Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19931/19.8T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LEONEL SERÔDIO
Descritores: IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
EXAME CRÍTICO DAS PROVAS
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PROVA PERICIAL
Data do Acordão: 01/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- O artigo 662º n.º 1 do CPC implica que a fundamentação do acórdão recorrido seja adequada e suficiente para que se possa concluir que reavaliou os meios de prova indicados pelas partes e reponderou as questões de facto suscitadas.


II- A análise crítica da prova a que se refere o artigo 607º n.º 4 do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não tem de ser exaustiva e não tem de rebater todos os argumentos do impugnante, sendo suficiente que o acórdão se pronuncie sobre os meios probatórios indicados pelas partes e indique as razões por que manteve ou alterou a decisão da 1ª instância, quanto à factualidade impugnada.


III- Estando subtraído ao STJ reapreciar a matéria de facto que a Relação julgou ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, não pode escrutinar se a reapreciação prova foi ou não errada e se corresponde à exata e correta apreciação da prova produzida, designadamente a prova pericial.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 19931/19.8T8PRT.P1. S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório


AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra AP – Águas de Paredes, S.A. e AV – Águas de Valongo, S.A., pedindo a condenação da 1.ª ré, Águas de Paredes no pagamento da quantia global de 155.920,50 €, bem como nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento, à taxa legal máxima sobre as supra referidas quantias, desde a data do respetivo vencimento e da 2.ª ré, Águas de Valongo, no pagamento da quantia global de 131.571.01 €, bem como nos juros vincendos até efetivo e integral pagamento à taxa legal máxima sobre as supra referidas quantias, desde a data do respetivo vencimento.


Alegou, em síntese, ter celebrado com as rés contratos de prestação de serviço, mediante o qual assumiu a obrigação de tratar das dívidas de terceiros junto das rés, mediante o pagamento de uma remuneração mensal, à qual acrescia, anualmente, um prémio se ultrapassasse a taxa de sucesso na cobrança das dívidas. Esses contratos prologaram-se por vários anos e cessaram por denúncia das rés, que não lhe pagaram nenhum dos montantes devidos a título de retribuição adicional, não obstante as interpelações para o efeito.


As rés na contestação alegaram, em síntese, não assistir à autora o direito ao prémio, porque a sua atividade e desempenho nunca alcançou os mínimos que justificassem a atribuição do prémio e alegaram, ainda, não serem devidos os demais valores reclamados, estando a autora obrigada a prestar contas o que não fez.


O processo prosseguiu os seus termos e oportunamente procedeu-se à audiência de julgamento e, de seguida, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e condenou:


a) A ré AP – Águas de Paredes, S.A., a pagar à autora, AA, a quantia de € 89 898,71 (oitenta e nove mil oitocentos e noventa e oito euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data de notificação da sentença e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento venha a vigorar por força da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil;


b) A ré AV – Águas de Valongo, S.A. a pagar à autora a quantia de € 97 004,12 (noventa e sete mil e quatro euros e doze cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data de notificação da sentença e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento venha a vigorar por força da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil.


As rés apelaram e a autora interpôs recurso subordinado.


Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto de 25.09.2023, os recursos principal e subordinado foram julgados improcedentes e confirmada a sentença recorrida.


As rés interpuseram revista e terminaram as suas alegações com as seguintes conclusões que se transcrevem:


“ i) Da decisão de segunda instância, proferida em recurso, que julga improcedente a reapreciação da decisão facto, em violação ou com errada aplicação da lei do processo, cabe recurso ordinário de revista, nos termos do artigo 674º, nº 1, al. b) do CPC.


ii) O acórdão recorrido violou o regime de modificabilidade da decisão de facto, consagrado no artigo 662º do CPC, conjugado com os nºs 4 e 5 do artigo 607º do CPC, porquanto (a) não procedeu a uma efectiva reapreciação da decisão de facto, como constituía seu dever, (b) incorrendo ainda em violação das normas relativas a direito probatório material na dimensão atinente ao objecto e valor da prova pericial.


iii) O acórdão recorrido não concretiza conteúdos declarativos passiveis de ser interpretados, quer por referência a prova documental (contratos) quer à prova por declarações (de parte e das testemunhas), conteúdos que também não analisa criticamente, remetendo para o juízo de primeira instância.


iv) O acórdão recorrido remete acriticamente para os esclarecimentos dos peritos, sem que sobre os juízos formulados desenvolva um qualquer racional argumentativo ou dedutivo, com a agravante de atribuir aos peritos juízos que não foram elaborados pelos próprios, antes se identificam como juízos formulados pela primeira instância sem natureza pericial.


v) A circunscrição da aplicabilidade dos poderes de alteração da decisão de facto aos casos de “flagrante desconformidade”, e para mais com fundamento em jurisprudência do início do século, traduz o uso não efectivo dos poderes tal como consagrados no actual CPC.


vi) Na reapreciação dos factos provados 9 e 26, constante de fls 64 do acórdão, não se identifica uma qualquer matriz crítica, objectiva e analítica, devidamente fundamentada, incluindo por referência e ponderação dos elementos essenciais do(s) contrato(s).


vii) É, no mínimo, de exigir que na reapreciação o tribunal de segunda instância apresente uma qualquer fundamentação que legitime o entendimento de que o prémio, num contrato anual, seria devido independentemente de qualquer limite temporal, até porque a ausência de um limite temporal contraria o sentido normal da declaração e todas as regras da experiência em matéria de atribuição de prémios de desempenho.


viii) Sem limite temporal deixa de se poder falar de prémio, por inexistência de referencial de avaliação do desempenho, pelo que é não satisfatória a fórmula “entendemos contudo” adoptada no acórdão para decidir a questão, ficando por cumprir o regime do artigo 607º, nº 4 do CPC.


ix) Na reapreciação dos factos provados 12, 13, 14, 29, 30 e 31 o tribunal deixou de conhecer efectivamente a questão da necessária integração dos dados de facto apurados pelos peritos, incluindo quanto à questão nuclear do apuramento das taxas de sucesso e ficcionou como prova pericial (atribuindo aos peritos declarações que estes não formularam sobre o conceito de “dívida atual”) o que não passa de consideração de direito da responsabilidade do tribunal de primeira instância.


x) É falsa a afirmação do acórdão que atribui aos peritos a definição do sentido das cláusulas relativas ao conceito de divida atual para cálculo do prémio de desempenho.


xi) Desconsiderando parte dos resultados alcançados pelos peritos [colunas “O”, “P” e “Q” da tabela dos peritos] as instâncias, ambas as instâncias, violarem o regime dos artigos 388º e 389º do Código Civil.


xii) Os peritos não concluíram, nem sugeriram, nem poderiam concluir ou sugerir, substituindo-se ao tribunal, qual o critério que expressa de forma mais justa a realidade da relação contratual.


xiii) A não valoração, infundamentada e injustificada, dos dados de facto consignados nas colunas “O”, “P” e “Q” das tabelas de fls 15 e 23 do relatório pericial, importa a violação do regime do artigo 607º, nº 4 do CPC.


xiv) A atribuição ao relatório pericial de força probatória quanto a matérias que não constam do próprio relatório, exorbitam do objecto da perícia realizada e das competências técnicas e científicas dos peritos, conferindo a conclusões (de direito) efectuadas pela primeira instância o valor de juízo pericial, importa a violação das regras probatórias de direito material consagradas nos artigos 388º e 389º do CC , aplicáveis também por força do regime do artigo 662º, nº 1 do CPC.


xv) O acórdão recorrido “socorre-se” (mal) do relatório pericial para evitar formular o juízo próprio que, nos termos da lei do processo, lhe cabia efectuar, tendo deixado por efectuar a efectiva reapreciação do julgamento de facto quanto aos pontos 12, 13, 29 e 30 fixados na primeira instância, incluindo quanto à necessidade de consideração do teor das colunas “O”, “P” e “Q” das tabelas dos peritos.


xvi) Na reapreciação dos factos provados 14 e 31 (relativos à cobrança de juros, penas contratuais e despesas extrajudiciais) o acórdão considera, em parágrafos sucessivos, que (a) os montantes correspondem a “valores certos” apurados pelos peritos, (b) mas também que estes “não conseguiram apurar em concreto os valores” (os quais foram extrapolados), contradição esta na fundamentação de que resulta a ininteligibilidade do julgamento efectuado.


