Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6854/18.7T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL PROFISSIONAL
TÉCNICO OFICIAL DE CONTAS
IVA
JUROS COMPENSATÓRIOS
NEXO DE CAUSALIDADE
OBRIGAÇÃO FISCAL
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
SEGURO DE RESPONSABILIDADE CIVIL
CESSAÇÃO
OPONIBILIDADE
TERCEIRO
AMPLIAÇÃO DO ÂMBITO DO RECURSO
RECURSO SUBORDINADO
CONVOLAÇÃO
Data do Acordão: 07/06/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I – Em matéria tributária, estabelecem os art.ºs 35.º n.º 1 da LGT e 96.º n.º1 do CIVA que, sempre que ocorra retardamento da liquidação do imposto devido, são devidos juros compensatórios pelo sujeito passivo, desde que tal retardamento decorra de facto que lhe seja imputável.

II – É dever do contabilista, nas suas relações com a AT, assegurar que as declarações fiscais que assinam estão de acordo com a lei e as normas técnicas em vigor (art.º 73.º al.a) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados,  Lei n.º 139/2015 de 7 de Setembro), sendo que o esclarecimento correcto do cliente se engloba na competência funcional de um TOC (art.ºs 71.º n.º1 als.a), b) e c) do EOCC e 11.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados).

III – O não cumprimento dos deveres profissionais do contabilista, nas suas relações com a AT, resultantes em inadequado enquadramento fiscal das declarações, responsabiliza esse mesmo contabilista pelo pagamento de juros compensatórios exigidos pela AT à entidade a quem prestava serviços.

IV - Do não demonstrado “esclarecimento do Autor sobre o regime do IVA aplicável”, por parte da contabilista, não se pode retirar a responsabilidade desta contabilista, em matéria do valor do imposto pago à AT, se não se prova expressamente que o Autor teria, em caso do correcto esclarecimento, arquitectado o seu negócio de modo distinto – caso em que inexiste causalidade demonstrada da intervenção da Ré relativamente ao não esclarecimento do Autor.

V - A cessação do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil que pode ser oposta ao terceiro lesado é a que ocorra antes do sinistro, não a que tenha lugar depois dele ter ocorrido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


                  

Notícia Explicativa

AA intentou a presente acção, com processo de declaração e forma comum, contra BB, C..., Lda, Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A., Mapfre, Seguros Gerais, S.A., e Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., peticionando:

Quanto a danos patrimoniais

A título principal

a) Que as 3.ª, 4.ª e 5.ª RR. sejam condenadas no pagamento ao A. de uma indemnização pelos danos patrimoniais causados pela conduta incumpridora da 1.ª R. no âmbito do contrato de prestação de serviços, que se liquidam no montante global de € 229.035,50, a título de IVA, coimas, juros de mora, juros compensatórias e custas, referentes aos exercícios de 2014 a 2017, de acordo com a respectiva cobertura de seguro e período de vigência, nos termos contratualizados entre as 3.ª, 4.ª e 5.ª RR. e a OCC;

b) Que as 3.ª, 4.ª e 5.ª RR. sejam condenadas no pagamento ao A. de juros de mora vincendos sobre a indemnização que a cada uma competir nos termos da alínea a), contabilizados à taxa legal, desde a data da citação das RR. para a presente acção até integral e efectivo pagamento.

Sem prescindir, a título subsidiário,

c) No caso de se apurar que a responsabilidade das 3.ª, 4.ª e 5.ª RR. está limitada, quanto aos sinistros acima descritos, ao montante máximo de € 50.000,00, ou concluindo que os mesmos não estão cobertos total ou parcialmente pelos contratos de seguro celebrados entre a OCC e as 3.ª, 4.ª e 5.ª RR., então deverão as 1.ª e 2ª RR. serem condenadas a indemnizar o A. nas quantias que excederem a responsabilidade assumida pelas 3.ª, 4.ª e 5.ª RR. nos sobreditos contratos de seguro, ou, não estando os sinistros cobertos, pela totalidade de tais quantias, e, em qualquer hipótese, acrescidas dos juros de mora devidos nos termos da alínea anterior.

Quanto a danos não patrimoniais

d) Que sejam as 1.ª e 2.ª RR. condenadas no pagamento ao A. de uma indemnização por danos não patrimoniais, em montante nunca inferior a € 10.000,00, acrescido de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data da citação das 1.ª e 2.ª RR. para a presente acção até integral e efectivo pagamento.

Alegou que é comerciante de automóveis usados e que a 1ª Ré é contabilista certificada, exercendo actividade enquadrada na 2ª Ré.

A 1ª Ré prestou ao A. informação errada sobre o regime de IVA a aplicar na venda de viaturas que adquiriu em Estados Membros da União Europeia, em consequência do veio a ser alvo de inspecção pela Autoridade Tributária no resultado da qual acabou a ter de pagar valores de IVA em falta e coimas e custas, em valor superior a duzentos mil euros. Sofreu igualmente danos não patrimoniais.

As 3ª, 4ª e 5ª Rés seguraram a actividade da 1ª Ré.

As Rés BB e C..., Lda, contestaram impugnando parcialmente os factos alegados pelo Autor e declinando a sua responsabilidade.

Afirmaram que o A. sabia qual o regime de IVA a aplicar às transações nacionais de veículos automóveis adquiridos em Estados-Membros da União Europeia sob o regime da margem, teve acesso ao diploma legal e bem assim a toda a informação necessária para o correcto enquadramento fiscal, devendo na data da aquisição, saber se estava perante compra considerada intracomunitária isenta de imposto na transmissão, ou perante uma aquisição enquadrada no regime da margem, certificando-se junto do revendedor do Estado-Membro respectivo qual o regime que este enquadrou a operação, era ele quem escolhia e negociava a aquisições, era ele quem estipulava o preço das suas revendas e beneficiou do lucro das suas transações, foi quem emitiu as facturas fazendo consignar o regime especial da margem, foi quem desconsiderou a hipótese legal e viável de reivindicar um tratamento fiscal mais favorável e mais optou por apresentar as declarações de Iva, liquidando o imposto adicional.

As Rés seguradoras contestaram, defendendo-se por excepção de caducidade (Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. e Mapfre Seguros Gerais, S.A.) e por impugnação.

Invocou a Ré Ageas, reconhecendo a existência do contrato com a OTOC – Apólice ...84 – que teve o seu início em 01 de Abril de 2012 e termo em 31 de Março de 2015.

A partir da renovação de 01 de Abril de 2014, o período de reclamação ao segurado ou directamente ao segurador, durante o período de vigência do contrato, ou, se desconhecidos das partes durante a vigência do contrato, passou de doze meses subsequentes ao termo do contrato para 24 meses.

Nem o A., nem as 1ª e 2ª Rés, durante este período, reclamaram.

Assim, o termo do contrato deu-se em 31.03.2017 (24 meses sobre 31.03.2015), os presentes autos foram intentados em 9.10.2018 e a Ré Ageas foi citada em 24.10.2018.

O contrato celebrado entre o A. e a 2ª Ré não foi reduzido a escrito.

A OCC em 01 de Abril de 2015 celebrou novo contrato de seguro de responsabilidade profissional com a Mapfre.

A proceder alguma responsabilidade da contestante Ageas, a Ré só poderá responsabilizada pelos valores relativos ao período de 1.01.2014 a 31.03.2015 – 4 trimestres de 2014 e 1º trimestre de 2015.

A Ré Allianz Portugal, S.A., admitiu a celebração do contrato de seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados – conforme Apólice nº ...33 – cuja vigência se iniciou em 01.04.2016 e que foi renovada automática e anualmente a partir de 01.04.2017 e de 01.04.2018.

Não lhe pode ser imputado o pagamento dos impostos devidos pelo sujeito passivo à AT. A existir dever de indemnizar (quanto a quantias relacionadas com coimas, execuções fiscais e juros de mora e compensatórios), no máximo a responsabilidade da contestante ficaria limitada a € 19.558,94.

A Ré Mapfre admitiu a celebração do contrato de seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados e com período de vigência desde 1.4.2015 até 31.3.2016, excepcionando que o sinistro não lhe foi reclamado antes da citação, nem no prazo de vigência do contrato nem nos 24 meses subsequentes, e excepcionando também a sua ilegitimidade porque o contrato de seguro foi celebrado em regime de co-seguro.


As Decisões Judiciais

Na sentença proferida na Comarca, a acção foi julgada improcedente, e, em consequência, absolvidas todas as Rés do pedido.

Tendo a A. interposto recurso de apelação, a sentença veio a ser parcialmente revogada, em consequência:

1 - declarado nulo, por preterição de forma legal, o contrato de prestação de serviço a que se refere a al. X) dos factos provados, celebrado entre o Autor e a 2ª Ré, não se determinando a restituição do prestado por ausência de elementos nos autos;

2 - condenadas as 3ª, 4ª e 5ª Rés no pagamento ao A. do montante de juros compensatórios por este pago à Autoridade Tributária, relativamente aos exercícios fiscais dos anos de 2014, 2015, 2016 e 2017, na medida da vigência contratual de cada um dos contratos de seguros sucessivamente celebrados com as ditas Rés seguradoras, montantes a apurar em liquidação do presente acórdão;

3 - e aos quais montantes acrescerão juros de mora à taxa legal fixada para os juros civis, contados do dia 25.10.2018.

4 - Absolvidas as 3ª, 4ª e 5ª Rés de todo o mais contra elas pedido na al. a) do pedido à inicial.

5 - Mantida a absolvição das 1ª e 2ª Rés de pedido de indemnização por danos não patrimoniais (al. d) do pedido à inicial) e mantêm, ainda que por razões diversas, a absolvição das mesmas Rés relativamente ao pedido subsidiário constante da al. c) do pedido à inicial.


Inconformado ainda o Autor, vem agora recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:

I – Da Verificação dos Pressupostos da Responsabilidade Civil

1. Resultam dos factos julgados provados sob as letras V, X, DD, EE, MM, NN e OO que a Recorrente utilizou indevidamente o regime especial de tributação pela margem de lucro fruto da prestação de serviços de contabilidade por parte da 1.ª Ré;

2. Aliás, tal acaba por ser reconhecido pelo Tribunal a quo ao entender, quanto aos juros compensatórios, “(…) já se a 1ª Ré tivesse cumprido com os deveres acima explicámos, o pagamento da parte do imposto em falta não teria sido retardada (…).”

