Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
087495
Nº Convencional: JSTJ00027949
Relator: CARDONA FERREIRA
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
CLÁUSULA
Nº do Documento: SJ199601310874951
Data do Acordão: 01/31/1996
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IIS DE 1996-06-07
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC TRIB PLENO.
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 409 ARTIGO 1210 ARTIGO 1212 N2.
Sumário : A cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se ineficaz logo que se concretize a respectiva instalação.
Decisão Texto Integral: 1 - Fortis Elevadores, Lda., recorreu para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão proferido na 2.ª Secção deste Supremo em 17 de Outubro de 1994, nos autos de revista n. 85632, em que aquela era recorrente e recorrida a Câmara Municipal de Lisboa (melhor se diria, o respectivo município, mas persiste uma confusão entre órgãos autárquicos e autarquias, o que, todavia, não é, aqui e agora, questão a resolver).
O acórdão que decidiria essa revista negara-a (fls. 9 e seguintes).
Nestes autos, a recorrente invocou oposição de acórdãos no concernente à qualificação do contrato e a propósito da validade e eficácia de cláusula de reserva de propriedade (fls. 2 e seguintes), acerca do fornecimento e colocação de elevadores em prédio urbano.
A 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, à qual este recurso foi distribuído, proferiu o acórdão a fls. 60 e seguintes, julgando, por unanimidade, findo o recurso quanto à 1.* questão, mas verificada oposição relativamente à 2.ª questão, atendendo aos pressupostos e decisões, em concreto, do acórdão recorrido e dos acórdãos fundamento.
Contudo, logo se alertou no sentido de que, embora o alcance desses acórdãos limitasse, tecnicamente, a oposição à problemática da reserva de propriedade, naturalmente poderia vir a ter de se considerar matéria de tipologia contratual na fundamentação da uniformização da jurisprudência que viesse a decidir-se (fls. 64).
A oposição foi admitida no concernente ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 1990, no recurso n. 79403 (fls. 30 e seguintes).
Subsequentemente, a recorrente alegou e concluiu (fls. 69 e seguintes):
1) Ao requisito da permanência, que o artigo 204 do Código Civil exige para que uma coisa móvel se constitua parte integrante de uma coisa imóvel não basta que a ligação física entre ambas seja feita com a intenção durar, sendo igualmente necessário que o acto de destinação se funde num direito não precário, o que postula que a propriedade de coisa móvel e a da coisa imóvel convirjam no mesmo sujeito de direito;
2) Na possibilidade de uma divergência precária de estatuto jurídico (direito da propriedade sobre a coisa móvel, ligada fisicamente ao prédio de outrem, que não o proprietário deste, por ainda não se ter dado a integração) radica precisamente a distinção do regime entre parte constitutiva ou componente e parte integrante de um imóvel, que o nosso direito estabelece, ao contrário do direito alemão, e que se manifesta nos institutos da acessão, da empreitada e da penhora, além de no próprio artigo 204 do Código Civil;
3) Essa divergência pode surgir, no âmbito da autonomia da vontade, por via da reserva de propriedade permitida pelo artigo 409 do Código Civil;
4) Nem as exigências das regulamentações de direito administrativo dos prédios urbanos que, sem prejuízo da sua substituição, não impedem a desafectação da coisa móvel por acto do proprietário (artigo 880, n. 1, do Código Civil) nem a tutela do terceiro adquirente de boa fé que, no nosso direito, ao contrário também do direito alemão, não se sobrepõe, em regra, à tutela do direito do proprietário, como resulta de preceitos como os artigos 892 do Código Civil, 909, n. 1 alínea d), e 910 do Código de Processo Civil, sem que o artigo 435 do Código Civil constitua derrogação à regra geral do artigo 409, constituem razões de ordem pública que se sobreponham à liberdade de estipulação negocial;
5) Tão-pouco o impede, se a coisa móvel tiver sido objecto de um contrato de empreitada, o artigo 1212, n. 1, do Código Civil, já porque este se refere à empreitada da construção de imóveis e às partes componentes e não à da construção de móveis e às partes integrantes, já porque todo o artigo 1212 é supletivo, sendo que, por um lado, o contrato de empreitada com fornecimento de materiais pelo empreiteiro é um contrato de alienação;
6) Sendo assim, fornecidos e instalados elevadores num prédio ao abrigo de um contrato que tenha estabelecido a reserva de propriedade até ao pagamento integral do preço convencionado, só com o pagamento deste preço se dá a transferência da propriedade para o proprietário do prédio e, correspondentemente, a integração, sendo aquela cláusula válida e eficaz quando tem por objecto coisas móveis que se destinam a ser integradas em prédios urbanos.
