. A apreciação da competência internacional é efetuada exclusivamente com base nos factos alegados na petição inicial, sem qualquer indagação probatória ou aplicação de presunções judiciais – art.º 38.º da LSOJ e, entre muitos outros, acórdão do TRE de 15.12.2016, Proc. n.º 1330/16.5T8FAR.E1; acórdão do TRG de 16.11.2020, Proc. n.º 114083/18.7YIPRT.G1.

4. Sucede que o acórdão em crise declarou a competência internacional com base na existência da venda dos jogos FIFA em Portugal, ato que o autor não imputa à ré (localizando a atividade desta apenas nos EUA, Japão e Canadá), como tais vendas não assumem qualquer especificidade sobre todas as outras que acontecem por todo o mundo.

5. Da leitura do acórdão verifica-se que este sufragou o entendimento jurisprudencial do STJ, sem cuidar de verificar se os pressupostos fácticos eram idênticos.

6. A presente ação é muito diferente das que foram até hoje apreciadas pelo STJ já que o autor indicou residir no ... e a representação da sua imagem não surge associada a clubes portugueses nos jogos FIFA, mas sim a clubes ingleses.

7. Acresce que o acórdão revidendo, ao assumir a corrente do STJ, acaba por se basear em factos não articulados na petição inicial, factos que não integram a causa de pedir e na existência não invocada de um centro de interesses do autor em Portugal.

8. A causa de pedir deste pleito é a alegada violação do direito de imagem do autor, pela aposição não autorizada da sua imagem nos jogos FIFA, não devendo ser considerados outros factos que não a integrem, como seja a sua nacionalidade.

9. As vendas dos jogos FIFA não constituem conexão suficientemente relevante para se afirmar a competência internacional porque (i) não são imputadas à ré e (ii) não assumem nenhuma particularidade sobre todas as demais vendas noutros países.

10. Como os nossos tribunais superiores já autorizadamente defenderam, (…)

11. A par deste erro de julgamento, dado que o acórdão do TRL adere aos fundamentos dos acórdãos do STJ aí citados, cumpre referir que é inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, incluindo o seu art.º 7.º, n.º 2 porque este só abrange casos em que a entidade demandada tem sede num Estado-Membro e a ré tem sede nos EUA.

12. Nem sequer o autor tem domicílio ou atividade relevante em Portugal ou na União Europeia – Reino Unido e ... não fazem parte da UE.

13. Ao abrigo do princípio interpretação autónoma dos Estados-Membros e dos seus órgãos jurisdicionais sobre o seu direito nacional, não há que convocar a jurisprudência do TJUE sobre diplomas europeus, para interpretar a lei portuguesa.

14. Incluir no critério da causalidade do art.º 62.º, alínea b) do CPC, o centro do interesse do autor constitui violação manifesta das regras de interpretação jurídica e de normas e princípios constitucionais, como acima se detalhou e para onde se remete – reiterando- se o pedido de pronúncia expressa deste Tribunal.

15. Sendo inaplicável o regulamento n.º 1215/2012, o CPC estabelece no art.º 62.º do CPC o regime interno que define quais os fatores de atribuição da competência internacional, o qual tem de ser interpretado e aplicado de acordo comos critérios legais de interpretação das normas fixado no art.º 9.º do CC: elementos literal, teleológico, sistemático e histórico, sendo inconstitucional e ilegal qualquer interpretação contra ou praeter legem.

16. As fontes de direito português são as leis e diplomas equiparados (art.º 1.º do CC), em nada relevando a jurisprudência do TJUE sobre normas que não estão em causa, sob nenhuma forma, nestes autos.

17. A apreciação da competência internacional nestes autos deve ser dirimida exclusivamente à luz do art.º 62.º do CPC e critérios aí elencados, a saber

– alínea a): critério da coincidência;

– alínea b): critério da causalidade; e

– alínea c): critério da necessidade.