3. Ou seja, desta factualidade deve-se concluir que não só foi alegado um concreto conjunto de actos praticados pela Recorrida que levaram impreterivelmente aos danos causados, isto é, à liquidação incorreta do IVA e a consequente correcção em momento em que a Recorrente não tinha capacidade financeira, sem recorrer a financiamento externo, para o liquidar, como este conjunto de actos resulta dos factos dados como provados;

i) Da Ilicitude

4. A atuação da Recorrida, mormente a prestação de serviços de contabilidade em violação das regras deontológicas e fiscais aplicáveis, deve ser qualificada como ilícita, nos termos do artigo 483.º, n.º 1, 2.º Parte do C.C., como de certo modo entendeu o Tribunal a quo;

5. Com efeito, resulta do artigo 5.º, n.º 1 do Código Deontológico dos Contabilista Certificados, que estes são responsáveis por todos os actos que pratiquem no exercício da sua profissão, sendo que, por outro lado, do artigo 7.º, n.º 1 desse mesmo diploma resulta que estes devem aplicar os princípios e as normas contabilísticas de modo a obter a verdade da situação financeira e patrimonial das entidades a quem prestam serviços;

6. É claro dos factos dados como provados nos autos que a actuação da aqui Recorrida não se pautou pelos deveres legais e deontológicos que sobre ela impendiam, desde logo, note-se, como bem referiu o Tribunal a quo, a 1.ª Ré “(…), não se comportou, dito assim de modo simples, como contabilista certificada, incumprindo grosseiramente todos os deveres acima mencionados, e desde logo e manifestamente, a sua autonomia técnica (…).”;

7. Tais normas imperativas preteridas pela aqui Recorrida visam não só tutelar um eventual interesse geral de tutela da legalidade fiscal, mas também tutelar diretamente os interesses particulares das pessoas que entram em contacto com os contabilistas certificados, recorrendo aos seus serviços;

8. Mais, é natural que a incorreta aplicação de um regime de tributação, mormente a falta de liquidação de determinados montantes, encontra-se dentro do escopo de proteção dos deveres legais e deontológicas em causa;

9. Assim, nestes termos deve-se, igualmente, como de resto bem concluiu a Veneranda Relação de Lisboa, concluir que a atuação da Recorrida é ilícita;

ii) Da Culpa

10. Da aplicação do nosso regime geral de responsabilidade civil extracontratual ao caso particular da responsabilidade dos contabilistas certificados resulta que o juízo de censura ou reprovação exigido pelo direito se basta com a mera negligência – nesse sentido, vide cit. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20 de abril de 2022;

11. Ora, em face ao critério geral do artigo 487.º do C.C., deve-se perguntar o que um contabilista medianamente informado, diligente e sagaz teria feito quando colocado na real situação da aqui Recorrida;

12. É manifesto que um contabilista certificado de diligência média teria diligenciado pela aplicação do correto regime fiscal;

13. Aplicação esta que não foi pela Recorrida, resultando dos autos que na prestação dos seus serviços a Recorrida “(…) não observou a diligência de um bom pai de família, seja, de um contabilista certificado «médio», normalmente informado (…)”;

14. Mais, em face ao entendimento desse Venerando Tribunal ad quem, cabia à Recorrida fazer prova que agiu de forma integra, idónea e responsável, resultando dos autos claramente o oposto, conformando-se com a incorreta aplicação do regime de tributação a margem de lucro;

15. Assim, nestes termos, mormente se pode concluir que a atuação da Recorrida deve, no mínimo, ser qualificada como culposa.

iii) Da Existência de Dano

16. Ora, como se sabe, por dano, em termos jurídicos, entende-se “(…) a supressão ou diminuição de uma situação favorável, reconhecida ou protegida pelo Direito”, ou, se se preferir, “(…) a frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica.” – In, respetivamente, MENEZES CORDEIRO, op. Cit., 2017, p. 511 e MENEZES LEITÃO, op. Cit., pp. 333 e 334;

17. Cabe, assim, questionar do ponto de vista naturalístico se a actuação da Recorrida suprimiu ou diminuiu alguma vantagem do Recorrente e depois se esta é juridicamente tutelada: a resposta terá de ser cabalmente positiva;

18. Isto é, o esforço económico que o Recorrente teria de ter realizado com a liquidação correta do IVA é inferior ao esforço que este teve de ter para pagar a totalidade do montante em falta fruto da incorreta liquidação pela Recorrida, o qual não pode deixar de ser considerado – como de certa forma, acabou por reconhecer o cit. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 24 de maio de 2022;

19. Enfim, mormente se pode concluir que também se tem por verificado o pressuposto da existência de um dano.

II – Da Existência de Causalidade Adequada entre a atuação do 1.ª Ré e os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução

20. Salvo melhor opinião, incorre o Tribunal a quo em erro de direito ao concluir não é possível estabelecer algum nexo de causalidade adequada entre a atuação da 1.ª Ré e os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução;

21. De todo o modo, e como é reconhecido pelo Tribunal a quo, o direito positivo português no artigo 563.º do Código Civil efetivamente consagra de certo modo a chamada teoria da causalidade abstrata, isto é, a teoria segundo a qual não basta que um evento seja naturalisticamente causal é também necessário que o evento seja, em abstrato, adequado a produzir o dano;

22. Porém, ao contrário do entendimento do Tribunal a quo, a norma consagra uma formulação negativa da teoria da causalidade adequada, nos termos da qual a causalidade naturalística só pode ser afastada se não for idónea para provar o dano ou apenas tenha provado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis;

23. Não existem dúvidas que da factualidade dada como provada existe uma causalidade naturalística entre a prestação de serviços de contabilidade por parte da 1.ª Ré e a os danos sofridos pelo Recorrente;

24. A saber, se através de um juízo lógico-hipotético subtraímos da equação os serviços de contabilidade prestados pela 1.ª Ré, mormente se pode concluir que não teria sido aplicado o regime de tributação pela margem de lucro às referidas transações;

25. Isto é, os serviços de contabilidade prestados pela 1.ª Ré são conditio sine quo non, mesmo que indireta, aos danos sofridos pelo Recorrente, mormente os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução, como acaba por ser reconhecido pelo Tribunal a quo quanto aos juros compensatórios;

26. Resta, portanto, saber se era provável que o evento lesivo causasse os danos sofridos pelo Recorrente, sendo aqui que, salvo melhor opinião, falhou o raciocínio da Veneranda Relação de Lisboa;

27. Num primeiro momento, da leitura da douta decisão parece resultar que o nexo de causalidade abstracta obsta à chamada causalidade indireta, tanto que o Tribunal a quo considera que não resultam dos autos elementos suficientes que permitam “(…) imputar ao Réu esse incumprimento (…).”;

28. Porém, na realidade, o legislador português optou por uma formulação negativa da teoria da causalidade abstrata, o que implica que, para haver responsabilidade civil, não é necessário que o dano seja uma consequência direta do evento danoso;

29. Ora, em face da factualidade dada como provada, é manifesto que os serviços de contabilidade prestados pela 1.ª Ré, mesmo não tendo sido causa directa do dano, desencadearam todo um processo causal que culminou no montante a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução;

30. Com efeito, deve-se perguntar se uma pessoa colocada na real posição da 1.ª Ré poderia ter previsto que a Recorrente que a utilização indevida do regime de tributação à margem de lucros daria lugar a uma acção inspetiva externa e à consequente execução em virtude da incapacidade financeira da Recorrente de liquidar o valor do IVA;

31. Para efeito deste juízo de prognose, importa ter em conta, igualmente, os conhecimentos especiais da 1.ª Ré, mormente o facto que esta tinha acesso à contabilidade do Recorrente e, portanto, conhecia que a mesma não conseguiria liquidar sem recorrer a financiamento externo, e que esta era e é contabilista certificada;

32. Ou seja, mormente se pode concluir que era previsível para qualquer pessoa colocada na posição da 1.ª Ré que a sua atuação era suscetível de gerar os danos sofridos pelo Recorrente;

33. Porquanto, foi em virtude da actuação da 1.ª Ré que o Recorrente se viu objeto de uma acção inspetiva, de onde resultou a correta liquidação do IVA à luz do regime comum, sendo tal situação danosa previsível à luz do conhecimento de qualquer contabilista certificado;

34. Ou seja, apenas se pode concluir que existe um nexo de causalidade adequada entre a atividade da 1.ª Ré e a liquidação posterior do montante de IVA em falta;

35. Igual causalidade existe em relação às custas de execução e aos juros de mora que venceram sobre o montante de IVA em falta, porquanto tinha a 1.ª Ré conhecimento directo das contas da Recorrente, sabendo que esta não estaria em condições para proceder ao pagamento de forma imediata;

36. Ou seja, sendo certo que o incumprimento do Recorrente é a causa direta das custas de execução e dos juros de mora, é igualmente certo que este incumprimento nunca teria sucedido se subtraímos o evento danoso (a prestação de serviços de contabilidade por parte da 1.ª Ré) e que este incumprimento era previsível para a 1.ª Ré, atendendo aos seus conhecimentos pessoais;

37. Nesses termos, mormente se pode concluir que o douto Acórdão sob censura padece de manifesto erro na aplicação do direito na parte em que considera inexistir qualquer nexo de causalidade adequada entre a atuação da 1.ª Ré e os danos sofridos pela Recorrente, mormente os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas de execução, devendo ser substituído por douta decisão que condene a 3.ª, 4.ª e 5.º RR. ao pagamento daqueles montantes;

III – Da Existência de Danos não Patrimoniais

38. Entende o Tribunal a quo que dos autos não resultam elementos suscetíveis de fundamentarem o pedido de indemnização por danos não patrimoniais da Recorrente;

39. No entanto, salvo melhor e douta opinião, tal não parece ser o caso, porquanto a Recorrente foi objeto de um processo de execução fiscal sujeito a um regime de publicidade;

40. Ora, a situação económica do Recorrente gerada pelos serviços de contabilidade da 1.ª Ré e a consequente sinalização para o mercado da possível inadimplência da Recorrente colocaram em causa a credibilidade e o prestígio do Recorrente, causando, assim, constrangimentos que devem ser valorados em sede de danos não patrimoniais;

41. Note-se que a inclusão em base de dados de “maus pagadores” foi um elemento já valorado pela nossa jurisprudência como violação do direito à honra;

42. Por outro lado, resulta da factualidade provada que a ATA moveu ainda contra o Recorrente um processo-crime por fraude fiscal (conforme facto provado sob a letra UU).

43. Tal processo-crime, para além de ferir a credibilidade do Recorrente no mercado, gerou na sua esfera vexame e constrangimentos pessoais para o mesmo, como decorre da natureza das coisas;

44. É notório e manifesto que alguém que se veja injustamente acusado de um crime de falsificação fiscal e que seja tido pelo mercado como alguém que falha à confiança se vê colocado numa situação de angústia;

45. Esta angústia ao contrário do entendido pelo Tribunal a quo não tem necessariamente de ser exteriorizada, bastando-se que se esgote no íntimo do Recorrente, porquanto a forma como alguém reage a uma situação como esta se encontra intimamente ligada ao livre desenvolvimento da sua personalidade;

46. Não sendo de descorar que, no que concerne aos danos não patrimoniais, o instituto da responsabilidade civil assume um cariz punitivo, visando combater, evitar e censurar a conduta antijurídica do agente;

47. Assim, mormente se pode concluir que o douto Acórdão sob censura padece de manifesto erro na aplicação do direito, devendo ser substituída por douta decisão que condene o 1.ª Ré a pagar uma indemnização por danos não patrimoniais, nos termos peticionados;

A sentença sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: artigos 483.º, 487.º, 496.º e 563.º do C.C.


Em face do recurso do Autor, a Ré Ageas Portugal – C.ª de Seguros, S.A., interpõe recurso subordinado, concluindo como segue:

1. O douto Acórdão alvo de censura condenou a 1ª e, consequentemente a Recorrente, 5ª R., ao abrigo do contrato de seguro existente entre ambas, no pagamento ao Recorrido do montante de juros compensatórios por este pagos à Autoridade Tributária, com base na responsabilidade civil extracontratual da 1.ª Ré.

2. A sustentação adoptada pela Relação no sentido de imprimir à conduta da 1.ª Ré uma natureza ilícita e culposa – pressupostos da responsabilidade civil extracontratual espelhados no artigo 483.º do Código Civil - baseia-se na mera previsão estatutária de um conjunto de deveres a cujo cumprimento os TOCC estão adstritos no âmbito da sua atividade profissional, previsão essa geradora (segundo o entendimento do douto Tribunal a quo), per si, de uma responsabilização dos TOCC traduzida no dever de indemnizar em sede de responsabilidade civil profissional;

3. Antes demais, cumpre salientar que resulta dos factos provados que não se está perante uma situação em que a 1.ª Ré inventou um tratamento contabilístico à margem do que o Recorrido lhe transmitiu, mas sim, a 1.ª Ré tratou a informação do Recorrido de acordo com a informação que este lhe transmitia;

4. Tendo, antes, resultado como provado que nem a TOCC prestou um errado conselho ao Recorrido, nem este era inexperiente e desconhecia os regimes de IVA aplicáveis às suas revendas;

5. A eventual responsabilidade da 1.ª Ré com base na violação de deveres estatutários invoca, desde logo, o escrutínio do regime aplicável ao negócio cujas desconformidades detetadas ao nível da aplicação do regime do IVA motivam a interposição da presente ação;

6. Segundo o artigo 3.º, n.º 1, alínea d) do Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, Objetos de Arte, de Coleção e Antiguidades, constante do Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de Outubro, as transmissões de bens em segunda mão efetuadas por um sujeito passivo revendedor são sujeitas a tributação segundo o regime especial de tributação da margem de lucro quando este tenha adquirido esses bens no interior da Comunidade a outro sujeito passivo revendedor, desde que a transmissão de bens por este tenha sido efetuada ao abrigo de regulamentação idêntica vigente no Estado membro onde a transmissão dos bens tiver sido efetuada;

7. Pelo que, desde já, se diz ser fundamental que o revendedor acautele a informação necessária junto do vendedor sedeado no espaço europeu no sentido de que a sua aquisição se faz no âmbito do regime especial de bens em segunda mão, por forma a beneficiar de igual regime nas revendas dos veículos em território nacional;

8. Estando assim o Recorrido, como adquirente das viaturas no EU, obrigado a diligenciar a informação consentânea, clara e objetiva dos termos em que contrata com o vendedor comunitário e a refletir essa informação nas faturas de revenda dos veículos que revendeu em território nacional, que preenchia manualmente, e que posteriormente entregava à 1.ª Ré;

9. Esta conformidade contabilística decorrente da informação prestada pelo Recorrido, significa que a 1.ª Ré, tratou contabilisticamente a documentação oferecida por aquele de acordo com a informação nela contida, isto é, que as revendas em território nacional efetuadas pelo Recorrido, foram enquadradas no âmbito do regime de IVA de tributação de bens em segunda mão (cfr. aliena BBB dos factos provados).