xvii) A contradição nos termos da fundamentação traduz mau uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto pela segunda instância.


xviii) Na reapreciação do facto não provado 48 o acórdão invoca o regime do artigo 5º do CPC que, não obstante, viola por duas vezes no julgamento efectuado, porquanto desconsiderou quer a alegação da Autora (nºs 29 e 80 da petição), quer a alegação das Rés (nº 31 da contestação).


xix) As instâncias substituíram a alegação pelas partes de factos objectivos, com correspondência em realidades externas - pedido, solicitação ou reclamação do pagamento de prémios -, pela afirmação de um facto subjectivo, sem aquela correspondência em realidade externa - mencionar às Rés o desejo – do que decorre a violação da norma do artigo 5º do CPC.


xx) Violação agravada pela atribuição à resposta negativa, e para mais de facto negativo – não provado que não mencionou o desejo – de um sentido e alcance positivo para a resposta (como resulta das referências efectuadas às declarações de testemunhas aludindo a desejo mencionado em reunião anterior)


xxi) A falta de conhecimento pela Relação da questão da (não) reclamação pela Autora do pagamento de prémios pelas sociedades Rés integra vício da decisão da matéria de facto em segunda instância que deve ser conhecido e declarado, importando, também este, a violação do regime do artigo 662º do CPC.”


A final pede se anule o acórdão recorrido do Tribunal da Relação do Porto e se determine o reenvio do processo para novo julgamento em segunda instância.


A A contra-alegou, pugnando pela improcedência da revista.


Colhidos os vistos, cumpre decidir:


FUNDAMENTAÇÃO


Questões a decidir:


Admissibilidade ou não do recurso;


Se, na apreciação da decisão sobre o recurso sobre a matéria de facto, o acórdão recorrido incorreu em violação do artigo 662.º n.º1 do CPC e do disposto nos artigos 5º do CPC e 388º e 389.º do CC.


Factos julgados provados e não provados nas instâncias:

1. As partes


1 A ré AP – Águas de Paredes, S.A. (adiante, Águas de Paredes) tem por objeto as atividades de gestão e exploração de infraestruturas de águas e águas residuais, com o escopo lucrativo.


2 A ré AV – Águas de Valongo, S.A. (adiante, Águas de Valongo) tem por objeto as atividades de gestão e exploração de infraestruturas de águas e águas residuais, com o escopo lucrativo.


3 A autora é advogada.


2. Relação entre a autora e a Águas de Paredes


2.1. Estabelecimento da relação entre a autora e a Águas de Paredes


4 Em 1 de agosto de 2006, a autora e a Águas de Paredes subscreveram o documento intitulado “Contrato de prestação de serviços”, junto a fls. 16, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


1ª Cláusula (Objeto)


A Primeira outorgante contrata a Segunda outorgante, como trabalhadora independente, para prestar serviços de tratamento de dívidas de terceiros. (…)


2ª Cláusula (Obrigações)

(…)

2. A Segunda outorgante garante 80% de taxa de sucesso no cumprimento do acordo com o cliente, na dívida com valores superiores a 50 € e inferiores a 500 €. (…)


4.ª Cláusula (Honorários)


Pela prestação dos seus serviços a que se refere a cláusula 1.ª, a Primeira outorgante obriga-se a pagar à Segunda outorgante a quantia de 950,00 € (Novecentos e cinquenta euros), acrescido do valor do I.V.A. à taxa legal em vigor, mediante apresentação do recibo na A.P. – Águas de Paredes, S. A, no primeiro dia útil de cada mês, sendo o pagamento efetuado a trinta dias. (…)


6.ª Cláusula (Compensação)


Se ultrapassar o previsto no n.º 2 da 2.ª cláusula, a Segunda outorgante receberá a título de compensação, um prémio equivalente aos honorários relativos ao último mês de prestação de serviços.


7.ª Cláusula (Vigência)


O presente contrato começa a vigorar no dia 1 de agosto de 2006 e é válido até 31 de janeiro de 2007.


5 Em 2 de abril de 2007, a autora e a Águas de Paredes subscreveram o documento intitulado “Contrato de prestação de serviços”, junto a fls. 18, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


1ª Cláusula ( Objeto)


A Primeira Outorgante contrata a Segunda outorgante, como trabalhadora independente, para prestar serviços de tratamento de dívidas de terceiros (…)


2ª Cláusula ( Obrigações)


(…)


4.A Segunda outorgante garante 70% da taxa de sucesso no tratamento dos processos de clientes que acompanhará quer por via extrajudicial, quer judicial.


4ª Cláusula ( Honorários)


Pela prestação dos seus serviços a que se refere a cláusula 1ª , a Primeira outorgante obriga-se a pagar à Segunda outorgante a quantia de 1.100,00€ ( mil e cem euros), acrescido do IVA à taxa legal, em vigor (…).


6ª Cláusula (Compensação)


Se ultrapassar o previsto no n.º 4 da 2ª cláusula, a segunda outorgante receberá a título de compensação, um prémio equivalente aos honorários relativos ao último mês de prestação de serviços.


7ª Cláusula ( Vigência)


O presente contrato começa a vigorar no dia 2 de abril de 2007 e é válido até 2 de outubro de 2007.


6 Em 1 de julho de 2008, a autora e a Águas de Paredes subscreveram o documento intitulado “Contrato de prestação de serviços”, junto a fls. 20, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:

CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS

Entre A.P. Águas de Paredes, S.A. (…) aqui denominada primeira outorgante


E AA [ …) aqui denominada segunda outorgante.


É celebrado e reduzido a escrito o presente contrato de prestação de serviços, que se regerá pelas cláusulas seguintes:


Cláusula Primeira ( Objeto)


A Primeira Outorgante contrata a Segunda Outorgante, como Advogada, para prestar serviços de tratamento de dívidas de terceiros.


Cláusula Segunda (Obrigações)


1.A Segunda Outorgante tratará de um número ilimitado de processos mensais de clientes com dívidas à A.P. Águas de Paredes, S.A.com autonomia e sob a sua inteira responsabilidade, mas sempre dentro dos limites permitidos legalmente.


2. A Segunda Outorgante garante taxas de sucesso na cobrança de 50% a 70%, relativamente à dívida atual caracterizada de acordo com listas fornecidas pela primeira outorgante e, no cumprimento do acordo com o cliente no tratamento da dívida, nos termos descritos na cláusula quinta (…).


4. O acompanhamento judicial de processos enunciados no número anterior é feito pela Segunda Outorgante durante o período de vigência do contrato de prestação de serviços.


(…)


Cláusula Quarta ( Honorários)


1.Pela prestação dos seus serviços a que se refere a cláusula primeira, a Primeira outorgante obriga-se a pagar à Segunda outorgante a quantia de 1.600,00€ ( mil e cem euros), acrescido do valor de IVA à taxa legal, em vigor, mediante apresentação do recibo A.P. – Águas de Paredes, S.A., a esse valor será ainda efetuada retenção na fonte de IRS se aplicável.


2. O montante de honorários pago pela primeira outorgante à segunda outorgante, será atualizado para os € 2 000,00 ( dois mil euros) mensais, a partir de janeiro de 2009, acrescido de IVA e retenção na fonte de IRS, se a esta houver lugar.


Cláusula Quinta ( Compensação)


1.Atingidas as taxas de sucesso previstas no n.º 2, da cláusula segunda, a Segunda Outorgante receberá a título de compensação, um prémio equivalente a 10% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso de 50% e 15% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso de 70% do valor cobrado. Tais valores serão devidos após um ano de vigência do contrato de prestação de serviços.


2. No caso de acordos de pagamento efetuados entre os clientes devedores e a segunda outorgante, para efeitos de cálculo das taxas de sucesso referidas no ponto anterior, apenas serão considerados os montantes efetivamente pagos e, em caso de incumprimento, descontados das mesmas taxas.


Cláusula Sexta ( Incumprimento)


O não cumprimento pela Segunda Outorgante de qualquer das taxas de sucesso garantidas no n.º 2 da cláusula segunda, implica o não pagamento da compensação prevista na cláusula anterior.