18. Estes critérios devem ser ponderados à luz da factualidade constante da petição inicial, assumindo-a, para este efeito como verdadeira, e sem proceder a quaisquer indagações probatórias, destacando-se do elenco da petição inicial, a seguinte factualidade relevante:

(i) O autor indicou residir no ...;

(ii) A imagem do autor nos jogos FIFA está associada a clubes ingleses;

(iii) Não há qualquer indicação na petição inicial que o autor viva em Portugal;

(iv) A ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;

(v) A ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o autor não alega que a ré o faz em Portugal (artigo n.º 1 e 2 da petição inicial) – ou seja, de acordo com a própria alegação do autor, não há qualquer atuação da ré em território nacional;

(vi) O autor refere que “…a conta com várias subsidiárias, entre as quais se destaca, na Europa, a EA Swiss Sàrl…” (artigo n.º 2 da petição inicial), o que evidencia que a ré não atua em Portugal ou, sequer, na Europa;

(vii) O ato ilícito que o autor imputa à ré consiste na utilização da sua imagem que ocorrerá aquando da produção dos jogos objeto dos presentes autos, sendo certo que em parte alguma da petição inicial, o autor afirma que a ré produz, em Portugal, os jogos FIFA;

(viii) De igual modo, o autor não afirma, em momento algum, que a ré vende, em Portugal, os jogos FIFA, chegando mesmo a reconhecer, quanto a versões antigas dos jogos que os mesmos são comercializados por terceiros e que estes assumem total responsabilidade por esses atos (artigos n.º 2 da petição inicial);

(ix) Ainda que assim não fosse – o que não se concede – o ato de venda dos jogos FIFA não é um ato ilícito ou, sequer, um ato gerador de danos para o autor;

(x) Nenhum dano é alegado ou concretizado, pelo autor, na petição inicial, nem tampouco como ocorrendo em Portugal (tampouco sendo possível identificar o momento temporal da ocorrência dos danos hipoteticamente sofridos pelo autor).

19. Destes factos, verifica-se que:

– nenhum facto territorialmente localizado em Portugal foi alegado pelo autor;

– não se imputa à ré a prática de atos em Portugal;

– não há na petição inicial concretização de danos;

- não há na petição nenhum facto que demonstre uma conexão pessoal relevante entre o autor e Portugal, para efeitos da demanda;

– não há alegação do momento e lugar do sofrimento desses danos;

– não há nenhum facto que preencha os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual;

– não se invoca qualquer dificuldade na demanda da ré no local da sua sede.

20. De acordo com o critério da coincidência, o tribunal português será internacionalmente competente se esta ação pudesse ser proposta no nosso país, segundo as regras de competência territorial do CPC.

21. Valendo, nesta ação de responsabilidade civil extracontratual, a regra do art.º 71.º, n.º 2 do CPC: o tribunal competente é o do lugar onde o facto ocorreu.

22. O autor não imputa qualquer ato praticado pela ré em Portugal e afirma que a ré não tem atividade na Europa. Mais alega que é uma entidade terceira que comercializa e assume a responsabilidade pela venda dos jogos FIFA.

23. Os tribunais portugueses não são, desta forma, competentes ao abrigo da alínea a) do art.º 62.º.

24. Quanto ao fator de conexão previsto na alínea b) – critério da causalidade –, impunha-se ao autor alegar factos integradores da causa de pedir ocorridos nosso país.

25. Sucede que não há, em toda a petição inicial, um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal.

26. Não foi concretizado qualquer dano sofrido pelo autor, tampouco em território nacional nem se indicando o momento em que tal se produziu.

27. Sem a alegação do “quando” e “onde” desse dano, é impossível afirmar que o dano ocorreu em Portugal para efeitos de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses, na medida em que, na decisão de competência, o Tribunal se deve ater aos factos alegados pelo autor.

28. Não alegando o autor onde se encontrava quando sofreu danos, não compete aoTribunal efetuar qualquer análise jurídica para apurar o local da verificação dos danos.

29. O autor não alega que o putativo facto ilícito – produção dos jogos – ocorre em Portugal, não invoca qualquer dano que se tenha produzido em Portugal, nem alega nenhuma circunstância integradora dos restantes requisitos da responsabilidade civil localizada em Portugal.

30. Na verdade, nem sequer foi alegada qualquer vivência do autor em Portugal.

31. O único facto alegado pelo autor como ocorrendo em Portugal consiste na venda dos jogos em todo o mundo, vendas que atribuiu a terceiros e não à ré e isso, vimos supra, constitui uma competência exorbitante.

32. Ao que acresce que o facto ilícito imputado pelo autor à ré é a utilização do seu nome e imagem nos jogos – artigos 115.º a 136.º da p.i. – e não a venda dos jogos.

33. A conclusão de que o autor tem o seu centro de interesses em Portugal, por remissão para a referida jurisprudência do STJ, é absolutamente infundada, sendo contrária à indicação na petição inicial de residência no ....