A recorrente finaliza dizendo que "neste sentido deve ser tirado assento".
Contra-alegou a Câmara Municipal de Lisboa, propugnando que se negue provimento a este recurso (fls. 91 e seguintes).
O Ministério Público emitiu o parecer a fls. 102 e seguintes, começando por uma saborosa citação de Eça de Queirós e terminando por opinar no sentido de que deve ser confirmado o Acórdão recorrido e emitido assento nestes termos:
A cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se nula logo que se concretize a respectiva instalação.
Foram colhidos os vistos legais.
II - Das linhas gerais do caso sub judice:
II.1 - O que está em causa é, assim, o confronto entre a perspectiva jurídica em que assentou o acórdão recorrido (de 17 de Outubro de 1994, no processo n. 85632, da 2.ª Secção deste Supremo, aqui a fls. 9 e seguintes) e aquela que constitui aspecto fulcral do acórdão fundamento (de 6 de Dezembro de 1990, processo n. 79403, da 1.ª Secção deste mesmo Supremo, aqui a fls. 30 e seguintes); tudo isto a propósito da validade e eficácia da cláusula de reserva de propriedade no contrato celebrado a propósito do fornecimento e colocação de elevadores em prédio urbano, conforme já reflectido.
Aliás, a recorrente colocara, tal como indicado, uma outra questão, atinente à qualificação do contrato, trazendo à colação o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de Outubro de 1986, no processo n. 73478, da 1.ª Secção (aqui, a fls. 18 e seguintes, 40 e seguintes e 43).
Mas, conforme já ficou relatado por acórdão de 27 de Junho próximo passado, a 1.ª Secção, por unanimidade, julgou verificada oposição apenas quanto à questão da validade e eficácia da citada cláusula.
Isto significa que, relativamente à qualificação do contrato, o recurso findou e, portanto, nada há que se imponha acrescentar. Contudo, não deixamos de anotar, entre o mais que adiante virá, que algumas das dúvidas que se colocam neste tipo de recursos arrancam de certas observações, designadamente do Prof. Doutor A. Reis, mas sem uma pormenorizada atenção ao alcance lógico objectivo de mudanças de textos processuais civis entre o de 1939, sobre que escreveu esse eminente processualista, e o que veio a ser introduzido pelo Decreto-Lei n. 44129, de 28 de Dezembro de 1961.
De todo o modo, admitiu-se a aludida oposição no concernente à cláusula de reserva de propriedade. E, conforme também já se aflorou, a circunstância de se ter julgado existente oposição apenas quanto a essa questão limita os termos da explícita uniformização da jurisprudência, mas não impede que, no âmbito do acórdão e na génese dessa uniformização, se considere o tipo de negócio em causa.
E isto é o que mais importa. Com efeito, o verdadeiro problema não é conceptual mas, sim, de efeitos práticos. Ou seja, trata-se de um caso paradigmático da relevância da jurisprudência de valores ou de interesses face a uma ultrapassada jurisprudência conceptualista.
II.2 - Para além de tudo isto, se é exacto que ficou precludida a questão da oposição do acórdão recorrido com o de 1986, acerca da qualificação do contrato, não é menos certo que agora poderíamos negar a oposição quanto à cláusula de reserva de propriedade e ao acórdão de 1990.
Mas negar essa oposição seria negar a evidência.
Com efeito, em síntese, o acórdão fundamento entendeu que, por via de tal cláusula, o elevador reverterá a favor do fornecedor e poderia ser separado do prédio onde funcionava, o que vale por dizer que se lhe reconhecia validade e eficácia; enquanto o acórdão recorrido optou pela tese dita de nulidade de idêntica cláusula em contexto semelhante e, portanto, à reversão do elevador ao seu fornecedor.
Portanto, nada há a alterar quanto à reconhecida oposição de acórdãos.