Cláusula Sétima ( Vigência)


O presente contrato é celebrado pelo prazo de 1 ano, com inicio em 01 de julho de 2008 e termo em 01 de julho de 2009, podendo ser renovado, por períodos iguais ou diferentes, por acordo das partes.


Cláusula Oitava ( Duração do Contrato)


Se o contrato não for denunciado, por qualquer das partes, por carta registada com aviso de receção enviada até 30 dias antes do seu termo ou o de qualquer das suas renovações, renova-se automaticamente, nas mesmas condições, por períodos iguais.


7 No período que medeia as assinaturas daqueles três documentos intitulados “Contrato de prestação de serviços”, a relação entre a autora e ré não sofreu qualquer interrupção ou suspensão, mantendo a autora a prestação de serviços e a ré Águas de Paredes a entrega do valor correspondente aos honorários mensais constante desses documentos.


8 Após a subscrição do documento descrito no ponto 6 – factos provados –, mais nenhum documento com o mesmo objeto foi outorgado entre as partes.


9 Ao estipularem as cláusulas epigrafadas de “compensação”, as partes tiveram intenção de atribuir à demandante o direito a um prémio de produtividade, calculado com base na taxa de sucesso de cobrança do valor dos créditos em cada ano entregues pela ré à autora para reclamação, cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim.


2.2. Desenvolvimento da relação entre a autora e a Águas de Paredes


10 - Visando satisfazer o acordo referido no ponto 6 – factos provados – a ré Águas de Paredes remetia à autora, por tranches, via email, os dados dos devedores e os montantes em dívida, para que a autora diligenciasse pela cobrança.


11- A autora interpelava os devedores e, quando necessário, propunha as respetivas ações judiciais.


12 Entre os anos de 2009 e 2018, a ré Águas de Paredes remeteu à autora os seguintes créditos para cobrança, tendo a autora logrado obter a cobrança dos seguintes montantes:






13 Dos créditos entregues à autora para cobrança pela ré Águas de Paredes, aquela logrou obter a cobrança dos seguintes montantes respeitantes a cada ano/créditos.

14 A autora logrou ainda obter a cobrança dos seguintes montantes respeitantes a outros créditos da ré Águas de Paredes (créditos de juros, créditos de penas contratuais e créditos de despesas extrajudiciais):





15 A ré Águas de Paredes não entregou à autora nenhuma quantia visando satisfazer o disposto no n.º 2 da Cláusula Segunda e o n.º 1 da Cláusula Quinta do documento descrito no ponto 6 – factos provados.


2.3. Termo da relação entre a autora e a Águas de Paredes


16 Datada de 18 de maio de 2018, a ré Águas de Paredes remeteu à autora a carta junta a fls. 22 v., na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


Assunto: Denúncia do contrato de prestação de serviços celebrado em Julho de 2008


(…)


Nos termos da cláusula 8ª do contrato de prestação de serviços assinado com data de 1 de julho de 2008, comunicamos a denúncia do contrato celebrado, a qual produzirá efeitos a 30 de junho p.f., termo da renovação em curso.


17 Em 4 de julho de 2018, a autora remeteu à ré Águas de Paredes a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 23 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


Assunto: Interpelação Para Pagamento de Compensação. (…)


Atendendo à datada de 18 de Maio de 2018 que procedeu à denúncia da prestação dos meus serviços como Advogada, serve o presente para lhe solicitar o pagamento devido e previsto na cláusula quinta, n.º 1, do Contrato de Prestação de Serviços, assinado no dia 01 de Julho de 2008, de acordo com a tabela em anexo, no prazo máximo de 10 dias, a contar da assinatura do presente aviso de receção.


18 Em 27 de julho de 2018, o administrador da ré Águas de Paredes (e da ré Águas de Valongo) remeteu à autora a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 26, que aqui se dá por transcrita.


19 Em 3 de agosto de 2018, a autora remeteu ao administrador da ré Águas de Paredes (e da ré Águas de Valongo) a mensagem de correio eletrónico cuja cópia se encontra junta a fls. 27, que aqui se dá por transcrita.


20 A autora tem na sua posse 7 362,69 provenientes de pagamentos efetuados pelos clientes da ré executados Águas de Paredes.


3. Relação entre a autora e a Águas de Valongo


3.1. Estabelecimento da relação entre a autora e a Águas de Valongo


21 Em 30 de março de 2007, a autora e a Águas de Valongo subscreveram o documento intitulado “Minuta de contrato de prestação de serviços”, junto a fls. 31, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


MINUTA DE CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


Entre,

Primeira Outorgante: A.V. – Águas de Valongo, S.A. (…);

Segunda Outorgante: AA (…).

Cláusula Primeira ( Objeto)


A primeira Outorgante contrata a Segunda Outorgante para prestar serviços de tratamento de dívida a terceiros


Cláusula Segunda (Obrigações)


A Segunda Outorgante tratará de um número ilimitado de processos mensais de clientes com dívidas à A.V. – Águas de Valongo, S.A. com autonomia e sob sua inteira responsabilidade, mas sempre dentro dos limites permitidos legalmente.


2 – A Segunda Outorgante garante taxas de sucesso na cobrança de 50% e 70%, relativamente à dívida atual, caracterizada de acordo com o anexo I e no cumprimento do acordo com o cliente no tratamento da dívida, nos termos descritos na cláusula quinta. (…)


4 – O acompanhamento judicial de processos enunciados no número anterior é feito pela Segunda Outorgante durante o período de vigência do contrato de prestação de serviços. (…)


Cláusula Quarta ( Honorários)


Pela prestação dos serviços a que se refere a cláusula primeira, a Primeira Outorgante obriga-se a pagar à Segunda Outorgante a quantia de € 950,00 (…) mensais, acrescido do valor do I. V.A. à taxa legal em vigor, mediante apresentação do recibo na A.V. – Águas de Valongo, S.A. A este valor será ainda efetuada retenção na fonte de I.R.S., se aplicável.


Cláusula Quinta (Compensação)


1 – Atingidas as taxas de sucesso previstas no n.º 2, da cláusula segunda, a Segunda Outorgante receberá a título de compensação, no final da vigência do presente contrato, um prémio equivalente a 10% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso de 50%, e 15% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso se 70% do valor cobrado. Tais valores serão devidos após um ano de vigência do contrato de prestação de serviços.


2 – No caso de acordos de pagamento efetuados entre os clientes devedores e a 2.ª outorgante, para efeitos de cálculo das taxas de sucesso referidas no ponto anterior, apenas são considerados os montantes efetivamente pagos e, em caso de incumprimento, descontados das mesmas taxas.


Cláusula Sexta (Incumprimento)


O não cumprimento pela Segunda Outorgante de qualquer das taxas de sucesso garantidas no n.º 2, da cláusula segunda, implica o não pagamento da compensação prevista na cláusula anterior.


Cláusula. Sétima (Vigência)


O presente contrato é celebrado pelo prazo de 1 ano, com início em 30 de Março de 2007 e termo em 30 de Março de 2008, podendo ser renovado, por períodos iguais ou diferentes, por acordo das partes.


Cláusula Oitava (Duração do Contrato)


Se o presente contrato não for denunciado, por qualquer das partes, por carta registada com aviso de receção enviada até 30 dias antes do seu termo ou do de qualquer das suas renovações, renova-se automaticamente, nas mesmas condições, por períodos iguais.


22 As partes anexaram ao documento referido no ponto 21 – factos provados – o documento intitulado “Anexo I – Minuta de Contrato de Prestação de Serviços 29-03-07”, junta aos autos a fls. 33 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


Cliente - Total


Conta


(…) (…)


251777,13


tx sucesso 50% 125888,57


Prémio 10% 12588,86


tx sucesso 70% 176243,99


Prémio 15% 26436,60


23- Em 1 de maio de 2008, a autora e a Águas de Valongo subscreveram o documento intitulado “Contrato de prestação de serviços”, junto a fls. 35 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS


Entre


Primeira Outorgante: A.V- Águas de Valongo S.A. (…):


Segunda Outorgante: AA (…)


Cláusula Primeira ( Objeto)


A Primeira Outorgante contrata a Segunda Outorgante, como Advogada, para prestar serviços de tratamento de dívidas de terceiros.


Cláusula Segunda Obrigações)


1.A Segunda Outorgante tratará de um número ilimitado de processos mensais de clientes com dívidas à A.P. Águas de Valongo, S.A.com autonomia e sob a sua inteira responsabilidade, mas sempre dentro dos limites permitidos legalmente.