34. Não se pode inferir que o autor invocou ter sofrido danos em Portugal, sob pena de utilização de presunção judicial para assunção de factos, ato vedado na apreciação da competência.

35. Em caso algum se poderá ignorar, para efeitos da análise da competência, o que opróprio autor afirma na petição inicial sobre ser entidade terceira a responsável pelas vendas na Europa, incluindo por isso Portugal, designadamente a sociedade “…EA Swiss Sàrl, pessoa colectiva registrada no Registo de Pessoas Colectivas de Genebra com o número CH-660- 2328005-8 e sede em 8 Place du Molard, 1204 Genebra, Suiça…” (artigo 2.º da petição inicial).

36. Ao tribunal a quibus está vedado lançar mão de presunções judiciais para apreciar a competência, designadamente supor realidades que não estão na petição inicial, como seja o autor ter um centro de interesses em Portugal, que o local onde sofreu os danos foi o seu centro de interesses e que tais danos ocorreram em Portugal.

37. A este respeito é igualmente proibido, à luz dos critérios de interpretação consagrados no direito português, utilizar conceitos jurisprudenciais do TJUE e sobre normas de regulamentos europeus inaplicáveis, nomeadamente o conceito de centro de interesses.

38. Sendo a existência ou não dum centro de interesses, numa determinada jurisdição, uma conclusão jurídica que assenta em determinados factos, da petição inicial não é possível identificar quaisquer factos que permitam suportar a existência de um centro de interesses em território nacional.

39. O conceito de “centro de interesses” é uma figura trabalhada pela jurisprudência do TJUE e indevidamente aplicada pelo TRL pois não existe qualquer lacuna na lei portuguesa que requeira integração através daquela figura – vide Parecer do Ilustre doutrinário, Prof. Doutor Teixeira de Sousa.

40. Este conceito de “centro de interesses” apenas pode ser convocado no âmbito de aplicação subjetivo do Reg. 1215/2012, e não já quando em causa esteja a interpretação e aplicação dos critérios previstos no direito nacional (critérios da coincidência, causalidade e necessidade). I.e., depende da circunstância de a demandada ter residência dentro do território da União Europeia.

41. Já os critérios de direito nacional – critérios da coincidência, causalidade e necessidade – não seconfundem como critériodo centro de interesses, na medida em que, como refere o Prof. Teixeira de Sousa, o direito nacional não concebe o critério relativo à residência do autor.

42. Por conseguinte, a aplicação de critérios desenvolvidos pela jurisprudência europeia em interpretação do Reg. 1215/2012 não só extravasa a intenção do legislador e julgador europeu, como também viola o disposto no art.º 267.º do TUE, na medida em que este normativo dispõe que o TJUE apenas tem competência quanto a atos normativos da União Europeia e, por conseguinte, os princípios da interpretação conforme e do primado do direito europeu.

43. A aquisição dos jogos FIFA em qualquer parte do mundo, comercializados por atos de terceiro, não permite justificar a declaração de competência internacional, desconsiderando cegamente a circunstância de a ré não produzir o jogo neste país e aqui não praticar aqui qualquer ato.

44. A ser assim, o tribunal de qualquer local onde os jogos são vendidos seria internacionalmente competente, gerando um evidente conflito positivo de competência internacional, precisamente oque se visa evitar emhomenagemaoprincípiodasoberania dos Estados e à maior eficácia/proximidade da realização de julgamento.

45. Em face da (i) ausência de alegação, na petição inicial, de atos praticados pela ré em território nacional, (ii) indicação do autor da sua residência no ..., (iii) inaplicabilidade do centro de interesses e sua irrelevância para aplicação do art.º 62.º do CPC, (iv) não alegação de danos em Portugal, (v) inexistência de qualquer ligação relevante do autor a Portugal para efeitos da demanda e (vi) irrelevância da nacionalidade portuguesa, inexistem elementos de conexão à luz do princípio da causalidade.

46. Caso este Tribunal se pronuncie sobre o art.º 62.º, alínea c) do CPC – princípio da necessidade –, cumpre ressalvar que o autor não invocou que o direito que aqui peticiona não pudesse tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro.

47. Não bastando, seguramente, ao autor ter nacionalidade ou domicílio português, para daí se reconhecer, em todos os seus futuros litígios, competência internacional aos nossos tribunais.