10. A área de negócio subjacente ao trabalho da TOCC tem algumas particularidades que assumem especial relevância, nomeadamente por se enquadrar fora do território nacional e não existir nenhum instrumento adicional coadjuvante da atividade do TOCC que lhe permita escrutinar a referida atividade, para além da informação fornecida pelo cliente que domina a montante e a jusante todo o circuito do negócio que desenvolve, no espaço europeu;

11. Contrariamente ao que sucede com a Autoridade Tributária que, tendo acesso às informações constantes do Sistema de Intercâmbio de Informações sobre o IVA (VIES), detetou a jusante a infração fiscal correspondente à aplicação indevida do regime especial de tributação da margem de lucro nos negócios gizados pelo Recorrido;

12. Assim, não estava ao alcance do TOCC, ora 1ª R., certificar se as revendas em território nacional noticiadas pelo cliente nas faturas de revenda entregues, são abrangidas pelo regime da margem ou fora dela, pois é o Recorrido que detém a informação necessária (na medida em que é quem domina o negócio do comércio de veículos automóveis usados), e faz constar a informação relevante para efeitos de aplicação de IVA nas faturas de revenda dos veículos em território nacional;

13. Quanto ao dever de regularidade técnica a que a 1.ª Ré está adstrita, previsto na alínea b), do n.º 1 do artigo 10.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados, prescreve que é dever do contabilista certificado “b) Assumir a responsabilidade pela regularidade técnica, nas áreas contabilística e fiscal, das entidades referidas na alínea anterior”. Este dever traduz-se na “(…) execução da contabilidade nos termos das disposições previstas nos normativos aplicáveis, tendo por suporte os documentos e as informações fornecidos pelo órgão de gestão ou pelo empresário, e as decisões do profissional no âmbito contabilístico, com vista à obtenção de uma imagem fiel e verdadeira da realidade patrimonial da empresa, bem como o envio para as entidades públicas competentes, nos termos legalmente definidos, da informação contabilística e fiscal definida na legislação em vigor”, nos termos do n.º 3 do artigo 10.º do citado diploma.

14. Por outro lado, “o dever de atestação da verdade e regularidade dos elementos do cliente decorre da função pública desempenhada pelos contabilistas”, o que significa que todos os lançamentos devem estar suportados por documentos justificativos e as operações executadas devidamente registadas, sendo fulcral toda a colaboração da entidade cliente;

15. Pelo que em face da informação veiculada pelo cliente, o TOCC desempenha a sua função na medida do que conhece com base na informação que o cliente lhe faculta, não lhe sendo sequer admissível elaborar a contabilidade de outra forma que não seja sustentada na referida informação, estando os pressupostos da regularidade técnica intimamente ligados ao dever de colaboração do empresário;

16. Os deveres a que os TOCC estão obrigados não estão desfasados da natureza pública da sua função, mas uma coisa é dizer-se que a função do TOCC encerra em si a prossecução de um interesse público visto beneficiar a AT, outra coisa é dizer-se que por força desta função pública, o TOCC é em qualquer circunstância responsável perante o cliente em face de um erro contabilístico detetado;

17. No caso concreto, invocar-se que a responsabilidade da 1.ª Ré perante o Recorrido se deve à natureza da função publica do TOCC, é, salvo o devido respeito, misturar -se duas realidades distintas;

18. A natureza pública da função do TOCC, impõe que na salvaguarda do interesse público, aquele oriente a sua atuação pelos princípios da integridade, idoneidade, independência, responsabilidade e competência, o que significa que o TOCC se deve escusar a cumprir “a vontade” do cliente, se esta for contrária ou prejudicial ao interesse público, pautado pelo cumprimento normativo e legal vigente;

19. Só que para o exercício da sua função, perante o cliente, o TOCC depende da estrita colaboração daquele que detém o domínio dos pressupostos factuais subsumíveis às regras contabilísticas e fiscais vigentes;

20. Quer com isto dizer-se, que o interesse público apenas pode ser salvaguardado se da função do TOCC resultar o que aquele interesse consubstancia, ou seja, a verdade material (vd. João Antunes, anteriormente citado);

21. Mas, isto não significa, pela razão de ser das coisas que a ocultação de tal verdade na realidade contabilística se deva a uma atuação negligente ou dolosa do TOCC;

22. Daí que a imputação ao TOCC no exercício das suas funções de natureza pública da responsabilidade por violação de deveres estatutários, por a realidade contabilística não atestar a verdade material é, salvo o devido respeito, criar um patamar de excesso de responsabilização, de condenação sumária;

23. Mais, a 1.ª Ré não é inspetora de finanças, nem lhe poderá ser atribuída semelhante função de controlo/fiscalização da actividade do cliente, pois nem do ponto de vista formal, nem material as duas funções se assemelham, inexistindo sequer similares meios logísticos para o efeito;

24. E sobre a responsabilidade subsidiária fiscal dos técnicos oficiais de contas, citámos anteriormente o comentário de Mário Januário (in A questão subsidiária dos tributos e das penas dentro da responsabilidade tributária subsidiária fiscal, Revista da Câmara dos Técnicos Oficiais de Contas, nº 102, Lisboa, Setembro de 2008, pp. 26-27);

25. No mesmo sentido, denote-se a intenção de o legislador distinguir, para efeitos de responsabilidade dos técnicos, aqueles que exercem funções como revisores oficiais de contas e fiscalização, dos técnicos oficiais de contas certificados – vide artigos 24.º, n.º 2 e 3 da LGT;

26. Mais, o Tribunal a quo reproduz, para efeitos de acionamento do artigo 483.º do Código Civil, a linha argumentativa seguida pelo mesmo em caso análogo, onde estão em causa os mesmos factos, as mesmas circunstâncias em que ocorreram, a mesma atividade empresarial de um lado e profissional do outro, tudo idêntico, à exceção da identificação dos sujeitos e do valor de imposto adicional a entregar por força da ação inspetiva;

27. Se no entender do douto Tribunal a quo, a 1.ª Ré não observou a diligência de um bom pai de família, isto é, aquela que se espera de contabilista certificado médio, normalmente informado, é argumento para condenação da 1.ª Ré, há que questionar das razões que levaram um universo de TOCC a cometerem exatamente o mesmo erro;

28. Com efeito, pretender-se condenar a TOCC, atendendo às circunstâncias do caso presente, significaria que o Recorrido passaria a beneficiar do produto/lucro da sua atividade comercial, e ficaria isento da correspondente responsabilidade fiscal que transferiria para a TOCC (que passaria tout court a ser responsável fiscal pela atividade do cliente), ou seja, quem receberia o lucro seria o empresário e quem custearia o prejuízo fiscal seria o TOCC;

29. O que levaria à situação absurda de que bastaria a existência de um TOCC, como assessor da atividade do empresário, para que este beneficiasse de total impunidade relativamente à responsabilidade fiscal inerente;

30. Por outro lado, o regime legal dos juros compensatórios, plasmado no artigo 35.º, n.º 1 da Lei Geral Tributária, faz depender a possibilidade da sua aplicação de um juízo de censurabilidade sobre o contribuinte, independentemente do requisito do retardamento da liquidação ou da falta de cumprimento pontual da prestação tributária, pois a imputabilidade exigida para a responsabilização quanto ao pagamento de juros compensatórios depende igualmente da verificação/existência de culpa por parte do contribuinte;

31. Pressuposto que afasta, in limine, a possibilidade de estabelecer um nexo de causalidade entre a atuação da 1.ª Ré e este dano fiscal e, consequentemente, a sua responsabilização pelo pagamento de juros compensatórios;

32. No caso dos autos, a falta de entrega de imposto devido tem na sua génese a conduta do Recorrido que revendeu os veículos aplicando o regime de IVA da margem, tendo beneficiado dessa aplicação (indevida) por exponenciar a margem de lucro na sua atividade comercial;

33. O dano é, pois, consequência da conduta ilícita do Recorrido, que revendeu os seus veículos no regime da margem, e não das referidas declarações de IVA preenchidas e entregues pelo TOCC, pois o imposto tornou-se exigível no momento em que o A. emitiu a referida fatura de revenda sob aquele regime de IVA;

34. Segundo a regra geral plasmada no artigo 7.º, n.º 1, alínea a) do CIVA, o imposto é devido e torna-se exigível quanto às entregas de bens e às aquisições intracomunitárias no momento em que estes são postos à disposição do adquirente;

35. Da articulação do disposto no artigo 7.º, n.º 1, alínea a) do CIVA com o n.º 1 do artigo 8.º do mesmo diploma, resulta que a exigibilidade do imposto, momento a partir do qual o Estado pode fazer valer o seu direito ao imposto, é diferido para o momento da emissão da fatura sempre que esta seja obrigatória ou para o termo legal da sua emissão;

36. No caso presente, o imposto torna-se exigível no momento em que a fatura de revenda de veículo automóvel adquirido sob o regime da margem na UE em território nacional é emitida, na eventualidade de ser respeitado o prazo da sua emissão, que é de 5 dias úteis após a verificação do facto gerador, ou, no caso de este prazo ser ultrapassado, no momento em que o mesmo termina, ou ainda se o pagamento, ainda que parcial, ocorrer antes de a fatura ser emitida, no momento do seu recebimento, pela importância recebida (n.º 1 do art. 8.º e artigo 36.º do CIVA);

37. O facto ilícito que originou a cobrança de imposto adicional, não foi a entrega das declarações fiscais, mas sim, a revenda de veículos automóveis em território português sob o regime da margem espelhada nas faturas preenchidas e entregues à 1.ª Ré pelo Recorrido (vd. Incidente n.º 6473/06.0TBALM.L1.S1 – 1.ª Secção Alves Velho (Relator) Moreira Camilo Paulo Sá https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/sumarios-civel-2011.pdf);

38. Foi a conduta do Recorrido que despoletou o erro evidenciado nas declarações e que a realidade contabilística não conseguiria colmatar, visto que o encargo de imposto foi gerado no momento da revenda e a sua exigibilidade na data da emissão da respetiva fatura, integral e exclusivamente imputados à conduta do Recorrido;

39. E não que o dano tenha resultado da violação de princípios /deveres a que a 1.ª Ré está obrigada para com o Recorrido, pois tais deveres de isenção, autonomia técnica, diligência, não implicam que incumbisse à TOCC a obrigação de “perseguir os factos e realidades dos operadores económicos de forma a averiguar-se se os documentos que lhe são presentes para contabilização traduzem essa realidade.”, ou seja, que o cumprimento dos deveres tenha um grau de exigibilidade tal que coloque o contabilista certificado obrigado a conhecer os meandros da atividade dos clientes, no mesmo plano de interesse e responsabilidade que aqueles quanto aos deveres decorrentes da atividade económica, mas sem o direito correlativo de decisão e ao lucro da atividade;