II.3 - As doutas alegações da recorrente, a fls. 69 e seguintes, começam por uma resenha histórico-jurisprudencial, através da qual a própria recorrente reconhece uma evolução que, começando, nas suas linhas gerais, pela tese do acórdão fundamento, vem, progressivamente, a inclinar-se no sentido da orientação do acórdão recorrido, mormente ao nível deste Supremo.
Ora, este tipo de evolução não pode deixar de compaginar-se com o devir jurisprudencial em termos gerais, que, sendo embora lento, não deixa de ser seguro, fazendo perder relevância às perspectivas positivas, formalistas ou conceptualistas, a favor de uma prevalência de uma jurisprudência de interesse ou, hoje, mais rigorosamente, de valores, na linha do que já se anotou.
Naturalmente, aquela primeira visualização da lei e das suas consequências é a mais simples, imediatista e fácil de defender.
Mais difícil mas, também por isso mesmo, mais aliciante é a preocupação pelos interesses concretos, à luz de valores que, sendo de contornos claros mas de conteúdo variável conforme as situações efectivas, permitem uma melhor adequação das soluções casuísticas à sensibilidade natural da pessoa comum face à justiça. Aliás, além do mais, quer para a lógica, em detrimento do literalismo, quer para a evolução que se contraponha ao imobilismo da hermenêutica juridica, quer para a razoabilidade que tenha em atenção, tanto quanto possível, uma moderna perspectiva da lei da boa razão, aponta, desde logo, o básico artigo 9 do Código Civil.
Claro que, realisticamente, quando se fala em interesses e em valores, há sempre quem dessa orientação beneficie e quem nela se não reveja. É normalmente impossível contentar "gregos" e "troianos".
Só que a orientação que se acolha, tendo de assumir a falibilidade e a relatividade de tudo o que é humano, tem de considerar e valorizar a orientação que, sendo a melhor, não pode ser óptima, porque soluções óptimas seriam as que, utopicamente, contentariam todos os interesses, que, por princípio, têm de ser opostos para desencadear um litígio.
É este tipo de pensamento que leva a não confundir invalidade (mais concretamente, nulidade) com ineficácia (stricto sensu) e, ultrapassando conceptualismos estanques, faz antever que, em direito, não há apenas ser e não ser, mas pode haver ser que se modifique.
Tudo em homenagem às situações concretas da vida, sem a qual o direito não teria causa final.
E, no âmbito porventura mais simples, há que ter em atenção as várias relações jurídicas que, no concreto vivencial, se cruzam ou convivem.
II.4 - Por outro lado, o que está em causa não é um direito de propriedade e um indefinido direito de terceiro.
Pelo contrário.
Esse direito de terceiro, o fornecedor do elevador, seria explicitamente, direito de propriedade e daí a pretendida relevância da cláusula de reserva de propriedade.
Como última ratio, não deixaria de vir ao caso o artigo 335 do Código Civil.
Outrossim tenhamos presente uma significativa frase da recorrente (fls. 75): "(...) o direito de propriedade do beneficiário da reserva mantém toda a sua eficácia até à integração".
II.5 - É ainda de ter em conta que, apesar da generosidade do sistema processual civil português, o recurso para o Pleno do Supremo Tribunal de Justiça é, não obstante a letra do artigo 676, n. 2, do Código de Processo Civil, na sua essência, mais atípico do que ordinário. Com efeito, e conforme se infere, designadamente, da ratio do n. 3 do artigo 768 do Código de Processo Civil, embora o recorrente, naturalmente, pretenda uma solução diferente da do acórdão recorrido, o escopo específico deste processado está muito mais numa clarificação da orientação jurisprudencial geral do que na subsistência ou não subsistência do acórdão recorrido. Vem neste sentido o recente Decreto-Lei n. 329-A/95, de 12 de Dezembro.
E não há que fazer interferir na solução desta questão a hipótese efectivamente absurda de se "legalizar", civilisticamente, o uso de coisa adquirida por via criminalmente sancionável. O argumento ab absurdo faz pensar numa carência de verdadeira fragilidade da tese que se pretende atacar.
III - Do tipo contratual:
III.1 - Na situação concreta que nos ocupa, a qualificação juridica do contrato inscreveu-se em circunstancialismo básico, que radica na existência de cláusula de reserva de propriedade a favor do fornecedor em edifício que é ou virá a ser de terceiro interessado.