48. O direito que o autor pretende fazer valer é amplamente reconhecido pelas várias jurisdições do mundo, sendo que da sua alegação na petição inicial não resulta qualquer concretização acerca do que seja a dificuldade objetiva que possa gerar uma limitação no exercício dos seus direitos.

49. O autor chega a alegar factos na petição inicial que comprovam que os direitos que pretende exercer são reconhecidos na jurisdição norte-americana.

50. Daí que não se verifiquem nenhum dos fatores de conexão estabelecidos no art.º 62.º do CPC e não possa ser mantida, por ser inconstitucional a interpretação aplicação da alínea b) pelas razões acima detalhadas, o que deve determinar a revogação do acórdão do TRL e a declaração da incompetência internacional dos tribunais portugueses.

51. São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 8.º, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação nos termos detalhados nas alegações de recurso – aqui dados por reproduzidos e para os quais se remete –, entre outros, dos seguintes princípios:

– princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas);

– princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório);

– princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e

– princípio do primado do direito europeu.

52. Esta questão relativa à inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 62.º do CPC, 8.º, 9.º e 351.ºdoCC e38.º, n.º1da LOSJé suscitadapara conhecimentoexpresso desteSupremo Tribunal, nos termos e para os efeitos dos artigos 70.º, n.º 1, alínea b), 72.º, n.º 2 e 75.º-A, n.º 2, todas da Lei n.º 28/82.


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Contra alegou o Autor, pugnando pela improcedência da revista e a confirmação do acórdão recorrido, tendo apresentado as seguintes conclusões:

(…)

(…) não há qualquer ligeireza de raciocínio por parte do Tribunal a quo, nem o Autor, aqui Recorrido, vislumbra qualquer vício na Decisão proferida, muito antes pelo contrário.

d) Assim, é evidente que a douta Decisão recorrida fez correcta e sapiente aplicação do Direito, sem violação de quaisquer normas, designadamente, as constantes dos preceitos e princípios, apontados pela apelante.

e) A Decisão sufragada pelo Tribunal a quo no que respeita à declarada competência internacional dos Tribunais Portugueses não padece de qualquer falta de substrato justificativo – com efeito, a referida Decisão invoca factos concretos do caso sub judice, e baseia-se em elementos Jurisprudenciais e Doutrinários inabaláveis.

f) Com efeito, o próprio dano/facto danoso resultante a exploração indevida da imagem do Autor mostra-se, também, consumado em Portugal.

g) E tal está, efectivamente, alegado na petição inicial (cfr. artigos 16.º, 19.º, 20.º e 21.º e documentos 15, 19, 20 e 21, juntos com esta peça).

h) Isto porque, no que respeita ao caso concreto e ao uso indevido da imagem do Autor, os jogos da ré, com o conteúdo lesivo, são difundidos por esta, para serem utilizados e guardados em vários instrumentos tecnológicos, de diversas pessoas, a qualquer momento, em qualquer lugar.

i) É o que sucede, por exemplo, com a colocação dos jogos em linha/ambiente digital, altamente potenciada com a expansão do uso da Internet e da qual a ré beneficia largamente para aumentar a divulgação e exploração comercial dos seus jogos e, bem assim, os avultados lucros daí advenientes.

j) Acresce que, conforme demonstrado nos autos, inclusive, através de diversa documentação junta com a petição inicial, os jogos da ré são comercializados em suporte físico em Portugal, nas mais variadas lojas, como por exemplo, nas lojas da especialidade, nas grandes superfícies, na Worten, na Fnac, na Mediamarket, entre tantas outras.

k) Esta lógica é, pois, plenamente aplicável aos jogos da ré, pelo que estando os jogos disponíveis a nível mundial, o dano não é provocado só nos Estados Unidos.

l) Por isso, a tese sufragada no recurso interposto, apenas faria sentido, se os jogos, com a imagem do Autor, apenas fossem produzidos em solo norte- americano e não transpusessem as suas fronteiras, para ser comercializados pela ré por todo o mundo sob todas as formas disponíveis, ou seja, online e em suporte físico.

m) E, é evidente que o tribunal do lugar onde a “vítima” (in casu, o Autor) tem o centro dos seus interesses, pode apreciar melhor o impacto de um conteúdo ilícito colocado em jogos de vídeo físicos e online sobre os direitos de personalidade, pelo que lhe deverá ser atribuída competência segundo o princípio da boa administração da justiça.