2. A Segunda Outorgante garante taxas de sucesso na cobrança de 50% a 70%, relativamente à dívida atual caracterizada de acordo com listas fornecidas pela primeira outorgante e, no cumprimento do acordo com o cliente no tratamento da dívida, nos termos descritos na cláusula quinta (…).


4. O acompanhamento judicial de processos enunciados no número anterior é feito pela Segunda Outorgante durante o período de vigência do contrato de prestação de serviços (…).


(…)


Cláusula Quarta ( Honorários)


1.Pela prestação dos seus serviços a que se refere a cláusula primeira, a Primeira outorgante obriga-se a pagar à Segunda outorgante a quantia de 1.600,00€ ( mil e cem euros), acrescido do valor de IVA à taxa legal, em vigor, mediante apresentação do recibo A.P. – Águas de Valongo, S.A., a este valor será ainda efetuada retenção na fonte de IRS se aplicável.


2. O montante de honorários pago pela primeira outorgante à segunda outorgante, será atualizado para os € 2 000,00 ( dois mil euros) mensais, a partir de janeiro de 2009, acrescido de IVA e retenção na fonte de IRS, se a esta houver lugar.


Cláusula Quinta ( Compensação)


1.Atingidas as taxas de sucesso previstas no n.º 2, da cláusula segunda, a Segunda Outorgante receberá a título de compensação, um prémio equivalente a 10% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso de 50% e 15% do valor cobrado, uma vez atingida a taxa de sucesso de 70% do valor cobrado. Tais valores serão devidos após um ano de vigência do contrato de prestação de serviços.


2. No caso de acordos de pagamento efetuados entre os clientes devedores e a segunda outorgante, para efeitos de cálculo das taxas de sucesso referidas no ponto anterior, apenas serão considerados os montantes efetivamente pagos e, em caso de incumprimento, descontados das mesmas taxas.


Cláusula Sexta ( Incumprimento)


O não cumprimento pela Segunda Outorgante de qualquer das taxas de sucesso garantidas no n.º 2 da cláusula segunda, implica o não pagamento da compensação prevista na cláusula anterior.


Cláusula Sétima ( Vigência)


O presente contrato é celebrado pelo prazo de 1 ano, com início em 01 de maio e 2008 e termo em 01 de maio de 2009, podendo ser renovado, por períodos iguais ou diferentes, por acordo das partes.


Cláusula Oitava ( Duração do Contrato)


Se o contrato não for denunciado, por qualquer das partes, por carta registada com aviso de receção enviada até 30 dias antes do seu termo ou o de qualquer das suas renovações, renova-se automaticamente, nas mesmas condições, por períodos iguais.


24 No período que medeia as assinaturas daqueles dois documentos intitulados “(…) prestação de serviços”, a relação entre a autora e ré não sofreu qualquer interrupção ou suspensão, mantendo a autora a prestação de serviços e a ré Águas de Valongo a entrega do valor correspondente aos honorários mensais constante desses documentos.


25 Após a subscrição do documento descrito no ponto 23 – factos provados –, mais nenhum documento com o mesmo objeto foi outorgado entre as partes.


26 Ao estipularem as cláusulas epigrafadas de “compensação”, as partes tiveram intenção de atribuir à demandante o direito a um prémio de produtividade, calculado com base na taxa de sucesso de cobrança do valor dos créditos em cada ano entregues pela ré à autora para reclamação, cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim.


3.2. Desenvolvimento da relação entre a autora e a Águas de Valongo


27 Visando satisfazer os acordos referidos no ponto 21 – factos


provados – e no ponto 23 – factos provados –, a ré Águas de Valongo remetia à autora, por tranches, via email, os dados dos devedores e os montantes em dívida, para que a autora diligenciasse pela cobrança.


28 A autora interpelava os devedores e, quando necessário, propunha as respetivas ações judiciais.


29 Entre os anos de 2009 e 2018, a ré Águas de Valongo remeteu à autora os seguintes créditos para cobrança, tendo a autora logrado obter a cobrança dos seguintes montantes:
AnoDívida entregue Recuperado
Período
PeríodoAcumulado
2009608668,63608668,63160122,71
201065813,69674482,3262175,52
201195786,99770269,3143874,62
201270480,66840749,9786865,34
201342625,89883375,8654547,35
201434051,54917427,4040187,77
201517688,25935115,6566286,27
201627374,05962489,7026706,12
201718197,95980687,6523375,06
20189969,07990656,7212378,27
Total990656,72576519,03
30 Dos créditos entregues à autora para cobrança pela ré Águas de Valongo, aquela logrou obter a cobrança dos seguintes montantes respeitantes a cada ano/créditos.
AnoEntregueRecuperado
Período201220152018
2009201020112013201420162017
200965813,69160122,710,000,000,000,000,000,000,000,000,00
201095786,9958444,923730,600,000,000,000,000,000,000,000,00
201170480,6632311,052173,779389,800,000,000,000,000,000,000,00
201242625,8940051,214825,5426064,1115924,480,000,000,000,000,000,00
201334051,5422336,456929,026484,338185,3310612,220,000,000,000,000,00
201417688,2517276,812575,115310,184947,623838,506239,550,000,000,000,00
201527374,0536570,59291,563577,393893,955223,1111399,415330,260,000,000,00
201618197,954080,94939,755464,204059,514057,223175,931233,773694,800,000,00
20179969,071523,08251,671164,103593,272372,052713,072282,424967,324508,080,00
AnoEntregueRecuperado
2018990656,72
159,600,00613,671097,45990,04728,332392,082919,74497,542979,82
Total65813,69372877,3621717,0258067,7841701,6127093,1424256,2911238,5311581,865005,622979,82
31 A autora logrou ainda obter a cobrança dos seguintes montantes respeitantes a outros créditos da ré Águas de Valongo (créditos de juros, créditos de penas contratuais e créditos de despesas extrajudiciais):





32 A ré Águas de Valongo não entregou à autora nenhuma quantia visando satisfazer o disposto no n.º 2 da Cláusula Segunda e o n.º 1 da Cláusula Quinta dos acordos referidos no ponto 21 – factos provados – e no ponto 23 – factos provados.


3.3. Termo da relação entre a autora e a Águas de Valongo


33 Datada de 27 de março de 2018, a ré Águas de Valongo remeteu à autora a carta junta a fls. 38, na qual consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


Assunto: Denúncia do contrato de prestação de serviços celebrado em Maio de 2008


(…)


Nos termos da cláusula 8ª do contrato de prestação de serviços assinado com data de 1 de maio de 2008, comunicamos a denúncia do contrato celebrado, a qual produzirá efeitos a 30 de abril p.f., termo da renovação em curso.


34 Em 4 de julho de 2018, a autora remeteu à ré Águas de Valongo a carta cuja cópia se encontra junta a fls. 23 v., onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:


Assunto: Interpelação Para Pagamento de Compensação. (…) Atendendo à missiva datada de 27 de Março de 2018 que procedeu à denúncia da prestação dos meus serviços como Advogada, serve o presente para lhe solicitar o pagamento devido e previsto na cláusula quinta, n.º 1, do Contrato de Prestação de Serviços, assinado no dia 01 de Maio de 2008, de acordo c m a tabela em anexo, no prazo máximo de 10 dias, a contar da assinatura do presente viso de receção.


35 Em 27 de julho de 2018, o administrador da ré Águas de Valongo remeteu à autora a mensagem de correio eletrónico referida no ponto 18 –factos provados.


36 Em 3 de agosto de 2018, a autora remeteu ao administrador da ré Águas de Valongo (e da ré Águas de Valongo) a mensagem de correio eletrónico referida no ponto 19 – factos provados.


37 A autora tem na sua posse 13 853,98 provenientes de pagamentos efetuados pelos clientes da ré executados Águas de Valongo.

**

- Factos não provados


Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados.


Resultaram, assim, não provados os factos:


38 Por força da inércia da ré Águas de Paredes a autora viu-se forçada a renunciar ao mandato em 297 processos judiciais pendentes.


39 Desde julho de 2018, inclusive, até meados do mês de outubro de 2018, a autora assegurou o patrocínio da ré Águas de Paredes.