Portanto, há aqui dois binómios: o que se estabelece entre quem encomendou o elevador e contrata com o fornecedor; e o terceiro, que é ou vem a ser o proprietário do edifício onde o elevador será instalado.
Na circunstância, o fornecedor do elevador reserva-se o direito de propriedade sobre esse bem até ser pago o respectivo valor. Mas reserva-se perante quem encomendou o fornecimento.
Nos casos correntes, temos dois binómios, que só têm de comum, objectivamente, o quid, o bem questionado, o elevador, e, do ponto de vista subjectivo, o intermediário, aquele que, perante o dono do edifício, assumiu o encargo de providenciar no sentido de ser instalado o elevador e, face ao fornecedor deste, estabeleceu o contrato de aquisição. Em princípio, aquilo que o intermediário assume perante o fornecedor não vincula quem não é parte nesse binómio.
III.2 - Em múltiplos casos semelhantes, com uma ou outra nuance, surge a problemática da configuração contratual.
Não vamos desdizer o que já ficou claro: a definição contratual não pode fazer parte do texto da uniformização jurisprudencial ora a decidir.
Mas como também já se reflectiu, uma coisa é o texto sintético dessa uniformização e outra a sua fundamentação. Daí que façamos uma incursão, ainda que ligeira, sobre esta problemática.
Aliás, como se frisou, designadamente, no Acórdão deste Supremo de 6 de Julho de 1993, (CJSTJ, I, 2, 181), o núcleo importante desta problemática está na instalação do elevador e na sua aptidão para servir o prédio urbano onde é colocado.
Na vida normal, não se adquirem os elementos constitutivos de um elevador para o guardar ou para não funcionarem.
Portanto, é nesse aspecto da vida concreta e dos interesses efectivos que deve ser posta a questão em apreço, e não tanto na denominação contratual, sem que a esta deixe de reconhecer-se que pode ter alguma relevância.
De todo o modo, no campo das hipóteses possíveis, pode acontecer que o dono de um imóvel urbano que já exista adquira, por compra, um elevador e venha a instalá-lo por sua direcção directa.
Mas, no comum das situações, dê-se o nome que se der, o que o dono de um prédio urbano já construído ou em vias da construção faz é contratar com outrem que este outrem instalará elevador ou elevadores naquele prédio a troco de um preço.
E esta é realmente a hipótese de empreitada: artigo 1207 do Código Civil. Com efeito, o ponto essencial do contrato de empreitada é a realização de uma obra, como seja a instalação, pronto a funcionar, do elevador, e não apenas a compra e venda dos elementos de um elevador, a menos que se tratasse de algo como um museu, só para vista, ou de negócio para simples coleccionador, também só para deleite visual. Claro que isto são mais hipóteses do que realidades.
E nós não estamos a tratar de hipóteses anómalas ou excepcionais. O que nos ocupa são as vulgares e constantes situações da instalação de elevadores, em edifícios, para servirem os utentes desses edifícios.
Claro que o mundo do direito não é feito de ilhas isoladas. Tudo se entrecruza e, por isso, natural é que um contrato tenha pontos de contacto com outro ou outros (cf., v.g., Profs. Doutores P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, II, 3.ª ed., 786/791).
Repare-se que a própria lei, sensatamente, permite a introdução, pelos contratantes, de elementos diferenciadores nos próprios contratos nominados (artigo 405 do Código Civil). E, no contrato de empreitada, o empreiteiro fornece os materiais necessários, o que está paredes-meias com a compra e venda, mas salvo acordo em contrário: artigo 1210 do Código Civil.
E quantas vezes é o empreiteiro de uma edificação que faz, não um contrato de empreitada, mas contrato de subempreitada com quem se obriga a fornecer e instalar elevadores - artigo 1213 do Código Civil.
IV - Da reserva de propriedade:
E vamos ao específico thema decidendum sob análise, que se reporta à cláusula de reserva de propriedade, a propósito da contratação do fornecimento e instalação de elevadores em edifício de alguém que é terceiro relativamente àquele negócio concreto.
Há quem defenda que, à luz de uma normal empreitada e posto que não se estaria, tipicamente, perante um contrato de alienação, face ao artigo 409 do código Civil, a cláusula de reserva de propriedade estaria inquinada, ab initio, de invalidade.