n) Para além disso, não pode ser descurado o princípio da previsibilidade das regras de competência, sendo que a ré, enquanto autora da difusão do conteúdo danoso, encontra-se manifestamente, aquando da colocação da imagem, nome e demais características das “vítimas” da sua acção, nos jogos de que é proprietária com vista à sua divulgação mundial, em condições de conhecer os centros de interesses das pessoas afetadas por este.

o) O Julgador não pode deixar de estar atento à evolução tecnológica e à expansão dos fenómenos dela resultantes, de forma a evitar decisões totalmente desfasadas da realidade em que vivemos actualmente.

p) O facto constitutivo essencial desta causa reporta-se à produção e divulgação dos jogos utilizando a imagem e o nome do Autor, sem sua autorização, mas – ao contrário do referido no recurso interposto – a sua divulgação não se localiza, exclusivamente, em solo norte-americano.

q) Conforme demonstrado, essa divulgação ocorre em todo o mundo e, também, em Portugal, pelo que há, obviamente, uma repercussão do facto danoso, também, em todo o território nacional.

r) Mostrando-se alegado que a Ré utiliza ilicitamente a imagem do Autor a nível global, também em Portugal ocorre a lesão do bem jurídico, a violação dos direitos de personalidade do Autor.

s) Mais se dirá que, relativamente ao lugar onde ocorreu a acção causal do dano, há que ter em consideração, que a acção violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado de forma difusa por todo o mundo, compreende não só a produção dos videojogos em causa, processo em que se inclui o nome e se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes.

t) Com efeito, estando em causa a imagem, nome e características próprias do Autor, cidadão português, aspetos esses que são difundidos por todo o mundo, designadamente em Portugal, através de videojogos produzidos pela ré, não pode deixar de ser conferida aos Tribunais portugueses competência internacional em função do apontado critério da causalidade.

u) A difusão em Portugal da imagem, nome e caraterísticas do Autor, cidadão português, nos videojogos da ré, não pode, ela também, deixar de constituir factualidade relevante que integra a causa de pedir da presente ação, pelo que se mostra preenchido, sem qualquer margem para dúvida, o critério da causalidade, previsto na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

v) E, parece-nos, é neste sentido que o Tribunal a quo, acima de tudo, refere a propósito, os Acórdãos proferidos por esse Colendo Supremo Tribunal de Justiça.

w) Tudo, na senda de outros Acórdãos, também, por esse Supremo Tribunal de Justiça e pelos Tribunais da Relação, em que, de igual modo, foi sufragada a doutrina em todos eles de que os Tribunais Portugueses são internacionalmente competentes para julgar o litígio, em acções idênticas à presente.

x) Todos os supramencionados Arestos concluíram pela competência internacional dos Tribunais Portugueses para julgar a acção acção em tudo idêntica à presente e a fundamentação aduzida nos mesmos é inteiramente aplicável in casu.

y) A posição uniforme seguida na jurisprudência desse Supremo Tribunal de Justiça no tratamento destas situações, com ausência de posição discordante, não pode, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 3 do Código Civil, deixar de ser tido em conta para garantir uma interpretação e aplicação uniformes do direito a pessoas que, nas mesmas circunstâncias, com a mesma nacionalidade, residência e profissão se arrogam atingidas nos seus direitos de personalidade pela mesma ré, com o mesmo modo de actuação.

z) Para além disso, a obrigação de reparação, in casu, decorre de um uso indevido de um direito pessoalíssimo, não sendo de exigir - ao menos na componente de dano não patrimonial – a prova da alegação da existência de prejuízo ou dano, porquanto o dano é a própria utilização não autorizada e indevida da imagem.

aa) E estando em causa a violação, pela ré, do direito de imagem do Autor, com tratamento e protecção constitucional e infraconstitucional, cfr. artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa e artigos 70.º e 72.º do Código Civil e sendo arguida pelo Autor, aqui Recorrido, a inconstitucionalidade do artigo 38.º n.º 4 do Contrato Colectivo de Trabalho celebrado entre o Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol e a Liga Portuguesa de Futebol Profissional, por se considerar que o mesmo é ofensivo do conteúdo de um direito fundamental (o já invocado artigo 26.º n.º 1 da Constituição da República Portuguesa) não se concebe como o poderia o julgamento da causa nestes autos ser atribuído a uma jurisdição estrangeira de um outro país.