40 Após a renúncia operada pela ré Águas de Paredes, a autora organizou todos os processos pendentes, contabilizando os montantes recebidos por conta dos acordos de pagamentos.


41 Após a renúncia operada pela ré Águas de Paredes, a autora organizou preparou para entrega todos os demais processos que estavam na sua posse, bem como as 1087 sentenças relativas a processos da ré que lhe estavam confiadas.


42 Após a renúncia operada pela ré Águas de Paredes, a autora elaborou as contas dos montantes que pertenciam à ré.


43 Por força da inércia da ré Águas de Valongo a autora viu-se forçada a renunciar ao mandato em 334 processos judiciais pendentes.


44 Desde maio de 2018, inclusive, até meados do mês de outubro de 2018, a autora assegurou o patrocínio da ré Águas de Valongo.


45 Após a renúncia operada pela ré Águas de Valongo, a autora organizou todos os processos pendentes, contabilizando os montantes recebidos por conta dos acordos de pagamentos.


46 Após a renúncia operada pela ré Águas de Valongo, a autora organizou preparou para entrega todos os demais processos que estavam na sua posse, bem como as 1050 sentenças relativas a processos da ré que lhe estavam confiadas.


47 Após a renúncia operada pela ré Águas de Valongo, a autora elaborou as contas dos montantes que pertenciam à ré.


48 Até ao ano 2018, a autora nunca mencionou às rés o seu desejo de receber o prémio pela ultrapassagem das percentagens de 50% e de 70% de créditos cobrados respeitantes a determinados anos.


De Direito


1. Admissibilidade do recurso


O Tribunal da Relação do Porto confirmou sem voto de vencido, nem fundamentação essencialmente diferente, a sentença do Tribunal de 1.ª Instância, o que configura uma situação de dupla conforme, em princípio, impeditiva da admissibilidade de recurso de revista ordinário.


Contudo, tal como resulta das conclusões supratranscritas as Recorrentes colocam em crise a violação, por parte do Tribunal da Relação do Porto, dos poderes que lhe são conferidos no art. 662.º do CPC, alegação esta que descaracteriza a referida dupla conformidade decisória, sendo o recurso admissível. (cf. neste sentido os recentes acórdãos do STJ de 04.07.2023, Revista n.º 9645/18.6T8LSB.L1. S1, relatora Maria João Vaz Tomé e de 25. 05. 2023 Revista n.º 1950/20.3T8VFR.P1. S1, relatora Catarina Serra).


2. Se, na apreciação da decisão sobre a matéria de facto, o Tribunal da Relação incorreu em violação do artigo 662.º n.º 1 do CPC.


A disciplina processual no respeitante à reapreciação, por parte do Tribunal da Relação, da decisão de facto impugnada comporta numa das suas vertentes fundamentais a análise crítica da prova, em conformidade com o disposto no artigo 662.º, n.º 1, e nos termos dos artigos 607.º, n.º 4 e 5, aplicável, com as necessárias adaptações, aos acórdãos da Relação por via do artigo 663.º, n.º 2, do CPC.


É atualmente entendimento dominante, como decidiu o citado acórdão do STJ de 25.05.2023, que “nesta reapreciação, a Relação, goza de autonomia decisória, competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação, sem exclusão do uso de presunções judiciais.


Como tal, a livre convicção da Relação deve ser assumida em face dos meios de prova que estão disponíveis, impondo-se que o tribunal de recurso sustente a sua decisão nesses mesmos meios de prova, descrevendo os motivos que o levam a confirmar ou infirmar o resultado fixado em 1ª instância.” (cf. no mesmo sentido, acórdão do STJ de 04.07.2023, na Revista n.º 7997/20.2T8SNT.L1. S1, relatora Maria Clara Sottomayor, que cita os acórdãos de 17.06.2021, Revista n.º 6640/12.8TBMAI.P2. S2 e de 05-07-2018, Revista n.º 2522/16.2TBBRG.G1. S1)


.


No entanto, entendemos que o n.º 4 do artigo 607º do CPC não exige uma fundamentação minuciosa, como defendem alguns processualistas, como Lebre de Freitas em “A Ação Declarativa Comum, À Luz do CPC de 2013”, 3ª edição, pág. 316 e Teixeira de Sousa, em “Estudos Sobre O Novo Código Processo Civil”, pág. 348.


Neste sentido, o acórdão do STJ de 07.09.2017, proferido no processo n.º 59/09.2TVSB.L1.SI, relator Tomé Gomes, decidiu: “ No âmbito dessa apreciação ( por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada), dispõe o Tribunal da Relação de margem suficiente para, com base na prova produzida, em função do que for alegado pelo impugnante e pela parte contrária, bem como da fundamentação do tribunal da 1.ª instância, ajustar o nível de argumentação probatória de modo a revelar os fatores decisivos da reapreciação empreendida.


Todavia, a análise crítica da prova a que se refere o n.º 4 do artigo 607.º do CPC, mormente por parte do Tribunal da Relação, não significa que tenham de ser versados ou rebatidos, ponto por ponto, todos os argumentos do impugnante nem que tenha de ser efetuada uma argumentação exaustiva ou de pormenor de todo o material probatório. Afigura-se bastar que dessa análise se destaquem ou especifiquem os fundamentos que foram decisivos para a formação da convicção do tribunal.


Também nada obsta a que o tribunal de recurso secunde ou corrobore a fundamentação dada pela 1.ª instância, desde que esta se revele sólida ou convincente à luz da prova auditada e não se mostre fragilizada pela argumentação probatória do impugnante, sustentada em elementos concretos que defluam da prova produzida, em termos de caracterizar minimamente o erro de julgamento invocado ou que, como se refere no artigo 640.º, n.º 1, aliena b), do CPC, imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto diversa da recorrida.


Com efeito, o nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.”


Assim sendo, na reapreciação da prova efetuada no Tribunal da Relação, entendemos ser suficiente que o acórdão se pronuncie sobre os meios probatórios indicados pelo recorrente e recorrido e explique, de forma clara, as razões por que manteve ou alterou a decisão da 1ª instância, quanto à factualidade impugnada.


Os julgadores não têm de fazer uma fundamentação exaustiva, nem rebater todos os argumentos apresentados pelas partes, o acórdão tem é de responder a todas as questões de facto suscitadas. Por outro lado, a análise critica pode ser efetuada agrupando factualidade conexa entre si e corroborar a fundamentação da sentença de 1ª instância, desde que esta se mostre consistente.


Por conseguinte, apenas se justifica a anulação do acórdão da Relação, por não cumprimento dos artigos 662 n. º1 e 607º n.º 4 do CPC, quando da sua fundamentação resulte que não reavaliou os meios de prova indicados pelas partes e/ou não reponderou as questões de facto suscitadas, designadamente se se limitou a considerações genéricas, seguida de mera declaração de adesão à fundamentação da decisão recorrida.


Por outro lado, a invocação do “mau uso” do citado artigo 662º do CPC, não pode ser um meio de contornar, a regra, segundo a qual, o STJ não interfere na fixação da matéria de facto.


Com efeito, nos termos do disposto no n.º 662.º n.º 4 do CPC, das decisões da Relação tomadas em sede de modificabilidade da decisão de primeira instância sobre matéria de facto não cabe recurso ordinário de revista para o STJ.


Em conformidade, o n.º 1 do artigo 682º do CPC, estipula: “Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o STJ aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.” E o n.º 2, acrescenta: “A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º”


Por outro lado, o n.º 3 do art.º 674.º do CPC, estabelece: “O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.


Como decidiu o acórdão de 04.07.2023, Revista n.º 2991/18.6T8OAZ.P1.S1, relator Jorge Leal, “ o STJ apenas pode interferir na decisão da matéria de facto, se tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova para a prova de determinados factos, ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada, de determinados factos, assim como quando, no uso de presunções judiciais, a Relação tenha ofendido norma legal, o seu juízo padeça de evidente ilogicidade ou assente em factos não provados (neste sentido, cf., entre outros, acórdãos do STJ de 08.11.2022, proc. nº. 5396/18.5T8STB-A. E1.S1, 30.11.2021, proc. n.º 212/15.2T8BRG-B. G1.S1 e de 14.07.2021, proc. 1333/14.4TBALM.L2. S1).”