40. Pelo que analisando os pressupostos da responsabilidade civil, a ilicitude que advém por ofensa, resultante de um ato voluntário, de direitos ou disposições legais que se destinam a proteger interesses alheios, a culpa, como nexo de imputação ético-jurídico que liga o facto à vontade do agente, o dano, prejuízo da ordem patrimonial ou não patrimonial, produzido na esfera do lesado que pela sua gravidade avaliada sob critério objetivo é passível de indemnização (artigo 496.º do código Civil), o nexo de causalidade entre a conduta e o dano, nos termos do artigo 563.º do Código Civil, pressupondo que os danos se apresentem como consequência normal provável e típica do facto ilícito, a condenação da 1ª R. e da Recorrente, enquanto sua seguradora, em juros compensatórios não se deve à conduta daquela;

41. A intenção dolosa e culposa do Recorrido, pretendendo aplicar aquele regime de IVA nas suas revendas por ser mais lucrativo, mas tentando expurgar a responsabilidade dos seus atos alegando que a sua decisão e vontade se encontrariam viciadas pelo erro provocado pela 1.ª Ré (que resultou como não provado) não pode merecer a tutela do Direito;

42. Ora, não tendo sido a atuação da TOCC que provocou o dano fiscal, mas sim a conduta do Recorrido, sem condescender que não resulta da atuação da TOCC a violação dos deveres estatutários, não lhe poderá ser assacada a responsabilidade no pagamento dos juros compensatórios;

43. Deste modo, o Acórdão recorrido violou, entre outros, o disposto nos Artigos 483.º, 486.º e 563.º do Código Civil, bem como o artº 3º, nº 1, alínea A) do DL 199/96 de 18/10, artºs 10, nº 3 do Estatuto da OCC(Ordem dos Contabilistas Certificados), artº 24, nº 3 da Lei Geral Tributária e artºs 7 e 8, nº 1 do CIVA.

A Ré Mapfre Seguros Gerais, S.A., por sua vez, requereu a ampliação do objecto do recurso, nos seguintes termos:

I.O contrato de seguro celebrado com a Recorrida Mapfre não tem aplicabilidade subjetiva aos factos dos Autos.

II. O contrato de prestação de serviços de contabilidade dos Autos foi celebrado com a Ré C..., Lda.

III. A ora Recorrida apenas garante a responsabilidade civil profissional dos «(…) Técnicos Oficiais de Contas, pessoas singulares, inscritos na Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas, que exerçam efetivamente a profissão.».

IV. Quando a atividade de contabilidade seja exercida no âmbito de uma sociedade profissional, é esta que se encontra obrigada à contratação de seguro de responsabilidade civil profissional, nos termos previstos no artigo 121.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico.

V. Ao não ter o Tribunal recorrido absolvido a Recorrida do pedido, face à referida inaplicabilidade subjetiva, violou o disposto nos artigos 405.º do Código Civil, 121.º do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados e Código Deontológico, a Cláusula CX102 do contrato de seguro celebrado com a ora Recorrida. Acresce que,

VI. O contrato de seguro celebrado entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e as Recorridas é um contrato de seguro cuja cobertura temporal é delimitada pela data da Reclamação e não da data da “ocorrência”, constituindo sinistro a “reclamação” e não a ocorrência do facto ilícito.

VII. Quando estejam em causa “erros, atos ou omissões geradores de responsabilidade, desconhecidos das partes e ocorridos durante o período de vigência do contrato”, se a “Reclamação” for efetuada nos 24 (vinte e quatro) meses subsequentes ao seu termo”.

VIII. No caso dos Autos, a “Reclamação” ocorreu mais de 24 meses após a cessação do contrato de seguro, celebrado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2015 e termo às 0:00 horas do dia 1 de abril de 2016, i. é, após o dia 01.04.2018 (24 meses subsequentes ao seu termo).

IX. Da aplicação do direito aos factos resulta inquestionável a inaplicabilidade temporal do contrato de seguro celebrado com as Recorridas.

X. A falta de cobertura temporal é oponível aos terceiros lesados, como resulta do disposto no artigo 147.º do RJCS e não se reconduz a qualquer falta de participação ou incumprimento do dever de participação do segurado, prevista no art.º 101.º do RJCS, antes se reconduzindo à cessação do contrato de seguro em si mesmo, por caducidade.

XI. Pelo que, ao não ter o Tribunal recorrido absolvido a Recorrida do pedido, face à referida inaplicabilidade temporal, violou o disposto nos artigos 405.º do Código Civil, 44.º, 139.º e 147.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pela Lei n.º 72/2008, de 16 de abril, artigo 1, º, al. e) e h), e 4.º, pontos 2 e 4, das Condições Gerais do contrato de seguro celebrado entre as Apelantes e a Ordem profissional em causa, bem assim como o artigo 576.º do Código de Processo Civil. Por outro lado, ainda,

XII. Não tendo sido a atuação do contabilista que provocou o dano fiscal, mas sim a atuação do A., não lhe poderá ser assacada a responsabilidade no pagamento dos juros compensatórios, sob pena de violação do disposto nos artigos 563.º do Código Civil, 35.º da LGT e 7.º, n.º 1, al. a), 8.º e 36.º do CIVA.

XIII. Os serviços de contabilidade do A. refletiram nas declarações fiscais a informação que o A. lhe transmitiu.

XIV. Para além da informação fornecida pelo cliente, no caso o A., que domina todo o circuito do negócio que desenvolve no espaço europeu, o seu contabilista não possui qualquer outro elemento ou informação adicional que lhe permita escrutinar a referida atividade, refletida nas faturas que emitia.

XV. Face ao conteúdo das faturas de revenda entregues pelo A. ao seu contabilista, nas quais aquela apresentava as revendas sob o Iva da margem de lucro, este não tinha outra alternativa a não ser a de tratar contabilisticamente a referida informação de acordo com a informação que o A. lhe prestava.

XVI. Não estava ao alcance dos serviços de contabilidade do A. confirmar se as revendas em território nacional, nos termos comunicados pelo A. nas faturas de revenda que emitia, estavam, ou não, abrangidas pelo regime da margem, quando aquele fez constar no seu documento de venda que o veiculo foi vendido no âmbito do regime de Iva de tributação de bens em segunda mão, facto que naturalmente melhor que ninguém saberá, pois é o A. que detém a informação necessária (é quem domina o negócio do comercio de veículos automóveis usados) e faz constar a informação relevante para efeitos de aplicação de Iva nas faturas de revenda dos veículos em território nacional.

XVII. No caso concreto, as faturas de revenda evidenciavam a aplicação do Iva da margem de lucro, o que levou a elaboração das declarações de iva em conformidade.

XVIII. Não é exigível a um contabilista conhecimento idêntico ao cliente quanto aos meandros do negócio deste e, por outro lado, não pode o cliente eximir-se de espelhar a realidade que conhece (realidade material) na contabilidade, através da faturação por si emitida.

XIX. O ora Recorrente, estava vinculado ao dever de informar o seu contabilista que as revendas efetuadas em território nacional não estavam abrangidas pelo regime de Regime Especial de Tributação dos Bens em Segunda Mão, o que não ocorreu, porquanto sempre fez expressa menção de aplicação de tal regime nas faturas de revenda que entregava ao seu contabilista, viciando assim o tratamento contabilístico no sentido de não traduzir a realidade material.

XX. O contabilista do ora Recorrente, como qualquer outro, não é inspetor da AT, nem lhe poderá ser atribuída semelhante função de controle/ fiscalização da atividade do cliente.

XXI. A Recorrente fez constar das faturas das suas revendas o regime da margem, situação que levou o seu contabilista a preencher as declarações de Iva em conformidade com a informação vertida na documentação fornecida pelo A.

XXII. A aplicação de juros compensatórios radica num juízo de censura, a título de culpa por conduta negligente ou dolosa, imputável ao sujeito passivo e que justifica a sua responsabilização cível no sentido de indemnizar o Estado pelos prejuízos decorrentes do não recebimento atempado do imposto devido.

XXIII. Dizer-se que o contabilista certificado é “culpado” pelo atraso na liquidação de IVA, quando sempre entregou as declarações do IVA atempadamente no exercício das suas funções, sustentada na documentação contabilística que o A. lhe facultava, por afinal, aquela documentação, não refletir a realidade material – conhecimento que o A. detinha por ser ela o único que dela tratava no âmbito da sua atividade - é, colocar o contabilista num patamar de responsabilidade idêntico ao cliente, o que não se concebe.

XXIV. O contabilista certificado não tem à sua disposição os mesmos meios que a AT para aferir do mérito da informação prestada pelos clientes, (acesso à informação do sistema VIES), à semelhança do que se passa quanto ao sistema e-fatura, que constitui um importante instrumento de trabalho na conferencia da informação trazida pelo cliente e à qual o contabilista certificado tem acesso, fornecida pelos adquirentes e fornecedores de bens e serviços no âmbito do espaço nacional.

XXV. Pretender-se “condenar” o contabilista certificado, atendendo às circunstâncias do presente caso, significaria que o A. passaria a beneficiar do produto/lucro da sua atividade comercial e ficaria isento da correspondente responsabilidade fiscal, a qual transferiria para o contabilista, que passaria, assim, a ser responsável fiscal pela atividade do cliente.

XXVI. O A. quis beneficiar do regime de Iva mais benéfico, ocultando para o efeito, nas faturas que emitia, que as suas revendas eram realizadas sob o regime de IVA à taxa normal, provocando intencionalmente um dano fiscal porque dele beneficiou.

XXVII. Regra geral, o imposto é devido e torna-se exigível, quanto às entregas de bens e às aquisições intracomunitárias, no momento em que estes são postos à disposição do adquirente, nos termos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do CIVA.

XXVIII. No caso dos Autos, o imposto torna-se exigível no momento em que a fatura de revenda de veiculo automóvel adquirido sob o regime da margem no EU em território nacional é emitida, na eventualidade de ser respeitado o prazo da sua emissão, que é de 5 dias úteis após a verificação do facto gerador, ou, no caso de este prazo ser ultrapassado, no momento em que o mesmo termina, ou ainda, se o pagamento, ainda que parcial, ocorrer antes de a fatura ser emitida, no momento do seu recebimento, pela importância recebida (conf. n.º 1 do artigo 8.º e artigo 36.º do CIVA).

XXIX. Do disposto no artigo 7º e no n.º 1 do artigo 8.º do CIVA resulta que a exigibilidade do imposto, momento a partir do qual o Estado pode fazer valer o seu direito ao imposto, é diferido para o momento da emissão da fatura sempre que esta seja obrigatória ou para o termo legal da sua emissão. I é,, a exigibilidade de entrega do IVA, dá-se no momento que o sujeito passivo a quem incumbe a referida obrigação, emite a respetiva fatura.

XXX. O facto ilícito que originou a cobrança de imposto adicional, não foi a entrega das declarações fiscais, mas sim, a revenda de veículos automóveis em território português sob o regime da margem espelhadas nas faturas emitidas e entregues pelo A. aos seus serviços de contabilidade.

XXXI. Foi a conduta do A., ora Recorrente, que despoletou o erro evidenciado nas declarações de IVA e que a realidade contabilística não conseguiria colmatar visto que o encargo de imposto foi gerado no momento da revenda e a sua exigibilidade na data da emissão da respetiva fatura, integral e exclusivamente imputados à conduta do A.

XXXII. Os juros compensatórios encerram em si o propósito de ressarcimento à Administração Publica por atraso na liquidação que ao sujeito passivo seja imputável e a sua aplicabilidade implica um necessário juízo de culpa do contribuinte, independentemente do requisito do retardamento da liquidação ou da falta de cumprimento pontual da prestação tributária, pois a imputabilidade exigida para a responsabilização quanto ao pagamento de juros compensatórios dependem igualmente da verificação/existência de culpa por parte do contribuinte.