bb) Mais se diga ainda que, eventuais, dificuldades de aplicação do critério da materialização do dano não podem por em causa a gravidade da lesão que possa vir a sofrer o titular de um direito de personalidade que constata que um conteúdo ilícito está disponível em qualquer ponto do globo, como sucede no caso concreto.

cc) Não podia, pois, o Tribunal a quo deixar de concluir, in casu, pela verificação, pelo menos, do factor de conexão consagrado na alínea b) do artigo 62.º do Código de Processo Civil.

dd) Os Tribunais Portugueses são, pois, internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, alínea b), do Código de Processo Civil, para decidirem a presente ação em que o Autor, cidadão português, um jogador profissional de futebol, que pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome e imagem nos videojogos FIFA, produzidos pela ré nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo, com base na responsabilidade civil extracontratual, por violação dos direitos de personalidade, e no enriquecimento sem causa (enriquecimento por intervenção no direito de personalidade ao nome e à imagem).

ee) Quanto à alegada interpretação inconstitucional das normas indicadas pela ré no seu recurso, a verdade é que a recorrente não suscita verdadeiramente uma questão de inconstitucionalidade, o que contesta é o critério seguido na decisão recorrida aquando da aplicação do direito aos factos provados, a valoração e subsunção jurídica de um certo quadro factual.

ff) É, pois, por demais evidente que as normas legais em causa não foram interpretadas e aplicadas com o sentido referido pela recorrente.

gg) Resultando à saciedade, face a todo o exposto que, andou bem, aliás, refira-se muito bem, a decisão do Tribunal a quo!


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Objecto do recurso.

Visto as conclusões da alegação da recorrente e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre verificar se os tribunais portugueses são competentes para conhecer da presente acção


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Fundamentação.

Com a presente acção, pretende o Autor que a Ré seja condenada a pagar-lhe uma indemnização por violação dos direitos de personalidade ao nome e à imagem.

A esta pretensão opôs a Ré incompetência internacional dos tribunais portugueses.

A competência internacional traduz-se na fracção do poder jurisdicional dos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros, relativamente às causas que tiverem um qualquer elemento de conexão (substantiva ou adjectiva) com ordens jurídicas estrangeiras (cf. Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, I, 3ª edição, pag. 412).

A infração das regras de competência internacional determina a incompetência absoluta do tribunal, constituindo uma excepção dilatória que obsta ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância (cfr. arts. 96º, 576º, nº2 e 577º, alínea a), do CPC).

Nos termos do artigo 37º, nº2 da Lei Orgânica do Sistema Judiciário, incumbe à lei de processo de fixar os factores de que depende a competência internacional dos tribunais portugueses, e é essa matéria que o art. 59º do Código de Processo Civil (CPC) regula sob a epígrafe Competência Internacional, dispõe:

“Sem prejuízo do que se encontra estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º.”

O Regulamento Europeu que rege a competência judiciária em matéria cível comercial é o Regulamento (EU) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012. Com excepção das acções previstas nos artigos 18º, nº1, 21º, nº2, 24º e 25º deste Regulamento, onde não se inclui a presente acção, é condição de aplicabilidade das regras nele contidas que o demandado tenha o seu domicílio num Estado-Membro.

Como a Ré tem a sua sede nos Estados Unidos da América o Regulamento não se aplica, mas sim o direito interno português, devendo atender-se ao artigo 62º do CPC, que enuncia os três critérios autónomos de atribuição da competência internacional:

“Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes:

a) Quando a acção possa ser proposta no tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;

b) Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram;

c) Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.”

Correspondem tais critérios aos princípios da coincidência (alínea a), da causalidade (alínea b), e a da necessidade (alínea c).

No presente caso, estamos perante uma acção em que se pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual, por violação, por acto ilícito, de direitos de personalidade.

Sendo incontestável que a competência internacional dos tribunais portugueses deve ser aferida em função do pedido e da causa de pedir invocados pelo autor (cf. Ferreira de Almeida, obra e local citados), importa verificar o que neste particular foi alegado.

Invoca que a Ré, que tem sede nos Estados Unidos da América, utiliza sem a sua autorização, o seu nome e imagem nos jogos electrónicos que produz e comercializa, em todo o mundo, e assim também em Portugal, resultando dessa actuação a ofensa do direito ao nome e à imagem do Autor. O Autor tem nacionalidade portuguesa, é profissional de futebol, actualmente representa FC ... do ..., tendo jogado em Portugal, onde diz ter feito a sua formação, no CF União da ..., nos escalões jovens do Sport ... e representado a Selecção Nacional de Portugal, nos escalões sub-17 e sub-18.

