Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
571/15.7T8EVR-A.E1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
ACÓRDÃO RECORRIDO
ACORDÃO FUNDAMENTO
TRIBUNAL DA RELAÇÃO
SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
MATÉRIA DE DIREITO
CONCLUSÕES
DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCEDIMENTOS CAUTELARES - RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO / ÓNUS DO RECORRENTE / IMPUGNAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / ALTERAÇÃO DA DECISÃO SOBRE A MATÉRIA DE FACTO / RECURSO DE REVISTA / ADMISSIBILIDADE DA REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO.
Doutrina:
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, 116.
- António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, 40, 42 a 45, nota de rodapé 70, 117.
- Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, 437.
- José Lebre de Freitas/A. Ribeiro Mendes, “Código de Processo Civil” Anotado, 2.ª edição., Tomo I, Volume 3.º, 17.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 154.º, N.º1, 370.º, N.º2, 629.º, N.ºS 2, AL. D), E 3, 639.º, N.º3, 640.º, N.ºS 1 E 2, 662.º, N.ºS 1 A 4, 666.º, N.ºS 1 E 2, 671.º, N.ºS 2, AL. A), E 3, 674.º, N.ºS 1 A 3, E 682.º, N.ºS 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 205.º, N.º1.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO – LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO - LEI DE ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA JUDICIÁRIO (LOSJ): - ARTIGO 46.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 01.10.2015, DE 11.02.2016 E DE 23.02.2016.
-DE 09.06.2016 (PROCESSO N.º 6617/07.5TBCSC.L1.S1), DE 14.07.2016 (PROCESSO N.º 111/12.0TBAVV.G1.S1) E DE 13.10.2016 (PROCESSO N.º 5048/14.5TENT-A.E1.S1), ACESSÍVEIS ATRAVÉS DE WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Em regra, não cabe recurso para o STJ do acórdão do tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art. 370.º, n.º 2, do CPC).

II - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no art. 629.º, n.º 2, do CPC, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do STJ e contradição de julgados.

III - Constatadas as invocadas contradições de acórdãos, há que conhecer do recurso de revista, apesar de ter por objecto o acórdão da Relação proferido no âmbito do procedimento cautelar de arresto.

IV - A contradição de julgados aqui equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito e a definitividade dos arestos-fundamento.

V - A questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos, sido feita de modo diverso.

VI - Não obstante a letra da lei reportar-se apenas a contradição entre acórdãos das Relações, a melhor interpretação da al. d) do art. 629.º, n.º 2, do CPC, é no sentido de incluir também os casos em que o acórdão recorrido se encontra em contradição com acórdão do STJ.

VII - De outro modo, atribuir-se-ia à discordância entre dois acórdãos da Relação um relevo mais significativo do que à discordância entre o acórdão da Relação e acórdão do Supremo Tribunal, admitindo recurso no primeiro caso e negando-o no segundo.

VIII - Considerando que a recorrente observou o ónus fixado no art. 640.º do CPC, justifica-se a anulação do acórdão recorrido e a baixa do processo à Relação, para que aquele Tribunal reaprecie e repondere devidamente a prova, alterando ou mantendo as respostas impugnadas.

IX - No caso de considerar insuficientes as conclusões relativas a matéria de direito, a Relação não deve julgar, de imediato e com esse fundamento (insuficiência), a improcedência da realizada impugnação de direito.

X - O procedimento adequado será dirigir prévio convite ao aperfeiçoamento das conclusões tidas por insuficientes (art. 639.º, n.º 3, do CPC).

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Relatório


I – Por apenso à acção declarativa que instaurou contra AA e BB, CC - Agricultura Biológica, Ldª. requereu o arresto dos bens que relacionou, invocando justo receio da perda da garantia patrimonial do crédito que alegou ter sobre aqueles.

Decretado o arresto, o requerido deduziu oposição e, feita a prova adicional, foi ordenado o levantamento do arresto.

Inconformada, a requerente apelou (impugnando de facto e de direito), sem êxito, tendo a Relação de Évora confirmado o decidido na 1ª instância, e, persistindo inconformada, interpôs recurso de revista excepcional, finalizando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora está em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-10-2015, Relatora Ana Luísa Geraldes, quanto ao exercício do ónus de formular conclusões no que respeita à impugnação da matéria de facto;

2. O douto acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora está em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-07-2015, Relator Fernandes do Vale, quanto ao exercício do ónus de formular conclusões no que respeita a matéria de direito e às consequências do seu incumprimento.

3. No que diz respeito ao ónus de formular conclusões quanto à impugnação da matéria de facto, o Tribunal a quo entendeu que os artigos 637.°, n.° 2 e 640.°, n.° 1 e 2, a), devem ser interpretados no sentido de que os depoimentos que implicam a alteração da decisão da matéria de facto, bem como as passagens da gravação que sustentam tal entendimento, devem constar das conclusões, o que constitui contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 01-10-2015, que considerou que tais elementos apenas devem constar da motivação do recurso.

4. No que diz respeito ao ónus de formular conclusões no que respeita à impugnação da matéria de direito e às consequências do seu incumprimento, o Tribunal a quo entendeu que o artigo 639.° deve ser interpretado no sentido de que a consequência da irregularidade das conclusões formuladas pelo recorrente é a improcedência da impugnação da matéria de direito.