Esta tese recolhe algum apoio em anotação dos Profs. Doutores P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª ed., 326, e em observações do Prof. Doutor Vaz Serra, in RLJ, 112, 239, a propósito do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1 de Março de 1979, in BMJ, 285, 279, e RLJ, 112, 235.
E, em casos e contornos bem definidos e rigorosos, assim será (cf. Acórdão deste Supremo de 6 de Julho de 1993, in CJSTJ, 1-2, 181).
Mas resolver um recurso, em revista, é uma coisa; elaborar um acórdão que conduza à uniformização de jurisprudência, com a sua vertente de generalidade, obrigará a ultrapassar as fronteiras de um caso concreto, embora tendo presentes os doutos precedentes deste Alto Tribunal (além do já citado, v.g. Acórdão de 6 de Abril de 1995, in CJSTJ, III, 33).
É nesta linha de pensamento e considerando que mesmo um contrato de empreitada tem uma vertente normal de alienação das partes componentes do quid objecto material da empreitada, não pode recusar-se, em termos genéricos e absolutos, a validade da cláusula de reserva e propriedade, ao abrigo do artigo 409 do Código Civil.
Em verdade, um elevador é como um puzzle que só tem sentido no seu conjunto, mas quer as partes quer o todo são - ou podem ser - alienados pelo fornecedor. O que, todavia, dá o toque específico ao contrato é a colocação, é o por a funcionar e o que daí juridicamente decorra, a que já iremos.
Neste particular da validade, também importa trazer à colação algo sobre, não só validade, mas também eficácia.
V - Da validade e da eficácia:
A tendência mais reflectida na doutrina tende a considerar a ineficácia como a "mãe de todas as invalidades", ou, dito mais juridicamente, como sendo a invalidade uma espécie de ineficácia (v.g. Prof. Doutor M. Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª ed., 591; Prof. Doutor M. Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, 11, 411).
Mas, se assim pode ser em termos de construção conceptual, também é possível uma construção que, tendo em atenção as causas e as consequências de invalidades e de ineficácias distinga uma das outras, e até eleja aquelas como, lato sensu, o género dos vícios negociais, entre as quais se podem encontrar as ineficácias stricto sensu.
Aliás, aqui como em tudo o que é o mundo do direito, na vida real de que se deve ocupar a jurisprudência, relevam muito mais as causas e as consequências do que as denominações formais mais ou menos globais dos institutos.
E é assim que se pode ter por inválido (nulo ou anulável, conforme as circunstâncias) o negócio que não respeita a lei, e por ineficaz aquele que é inoperante, irrelevante, praticamente um nada jurídico no que concerne a consequência ou a certas consequências.
Simplesmente, sendo perspectivável esta distinção, a invalidade ou é ou não é (e, aliás, sempre ressalvados os efeitos explícitos de eventual evolução legislativa e, até, o âmbito restrito da anulabilidade - v. g. artigo 287 do Código Civil); enquanto, no concernente à ineficácia ou inoponibilidade, tal é perfeitamente compaginável com efeitos relativamente a umas pessoas e não relativamente a outras, e até com alteração ao longo do tempo, conforme os dados concretos a ponderar.
Não esqueçamos que partimos de uma rejeição do rigor formal da jurisprudência conceptualista, privilegiando os valores e os interesses, donde mais potencial dificuldade nas justificações, mas também maior maleabilidade na consonância entre o direito concreto e a vida.
E é aqui que entra um elemento determinante a ponderar:
VI - O que são, juridicamente, os elevadores?
VI.1 - Não compliquemos tudo isto (e os juristas, às vezes, "adoram" complicar!) e vamos à mais directa e relevante fonte a considerar - a lei.
As coisas ("(...) tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas" - artigo 220, n. 1, do Código Civil; ou, no impressivo e belo português do Código de 1867, "coisa diz-se em direito tudo aquilo que carece de personalidade" - artigo 369) são, juridicamente, de múltiplas naturezas, conforme a vertente que se analise e se reflicta, designadamente, no artigo 203 do Código Civil, a começar por imóveis e móveis.
E, quanto às móveis, a definição é meramente residual: são móveis as que não forem imóveis (idem, artigo 205).