Tendo, assim, em consideração que o STJ não pode apreciar, em 3º grau, os meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, mas apenas se o acórdão recorrido não realizou um exame critico da prova adequado e suficiente, importa revisitar a fundamentação da decisão de facto prolatada pela Relação, que se passa a transcrever (no essencial):


«Nas conclusões de recurso, sob as alíneas g) -a. a n) -a., x), aa) e bb), os apelantes vieram requerer a reapreciação da decisão de facto, com fundamento em erro na apreciação da prova, bem como, a inclusão de factos não alegados e ainda, a ampliação da decisão de facto.


(…)


Resta reapreciar os factos, cuja decisão vem impugnada. (sublinhado nosso)


O art. 640º CPC estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: (…)


Os apelantes impugnam a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto a reapreciar – pontos 9, 12, 26, 29, 13, 30, 14, 31, dos factos provados e 48 dos factos julgados não provados -, bem como, indicam a prova e ainda, a decisão alternativa que deve ser proferida.


Consideram-se, assim, preenchidos os pressupostos de ordem formal para proceder à reapreciação da decisão de facto.


Nos termos do art. 662º/1 CPC a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto:


“ […]se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.


A respeito da gravação da prova e sua reapreciação cumpre considerar, como refere Abrantes Geraldes, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça, que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, “tem autonomia decisória”. Isto significa que deve fazer uma apreciação crítica das provas que motivaram a nova decisão especificando, tal como o tribunal de 1ª instância, os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.


Nessa apreciação, cumpre ainda, ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados.


Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcrito nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais.


Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, em particular quando se trata de reapreciar a força probatória dos depoimentos das testemunhas, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º CC e art. 607º/5, 1ª parte CPC.


(…)


Daí impor-se ao julgador o dever de fundamentação das respostas à matéria de facto – factos provados e factos não provados (art. 607º/4 CPC).


Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão.


É através dos fundamentos constantes do despacho em que se respondeu à matéria de facto que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância.


Por outro lado, porque se mantêm vigorantes os princípios da imediação, da oralidade, da concentração e da livre apreciação da prova e guiando-se o julgamento humano por padrões de probabilidade e nunca de certeza absoluta, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.


Ponderando estes aspetos cumpre reapreciar a prova - documental, por declarações, prova testemunhal e pericial -, face aos argumentos apresentados pelas apelantes, tendo presente o segmento da sentença que se pronunciou sobre a fundamentação da matéria de facto, adiantando-se desde já, que a decisão não merece censura pelos motivos que se passam a expor.


- Pontos 9 e 26 dos factos provados -


9 – Ao estipularem as cláusulas epigrafadas de “compensação”, as partes tiveram intenção de atribuir à demandante o direito a um prémio de produtividade, calculado com base na taxa de sucesso de cobrança do valor dos créditos em cada ano entregues pela ré à autora para reclamação, cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim.


26 – Ao estipularem as cláusulas epigrafadas de “compensação”, as partes tiveram intenção de atribuir à demandante o direito a um prémio de produtividade, calculado com base na taxa de sucesso de cobrança do valor dos créditos em cada ano entregues pela ré à autora para reclamação, cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim.


Em sede de fundamentação da decisão ponderou-se, como se passa a transcrever:


“A decisão da matéria de facto resultou da admissão de factos por acordo – confirmada pelos documentos juntos, tendo-se presente o disposto nos arts. 414.º do Cód. Proc. Civil e 342.º, n.º 1, do Cód. Civil – e, quanto à matéria controvertida, dos depoimentos prestados, da prova pericial produzida e dos documentos juntos. Quanto aos factos não provados, a decisão resultou da ausência de prova quanto aos mesmos.


As cláusulas invocadas pela autora para fundar os seus direitos exercidos na ação dizem respeito aos três últimos contratos que invoca (últimos no tempo).


Têm elas a seguinte redação:


(…)


Deteta-se nestes enunciados contratuais uma progressão na sua redação, assentando o texto dos mais recentes, com algumas alterações, sobre o texto do mais antigo. Por exemplo, no n.º 1 da cláusula quinta do contrato de 30 de março de 2007, consta, além do mais: “a Segunda Outorgante receberá a título de compensação, no final da vigência do presente contrato, um prémio”. A vírgula entre “receberá” e “a título” é opcional.


Já no segmento equivalente dos contratos de 2008, consta “a Segunda Outorgante receberá a título de compensação, um prémio”. A vírgula está a mais, parecendo ter sido esquecida, depois de eliminado o trecho “no final da vigência do presente contrato” – só não estaria a mais se fosse precedida de uma outra entre “receberá” e “a título”.


Podemos, pois, procurar nos contratos mais antigos subsídios interpretativos dos enunciados mais recentes, que sobre aqueles foram “edificados”. O mais evidente destes subsídios é a já mencionada eliminação do segmento “no final da vigência do presente contrato”, sugerindo fortemente que as partes não associaram a fiscalização do sucesso a uma data previamente fixada, sendo o desempenho da autora apreciado em qualquer momento da vigência da relação contratual.


O apelo ao Anexo I ajuda-nos a perceber a relação entre as listas fornecidas pelas rés e qualificação do que representa um sucesso. Dos termos desse anexo resulta inequívoco que o sucesso se refere à cobrança desse concreto conjunto de créditos (constante de cada lista entregue à autora). Assim, por exemplo, se a autora conseguisse, na vigência da relação contratual, cobrar 60% do valor dos créditos dessa concreta lista, teria direito a um prémio (por ter ultrapassado a fasquia dos 50%). Este raciocínio vale quer para a Águas de Valongo, quer para a Águas de Paredes (esta considerando a redação dos demais contratos por si subscritos).


Assim também se faz luz sobre a enigmática expressão “relativamente à dívida atual”, presente no n.º 2 da cláusula segunda. Tem ela a sua origem na entrega à autora do Anexo I (acordo de 30 de março de 2007) contendo a lista de créditos (atuais) entregues nesse ano, sobre a qual seria calculada a taxa de sucesso da autora, autonomamente e sem consideração de outros dados (designadamente, outras listas entregues na vigência da relação contratual). O mesmo é dizer que as partes reportaram o sucesso a cada adjudicação anual de cobranças, não o limitando à cobrança no ano de entrega da lista respetiva, mas sim, necessariamente, à duração da relação contratual (plurianual) que tinha como objeto tal cobrança.


A restante prova produzida cotejada com estes documentos e com as regras da experiência resultou na decisão do ponto 9 – factos provados – e do ponto 26 – factos provados.


Com efeito, dos depoimentos prestados pelas testemunhas e pela autora resultou caraterizada a forma como se foi processando, ao longo do tempo, o trabalho administrativo de entrega pelos serviços das rés das listagens com os valores de dívida.


Sendo certo que nenhuma das testemunhas teve qualquer intervenção nas negociações e/ou outorga dos contratos, as testemunhas funcionárias da ré Águas de Valongo BB, CC e funcionárias da ré Aguas de Paredes DD e EE tinham conhecimento de que constava dos contratos a previsão de um prémio a pagar à autora em função das taxas de recuperação de dívida, tendo resultado confirmado dos depoimentos das mesmas que, numa reunião ocorrida em 2017, ocorreu um diferendo entre a autora e o administrador Eng. Nuno relacionado precisamente com o (a falta de) pagamento do referido prémio”.


Na alínea g)-a. das conclusões de recurso, consideram as apelantes que no confronto com os contratos, não resulta a prova da seguinte matéria: “cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim”. Sugerem que não deve manter-se.


Entendemos, contudo, que do teor dos contratos resulta que o referido prémio seria cobrado durante toda a relação contratual, desde que atingisse a taxa de sucesso prevista. As alterações introduzidas nos contratos em 2008 (pontos 6 e 23 dos factos provados) fixam a cobrança de uma taxa de sucesso (prémio de produtividade), sendo que o único limite resulta do facto de não ser cobrado no primeiro ano de vigência do contrato.


Acresce que as apelantes não indicam a concreta cláusula que justifique a interpretação que defendem.


Conclui-se que a decisão não merece censura.


- Pontos 12, 13, 14, 29, 30, 31 dos factos provados – (acima transcritos)


Os factos em causa respeitam a matéria alegada pela autora na petição, estando em causa apurar o montante dos valores apresentados para cobrança e os valores recuperados pela autora.