5. Entrando, desta forma, em contradição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09-07-2015, que considerou que, em caso de irregularidade das conclusões, deve o Tribunal proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento, ou ainda, se apesar da irregularidade for possível discernir o sentido das conclusões, conhecer da impugnação de direito.

6. Quanto à questão de mérito, a recorrente discorda do entendimento preconizado pelo Tribunal a quo do conteúdo do ónus de formular conclusões quanto à impugnação da matéria de facto.

7. Entende a recorrente que os artigos 637.°, n.° 2 e 640.°, n.° 1 e 2, a) do CPC devem ser interpretados no sentido de bastar a menção, nas conclusões, dos concretos pontos da matéria de facto que deviam ter sido objecto de decisão diferente por parte do Tribunal.

8. Não sendo necessário que se indiquem os concretos meios probatórios que suportam tal entendimento nas conclusões, bastando que tal fundamentação conste da motivação do recurso.

9. A recorrente discorda igualmente da interpretação efectuada pelo Tribunal a quo do conteúdo do ónus de formular conclusões quanto à impugnação da matéria de direito e das consequências do seu incumprimento.

10. Resulta do disposto no artigo 639.°, e, em especial, do seu n.° 3, que perante a irregularidade das conclusões do recurso, deve o Tribunal proferir despacho de convite ao aperfeiçoamento das mesmas.

11. Não podendo o Tribunal, perante a incapacidade de compreender as conclusões, aceitar conhecer do recurso para se pronunciar no sentido da improcedência da impugnação de direito devido à sua insuficiência.

12. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo violou, pelas razões já aduzidas nas presentes conclusões, o disposto nos artigos 637.°, n.° 2, 639.°, em especial 639.°, n.° 3 e 640.°, n.° 1 e 2, ai. a).

13. Devendo, como tal, o acórdão proferido ser revogado e substituído por outro que convide a recorrente a completar as suas conclusões, no que concerne à matéria de direito, devendo igualmente o Tribunal ad quem pronunciar-se quanto ao conteúdo do ónus de formular conclusões quanto à impugnação da matéria de facto.

Os requeridos não ofereceram contra-alegação e o processo foi presente à formação prevista no art.º 672º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil, que decidiu pela inadmissibilidade da revista excepcional, determinando a sua distribuição como revista normal.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir sobre a invocada contradição de julgados, quanto ao modo de exercício do ónus imposto ao apelante que impugne a decisão da matéria de facto e ainda quanto ao efeito decorrente da insuficiência das conclusões relativas à impugnação de direito.

II - Fundamentação de facto

A factualidade inicialmente dada como indiciariamente demonstrada pela 1ª instância é a seguinte:

a) À requerente pertence o prédio misto situado na Herdade de …, …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Montemor-o-Novo na ficha nº 7…/… da freguesia de Silveiras, inscrito na respectiva matriz sob os artigos 6… (urbano), 4… (urbano) e 1… (rústico), tendo adquirido o mesmo, por escritura datada de 30 de Dezembro de 2011, às suas sócias DD e EE.

b) A requerente tem como objecto social a exploração da indústria agrícola, a transformação e comercialização de derivados de produtos naturais e a produção de vinho e azeite, tendo a sua sede social na Herdade de …, desde o momento da sua constituição.

c) A Herdade de … tem uma área de 121,075 hectares, dos quais 36 hectares são de vinha, 20 hectares são olival de regadio, sendo a restante área coberta por sobro e pasto.

d) No dia 4 de Outubro de 2011, as únicas sócias e gerentes da requerente (DD e EE) e os requeridos celebraram um acordo que denominaram “contrato-promessa de compra e venda” cujo objecto foi o prédio urbano identificado em a).

e) O acordo referido em d) foi designado pelas partes como “Contrato-Promessa de Compra e Venda de Prédio Misto, de Cessão de quotas e de Suprimentos, e de Compra e Venda de Activos Imobilizados e Existências” e os requeridos comprometeram-se a, alternativamente:

“i) Comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, o prédio misto, pelo valor de €600.000,00, a sociedade detida pelas primeiras outorgantes (sócias da ora autora), pelo valor de €1,00, e os suprimentos mencionados no Considerando 4), pelo valor de €299.999,00; ou

ii) Comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, o prédio misto, pelo valor de €600.000,00, e os activos imobilizados e existências detidos pela sociedade, pelo valor de €300.000,00, valor ao qual não acrescerá qualquer montante a título de Imposto sobre o Valor Acrescentado; ou

iii) Comprar, livre de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, e em primeiro lugar, a Sociedade detida pelas primeiras outorgantes (sócias da ora autora), pelo valor de €1,00, e os suprimentos mencionados no Considerando 4), pelo valor de €299.999,00, comprometendo-se igualmente as primeiras outorgantes a vender, posteriormente, o prédio misto a favor dessa sociedade, actualmente responsável pela exploração e gestão do mencionado prédio, pelo valor de €600.000,00”.