Com base nesta factualidade, a Relação entendeu disporem os Tribunais portugueses competência internacional em função do critério da causalidade, isto porque “a difusão em Portugal da imagem, nome e caraterísticas do A., cidadão português, nos videojogos da R., constitui factualidade relevante que integra a causa de pedir da presente ação, pelo que mostra-se preenchido o indicado critério da causalidade.”

A decisão recorrida exprime a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça nos múltiplos arestos que proferiu sobre esta temática. (cfr., entre outros, os acórdãos de 24.05.2022, P. 3853/20, de 07.06.2022, P. 24974/19., de 27.09.2022, P. n.º 637/20., de 13.10.2023, P. 1014/20., de 10.11.2022, P. 1579/20., de 10.11.2022, P. 17046/20., de 15.12.2022, P.3731/21., de 10.01.2023, P.996/21., de 14.02.2023, de 25.05.2023, P. 3729/21., de 30.05.2023, P. 4167/20., e de 16.11.023, P. 7962/21.)

Como referido no acórdão de 24.05.2022, P. 3853/20.T8BRG.G1.S1P, relatado pelo Conselheiro Cura Mariano, “…uma vez que segundo o critério da causalidade (art. 62º, b) do CPC), os tribunais portugueses têm competência para decidir os litígios em que algum dos factos que integram a causa de pedir ocorra em território português, e sendo o dano um dos elementos essenciais da causa de pedir nas acções de responsabilidade extracontratual, não se pode deixar de admitir que o local onde se verificou possa conferir competência aos tribunais portugueses para decidirem as acções em que o dano aconteceu em Portugal, uma vez que as provas desse importante elemento da causa de pedir se localizarão em território português, sem prejuízo dessa competência também poder ser determinada pela localização de outros elementos relevantes da cause de pedir.

Como sintetizado no Acórdão do STJ de 08.02.2024, P. 4425/20, relatado pelo Conselheiro Nuno Oliveira e subscrito pelo relator do presente,

Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes, nos termos do artigo 62.º, b), do CPC, para decidirem uma ação em que um jogador profissional de futebol que exerceu, predominantemente, a sua actividade em Portugal, pede uma indemnização pelos danos causados pela utilização, não consentida, do seu nome, imagem e caraterísticas físicas e pessoais, nos videojogos FIFA, produzidos nos E.U.A. e divulgados por todo o mundo”.

O caso presente tem a particularidade de o Autor ter indicado como residência ..., o que o distingue da generalidade dos casos apreciados em que os autor residem em Portugal.

Julga-se, no entanto, que tal facto não é decisivo para afastar a competência dos tribunais portugueses uma vez que no caso se verificam factos suficientes para se poder ter por verificada uma conexão suficientemente forte entre o caso e o Estado Português: a nacionalidade portuguesa do Autor, ter sido em Portugal que o Autor fez o essencial da sua formação como profissional de futebol, tendo chegado à selecção nacional nas camadas jovens, o que lhe deu a notoriedade com influência na comercialização dos vídeo jogos, e embora neste momento exerça a sua profissão no ..., um facto sem especial importância dada a conhecida mobilidade dos jogadores profissionais de futebol, permite concluir que o seu centro de interesses localiza-se indiscutivelmente em Portugal.

Relativamente à objecção colocada pela Ré segundo a qual “não há em toda a petição inicial um único facto alegado integrador da causa de pedir ocorrido em Portugal”, e ainda que “a venda de jogos FIFA não constitui conexão relevante para se afirmar a competência dos tribunais portugueses, porque não são imputadas à Ré”, cabe lembrar o que pertinentemente se escreveu no já citado acórdão do STJ de 24.05.2022:

“Relativamente ao lugar onde ocorreu a acção causal do dano, há que ter em consideração que a acção violadora do direito ao nome e à imagem, através de um conteúdo divulgado por todo o mundo, compreende não só a produção dos vídeos jogos, processo em que se inclui o nome se representa a imagem num determinado suporte físico ou digital, mas também a sua exposição pública através da comercialização mundial generalizada desses suportes. Apesar de na petição inicial se dizer que essa comercialização era efectuada por empresas subsidiárias da ré, designadamente (…) que assumia a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão, não deixa o Autor de imputar a divulgação pública apenas à Ré, responsabilizando-a por todos os danos resultantes desses actos.