(…)


Em sede de fundamentação, considerou-se:


“O relatório pericial foi especialmente relevante na prova dos dados de facto respeitantes aos valores anuais dos créditos entregues à autora e aos valores cobrados.


O tratamento destes dados foi depois feito autonomamente pelo tribunal, sendo que a sua relevância só será apreciada em sede de fundamentação de direito. Assim, por exemplo, a autora apresenta/alega os seguintes dados respeitantes aos serviços prestados à primeira ré:


(….)


Apresenta os seguintes dados respeitantes aos serviços prestados à segunda ré:


(…).


Estes dados de facto não resultaram integralmente confirmados, apenas resultando provados, essencialmente com base na perícia, aqueles que se encontram vertidos no elenco dos factos provados”.


Na alínea h) e h) -a. das conclusões de recurso, em relação aos factos provados em 12 e 29, as apelantes sugerem, no que respeita às quantias entregues de dívida para cobrança, “os valores da coluna “Acumulado” [extraídos das colunas “C” das tabelas de fls 15 e 23 do relatório de perícia] devem ser substituídos pelos valores da coluna “Saldo do capital em dívida no início de cada ano” [extraídos das colunas “O” das mesmas tabelas]”.


Nas alíneas i) e j) a. das conclusões de recurso em relação aos factos 13 e 30 consideram que da “análise do relatório de perícia, conjugado com as regras de experiência, extrai-se com segurança que “A dívida atual caracterizada entregue para cobrança corresponde ao saldo do capital em dívida no início de cada ano” e não ao da dívida entregue acumulada. A sentença omite as colunas “O” [saldo do capital em dívida no início de cada ano] e “P” [saldo do capital em dívida no fim de cada ano] do relatório de perícia, devendo tais colunas e respetivos valores anuais serem aditados aos factos e tabelas”.


Defendem as apelantes “que os valores das colunas são essenciais para mensurar a taxa de sucesso (não) alcançada pela Autora e a alteração imposta pelo teor das tabelas de fls 15 e 23 do relatório pericial”.


Analisando os argumentos, constata-se que as apelantes pretendem que se altere a decisão de facto, no sentido de dar expressão à posição defendida na contestação para o cálculo do valor entregue para cobrança e valor recuperado.


Na posição defendida pelas rés, o capital entregue para cobrança corresponde ao capital em dívida no fim de cada ano (apurado nesse ano com o acumulado), mas tal entendimento não tem sustentação em qualquer prova, não sendo a posição defendida pelos peritos.


Os factos a julgar de acordo com a matéria de facto alegada pela autora, consistem em saber se as rés apresentaram valores para cobrança e se a autora efetivamente cobrou tais valores. Apenas a ponderação destes factos permite apurar se existe ou não taxa de sucesso, que justifique a atribuição do prémio.


Resulta dos esclarecimentos prestados pelos peritos, em confronto com o relatório pericial, que na posição defendida pela autora os valores a cobrar correspondem ao capital em divida naquele ano. O capital recuperado corresponde ao valor do capital, juros, despesas e penalidades cobradas no ano.


As rés por sua vez defendem que os valores a cobrar respeitam ao montante em divida no final do ano, onde se inclui a divida acumulada. O capital recuperado respeita ao capital cobrado no ano.


Consideraram os peritos que o valor cobrado no ano corresponde ao valor de capital, juros, despesas e penalidades e o valor entregue para cobrança, no ano, também corresponde ao capital, juros, despesas e penalidades.


Na decisão de facto atendeu-se ao critério proposto no relatório pericial, que obteve o consenso e unanimidade dos peritos. Desconsiderou-se os quadros a que referem as apelantes, correspondentes a capital em divida no início do ano ou no final do ano, que engloba o acumulado.


Como decorre do art. 388º CC: A prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.”


A força probatória das respostas dos peritos é fixada livremente pelo tribunal- art. 389º CC.


Atenta a natureza da matéria de facto em análise, a prova pericial merece um particular relevo, pelo facto do apuramento dos valores em discussão passar pela análise de diferente documentação e aplicação de um cálculo complexo, eminentemente técnico.


Apenas não deve ser considerado tal meio de prova, quando se verifique manifesto erro de apreciação ou critério ostensivamente inadmissível ou ilegal, o que não resulta demonstrado.


Acresce que o resultado da perícia mereceu a concordância de todos os peritos, o que reforça o seu valor como meio de prova.


No relatório de peritagem e nos esclarecimentos prestados pelos peritos em sede de julgamento, constata-se que os peritos elaboraram os quadros em análise (inseridos a páginas 656 e 664 do processo eletrónico no sistema Citius) a partir dos elementos que foram facultados pelas rés.


Analisaram os critérios que foram adotados pela autora e pelas rés para o cálculo da taxa de sucesso e concluíram que o critério que expressa de forma mais justa a realidade da relação contratual era aquele que sugerem e que consiste em considerar no cálculo dos valores a cobrar, em cada ano, o capital, as despesas, penalidades e juros, pois no total da divida recuperada, em cada ano, também se leva em consideração tais valores, por envolver um maior esforço por parte da autora e também, porque não ficou previsto no contrato um prazo limite para a cobrança dos créditos. Por outro lado, entendem que o valor entregue para cobrança corresponde ao efetivamente entregue no ano e o valor cobrado no ano, ainda, que proveniente de dívidas respeitantes a anos anteriores, porque não ficou convencionado qualquer limite no tempo para a cobrança dos créditos. Tal juízo de avaliação é o que respeita a natureza do crédito da autora (prémio /taxa de sucesso) e os termos do convencionado entre as partes, justificando-se por isso que seja considerado e atendido na apreciação dos factos.


Em relação aos pontos 14 e 31 dos factos provados (alínea K) das conclusões de recurso) consideram as apelantes que os valores indicados nas tabelas não foram apurados na perícia, antes foram pressupostos como hipótese, pelo que não se reconduzem à categoria de “factos” devendo ser eliminados do probatório.


Sugerem a alteração da decisão no sentido de passar a constar:


- “A autora logrou ainda obter a cobrança dos seguintes de montantes não determinados anualmente, respeitantes a outros créditos da (créditos de juros, créditos de penas contratuais e créditos de despesas extrajudiciais).”


Os factos em causa resultam dos mesmos quadros que constam do relatório pericial e que foram indicados pelas apelantes para sustentar a alteração da decisão. Os valores apurados constam como valores certos.


Efetivamente, perante os esclarecimentos prestados pelos peritos constata-se que não conseguiram apurar em concreto os valores que as rés entregaram para cobrança, a título de juros, penalidade e despesas. Entenderam usar o mesmo valor que conseguiram apurar a respeito dos valores cobrados, para apurar o montante do valor a cobrar, o que se revela de acordo com um juízo técnico um procedimento correto.


Na falta de outros elementos de prova e face à fundamentação da perícia, não se aponta à decisão qualquer censura, quando considerou a perícia para justificar a prova dos factos impugnados, mantendo-se a decisão.


- Ponto 48 dos factos julgados não provados -


Como se deixou dito na apreciação da anterior questão, em resposta à matéria da contestação julgou-se não provado:


48 Até ao ano 2018, a autora nunca mencionou às rés o seu desejo de receber o prémio pela ultrapassagem das percentagens de 50% e de 70% de créditos cobrados respeitantes a determinados anos.


As apelantes sugerem a alteração da decisão no sentido de se julgar provado:


- “Jamais a Autora solicitou ou reclamou, no final de cada anuidade dos contratos, o pagamento de prémio por qualquer das sociedades Rés.”


Sustentam a alteração nas declarações da própria Autora, das testemunhas BB, DD Maria EE, conjugada com a ausência de qualquer prova documental interpelando ao pagamento de prémios pelas sociedades Rés.


Decorre das declarações de parte da autora que em 2012 e 2014 a autora solicitou junto do Eng.º FF o pagamento do prémio. Em reunião realizada em 2017 nas instalações das rés, a autora voltou a solicitar junto do Eng.º FF o pagamento do prémio, encontrando-se presentes em tal reunião as testemunhas EE e BB, funcionárias das rés e que organizavam os ficheiros para cobrança dos créditos pela autora. A Autora referiu, ainda, que a partir desta data insistiu no pagamento o que levou as rés a proporem uma renegociação do contrato, sem sucesso, porque a autora não aceitou as condições e não abdicou do prémio.