XXXIII. Independentemente do retardamento da liquidação, ou falta de cumprimento pontual da prestação tributária, tem lugar a obrigação ao pagamento de juros compensatórios se apenas se verificar um juízo de culpa por parte do contribuinte.

XXXIV. Os juros compensatórios não se confundem com o valor do imposto a pagar. São realidades distintas e cindíveis, uma vez que a aplicação de juros compensatórios faz pressupor o necessário critério subjetivo que a não se verificar, não se poderá impor o seu cumprimento, mesmo verificando-se obrigatoriedade de cumprimento pontual da prestação tributária acrescido de juros e coimas.

XXXV. No caso dos Autos, a falta de entrega de imposto devido tem na sua génese a conduta do Recorrente, que revendeu os veículos aplicando à sua revenda o regime de IVA da margem, fazendo-o constar das faturas que emitia e dele foi beneficiando por a aplicação do referido regime exponenciar a margem de lucro na sua atividade comercial.

XXXVI. O pagamento de juros compensatórios foi consequência da conduta ilícita do Recorrente, que revendeu os seus veículos no regime da margem e não das referidas declarações de Iva (preenchidas e entregues pelo contabilista), pois o imposto tornou-se exigível no momento em que o A. emitiu as referidas faturas de revenda sob aquele regime de IVA. No mais,

XXXVII. Nos presentes Autos estamos perante ação judicial de responsabilidade civil extracontratual, declarada que foi a nulidade do contrato de prestação de serviços de contabilidade celebrado com o Recorrente.

XXXVIII. «Em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da admissibilidade da revista, nos termos do artigo 671.º, n.º 3, do CPC, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação, é apreciada, separadamente, para cada segmento decisório autónomo e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.», Conf. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, de 18 de Outubro .

XXXIX. Os pedidos formulados pelo Recorrente são autónomos, decompondo-se nos seguintes pedidos e montantes correspondentes: (i) Iva; (ii) Custas dos processos de execução fiscal; (iii) juros compensatórios e (iv) danos morais.

XL. Assim, também, ocorre com a Decisão do Tribunal “a quo”, resultado das respetivas e diversas fundamentações de direito e de facto.

XLI. O Acórdão recorrido manteve a Decisão do Tribunal da Primeira Instância quanto aos seguintes pedidos: (i) Iva; (ii) Custas dos processos de execução fiscal; e (iv) danos morais.

XLII. Ao Recorrente apenas seria admissível o recurso na parte relativa ao pedido de indemnização correspondente a juros compensatórios, caso a sua pretensão não tivesse logrado provimento e se verificasse a necessária sucumbência, o que não é o caso.

XLIII. Motivo pelo qual o presente Recurso não é legalmente admissível, sob pena de violação do disposto nos artigos 629.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil, atenta a dupla conforme existente. Caso assim não se entenda,

XLIV. Não resultou provado da instrução da causa que o Recorrente tenha delineado o seu modelo de negócio ou emitido as faturas com base em qualquer orientação ou informação dos seus serviços de contabilidade.

XLV. O valor do Iva está intrinsecamente ligado ao modelo de negócio que o Recorrente delineou e prosseguiu, tendo por base as faturas que o própria emitia, sem que ocorresse qualquer intervenção do seu contabilista, daí também não ter colocado em causa o valor do iva que teria a pagar, resultado que era das faturas que o próprio emitia.

XLVI. As custas decorrentes de execuções fiscais e juros de moram foram consequência de um ato do próprio Recorrente (não pagamento voluntário do valor do IVA apurado) e não do seu contabilista.

XLVII. Não resultam provados factos que permitam ao Tribunal arbitrar qualquer indemnização ao Recorrente a título de danos morais

XLVIII. Em consequência, deve o Recurso interposto pelo A. ser julgado totalmente improcedente.

Nestes termos e nos mais de direito:

A) Deve a ampliação do objeto do recurso ser julgada procedente, por provada, e, em conformidade, a Apelada absolvida do pedido: (i) por inaplicabilidade subjetiva do contrato de seguro; (ii) por inaplicabilidade temporal do contrato de seguro; e (iii) por inexistência da prática de qualquer facto ilícito por parte dos serviços de contabilidade do Recorrente. Caso assim não se entenda,

B) Deve o presente recurso ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, atenta a dupla conforme existente.

Subsidiariamente,

C) Deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, por não provado, mantendo-se na íntegra a douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.


Relativamente ao recurso do Autor, as Rés Ageas, Allianz e Mapfre apresentaram contra-alegações, sustentando a improcedência da revista.

As 1.ª e 2.ª RR., BB e C..., aderiram às contra-alegações apresentadas.

O Autor contra-alegou, quanto à matéria do recurso subordinado.


Foram os seguintes os Factos Apurados:

A – O Autor é comerciante, em nome individual, de veículos automóveis usados.

B - Entre a Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. e a OTOC foi celebrado um contrato de seguro de responsabilidade profissional de grupo titulado pela apólice nº ...84, com inicio no dia 01 de Abril de 2012 e termo em 31 de Março de 2015, cujas condições se encontram juntas a folhas 275 a 294 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

C - O contrato de seguro celebrado com a Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. tinha como tomador a OTOC e como segurados os técnicos oficiais de contas que estivessem inscritos na referida Ordem e no exercício efectivo da profissão.

D - De acordo com o contrato de seguro celebrado com a Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. esta garantia as reclamações formuladas ao segurado ou directamente ao segurador durante o período de vigência do contrato, ou se desconhecidos das partes durante a vigência do contrato, nos doze meses subsequentes ao seu termo, relativamente a erros, a actos ou omissões geradores de responsabilidade ocorridos no período da apólice.

E - Em 01 de Abril de 2014, atenta a renovação do contrato com a Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A., o período de reclamação foi alargado, pelo que as reclamações formuladas ao segurado ou directamente ao segurador durante o período de vigência do contrato, ou se desconhecidos das partes durante a vigência do contrato, nos vinte e quatro meses subsequentes ao seu termo relativamente a erros, a actos ou omissões geradores de responsabilidade ocorridos no período da apólice.

F – O limite contratualmente estipulado com a Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. era de €50.000,00 por técnico oficial de contas aderente/sinistro e ano, com uma franquia de 10% do valor da indemnização a cargo do segurado, ainda que não oponível a terceiros, mas sujeita ao direito de regresso contra o segurado.

G – Entre a Ordem dos Contabilistas Certificados e a Ré Seguros Allianz Portugal, S.A. foi celebrado um contrato de seguro de grupo obrigatório de responsabilidade civil dos contabilistas certificados titulado pela Apólice nº ...33, mediante o qual a Ré assumiu a responsabilidade em que possa incorrer o contabilista certificado no exercício efectivo da profissão desde que inscrito na referida Ordem, cujas condições de mostram juntas a folhas 305 a 315 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

H – O contrato de seguro celebrado com a Ré Seguros Allianz Portugal, S.A. teve início às 00:00h do dia 01 de Abril de 2016 e foi renovado automática e anualmente a partir de 01 de Abril de 2017 e de 01 de Abril de 2018, respectivamente.

I - O limite contratualmente estipulado com a Ré Seguros Allianz Portugal, S.A. é de €50.000,00 por técnico oficial de contas aderente/sinistro e ano, com uma franquia de 10% dos prejuízos indemnizáveis, no mínimo de €500,00 por sinistro.

J – Entre a Ré Mapfre – Seguros Gerais, S.A. e a Ordem dos Técnicos Oficiais de Contas foi celebrado um contrato de seguro de grupo, temporário, anual, do Ramo de Responsabilidade Civil, titulado pela apólice nº ...62, conforme documento junto a folhas 214 verso a 223 verso e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, com um limite de €50.000,00 por segurado por sinistro e por anuidade e com uma franquia por sinistro correspondente a 10% do valor da indemnização com um mínimo de €150,00.

L – O contrato de seguro a que alude a alínea J) foi celebrado pelo prazo de 12 meses, com data de início às 00:00h do dia 01 de Abril de 2015 e termo às 00:00h do dia 01 de Abril de 2016.

M - A Ré C..., Lda, é uma sociedade comercial que tem por objecto a prestação de serviços de contabilidade, fiscalidade, consultadoria e gestão.

N - A presente acção deu entrada em juízo no dia 09 de Outubro de 2018.

O - A Ré Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. foi citada no âmbito dos presentes autos em 24 de Outubro de 2018.

P - A Ré Mapfre – Companhia de Seguros, S.A. foi citada no âmbito dos presentes autos em 24 de Outubro de 2018.

Q - O Autor abriu e cessou actividade como comerciante de automóveis junto da Autoridade Tributária e Aduaneira em 10 de Dezembro de 1996, mantendo actividade aberta até 31 de Dezembro de 2004, em 08 de Janeiro de 2008 abre novamente a mesma actividade cessando-a em 29 de Outubro de 2009 e em 06 de Outubro de 2011 reabre a actividade.

R - Do documento junto a folhas 339 verso dos autos emitido pela Autoridade Tributária e Aduaneira, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta:

“Certificação

Certifica-se que, AA, com a actividade, 45110, Comércio de Veículos Automóveis Ligeiros, com sede em PCT ... nº 18 – ... ... ..., se encontra registado como sujeito passivo do imposto sobre valor acrescentado (IVA), com o número fiscal PT117454990, com data de início de actividade 2011-10-06. (…)”.

S - A Ré BB efectuou as seguintes extensões de cobertura do seguro de responsabilidade civil:

»» 28 de Dezembro de 2012 a 31 de Março de 2013 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Axa Portugal – Companhia de Seguros, actual AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A.;

»» 01 de Abril de 2013 a 31 de Março de 2014 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Axa Portugal – Companhia de Seguros, actual AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A.;

»» 01 de Abril de 2014 a 31 de Março de 2015 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Axa Portugal – Companhia de Seguros, actual AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, S.A.;

»» 01 de Abril de 2015 a 01 de Abril de 2016 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Mapfre Seguros Gerais, S.A.;

»» 01 de Abril de 2016 a 01 de Abril de 2017 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.;

»» 01 de Abril de 2017 a 31 de Março de 2018 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.;

»» 01 de Abril de 2018 a 31 de Março de 2019 – a extensão de cobertura do seguro até ao montante de €200.000,00 transferida para a Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A..

T - Na sequência da acção inspectiva o Autor apresentou declarações de substituição das declarações de IVA anteriormente entregues.

U - Por força da acção inspectiva o Autor pagou os impostos em falta junto da Autoridade Tributária, imposto esse que não recebeu dos clientes uma vez que aquando da celebração dos negócios o IVA aplicado não foi o IVA à taxa normal.

V – A Ré BB, inscrita na ordem dos contabilistas certificados sob o nº ...80, é prestadora efectiva de serviços de contabilidade na Ré C..., Lda.

X - Entre Autor e a Ré C..., Lda foi celebrado contrato verbal que respeitava apenas ao tratamento de assuntos contabilísticos, e em Outubro de 2011 era a Ré BB quem prestava serviço, enquanto contabilista certificada, em nome daquela sociedade, ao Autor.

Z - A Ré BB é sócia e gerente da Ré C..., Lda.

AA – o Autor é sujeito passivo de IRS na categoria de rendimentos empresariais, enquadrado no regime de contabilidade organizada.

BB – A actividade profissional do Autor consiste, no essencial, na aquisição de veículos usados no mercado nacional e em Estados-Membros da União Europeia, para posterior revenda dos mesmos em território nacional.

CC - Na prossecução da sua actividade profissional, o Autor explora um estabelecimento comercial de stand de automóveis, com a designação “Stand ...”, sito na Rua ..., na freguesia ..., concelho ....

DD – Durante estes anos o Autor importou dezenas de viaturas que adquiriu no mercado europeu, e, na respectiva venda, aplicou o regime especial de tributação da margem de lucro.