E, lido e entendido o artigo 204 do mesmo Código, fácil é constatar que os elevadores, em si próprios, originariamente, são coisas móveis. Mas isto significa que o são como objecto directo de relações jurídicas, dir-se-ia que, ontologicamente, enquanto quid existente isoladamente das restantes coisas. Aliás, o próprio elevador é, ele próprio, um conjunto de elementos que, antes de comporem ou integrarem o elevador, são, eles próprios, passíveis de negócios autónomos; mas, a partir do momento em que componham ou integrem o elevador, é este que existe juridicamente.
Isto nada tem de estranho. Basta pensarmos que os próprios tijolos ou mesmo os quilos de cimento que vêm a compor um edifício começaram por ser coisas com autonomia.
Identicamente acontece, pois, com os elevadores.
Originariamente, são coisas móveis e podem ser comprados e vendidos. Recordemos as hipóteses, ainda que conjecturais, dos museus ou de coleccionadores. Mas, como também já dissemos, não é dessas hipóteses que ora curamos. Se elas vêm à colação é só para se referenciar que, em princípio, os elevadores podem ser objecto de vários tipos de negócios e, à partida, não é rejeitável uma cláusula de reserva de propriedade a favor do fornecedor, na base da possibilidade reflectida no artigo 409 do Código Civil.
Contudo, não deixamos de ter presente que o thema decidendum implica a colocação do elevador em prédio urbano, para servir os respectivos utentes.
E, então, que acontece ao elevador?
Seguramente, perde a sua individualidade.
VI. 2 - Em rigor, a única dúvida que aqui se pode colocar é entre parte componente ou parte integrante.
E, não esquecendo, em tudo isto, que, mais do que falarmos de construção ou de arquitectura, é juridicamente que se trata, estamos com o douto parecer do Ministério Público quando chama a atenção para o facto da imposição legal da existência de elevador em edifício com mais de três pisos (artigo 50 do RGEU) - o que, aliás, é uma exigência carecida de ampliação a bem dos cidadãos idosos ou doentes, para que não estejam "prisioneiros" em suas próprias casas, às vezes até num simples 1.º andar! Nestas situações, o elevador é tão elemento do prédio urbano quanto o vidro de uma janela ou o degrau de uma escada; o que vale por dizer que é parte componente do imóvel, por isso que, sem elevador, o prédio urbano não estaria completo ou adequado para o seu próprio fim (cf. Prof. Doutor M. Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 237).
E, em todas as outras situações (e até naquelas para quem entenda que nunca pode ser parte componente ou constitutiva), seguramente o elevador, após a sua colocação, é parte integrante, nos termos do artigo 204, n. 1, alínea e), do Código Civil, o que significa que, a partir da sua instalação, naturalmente para funcionamento, em prédio urbano, o elevador perde a sua natureza original a passa a fazer parte das coisas imóveis. Aliás, nem nos pode fazer hesitar alguma autonomia física própria das partes integrantes (cf. Prof. Doutor M. Cordeiro, Direitos Reais, I, 280).
E isto não pode deixar de ter consequências jurídicas.
VI. 3 - A ligação de um elevador a um prédio urbano é, finalisticamente, de carácter fixo e permanente, desde as suas máquinas aos cabos, às roldanas, às cabinas, etc.; veja-se o absurdo que seria ter-se o vão do elevador e não se ter o elevador! Absurdo e perigo grave, que já tem dado origem a consequências trágicas e é objecto de legislação específica e cautelar (entre outros diplomas: Decreto-Lei n. 131/88, de 17 de Março, e Portaria n. 269/89, de 11 de Abril). Nesta linha de pensamento, os elevadores presumem-se partes comuns dos condomínios, tal como os pátios e jardins ou casa de porteiro ou garagens, ou como tudo o mais não afectado ao uso exclusivo de um condómino: artigo 1421, n. 2, do Código Civil.
E com isto compagina-se uma clara responsabilidade do proprietário do imóvel onde o elevador funciona: cf. Decreto Regulamentar n. 13/80, de 16 de Maio, e especialmente o Decreto-Lei n. 513/70, de 30 de Outubro.
Tudo vale por dizer que os elevadores, componentes ou integrados num imóvel urbano, por causa deste e para complemento deste, tornam-se tão do proprietário do imóvel de que fazem parte como quaisquer outros elementos que sejam componentes ou integrantes do imóvel, haja a responsabilidade que houver de alguém perante o fornecedor do elevador.