f) Nos termos da Cláusula Terceira do acordo referido em d), a escritura pública de compra e venda ou os contratos definitivos deveriam ter sido outorgados até ao dia 31 de Março de 2012.

g) A escritura supra referida ainda não foi celebrada.

h) Encontra-se pendente uma acção (de execução específica) proposta pelos ora requeridos que corre os seus termos sob o número 105/14.OTBMMN na Secção Cível – J2 deste Tribunal, cujo objecto do litígio é o cumprimento do acordo referido em d).

i) Na mesma data (4 de Outubro de 2011), as sócias da requerente (DD e EE) e os requeridos celebraram um acordo que denominaram de “contrato de comodato”.

j) Nos termos da Cláusula Primeira do acordo referido i), as sócias da requerente comprometeram-se: “Entregar gratuitamente aos Segundos Outorgantes o prédio misto para que estes se sirvam dele até ao mês de Março de 2012, podendo ainda fazer seus os frutos colhidos e colher os pendentes, embora suportando os custos de guarda e conservação do prédio misto, nos termos do artigo 1135º, alínea a) do Código Civil”. Mais acordaram as partes que “nesta medida, os Segundos Outorgantes assegurarão o pagamento das despesas de manutenção do prédio misto, designadamente no que respeita aos salários dos Caseiros e Engenheira Agrícola e despesas de telefone, água e electricidade”.

k) Os requeridos passaram a usar o referido prédio urbano a partir do mês de Outubro de 2011.

l) Os requeridos não cuidaram da vinha, pois não recolheram as uvas, não podaram as cepas, não fertilizaram, nem desinfestaram as mesmas.

m) Permitiram o acesso e livre circulação de diversos ruminantes de grande porte que ali se alimentaram, destruindo grande parte da vinha e o sistema de regadio.

n) Os requeridos também não cuidaram do olival, pois não recolheram as azeitonas, não fizeram a poda, nem a sua fertilização e desinfestação, o que determinou o perecimento da maioria das árvores existentes.

o) Desactivaram os sistemas de refrigeração e climatização que asseguravam a conservação do stock de vinho engarrafado e dos restantes produtos embalados existentes no armazém, pertencentes à requerente, o que provocou o perecimento de diversas unidades de vinho engarrafado e produtos embalados.

p) Construíram dezenas de boxes para os seus cavalos, a poucos metros da habitação principal, destruindo por completo os jardins e arranjos exteriores da casa, as suas boas vistas, as condições de higiene e salubridade do local.

q) Fizeram grandes transformações de terras, para construção de um local para treino dos seus cavalos, alterando por completo a morfologia, a qualidade do solo e a paisagem da Herdade.

r) Os requeridos não licenciaram qualquer uma das referidas obras de alterações que realizaram dentro da propriedade da autora.

s) Colocaram a Herdade de … à venda, junto da agência de mediação imobiliária denominada “FF, Sociedade de Mediação Imobiliária, Lda.”, sem qualquer espécie de consulta ou consentimento prévio da requerente.

t) A requerida encomendou à empresa GG, Lda. ração para os seus cavalos, em nome da requerente e sem o seu prévio conhecimento ou autorização, sendo que a referida empresa exigiu da requerente o pagamento da quantia de €3.481,46.

u) Os requeridos destruíram os painéis solares existentes no prédio da requerente.

v) A requerente comunicou aos requeridos a resolução do acordo que denominaram “contrato de comodato”, exigindo-lhes a restituição do prédio e bens que lhe pertencem.

w) A conduta dos requeridos no imóvel identificado em a), determinou a destruição da vinha, com a inerente perda substancial do valor de mercado da Herdade de ….

x) A área afecta a vinha era de cerca de 14 hectares.

y) Atendendo à uva existente no prédio, cada hectare é estimado em cerca de €10.000,00.

z) A conduta dos requeridos no imóvel identificado em a), determinou a destruição do olival, com a inerente perda substancial do valor de mercado da Herdade de ….

aa) A área afecta a olival era de cerca de 20 hectares.

bb) O prédio identificado em a) tem um lago natural que constitui a fonte de alimentação de toda a propriedade da requerente, assegurando dessa forma a sobrevivência da actividade agrícola e animal.

cc) A requerente ficou impedida de facturar a venda da uva desde o mês de Abril de 2013 até ao mês de Março de 2015.

dd) A casa de habitação existente no imóvel tem um valor locatício não inferior a €500,00 por mês.

ee) A vinha antes de ter sido destruída tinha um valor locatício anual de cerca de €15.000,00.

ff) A zona de pasto tem um valor locatício anual de cerca de €1.500,00.

gg) Os requeridos têm várias dívidas a fornecedores, tais como valores relativos a rações animais e serviços veterinários e não pagaram o último ordenado mensal devido ao empregado HH.

hh) A requerida abandonou o prédio identificado em a) em Maio de 2015 e o requerido saiu do mesmo, em Outubro de 2014.

ii) A requerida retirou alguns dos bens existentes na Herdade, tais como alfaias agrícolas, veículos, equipamentos de trabalho agrícola e mobiliário diverso.