EE – O Autor efectuou vários negócios de aquisição de viatura em Estados Membros da União Europeia aplicando em todas as situações o regime de IVA da margem de lucro, porquanto, se fosse o regime normal, não lhe compensava a aquisição de muitos dos veículos que adquiriu no mercado europeu, porque o valor por que os poderia vender em Portugal seria inferior ao valor de aquisição dos mesmos, acrescido de custos de transporte e de legalização e de impostos a pagar em Portugal (IA e IVA à taxa normal).

FF – Em 02 de Janeiro de 2018, a ATA enviou uma carta aviso ao Autor, dando-lhe conhecimento de que iria iniciar um procedimento externo de inspecção tributária aos exercícios de 2014, 2015 e 2016, desencadeado no âmbito do controlo da ATA de veículos automóveis e do uso indevido do regime da margem.

GG – Para os assuntos referentes à acção inspectiva foi contactada directamente a Ré BB, sendo esta quem fornecia os documentos de suporte referentes à contabilidade do Autor que se encontravam na posse daquela.

HH - No decurso da acção inspectiva, a Ré prestou todos os esclarecimentos solicitados e remeteu todos os elementos da contabilidade que lhe haviam sido requeridos pela ATA e que possuía.

II - Em 06 de Junho de 2018, o Autor foi notificado para exercer o direito de audição prévia, nos termos do artigo 60.º da Lei Geral Tributária (LGT) e do artigo 60.º do Regime Complementar do Procedimento da Inspecção Tributária e Aduaneira (RCPITA).

JJ - O Autor entrou em contacto com a Ré BB, tendo esta informado o Autor que as técnicas da ATA já lhe haviam transmitido as conclusões da acção inspectiva e que tinha sido detectado erro na aplicação do regime de IVA.

LL – Uma vez que o Autor não aceitou qualquer outra opção, entre as quais o recurso a advogado especializado na área de direito fiscal, a Ré BB aconselhou o Autor a proceder à regularização voluntária da situação, através da entrega das declarações de substituição das declarações de IVA anteriormente entregues, o que foi aceite pelo Autor, conforme consta da alínea T), motivo pelo qual tais declarações foram enviadas, pela Ré BB, em 27 de Junho de 2018.

MM - No dia 09 de Julho de 2018 o Autor foi notificado, por via postal, do Relatório de Inspecção Tributária realizado na sequência de acção inspectiva externa, de âmbito parcial em sede de IVA, quanto aos exercícios de 2014, 2015, 2016 e 2017.

NN - No sobredito Relatório, concluiu a ATA que tinha havido uma utilização indevida do regime da margem de lucro e que muitas das aquisições de viaturas efectuadas pelo Autor no mercado europeu estavam sujeitas a IVA à taxa normal, ou seja, à taxa de 23%.

OO – O Autor não podia ter aplicado o regime especial de tributação da margem nas vendas subsequentes dos veículos adquiridos noutro estado membro quando o fornecedor comunitário optou pelo regime geral, facto este que não desonera o Autor da obrigação de entrega do IVA ao Estado.

PP - Na sequência da acção inspectiva, a ATA detectou que o IVA em falta, pela aplicação indevida do regime da margem, no que respeita aos anos de 2014 a 2017, foi de:

- IVA em falta referente ao ano de 2014…………………€22.439,67

- IVA em falta referente ao ano de 2015…………………€48.492,92

- IVA em falta referente ao ano de 2016…………………€58.724,44

- IVA em falta referente ao ano de 2017…………………€53.683,51,

o que totaliza a quantia de €183.340,54.

QQ – A ATA notificou o Autor para proceder ao pagamento desses valores.

RR – A Ré deduziu indevidamente, e relativamente à sua factura dos serviços de contabilidade prestados, o valor de €106,42, em vez de deduzir o valor do IVA aplicado a tal factura, que era apenas de €31,79.

SS – Na sequência da acção inspectiva, o Autor foi ainda notificado de que foram instaurados dezasseis processos de contra-ordenação em virtude da falta de pagamento pontual do IVA devido nos anos de 2014 a 2017, no âmbito dos quais foram aplicadas ao Autor coimas, às quais acrescem juros e custas, no montante global de €28.113,87.

TT – E, com base no mesmo fundamento, a ATA instaurou dezasseis processos de execução fiscal, um por cada trimestre do IVA em falta, para satisfação coerciva dos valores em falta, quanto aos anos de 2014 a 2017, aos quais também acrescem custas, que totalizam o montante de €1.639,12.

UU- E moveu ainda contra o Autor processo-crime por crime de fraude fiscal, que corre os seus termos junto da Equipa de Investigação Criminal da Direcção de Finanças de ..., sob o NUIPC 258/18.....

VV – O Autor procedeu ao pagamento integral de todos os valores exigidos pela ATA com recurso às suas economias pessoais e teve, ainda, de contrair dois empréstimos bancários, um de €40.000,00 junto do Banco 1... e outro de €55.000,00 junto do Banco 2....

XX – Posteriormente, foi ainda o Autor citado para novos dezoito processos de execução fiscal, para a satisfação coerciva de juros de mora e de juros compensatórios devidos à ATA, liquidados na sequência das dívidas supra elencadas, aos quais acrescem custas processuais devidas pela instauração dos processos, no montante global de €15.941,97, que o Autor também pagou.

ZZ - Para pagar este o valor exigido pela Administração Tributária a que alude a alínea XX), bem como para ter meios financeiros para desenvolver o seu negócio, o Autor vendeu um imóvel que possuía em ..., freguesia ..., concelho ....

AAA - Até à data da inspecção tributária de que foi alvo, o Autor não apresentava quaisquer dívidas à ATA em processos activos em cobrança coerciva.

BBB – Era o Autor quem emitia as facturas das revendas em território nacional de veículos automóveis usados adquiridos no respectivo estado-membro com a menção ao regime especial de tributação, sendo que a Ré BB lançou na contabilidade as revendas efectuadas pelo Autor de acordo com a informação por este fornecida.

CCC - Por carta datada de 31 de Julho de 2018 e recebida em 02 de Agosto de 2018, o Autor notificou a Ré BB do teor do Relatório de Inspecção Tributária, solicitando-lhe que participasse o sinistro à OCC e accionasse o seguro de responsabilidade profissional de que a Ré beneficia enquanto contabilista certificada inscrita na OCC.

DDD – Ainda por carta datada de 31 de Julho de 2018 e recebida em 01 de Agosto de 2018, o Autor participou e solicitou à OCC o accionamento do Seguro de Responsabilidade Profissional celebrado pela OCC.

EEE - Em resposta a Ré enviou uma carta ao Autor datada de 14 de Agosto de 2018 e recebida em 17 de Agosto de 2018, na qual veio refutar as acusações do Autor, alegando ter sido «zelosa, diligente e briosa» na prestação de serviços que proporcionou ao Autor.

FFF – O Autor remeteu novas cartas à Ré BB e à OCC, datadas de 14 de Setembro de 2018 e recebidas em 17 de Setembro de 2018, solicitando o accionamento do Seguro de Responsabilidade Profissional celebrado pela OCC, bem como dando conhecimento das novas execuções.

GGG – A Ré BB informou por email datado de 02 de Julho de 2018 o corrector de seguros do ocorrido em sede de acção tributária.

HHH – A seguradora Ageas Portugal – Companhia de Seguros, S.A. nunca teve qualquer participação e só com a citação para a presente acção é que ficou a conhecer o invocado pelo Autor.

Pela inscrição 5, AP ...02 mostra-se registada alteração ao contrato de sociedade da sociedade C... Ldª, alteração que a transforma em sociedade unipessoal passando a usar a firma C..., Unipessoal, Ldª, sendo sócia única BB, por ter adquirido a quota do único outro sócio, CC, conforme transmissão de 31.07.2009 – menção 3033 da mesma certidão de registo (facto aditado pela Relação).


Factos Não Provados

1 – O Autor apenas celebrou o contrato a que alude a alínea X) por desconhecer as especificidades da área de contabilidade e fiscalidade.

2 - O Autor, no âmbito da importação de viaturas de Estados Membros da União Europeia, solicitou à Ré BB informação sobre qual o regime de IVA aplicável, tendo a Ré BB informado e ensinado o Autor que se aplicava o regime especial de bens em segunda mão, nunca tendo alertado o Autor para a possibilidade de aplicação do IVA à taxa normal em determinados produtos, tendo, por isso o Autor aplicado aquele regime de IVA em viaturas que adquiriu no mercado europeu, convicto que era o correcto.

3 - Por força do constante no ponto 02 o Autor emitiu as respectivas facturas, que enviou à Ré BB, a qual, após a sua análise, confirmou que estavam correctas.

4 – A actividade inspectiva levada a cabo pela Autoridade Tributária no final de Janeiro de 2018, passou a abranger também o ano de 2017 a pedido do Autor que foi aconselhado pela Ré C..., Lda.

5 - O contrato a que alude a alínea X) incluía aconselhamento fiscal.

6 – Por não ter conhecimentos sobre o regime de IVA a aplicar no que concerne as viaturas importadas de Estados Membros da União Europeia, o Autor solicitou, antes de iniciar as importações, que a Ré BB o informasse sobre qual o regime de IVA aplicável, tendo a Ré BB dito ao Autor que em todas as aquisições se aplicava o Regime Especial dos Bens em Segunda Mão, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 199/96, de 18 de Outubro (“regime especial de tributação da margem de lucro”).

7 - Tendo a Ré BB, inclusivamente, ensinado o Autor como é que se processava o dito regime e em face dessa informação, o Autor arquitectou o seu negócio, nomeadamente sabendo o valor por que poderia vender cada veiculo importado no mercado nacional, e, bem assim, o valor pelo qual era competitivo adquirir veículos no mercado europeu, face aos custos com a importação e impostos a pagar.

8 – A Ré BB disse ao Autor que nada mais que nada havia a fazer, nomeadamente a contestar.

9 – As declarações de substituição das declarações de IVA anteriormente entregues apenas foram entregues na ATA por força do constante no ponto 08.

10 - Se a Ré BB tivesse esclarecido correctamente o Autor sobre o regime de IVA aplicável às transacções no mercado europeu, o Autor teria arquitectado o seu negócio de modo distinto, mormente teria apenas adquirido viaturas em que se aplicaria o regime de IVA da margem de lucro e não o regime de IVA normal.

11 – O Autor aplicou o regime especial da tributação da margem a todas as aquisições de veículos usados efectuadas no mercado europeu, por esse ser o regime que lhe tinha sido dito pela Ré BB ser o aplicável.

12 - O recurso aos empréstimos criou ao Autor um conjunto de constrangimentos para o prosseguimento do seu negócio, porquanto, para pagar os empréstimos concedidos, deixou de dispor de meios financeiros para adquirir o mesmo volume de veículos automóveis e de, quando necessário, proceder a algumas reparações ou alterações mecânicas.

13 - Para liquidar a obrigação exigida pela ATA, o Autor teve de “empenhar” o seu negócio, do qual o Autor retira o seu rendimento mensal, indispensável ao seu sustento e da sua família.

14 – O imóvel que o Autor vendeu e a que alude a alínea ZZ) estava arrendado a terceiro, e daí obtinha todos os meses um rendimento predial decorrente da renda mensal paga pelo arrendatário.

15 – O Autor sempre foi uma pessoa idónea e um profissional zeloso, diligente e cumpridor das suas obrigações, seja a fornecedores ou a clientes, seja perante entidades públicas, como as Finanças ou a Segurança Social.

16 - A palavra e a honra são o timbre profissional do Autor.

17 - Toda esta situação causou um grande vexame e humilhação ao Autor que desde então, tem vivido angustiado e preocupado com a gestão económica do seu negócio e, ademais, da sua vida doméstica.

18 - Até à acção inspectiva de que foi alvo, o Autor tinha uma vida profissional e pessoal estabilizada, não tendo preocupações de ordem financeira, vivendo desafogadamente.

19 - Hoje em dia, o Autor tem de fazer grandes constrições no seu dia-a-dia, de modo a conseguir cumprir os seus compromissos profissionais e pessoais e vive atormentado com o facto de estar a correr contra si um processo-crime por fraude fiscal e de poder vir a ser condenado pela prática de um crime que nunca teve intenção – ou sequer consciência – de cometer.