(…)

Quanto ao lugar onde os danos invocados pelo Autor se verificaram, revelando-se uma tarefa impossível avaliar com certeza e fiabilidade os danos causados em cada um dos países onde o conteúdo que utilizava o seu nome e imagem foi exposto, deve seguir-se a jurisprudência do TJUE, segundo o qual, em princípio, o impacto da violação dos direitos de personalidade que ocorrem nessas circunstâncias verifica-se predominantemente no Estado onde a vítima tem o seu centro de interesses, aí se encontrando a maioria das provas dos prejuízos sofridos, pelo que a atribuição de competência aos tribunais desse país para apreciar a integralidade dos prejuízos satisfaz o objectivo da boa administração da justiça.”

Na conclusão 36ª, diz a Recorrente que o tribunal lançou mão de presunções judiciais, ao “supor realidades que não estão na petição inicial, como seja o autor ter um centro de interesses em Portugal, que o local onde sofreu os danos foi o seu centro de interesses e que tais danos ocorreram em Portugal.”

Mas também neste particular, não assiste razão à Recorrente.

“não implica o recurso a qualquer enquadramento factual senão aquele que foi alegado pelo autor e havia sido atendido pelas instâncias, nem recorreu a quaisquer juízos presuntivos para firmar os factos em que fundamenta a decisão”. (acórdão de 08.02.2024, 4, supra referido).

Sobre o teor da conclusão 51, segundo a qual “ São inaplicáveis os conceitos relativos ao domicílio e centro de interesses do autor e, bem assim, quaisquer presunções judiciais ou factos que não estejam referidos na petição inicial e que não integrem a causa de pedir, sob pena de interpretação inconstitucional dos art.º 62.º do CPC, 8.º, 9.º e 351.º do CC e 38.º, n.º 1 da LOSJ, por violação do princípio do Estado de Direito (e seus subprincípios da legalidade, da proteção da confiança dos cidadãos e da certeza e da segurança jurídicas); – princípio do processo equitativo (e subprincípios do dispositivo e do contraditório); – princípios da separação dos poderes e do dever de obediência à lei; e – princípio do primado do direito europeu, invoca-se o que se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça 16 de Novembro de 2023 — processo n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1 (Maria Clara Sottomayor), em termos que merecem a nossa total concordância:

[…] só haverá interesse processual em apreciar a questão de constitucionalidade suscitada quando o eventual julgamento de inconstitucionalidade for suscetível de se poder projetar ou repercutir na decisão recorrida, de modo a alterar ou modificar, no todo ou em parte, a solução jurídica que se obteve no caso concreto, implicando a respetiva reponderação […]. a utilidade do recurso de constitucionalidade encontra-se liminarmente afastada quando o critério normativo sindicado não coincide com o que foi aplicado pelo tribunal recorrido. Ora, é precisamente o que sucede no presente caso. As pretensas interpretações normativas aqui impugnadas não foram aplicadas no acórdão recorrido, tal como, desde logo, decorre dos fundamentos da resposta à questão anterior, onde ficou exarado que o acórdão recorrido se fundou exclusivamente em factos alegados pelo autor na petição inicial e rigorosamente discriminados […]. A orientação seguida no acórdão recorrido não foi a invocada pelo autor, que permitiria sustentar a competência internacional em presunções de facto, mas aquela, segundo a qual, a apreciação da competência internacional do tribunal se afere pelos termos em que o autor configura a relação material controvertida. É importante notar que não se verificou no acórdão recorrido qualquer juízo probatório, acompanhado da consequente fixação de quaisquer factos provados, mas tão-só a enumeração dos factos alegados que integraram a causa de pedir tal como foi delineada pelo autor. Avaliar da suficiência desta alegação e da sua veracidade probatória não compete aos tribunais nesta fase, em que está em causa unicamente a definição do tribunal competente, mas não o mérito da questão. Quem confunde ambas as vertentes é a recorrente na sua alegação de recurso de revista, não o acórdão recorrido e a jurisprudência que se tem pronunciado no sentido de reconhecer a competência internacional aos tribunais portugueses.

Termos em que se conclui pela improcedência das conclusões da Recorrente, não merecendo reparo o acórdão recorrido.

Decisão.

Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 29.02.2024

Ferreira Lopes (relator)

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

Lino Ribeiro