Após a produção de prova oferecida com a oposição, foi também considerada assente a factualidade seguinte:

jj) Os requeridos são casados, em regime de separação de bens, encontrando-se a correr termos processo de divórcio, na …, país da nacionalidade de ambos.

kk) Em 4 de Outubro de 2011, na sequência do contrato promessa de compra e venda do prédio misto, de cessão de quotas e de suprimentos e de compra e venda de activos, foi entregue à requerente um sinal de €100.000,00, tendo em 30 de Dezembro de 2011 sido feito um reforço de sinal de mais €100,000,00.

ll) No âmbito dos autos de divórcio e apensos, a correrem termos na …, a requerida impediu a entrada do requerido na Herdade de …, através da obtenção de uma ordem judicial, proferida no Tribunal Holandês, nos termos da qual a referida Herdade foi considerada como casa de morada de família, tendo a sua utilização sido atribuída, em exclusivo, à requerida. Esta sentença é datada de 24 de Março de 2015.

mm) Sendo que ainda em 2014, a requerida expulsou o requerido da Herdade de ….

nn) Proibindo a sua entrada na mesma.

oo) Situação que se manteve até ao momento em que a requerida abandonou Portugal.

pp) Tendo o requerido vindo a tomar conhecimento de que, no Verão de 2015, a requerida havia abandonado Portugal, tendo consequentemente abandonado a Herdade de ….

qq) A requerida levou consigo os animais e mobília de casa, que se encontravam na Herdade de ….

rr) Tendo o requerido deslocado-se à mesma Herdade e tendo confirmado que esta havia efectivamente abandonado o local.

ss) A requerente fechou os portões da Herdade, por forma a tentar impedir que o requerido lá entre, tendo inclusivamente o Senhor II, representante da requerente, chamado a GNR para forçar o requerido a abandonar a Herdade.

tt) O requerido, durante o tempo em que habitou na Herdade de …, nunca deixou de pagar os consumos de água e de electricidade.

uu) Durante o tempo em que o requerido habitou na Herdade de …, as rações nunca ficaram por pagar.

vv) Desde sempre, o objectivo dos requeridos para a Herdade de … foi a exploração de cavalos e não a olivicultura ou a vitivinicultura.

ww) O que era do conhecimento das promitentes vendedoras e da requerente.

xx) Os estábulos e picadeiros foram construídos com o consentimento da requerente e/ou das suas sócias.

yy) JJ, Engenheira da CC que tinha poderes para movimentar as contas da requerente, servia de intermediária entre requerente e requeridos, comunicando à requerente as intenções que lhe eram transmitidas pelos requeridos, no que toca a projectos a realizar na Herdade.

zz) JJ apresentou aos requeridos a empresa que fez as movimentações de terra e terraplanagens necessárias para a construção dos picadeiros.

aaa) A JJ esteve presente, aquando da negociação com a referida empresa do preço final pelos trabalhos a realizar, quando tal negociação foi fechada pelo requerido.

bbb) DD, sócia da requerente, assinou um pedido de abate de sobreiros, para efeitos de realização de obras na Herdade.

ccc) Os estábulos encontram-se situados a centenas de metros do referido lago natural, pelo que a contaminação da água nunca poderia ter decorrido da descarga dos esgotos provenientes dos estábulos.

ddd) O requerido é ..., estando a exercer a sua profissão e auferindo rendimentos dos serviços que presta.

eee) Ao requerido não são conhecidas outras dívidas (para além do crédito alegado pela requerente), nem empréstimos bancários.

fff) O requerido é proprietário de veículos automóveis e motos.

ggg) O requerido é ainda proprietário de várias peças de arte.

hhh) É falso que o paradeiro dos requeridos seja desconhecido.

     Após a produção de prova oferecida com a oposição, foram considerados não provados os seguintes factos que inicialmente haviam sido tidos por assentes:

1) A encomenda de rações referida em t) foi efectuada pelo requerido.

2) O paradeiro dos requeridos é desconhecido.

3) Também é desconhecida a existência de qualquer património dos requeridos ou fontes de rendimento.

4) Os únicos bens que, neste momento, lhes são conhecidos são os bens móveis que ainda se encontram na Herdade de ….   


III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente (art.ºs 635º, n.º 4 , e 639º, n.º 1, do Cód. de Proc. Civil[1]), resumem-se à análise e dilucidação da única questão jurídica por ela colocada a este tribunal e que consiste em determinar se existe contradição de julgados no que concerne à observância do ónus imposto ao apelante que impugne a decisão da matéria de facto e ainda quanto ao efeito decorrente da insuficiência das conclusões relativas à impugnação de direito.

Antes de entrar na abordagem dessa questão, importa esclarecer que, em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil). Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados. Não se verificando qualquer uma destas situações excepcionais permissivas da revista «atípica», não será de admitir recurso para o Supremo Tribunal tendo por objecto o acórdão da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares.

A presente revista tem por fundamento precisamente a oposição de julgados, impondo-se, por isso, verificar se ocorre essa condição de admissibilidade do recurso, que, frise-se, não é prejudicada sequer pela limitação recursória decorrente da dupla conforme (art.º 671º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil)[2].

Como se sabe, a contradição aqui equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito e a definitividade dos arestos-fundamento, sendo que a questão de direito fundamental só é a mesma quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso[3].