20 - Aliás, o vexame é tão grande que o Autor manteve em segredo o facto de ser arguido num processo-crime por fraude fiscal, tendo apenas contado o sucedido à sua esposa e aos seus filhos.

21 – A Ré Mapfre – Seguros Gerais, S.A. apenas teve conhecimento da “reclamação” aquando da sua citação para contestar a presente acção.


Conhecendo:


I


Compulsado o teor da ampliação do objecto do recurso da Ré Mapfre, constata-se que essa Ré, para além de contrariar os fundamentos em que decaiu, na parte em que saiu vencedora (e nos termos da norma que prevê os fundamentos da “ampliação do âmbito do recurso”, do art.º 636.º n.º1 do CPCiv), também reage contra a parte em que foi condenada (veja-se o segmento decisório do acórdão recorrido), pugnando pela total absolvição do pedido, ao igual do decidido em 1.ª instância.

Nessa parte, a alegação da Ré Mapfre pode integrar o objecto de um recurso subordinado – art.º 633.º n.º1 do CPCiv.

Seguir-se-á assim, nesta matéria, a jurisprudência do S.T.J., exemplificada no Ac. de 24/2/2022, p.º 1238/20.0T8PTG.E1.S1, rel. M.ª Rosa Tching, no sentido de que, nos termos do disposto no art.º 193.º n.º3 do CPCiv, tendo uma parte, “por erro de qualificação, requerido nas alegações da sua resposta a ampliação do âmbito do recurso quanto ao pedido principal cuja decisão lhe foi desfavorável, mas resultando claro do teor dessas alegações que a mesma pretendia a reapreciação daquele pedido, recai sobre o tribunal o dever de convolar, oficiosamente, a requerida ampliação do âmbito do recurso em recurso subordinado, a não ser que tal convolação se venha a traduzir na prática de um ato inútil”.

Atender-se-á assim, quanto á pretensão da Ré Mapfre, aos termos do recurso subordinado, na parte em que pugna pela revogação do decidido, sem prejuízo da ampliação do objecto do recurso, no restante.



II


Quanto ao recurso do Autor.

Em primeiro lugar, salienta-se a afirmação do acórdão recorrido, no sentido de arredar a responsabilidade civil das 1.ª e 2.ª Rés a título de responsabilidade civil contratual, mas afirmar a mesma responsabilidade, no plano civil extracontratual ou aquiliano.

Neste campo, o acórdão efectua transcurso sobre a verificação, no caso, do facto ilícito imputável à 1.ª Ré e à sua representada sociedade (2.ª Ré), e à culpa revelada pelos factos, pelo que, nesse referido âmbito, nada existe que apreciar, posto que o recurso conclui em sentidos idênticos aos do acórdão.

Igualmente inexiste divergência quanto à conclusão do recurso de que “o esforço económico que o Recorrente teria de ter realizado com a liquidação correta do IVA é inferior ao esforço que este teve de ter para pagar a totalidade do montante em falta fruto da incorreta liquidação pela Recorrida, o qual não pode deixar de ser considerado”.

Onde o recurso diverge do acórdão é na afirmação de que é possível estabelecer nexo de causalidade adequada entre a actuação da 1.ª Ré e os montantes a pagar a título de IVA, juros de mora e custas da execução – que tal actuação seja conditio sine qua non desses danos sofridos, ao igual do dano (reconhecido pelo acórdão) relativo a juros compensatórios anteriormente pagos à AT.

Vejamos a diferença concebida no acórdão.

Entende-se, quanto ao montante global de IVA em dívida, que se teria de ter provado, de alguma forma, a responsabilidade da Ré na decisão do Autor pelo modelo de negócio que prosseguiu, sendo certo que o Autor nunca colocou em causa que esse fosse o valor exacto do IVA que estava obrigado a pagar.

Ora, quanto às custas das execuções e juros de mora, os mesmos resultaram de um atraso na liquidação do IVA mas após o processo inspectivo da AT, ou seja, após verificado o incumprimento quanto à declaração relativa ao IVA devido, no âmbito da actividade da Ré.

Sobre este atraso posterior, conclui o acórdão, nada se provou que permita imputar à Ré o incumprimento e por isso estabelecer nexo causal com esse dano.

Neste último ponto, não pode deixar de se concordar com o acórdão recorrido – na realidade, os factos provados TT) e XX) demonstram que, passado o prazo de pagamento voluntário do IVA liquidado pela AT, foram então instaurados processos de execução fiscal para cobrança, entre outros, dos juros de mora em dívida à AT.

Ou seja, o eventual nexo causal decorrente da imputação do prejuízo à actividade da Ré foi interrompido a partir do momento em que foi concedido ao Autor um prazo para pagamento voluntário do IVA, sem juros de mora.

Diferentes seriam as coisas em matéria de juros compensatórios, matéria que ultrapassa o recurso do Autor.

E ainda diferentes seriam as coisas quanto à indemnização peticionada em matéria do IVA pago pelo Autor – aqui porque o que se encontra em causa é mesmo a não prova da decisividade (causalidade, mesmo que apenas em termos naturalísticos) da intervenção da Ré, quanto ao facto de o Autor poder ter arquitectado o seu negócio de forma distinta (factos 10 e 11 não provados) – não fora a intervenção da Ré.

Como se justificou em 1.ª instância:

- “não ficou o Tribunal convicto de que o Autor desconhecia o regime a aplicar às viaturas importadas, tendo sido a Ré BB quem explicou e disse ao Autor como fazer”;

- “a contratação dos serviços não teve por base qualquer desconhecimento contabilístico ou fiscal do Autor, mas sim imposição legal”.

E como se justificou, na Relação:

“O recorrente parte da normalidade, da experiência da vida, para afirmar que nunca faria um negócio ruinoso nem nunca cairia no risco de fazer um negócio que se viesse a tornar ruinoso – designadamente obrigando-o a pagar IVA normal que nem sequer cobrara aos compradores dos seus carros – e que portanto só pode ter feito tal “anormalidade” pela razão de ter sido mal aconselhado.”

“Devemos agora dizer que, mesmo para a prova desta situação de experiência normal da vida, que não é uma mera dedução, precisaríamos de provas que nos enquadrassem o autor e o seu negócio nessa situação de experiência normal das coisas (e provas não são, ou pelo menos com particular credibilidade, o depoimento do próprio) seja, por exemplo, de que o autor era um homem muito cauteloso, que nada arriscava, que preferia um negócio em que ganhasse menos mas que fosse seguro e certo. Fosse (essa prova) a sua esposa a depor, ou clientes habituais. Mas não temos nada.”

“E se é mais ou menos claro, até pela audição do Autor, que não estamos perante uma pessoa apoucada – e por isso com certeza não faria um negócio ruinoso – já não podemos depreender da possibilidade do negócio ser ou se ter tornado ruinoso que o Autor não soubesse os termos em que o negócio se devia processar fiscalmente, nem sequer que sabendo, não tivesse querido ainda assim arriscar.”

“(…) Quer isto dizer que também é da experiência normal das coisas que eventuais irregularidades fiscais que se revelassem lucrativas pudessem não ser detectadas, ou não ser detectadas de imediato, ou nem todos os anos fossem inspecionáveis, o que viesse a compensar.”

Isto dito, é evidente que a obrigação de pagamento do imposto decorre totalmente da actividade económica desenvolvida pelo Autor e da previsão legal que o obriga, enquanto sujeito passivo, a proceder ao pagamento do imposto – só se justificaria a peticionada indemnização no caso de poder ser imputada à Ré BB algum tipo de responsabilidade ou de interferência na decisão do Autor pelo modelo de negócio que prosseguiu.

Desenvolveremos um pouco mais esta matéria infra, a propósito do recurso subordinado da Ré Ageas.

Finalmente, quanto aos invocados danos não patrimoniais, é patente que todos os factos que sustentavam a invocação resultaram não provados, conforme 15 a 20 do elenco factual, pelo que não pode o Autor recorrer ao que é “notório e manifesto” (ou à “natureza das coisas”) para entender comprovado um dano sem repercussão íntima comprovada, mais a mais (reafirma-se) se não se demonstrou “a decisividade da intervenção da Ré, quanto ao facto de o Autor poder ter arquitectado o seu negócio de forma distinta”.

Improcede assim o recurso do Autor.



III


Quanto ao referido recurso subordinado da Ré Ageas.

Tem o mesmo que ver, exclusivamente, para lá do âmbito do seguro de responsabilidade civil em que eram segurados os técnicos oficiais de contas inscritos na OTOC, com a condenação da Ré no pagamento dos juros compensatórios anteriormente satisfeitos pelo Autor à AT.

A Recorrente não vê, nessa responsabilidade por juros compensatórios, actuação culposa do TOC – aliás, deduzir uma violação de deveres estatutários do facto de a realidade contabilística não atestar a verdade material será criar um patamar de excesso de responsabilização, de condenação sumária: significaria que o Recorrido passaria a beneficiar do produto/lucro da sua actividade comercial e ficaria isento da correspondente responsabilidade fiscal, que transferiria para a TOC (responsável fiscal da actividade do cliente), ou seja, quem receberia o lucro seria o empresário e quem custearia o prejuízo fiscal seria o TOC.

As alegações invocam, a propósito, o disposto no art.º 35.º n.º1 da Lei Geral Tributária, no sentido de que “são devidos juros compensatórios quando, por facto imputável ao sujeito passivo, for retardada a liquidação de parte ou da totalidade do imposto devido ou a entrega de imposto a pagar antecipadamente, ou retido ou a reter no âmbito da substituição tributária”.

Invocam ainda as normas dos art.ºs 7.º n.º1 al.a) e 8.º n.º1 al.a) do CIVA  - o imposto é devido e torna-se exigível, nas transmissões de bens, no momento em que os bens são postos à disposição do adquirente, e que sempre que a transmissão de bens ou a prestação de serviços dê lugar à obrigação de emitir uma factura nos termos do art.º 29.º, o imposto torna-se exigível, se o prazo previsto para a emissão da factura for respeitado, no momento da sua emissão.

Estabelece o art.º 35.º n.º 1 da LGT que, sempre que ocorra retardamento da liquidação, do total ou de parte do imposto devido, são devidos juros compensatórios pelo sujeito passivo, desde que tal retardamento decorra de facto que lhe seja imputável – idêntica disposição rege em matéria de IVA, no art.º 96.º n.º1 do CIVA, que aliás remete também para a norma anteriormente citada.

Como se pronuncia a jurisprudência disponível, “a razão de ser dos juros compensatórios assenta, necessariamente, num juízo de censura, a título de culpa e, por consequência, numa conduta, no mínimo, negligente, imputável ao sujeito passivo e que justifica a sua responsabilização cível, no sentido de indemnizar o Estado pelos prejuízos decorrentes do não recebimento atempado do imposto devido com suporte numa conduta ilícita ou de desvalorização normativa do quadro legal vigente e aplicável injustificável/indesculpável ou, dito de outra forma, censurável”.

Ora, “deixa de ser desculpável a actuação da Recorrida após o esclarecimento definitivo da taxa de imposto aplicável e o decurso do prazo que lhe foi conferido para a regularização em causa, passando a sua conduta a ser qualificada de culposa, pelo menos a título de negligência, sendo devidos juros compensatórios contados desde essa data” (cf. Ac.TCA Norte 23/6/2021, p.º 00929/06.2BEPRT).



IV


Sobre a matéria se pronunciou o acórdão recorrido, fazendo a seguinte distinção: quanto ao pedido relativo ao montante global do IVA, funda-se o mesmo na responsabilidade da Ré pela decisão da Autora pelo modelo de negócio que prosseguiu, sendo certo que o Autor nunca colocou em causa que este fosse o montante exacto do IVA que estava obrigado a pagar.

Tal pretensão fundou-se em factos que não resultaram provados, pelo que teria de improceder, como aliás (e ainda) supra resultou confirmado.