E isto é assim quer por via directa do artigo 1212, n. 2, do Código Civil, quer por força de toda a lógica do sistema, reflectida, naturalmente, nesse complementar artigo 1212, n. 2, do tal Código.
VII - Continuando:
VII. 1 - De tudo o que já se expôs evidencia-se que o elevador é, originariamente, móvel por natureza e o que está em causa é uma situação de ligação finalística entre ele e o prédio correspondente e tal tem carácter de permanência.
Nem se diga que essa permanência pode, em si própria, ser eliminada.
Até uma porta indispensável à existência de um prédio pode, materialmente, ser substituída. A técnica tudo remove, sem que isso signifique que os bens eventualmente substituídos não façam parte do prédio. Até, por exemplo, a canalização da água e do gás ou a conduta de electricidade podem ser substituídas, e decerto ninguém se lembrará de dizer que não fazem parte do prédio.
Já noutro plano - muito mais importante! -, todas as pessoas morrerão um dia, e nem por isso deixam de ter o direito dos direitos, o direito à vida!
Sejamos realistas e deixemo-nos de dogmatismos estéreis. O que importa é o carácter de permanência que é próprio da colocação de um elevador num prédio; não é que fisicamente isso seja eterno até ao fim dos tempos!
VII.2 - Mas, diz-se, importa que a ligação tenha sido estabelecida pelo proprietário do prédio e do elemento integrável.
Desde logo, o próprio Prof. Doutor M. Andrade, que coloca esse pressuposto, fá-lo com as maiores reservas e esclarecimentos, como se pode ver das extensas notas de rodapé a pp. 238 e 239 da Teoria Geral, I, 238. Aqui, o que importa é uma relação objectiva de utilidade e, naturalmente, uma certa conexão jurídica justificativa, que nada tem a ver com a hipótese absurda, que já se referiu, da pretensa "legalização" civilista do que é regido, sim, mas por leis criminais.
Esta matéria foi também objecto de ponderáveis observações do tratadista do direito civil em Portugal que se chamou Cunha Gonçalves (Tratado, III, 59/60).
Nem a lei constituída e aplicável exige o discutido e pretenso pressuposto.
VIII - Onde se volta a falar de ineficácia:
Tudo ponderado, torna-se claro que, embora a cláusula de reserva de propriedade possa ser válida e eficaz quando o elevador é uma coisa móvel por natureza, a partir do momento em que passa a ser parte componente ou integrante de um prédio urbano e, juridicamente, imóvel, ao serviço e sob a propriedade de quem é dono de todo o imóvel, e dos respectivos utentes, tal cláusula torna-se, seguramente, ineficaz e inoponível ao proprietário e aos utentes do imóvel, sem prejuízo da responsabilidade de quem tenha contratado com o fornecedor do elevador, seja qual for essa responsabilidade, obviamente desde que tenha cobertura jurídica.
Tudo isto em consonância com o direito real de propriedade sobre o imóvel.
Naturalmente, na generalidade das situações, releva ainda, embora complementarmente, a boa fé de que gozem o proprietário e os utentes do prédio urbano de que o elevador se tiver tornado parte componente ou integrante.
IX - Finalizando:
De todo o exposto, é manifesto que o acórdão recorrido não suscita, decisoriamente, qualquer alteração, razão por que se mantém e se uniformiza a jurisprudência nos seguintes termos:
A cláusula de reserva de propriedade convencionada em contrato de fornecimento e instalação de elevadores em prédios urbanos torna-se ineficaz logo que se concretize a respectiva instalação.
Custas pela recorrente.
Lisboa 31 de Janeiro de 1966.
Cardona Ferreira,
Ferreira da Silva,
Torres Paulo,
Miguel Montenegro,
Fernando Fabião,
César Marques,
Roger Lopes,
Ramiro Vidigal,
Martins da Costa,
Pais de Sousa,
Miranda Gusmão,
Sá Couto,
Oliveira Branquinho,
Mário Cancela,
Sampaio da Nóvoa,
Costa Marques,
Joaquim de Matos,
Sousa Inês,
Costa Soares,
Machado Soares,
Herculano de Lima,
Metello de Nápoles,
Fernandes de Magalhães,
Lopes Pinto,
Nascimento Costa,
Pereira da Graça,
Aragão Seia,
Amâncio Ferreira,
Almeida e Silva.