A contradição invocada pela recorrente respeita, em primeiro lugar, ao conteúdo das conclusões referentes à impugnação da matéria de facto e resulta de, no acórdão recorrido, se ter entendido que delas deve constar não só a especificação dos factos considerados incorrectamente julgados, mas também a identificação dos depoimentos produzidos que infirmem a decisão e as passagens da gravação que a sustentam, o que contraria o decidido, a tal respeito, pelos três acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça que certificou, com nota o respectivo trânsito em julgado, e que datam de 01.10.2015 (Relatora Consª Ana Luísa Geraldes), de 11.02.2016 (Relator Consº Mário Belo Morgado) e de 23.02.2016 (Relator Consº Fonseca Ramos).

Analisados estes arestos, vemos que neles foi perfilhado diferente entendimento que surge espelhado nestes excertos:

a)”…Servindo as conclusões para delimitar o objecto do recurso, devem nelas ser identificadas com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação; quanto aos demais requisitos, basta que constem de forma explícita na motivação do recurso. (...) Com efeito, o ónus a cargo do recorrente consagrado no art. 640.°, do Novo CPC, não exige que as especificações referidas no seu n° 1, constem todas das conclusões do recurso, mostrando-se cumprido desde que nas conclusões sejam identificados com precisão os pontos de facto que são objecto de impugnação" (Relatora Consª Ana Luísa Geraldes);

b) “Tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna" (Relator Consº Mário Belo Morgado); e

c) “Não se exige ao recorrente, no recurso de apelação, quando impugna o julgamento da matéria de facto, que reproduza nas conclusões tudo o que alegou no corpo alegatório e preenche os requisitos enunciados no art. 690.°-A, n.° 1, ais. a) e b), e n.° 2, do Código de Processo Civil, o que tornaria as conclusões, as mais das vezes, não numa síntese, mas numa complexa e prolixa enunciação repetida do que afirmara. Esta consideração não dispensa, todavia, o recorrente de nas conclusões fazer alusão àquela pretensão sobre o objecto do recurso, mais não seja pela resumida indicação dos pontos concretos que pretende ver reapreciados, de modo a que delas resulte, inquestionavelmente, que pretende impugnar o julgamento da matéria de facto" (Relator Consº Fonseca Ramos).

Este entendimento colide frontalmente com o decidido no acórdão recorrido que, no tocante à impugnação da decisão da matéria de facto, exigiu que as conclusões contivessem todos os elementos indicados nas várias alíneas do n.º 1 do art.º 640º do Cód. Proc. Civil, contradição essa que, nos termos dos art.ºs 629º, n.º 2, alínea d), e 671º, n.º 2, alínea a), ambos do Cód. Proc. Civil, abre, sem mais, a porta recursória de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça.

Cabe assinalar que, não obstante a letra da lei reportar-se apenas a contradição entre acórdãos das Relações, a melhor interpretação da alínea d) do art.º 629°, n.° 2, do Cód. Proc. Civil, é no sentido de incluir também os casos em que o acórdão recorrido se encontra em contradição com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça[4]. Seria, na realidade, incompreensível não admitir o recurso neste caso, o que implicaria atribuir à discordância entre dois acórdãos da Relação um relevo mais significativo do que à discordância entre o acórdão da Relação e acórdão do Supremo Tribunal, chegando-se mesmo ao limite de se admitir recurso no primeiro caso, e de o negar no segundo.

Tal resultado interpretativo é manifestamente inaceitável, devendo, pois, o artigo 629°, n.° 2, alínea d), do Cód. Proc. Civil, ser interpretado extensivamente, no sentido de incluir as hipóteses em que o acórdão da Relação se encontra em contradição com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

Definido que o recurso de revista é admissível, viremos a nossa atenção para a análise da forma como o Tribunal a quo reapreciou os pontos da matéria de facto impugnados pela recorrente, tendo presente que a competência para apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio radica nas instâncias e que ao Supremo Tribunal de Justiça cabe, salvo situações de excepção legalmente previstas, conhecer apenas da matéria de direito, aplicando o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados (cfr. art.º 46.º da Lei de Organização do Sistema Judiciário – Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto - e art.ºs 662º, n.º 4, 674º, n.ºs 1 a 3, e 682º, n.ºs 1 e 2, do Cód. de Proc. Civil).

Contudo, se ao Supremo Tribunal de Justiça é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer (art.º 662º,n.ºs 1 a 4, do Cód. de Proc. Civil), pois, nesse caso, do que se tratará é de saber se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria, o que, no fundo, constitui matéria de direito, caindo, por isso, na esfera de competência própria e normal do Supremo Tribunal de Justiça.

Vejamos, então, a questão, nessa óptica, levando também em conta que, como tem sido insistentemente observado pela jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça em numerosos arestos, a evolução legislativa encetada em 1995 alterou os objectivos que inicialmente foram projectados para os Tribunais de Relação. Assim, a um modelo inicial (art.º 712º do Cód. Proc. Civil de 1961) em que se previa que “as respostas do Tribunal Colectivo não podem ser alteradas pela Relação, salvo ...”, sucedeu outro (art.º 712º do Cód. Proc. Civil de 1961, alterado pela Reforma de 1995/96) em que se proclamava que “a decisão do Tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação ...” e estabelece-se agora (art.º 662º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil) que “a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto…”.