Mas, em matéria de juros compensatórios, sendo claro que o sujeito passivo do imposto é o Autor, se a 1.ª Ré tivesse cumprido com os seus deveres funcionais enquanto contabilista certificada, o pagamento do imposto em falta não teria sido retardado (consequentemente não haveria lugar ao pagamento de juros compensatórios).

O acórdão faz assim uma distinção entre a responsabilidade da 1.ª Ré nas suas relações com o Autor seu cliente, e assim quanto ao modelo de negócio invocado pelo Autor (responsabilidade não provada, como decorrente dos facto apurados) e o dever do contabilista de, nas suas relações com a AT, assegurar que as declarações fiscais que assinam estão de acordo com a lei e as normas técnicas em vigor (art.º 73.º al.a) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados,  Lei n.º 139/2015 de 7 de Setembro).

A distinção é melindrosa mas, vistos os termos concretos do decurso do processo e da fixação da matéria de facto, mostra-se justificada.

Na verdade, o esclarecimento correcto do cliente deve englobar-se na competência funcional de um TOC: segundo o art.º 72.º n.º1 als.a), b) e c) do EOCC, “nas suas relações com as entidades a que prestem serviços, constituem deveres dos contabilistas certificados: a) Desempenhar, conscienciosa e diligentemente as suas funções; b) Abster-se de qualquer procedimento que ponha em causa tais entidades; c) Prestar informações e esclarecimentos, nos termos previstos no Código Deontológico”.

Segundo o art.º 73.º al.a) do EOCC, “nas suas relações com a Autoridade Tributária e Aduaneira, constituem deveres dos contabilistas certificados: Assegurar que as declarações fiscais que assinam estão de acordo com a lei e as normas técnicas em vigor”.

E, nos termos do art.º 11.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados, sob a epígrafe “deveres de informação”, “os contabilistas certificados devem prestar a informação necessária às entidades às quais prestam serviços, sempre que para tal sejam solicitados ou por iniciativa própria, nomeadamente: a) Informá-las das suas obrigações contabilísticas, fiscais e legais relacionadas exclusivamente com o exercício das suas funções; b) Fornecer todos os esclarecimentos necessários à compreensão dos relatórios e documentos de análise contabilística”.

Como se escreveu no Ac.S.T.J. 21/6/2011 Col.II/128, rel. Gregório Jesus, “com o desenvolvimento das técnicas de gestão a contabilidade já não é apenas entendida como um elemento de simples recolha e interpretação dos dados históricos de uma empresa privada, ou mesmo de um departamento da administração pública, é além disso uma técnica eficiente de gestão, daí que o técnico que a executa deva conhecer além dos processos de registo das operações muitas outras matérias, como direito fiscal, direito comercial, organização de empresas e gestão de empresas.”

“Portanto, “executar a contabilidade”, utilizando a expressão da recorrente, não é apenas o que tem a ver com organização e arquivo de documentos contabilísticos e fiscais, classificação de documentos e seu lançamento nos respectivos livros contabilísticos e no sistema informático e apuramento de impostos a pagar, mas também, sem dúvida, projectar e estabelecer medidas que não só assegurem que as entidades sujeitas aos impostos sobre o rendimento cumpram as suas obrigações em matéria de execução da contabilidade e nas suas relações com a Administração Fiscal, como sejam simultaneamente convergentes com a melhor satisfação dos interesses dessas entidades.”

A questão é que resultou não provada (e como tal fundamentado em duas instâncias) a responsabilidade em face do cliente (não provada na medida em que, mesmo que a Ré tivesse esclarecido correctamente o Autor sobre o regime do IVA aplicável às transacções no mercado europeu, não se sabe factualmente se o Autor teria arquitectado o seu negócio de modo distinto), mas todavia tal não oblitera que sempre seria a Ré Alexandra que tinha o dever legal (vejam-se os já citados Estatuto e Código Deontológico) de possuir os conhecimentos e qualificações técnicas necessárias para realizar correctamente o enquadramento fiscal da actividade do Autor, cabendo-lhe averiguar e confirmar se a menção contida nas facturas que o Autor lhe entregou, em aplicação do Regime Especial de Tributação de Bens em Segunda Mão (D.-L. n.º 199/96, de 18 de Outubro), estava correcta e se estavam preenchidas as condições fixadas no diploma para a aplicação desse regime especial.

Cabia à Ré fazê-lo por sua própria iniciativa, como decorre do art.º 11.º do Código Deontológico.

Ora, em face da AT e da sua necessária acção inspectiva, a Ré não se poderia “limitar-se a lançar valores conforme informado pelo A., não se tendo comportado assim como contabilista certificada, incumprindo grosseiramente todos os deveres mencionados, e desde logo e manifestamente, a sua autonomia técnica, neste comportamento não tendo observado a diligência de um bom pai de família, seja, de um contabilista certificado “médio”, normalmente informado – art.º 487º nº 2 do CCiv” – razão pela qual se considerou a responsabilidade civil extracontratual da Ré, perante o Autor, relativamente aos montantes de juros compensatórios decorrentes do não recebimento em tempo, pelo Estado, do imposto devido.

Note-se que o comportamento da Ré, sendo embora decorrente da violação dos respectivos deveres funcionais em face da AT, foi causa de prejuízo no património do Autor, ao contrário do “esclarecimento do Autor sobre o regime do IVA aplicável”, na pessoa do Autor, esclarecimento do qual nada se pode retirar, sobretudo em matéria indemnizatória, posto que, como afirmado, não se prova expressamente que o Autor teria, nesse caso, arquitectado o seu negócio de modo distinto (teria apenas adquirido viaturas em que se aplicaria o IVA da margem de lucro, e não o regime do IVA normal).



V


A Ré Mapfre invoca, no quadro que atrás se desenhou de “recurso subordinado”, que o contrato de seguro que celebrou com o tomador Ordem dos Contabilistas Certificados tem uma cobertura temporal delimitada pela data da reclamação, que não pela data da ocorrência.

Alude ao disposto no art.º 147.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (D-L n.º 72/2008, de 16 de Abril), no sentido de que a caducidade do contrato, a sua cessação, é oponível ao terceiro lesado, e que as reclamações, nos termos do contrato de seguro, deveriam ser efectuadas no prazo de 24 meses sobre o termo final da vigência do contrato de seguro.

Nesse aspecto, consideramos que é adequada a interpretação do acórdão recorrido, no sentido de que “a cessação do contrato que pode ser oposta ao terceiro é a que ocorra antes do sinistro, não a que tenha lugar depois dele ter ocorrido”.

Lembre-se o disposto no citado art.º 147.º RJCS:

“1 - O segurador apenas pode opor ao lesado os meios de defesa derivados do contrato de seguro ou de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro.”

“2 - Para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado, como meios de defesa do segurador, a invalidade do contrato, as condições contratuais e a cessação do contrato.”

Ora, como se afirmou, “se a oponibilidade das condições contratuais implicasse a oponibilidade ao lesado das cláusulas relativas ao prazo da reclamação, alcançar-se-ia o resultado de a seguradora poder opor ao lesado os meios de defesa derivados de facto do tomador do seguro ou do segurado ocorrido anteriormente ao sinistro”.

Alcançar-se-ia o resultado que o n.º 1 expressamente proíbe.

A norma é clara ao estabelecer a previsão do seu n.º 2 como subsidiária do n.º 1, a que se reporta e que exemplifica: para efeito do número anterior, são nomeadamente oponíveis ao lesado.

A liberdade contratual prevista no art.º 11.º do RJCS vê-se afastada no caso das normas imperativas, que apenas cedem mediante um regime mais favorável ao tomador, ao segurado ou ao beneficiário da prestação – art.º 13.º do RJCS, encontrando-se o art.º 147.º no elenco das citadas normas imperativas.

Desta forma se segue a jurisprudência deste S.T.J., nomeadamente no Ac. de 14/7/2022, p.º 1138/16.8T9STC.E1.S1, rel. Leonor Furtado (5.ª Secção Criminal):

“A cláusula contratual geral de um contrato de seguro de grupo que introduz um prazo dentro do qual a reclamação deve ser apresentada para a hipótese da cessação do contrato, consubstancia-se numa cláusula híbrida que associa, a um seguro na base da ocorrência do facto gerador no período de vigência da apólice, uma regra contratual quanto ao limite temporal de exercício do direito à prestação emergente do sinistro, de modelo e efeito prático semelhante a um sistema claims made.”

As razões de protecção do lesado perante actos e omissões geradores de responsabilidade civil profissional (…), que levaram o legislador a impor o seguro obrigatório, só se satisfazem com a inoponibilidade da cláusula que limita temporalmente o direito de reclamação da prestação da seguradora, mediante um termo a quo em que a caducidade do direito de exigir a prestação indemnizatória garantida pelo seguro começa a correr e pode completar-se num momento em que o lesado desconhece o facto ilícito.”

“Num contrato estruturado na base do facto gerador, uma caducidade por estipulação negocial como a estipulada na parte final da cláusula 5.ª, das Condições Gerais da apólice considera-se estabelecida em matéria subtraída à disponibilidade das partes – o segurador e o tomador e o segurado incluído no seguro de grupo – por frustrar a finalidade ínsita no caracter obrigatório do seguro – a protecção ao lesado.”

“Uma tal cláusula é inválida, face ao disposto nos arts. 329.º e 330.º do CC, que constituem regime geral a que o contrato de seguro, também, está submetido e, por isso consubstancia, além das disposições especiais, mais um limite ao princípio da liberdade negocial, nos termos do art. 11.º do RJCS.”

“A invalidade consiste ou basta-se com a ineficácia relativa da cláusula, ao que corresponde, na técnica do RJCS, o regime de inoponibilidade ao terceiro lesado.”

A cessação do contrato não iliba o segurador da obrigação de efectuar a prestação decorrente da cobertura do risco, desde que o sinistro seja anterior ou concomitante com a cessação (art. 106.º, n.º 2, do RJCS), nem prejudica os direitos adquiridos por terceiros durante a vigência do contrato (art. 108.º do RJCS).”

Improcedem assim os fundamentos dos recursos e, consequentemente, da parte restante da alegação recursória da Ré Mapfre.

Concluindo:

I – Em matéria tributária, estabelecem os art.ºs 35.º n.º 1 da LGT e 96.º n.º1 do CIVA que, sempre que ocorra retardamento da liquidação do imposto devido, são devidos juros compensatórios pelo sujeito passivo, desde que tal retardamento decorra de facto que lhe seja imputável.

II – É dever do contabilista, nas suas relações com a AT, assegurar que as declarações fiscais que assinam estão de acordo com a lei e as normas técnicas em vigor (art.º 73.º al.a) do Estatuto da Ordem dos Contabilistas Certificados,  Lei n.º 139/2015 de 7 de Setembro), sendo que o esclarecimento correcto do cliente se engloba na competência funcional de um TOC (art.ºs 71.º n.º1 als.a), b) e c) do EOCC e 11.º do Código Deontológico dos Contabilistas Certificados).

III – O não cumprimento dos deveres profissionais do contabilista, nas suas relações com a AT, resultantes em inadequado enquadramento fiscal das declarações, responsabiliza esse mesmo contabilista pelo pagamento de juros compensatórios exigidos pela AT à entidade a quem prestava serviços.

IV - Do não demonstrado “esclarecimento do Autor sobre o regime do IVA aplicável”, por parte da contabilista, não se pode retirar a responsabilidade desta contabilista, em matéria do valor do imposto pago à AT, se não se prova expressamente que o Autor teria, em caso do correcto esclarecimento, arquitectado o seu negócio de modo distinto – caso em que inexiste causalidade demonstrada da intervenção da Ré relativamente ao não esclarecimento do Autor.

V - A cessação do contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil que pode ser oposta ao terceiro lesado é a que ocorra antes do sinistro, não a que tenha lugar depois dele ter ocorrido.

Decisão:

Negam-se as revistas.

Custas pelos Recorrentes.


STJ, 6/7/2023

Vieira e Cunha (relator)

Isabel Salgado

Ana Paula Lobo