A par desse acentuado reforço de poderes dos Tribunais de Relação,   possibilitou-se ainda o registo da audiência de discussão e julgamento, com gravação integral da prova produzida (DL n.º 39/95, de 15/02), facultando, desse modo, às partes o exercício do respectivo controlo e proporcionando-lhes o recurso a um verdadeiro e duplo grau de jurisdição em matéria de facto, na medida em que lhes conferiu uma maior e mais eficaz possibilidade de reagir contra eventuais erros do julgador de 1ª instância. Ainda com o objectivo de concretizar e modelar o duplo grau de jurisdição sobre a decisão da matéria de facto foram aditados ao Código de Processo Civil um conjunto de normas relativas ao registo dos depoimentos - art.ºs 512º n.º 1, 522º- A, 552º-B , 522º-C e 690ºA) - e consagrou-se, como regime-regra, a gravação da prova produzida em audiência de julgamento, permitindo uma verdadeira e conscienciosa reapreciação da decisão de facto ditada na primeira instância (DL nº 183/2000, de 10/08).

Porém, procurando inibir divagações dos sujeitos processuais e evitar impugnações genéricas ou generalizadoras da decisão referente à matéria de facto, impôs-se ao recorrente o ónus (entre outros) de especificar os concretos pontos dessa matéria que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizados que imponham decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto em dissensão (cfr. anterior art.º 690.º-A do Cód. Proc. Civil) e ainda a indicação da decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões da facto impugnadas (cfr. actual art.º 640º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil).

Perante tais exigências em ordem a frear e moderar o impulso recursivo das partes, o recorrente terá que ser meticuloso e parcimonioso na forma como procede à análise e à impugnação da decisão da matéria de facto, mas, em contrapartida, o tribunal de recurso deverá também debruçar-se sobre os diferentes pontos da matéria de facto questionados pelo recorrente, fazendo recair a sua análise crítica e incisiva sobre os meios probatórios por ele indicados, ou seja, terá de revisitar as provas em que o recorrente se abonou e, de seguida, atestar ou infirmar a razão probatória em que se fundamentou a 1ª instância para dar ou não como provado determinado facto. Pretende-se, como já resultava do art.º 712º, n.º 2, e agora mais vincadamente evidencia o art.º 666º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil, que o Tribunal de 2ª instância faça, ainda que restrito aos pontos questionados, o seu julgamento dessa matéria de facto, com emissão da sua própria convicção, que pode coincidir ou não com a da 1ª instância, assim, se assegurando o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto.

Posto isto, apreciemos se, no caso, foram exercitados pela Relação os seus atinentes poderes funcionais e foram observados os adequados procedimentos, para o que haverá que atentar que a recorrente impugnou, na apelação que levou àquela instância, diversos pontos da decisão da matéria de facto, tendo rematado a sua alegação recursória, entre outras, com as conclusões que se transcrevem:

(……) 2ª A presente apelação incide sobre a matéria de direito, mas também sobre a decisão sobre a matéria de facto.

3ª Entende a Apelante que o Requerido não logrou provar encontrar-se numa situação económico-financeira que afaste a aplicabilidade, in casu, da figura do arresto.

4ª Os factos constantes das alíneas ddd), fff) e ggg), alegados na oposição deduzida, devem considerar-se como não provados.

5ª E, consequentemente, deverão considerar-se como provados os factos 3) e 4) (factos que haviam sido dados como assentes na decisão de fls. 34 a 42, mas que face às novas provas produzidas, o Tribunal a quo considerou como não provados).

6ª A douta decisão sobre a matéria de facto é contraditória porque considerou provado que os Requeridos têm várias dívidas a fornecedores, tais como valores relativos a rações de animais e serviços de veterinário e não pagaram o último ordenado mensal devido ao empregado HH - alínea gg) dos factos dados como assentes na decisão de fls. 34 a 42,.

7ª Ainda que se considerasse, o que não se admite, ser o proprietário de vários ativos patrimoniais, tais ativos situar-se-iam fora de Portugal.

8ª Tal facto obstaculiza de forma significativa, porventura não ultrapassável, a cobrança do crédito por parte da Apelante. Pelo que, não deixariam de estar verificados os pressupostos do arresto.

9ª Ainda que fosse correta a apreciação do Tribunal a quo quanto ao cumprimento dos pressupostos do arresto em relação ao Apelado AA, o arresto deveria ter sido mantido em relação à Apelada BB, visto estarem manifestamente cumpridos os pressupostos que determinaram inicialmente o decretamento do arresto.

10ª A douta decisão recorrida interpretou erradamente o disposto nos artigos 368.º, número 1, 372.º, número 3, 391.º, número 1, 414º, 607.º, número 5 do Código do Processo Civil e violou o disposto nos artigos 512.º, número 1 e 519.º, número 1, 364º, número 1. do Código Civil, artigo 5.º, número 1, a) do Decreto-Lei 54/75, de 12 de Fevereiro e artigo 25.º do Regulamento do Registo Automóvel, Decreto n.º 55/75, de 12 de Fevereiro.

11ª Neste sentido, deverá a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que mantenha o arresto já decretado.

 (…..).

Estes excertos conclusivos são ainda precedidos, conforme se alcança de folhas 286 a 299 (frente e verso), de um extenso corpo alegatório, do qual consta a transcrição das passagens do depoimento da testemunha KK, com referência à sessão da audiência em que foi prestado e à gravação, a indicação dos documentos em que se baseia e também as considerações que a recorrente teceu sobre o contexto e valoração dos mesmos. Por sua vez, o recorrido ofereceu também, no que toca aos pontos da matéria de facto impugnados, contra-alegação (cfr. folhas 327 a 348), onde avançou com argumentação tendente a rebater a leitura e valoração feitas pela recorrente, transcrevendo também as declarações de parte.

Ora, perante essa panóplia de argumentos e contra-argumentos, transcrições de depoimentos gravados e alusão a documentos juntos, a Relação de Évora, depois de enunciar e citar legislação e doutrina sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, ónus que recai sobre o impugnante e reapreciação da prova a realizar pela 2ª instância, conclui que «a recorrente não cumpre este ónus ao fazer a sua impugnação de facto nas conclusões. Apreciando as conclusões da recorrente, verificamos que esta, especificando embora os factos que considera incorretamente julgados, não identifica os depoimentos produzidos que infirmem os factos dados como provados, nem as eventuais passagens da gravação que os sustentam», e, sem se debruçar sobre qualquer concreto meio probatório, adianta que «toda a motivação se encontra devidamente alicerçada em documentos e depoimentos sem descuidar a fundamentação das operações de carácter racional e psicológica que o princípio da prova livre exige. Atuou a Exmª Juiz no âmbito da faculdade concedida pelo art. 607 nº5 e, através da fundamentação que apresentou, o referido controlo foi absolutamente atingido – nº4 do mesmo artigo. Quando o tribunal julga a matéria de facto, deve fazê-lo numa medida de convicção necessária, levando em consideração as regras da lógica e da experiência, de que todo o juiz dispõe em alguma medida, de que necessita e deve utilizar na sua atividade e a Exmª Juiz na apreciação que fez da prova expressou-a inequivocamente. Face ao exposto, improcede a impugnação feita pela recorrente».

A metodologia usada e sinteticamente retratada nas passagens transcritas revela bem que a Relação, escudando-se em considerações genéricas e abstractas, não procedeu, como devia, à concreta análise dos meios probatórios indicados pelas partes, não expressando qualquer argumento próprio e original, nem concretizando qualquer referência ao conteúdo dos depoimentos e dos documentos, relacionando-o com os pontos de facto que a recorrente questionou e não tocando, nem sequer ao de leve, em qualquer das dúvidas, sérias, suscitadas nas alegações da apelação sobre os indicados itens.

Cabia à Relação proceder à efectiva reponderação da prova produzida, expressando a sua própria convicção, a qual teria de passar pela análise crítica dos depoimentos e prova documental indicada pela recorrente e reapreciação, no caso, do valor probatório de cada um, com explicitação clara dos resultados desse escrutínio e afirmação, devidamente justificada, da existência ou inexistência de erro de julgamento da matéria de facto. Mais, deveria ter explicitado as razões que objectivamente a determinaram a não dar como provados ou a mantê-los intocados os aludidos factos impugnados, indicando, com o detalhe possível, as razões e elementos de tal convencimento, de modo a perceber-se o raciocínio lógico que conduziu a essa resposta. Só, desse modo, se poderá considerar que efectuou a sua própria valoração das provas questionadas e a sua própria análise crítica dessas provas e que assegurou, em termos práticos, o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

É manifesto que nada disso foi observado no acórdão recorrido que, de início, começou por afirmar a inobservância do ónus que impende sobre o impugnante da decisão da matéria de facto (art.º 640º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil), para se quedar, depois, por um juízo meramente conclusivo ou inconcludente, genérico e abstracto, sem nada dizer sobre a concreta actividade de reponderação a que se terá efectivamente procedido, juízo esse que não pode ser considerado como fundamentação bastante ou suficiente (art.ºs 205º, n.º 1, da CRP, 154º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil).

O procedimento adoptado pela Relação envolve, para além de manifesta insuficiência de fundamentação, a clara violação das apontadas disposições legais que visam garantir o efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, que não se basta nem fica devidamente salvaguardado com a muito genérica e abstracta apreciação realizada em que de relevante apenas se remete para a motivação/fundamentação elaborada pela 1ª instância.

Nesta conformidade, procedem as conclusões da recorrente e, considerando que esta observou o ónus fixado no art.º 640º do Cód. Proc. Civil, justifica-se que consequentemente se determine a anulação do acórdão recorrido e a baixa do processo à Relação, para que aquele Tribunal reaprecie e repondere devidamente a prova, em ordem a formar convicção própria, alterando ou mantendo as respostas impugnadas, nos termos atrás referidos.

Além da já referida e analisada contradição, a recorrente indicou também como conditio da admissibilidade do recurso a frontal oposição do acórdão recorrido e do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.07.2015 (Relator Consº. Fernandes do Vale), quanto ao efeito decorrente da notória insuficiência das conclusões relativas à impugnação de direito. Também esta contradição se mostra patente e óbvia, pois perante tal situação (notória insuficiência das conclusões), o acórdão recorrido entendeu que lhe fora retirada a possibilidade de qualquer análise e, nessa conformidade, determinou, sem mais, a improcedência da impugnação de direito efetuada, enquanto o aludido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, na senda de outros, considera que há lugar a convite prévio, nos termos do n.º 3 do art.º 639º do Cód. Proc. Civil.

A constatada contradição abre também, nos termos já indicados - art.ºs 629º, n.º 2, alínea d), e 671º, n.º 2, alínea a), ambos do Cód. Proc. Civil - a porta recursória de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, cabendo adiantar que as já transcritas conclusões referentes à apelação, conjugadas com a retórica argumentativa constante do respectivo corpo alegatório, apresentam-se suficientes para apreciar a questão de direito suscitada sobre a verificação dos pressupostos do arresto, o que deveria ter sido feito no acórdão recorrido. E, ainda que possam ser consideradas insuficientes, o procedimento adequado será dirigir prévio convite ao aperfeiçoamento (art.º 639º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil) e não julgar, de imediato e com fundamento na insuficiência, a improcedência da realizada impugnação de direito[5].

Procedem, pois, também neste ponto as conclusões da recorrente.


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2 - Pode, assim, concluir-se, em síntese, que:

1 - Em regra, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares (art.º 370º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil).

2 - Essa regra de irrecorribilidade é, contudo, excepcionada se invocada alguma das situações elencadas no artigo 629º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra a jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

3 – Constatadas as invocadas contradições de acórdãos, há que conhecer do recurso de revista, apesar de ter por objecto o acórdão da Relação proferido no âmbito do procedimento cautelar de arresto.

4 - A contradição de julgados aqui equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso de revista pressupõe, além de mais, pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito e a definitividade dos arestos-fundamento.

5 - A questão de direito fundamental só é a mesma, para este efeito, quando a subsunção do mesmo núcleo factual seja idêntica (ou coincidente), mas tenha, em termos de interpretação e aplicação dos preceitos sido feita de modo diverso.

6 - Não obstante a letra da lei reportar-se apenas a contradição entre acórdãos das Relações, a melhor interpretação da alínea d) do art.º 629°, n.° 2, do Cód. Proc. Civil, é no sentido de incluir também os casos em que o acórdão recorrido se encontra em contradição com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.

7 – De outro modo, atribuir-se-ia à discordância entre dois acórdãos da Relação um relevo mais significativo do que à discordância entre o acórdão da Relação e acórdão do Supremo Tribunal, admitindo recurso no primeiro caso e negando-o no segundo.

8 - Considerando que a recorrente observou o ónus fixado no art.º 640º do Cód. Proc. Civil, justifica-se a anulação do acórdão recorrido e a baixa do processo à Relação, para que aquele Tribunal reaprecie e repondere devidamente a prova, alterando ou mantendo as respostas impugnadas.

9 – No caso de considerar insuficientes as conclusões relativas a matéria de direito, a Relação não deve julgar, de imediato e com esse fundamento (insuficiência), a improcedência da realizada impugnação de direito.

10 - O procedimento adequado será dirigir prévio convite ao aperfeiçoamento das conclusões tidas por insuficientes (art.º 639º, n.º 3, do Cód. Proc. Civil).


IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se conceder a revista e anular consequentemente o acórdão recorrido, determinando-se que a Relação, se possível com intervenção dos mesmos Juízes Desembargadores, aprecie, nos moldes sobreditos, a impugnação da matéria de facto e de direito feita na apelação, dirigindo, se considerar necessário, prévio convite à completude das conclusões, no que toca à matéria de direito.

Custas pela parte vencida na final.


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Lisboa, 24 de Novembro de 2016


António Piçarra (relator)

Fernanda Isabel Pereira

Olindo Geraldes

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[1] Na versão aprovada pela Lei nº 41/2013, de 26 de Junho, uma vez que o recurso tem por objecto decisão proferida já depois de 01 de Setembro de 2013 e o processo é posterior a 01 de Janeiro de 2008 (cfr. os seus art.ºs 5º, n.º 1, 7º, n.º 1, e 8º).
[2] Cfr, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 40.
[3] Cfr, neste sentido, Amâncio Ferreira, in Manual dos Recursos em Processo Civil, 8.ª edição, pág. 116, José Lebre de Freitas/A. Ribeiro Mendes, in Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição., Tomo I, Volume 3.º, pág. 17, e António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, págs. 42 a 44.
[4] Cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2013, pág. 45, nota de rodapé 70.
[5] Cfr, neste sentido, Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, Almedina, pág. 437, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, pág. 117, acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09.06.2016 (processo 6617/07.5TBCSC.L1.S1), de 14.07.2016 (processo 111/12.0TBAVV.G1.S1) e de 13.10.2016 (processo 5048/14.5TENT-A.E1.S1), acessíveis através de www.dgsi.pt.