As testemunhas indicadas pelas apelantes não revelaram ter conhecimento do contrato, por não terem participado nas negociações. Também afirmaram desconhecer as reivindicações da autora junto das rés e apenas quando confrontadas com situações concretas, como seja, a reunião realizada em 2017, referiram, muito superficialmente, que a Autora teria exigido o pagamento de um prémio ou estaria a renegociar o contrato e saiu da reunião.


A testemunha BB referiu que apesar de não ter conhecimento de pormenores do contrato, sabia da existência das taxas de sucesso, porque se falava nas reuniões, “nas reuniões anuais”. Na reunião realizada em 2017 a autora fez as contas e demonstrou que estava a recuperar.


A testemunha Luísa Ferreira revelou ter conhecimento que em reunião realizada em 2017 se falou na cobrança de um prémio.


A testemunha EE também referiu que se realizou uma reunião pouco antes da autora cessar o contrato durante a qual se abordou a questão dos prémios. De igual modo referiu que participou numa reunião em 2017 durante a qual a autora saiu da sala, desconhecendo o conteúdo da reunião, “mas falou-se da relação contratual”.


Dos depoimentos prestados resulta que a autora manifestou o propósito de receber o prémio, com base na taxa de sucesso e que havia oposição por parte das rés em conceder tal prémio. Os respetivos depoimentos não permitem sustentar a alteração pretendida pelas rés, mantendo-se por isso, o ponto 48 dos factos julgados não provados.


Em conclusão improcedem as conclusões de recurso sob as alíneas g) -a. a n) -a., x, aa), bb), não merecendo censura a decisão de facto que se mantém».

***

Da transcrita fundamentação do acórdão recorrido, na parte relativa ao recurso da decisão da matéria de facto, resulta que o Tribunal da Relação do Porto, no uso dos poderes que a lei lhe atribui, reapreciou a prova produzida de forma circunstanciada e procedeu ao exame critico das provas em causa, tendo concluído em sentido contrário ao pretendido pelas Recorrentes.


As Recorrentes enfatizam a parte da fundamentação, nas considerações genéricas, quando refere que atentos os princípios da oralidade e imediação, a alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova disponíveis e aquela decisão, nos concretos pontos questionados.


Não está em causa que este entendimento foi afastado pela jurisprudência do STJ mais recente acima citada, sendo atualmente pacifico que a reapreciação, por parte do tribunal da 2.ª instância, da decisão de facto impugnada não se deve limitar à verificação da existência de erro notório, mas implica uma reapreciação do julgado sobre os pontos impugnados, em termos de formação, pelo tribunal de recurso, da sua própria convicção, em resultado do exame das provas produzidas.


Contudo apesar de ter feito essa incorreta declaração de apenas em casos de flagrante desconformidade se justificar a alteração da decisão da matéria de facto, efetivamente, o Tribunal da Relação do Porto conheceu da impugnação da matéria de facto, tendo, para o efeito, considerado especificamente os meios de prova referidos pelas Recorrentes em sede de recurso de apelação e concluiu que a decisão do Tribunal de 1.ª Instância se encontrava devidamente sustentada nos meios de prova indicados na respetiva motivação e não havia erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados.


Como atrás se referiu, na reapreciação da prova, o Tribunal da Relação, não está impedido de secundar a motivação da decisão da matéria de facto, constante da sentença da 1ª instância, o que, no caso, ocorreu, no geral, mas em particular quanto à confirmação quanto aos pontos 9 e 26 ( parte final – cobrança essa realizada ao longo de toda a relação contratual mantida com esse fim– única que era impugnada).


Por outro lado, apesar de a motivação do acórdão recorrido, relativamente a esta factualidade ser sucinta, a motivação constante da sentença é convincente, clara, lógica e racional e tem apoio nas cláusulas dos contratos celebrados entre autora e rés, nela analisados, no referido anexo I e nos depoimentos referidos.


Relativamente aos pontos 12 a 14, 29 a 31, a motivação do acórdão recorrido é mais detalhada, sem ser minuciosa, mas aprecia todos os argumentos apresentados pelas Recorrentes, incluindo a não consideração das colunas a que se referem as recorrentes, baseando-se no relatório unânime dos peritos e esclarecimentos por eles prestados.


As recorrentes insurgem-se por constar da fundamentação do recurso da matéria de facto, a afirmação que os peritos “ analisaram os critérios que foram adotados pela autora e pelas rés e concluíram que o critério que expressa de “forma mais justa a realidade da relação contratual.” Ainda que se reconheça que a justificação encontrada aparentemente extravasa a função dos peritos, lido atentamente parágrafo onde a frase está inserida, compreende-se que se está a explicar a razão pela qual os Srs. Peritos consideraram também os valores respeitantes aos “créditos de juros, créditos de penas contratuais e créditos de despesas extrajudiciais.”


No parágrafo seguinte explica como é que os Srs. Peritos lograram indicar os valores constantes dos pontos 14 e 31, apesar de não terem conseguido apurar em concreto os montantes que pertenciam a cada ano que autora cobrou relativos aos juros, às cláusulas de penalidades e às despesas extrajudiciais.


A contradição que as recorrentes referem nas conclusões xvi) e xvii) é meramente aparente, apesar da redação não ser a mais esclarecedora. Na verdade, quando refere que os “valores apurados constam como valores certos” está naturalmente a reportar-se aos montantes que os Peritos lograram indicar, por unanimidade e que constam nesses pontos. No paragrafo seguinte explica que esses montantes foram indicados, tendo os peritos recorrido a uma metodologia que como consta do relatório pericial, consistiu em pressupor que os valores cobrados relativos a juros, cláusulas e penalidades e despesas extrajudiciais dizem respeito ao ano em que se verificou a cobrança.


Temos, pois, que o acórdão recorrido não se limitou a uma apreciação sumária e genérica e apesar de não ter efetuado uma análise critica exaustiva, não se limitou à enunciação de considerações abstratas, pronunciando-se sobre os meios probatórios invocados pelas Recorrentes e reponderou todas as questões de facto suscitadas. Não tendo acolhido a argumentação dos Recorrentes no sentido da existência de erro na apreciação dos meios probatórios, manteve a convicção alcançada pelo Tribunal da 1ª instância e julgou com fundamentação adequada e suficiente, improcedente o recurso da decisão da matéria de facto.


Resulta, assim, que o Tribunal da Relação do Porto procedeu à efetiva reapreciação da prova indicada pelos Recorrentes, não incorrendo em inobservância dos artigos 662.º n.º 1 e 607º n.º 4 do CPC.


3 -Se o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 5º do CPC e artigos 388º e 389º do Código Civil.


Como decidiu o acórdão do STJ de 02.11.2023, proferido no processo n.º. 8988/19.1T8VNG-B. P1.S1, desta 6ª secção, relator António Barateiro Martins, numa revista, como a presente, com fundamento na violação dos artigos 662º n.º1 e 607º n.º 4 do CPC, o que o STJ escrutina é o errado uso dos poderes de reapreciação da matéria de facto e não a errada reapreciação da matéria de facto (por parte da Relação). Não podem ser invocadas, ao abrigo do controlo sobre “o uso (ou não uso) que a Relação fez dos poderes que lhe são concedidos", divergências relativamente ao julgamento de facto feito pela Relação, agindo esta ao abrigo do princípio da livre apreciação de meios de prova, seja esta a prova testemunhal, documental ou pericial, atuação essa da Relação que, nos termos do art. 674.º n.º 3, 1.ª parte do CPC, é insindicável através do recurso de revista.


Ora, no caso, também a invocada violação dos artigos 5º do CPC e 388º e 389º do Código Civil traduz apenas as divergências das Recorrentes relativamente ao julgamento da decisão da matéria de facto pela Relação e os erros em matéria probatória que o Supremo pode escrutinar, são apenas os que estão espelhados no próprio texto do acórdão recorrido e quando tiverem sido desrespeitadas as regras que exijam certa espécie de prova ou imponham a prova, indevidamente desconsiderada de determinados factos ou ainda a violação de norma legal.


De qualquer forma, segundo se depreende das conclusões, a alegada violação do artigo 5º do CPC está diretamente conexionada com a circunstância de o Tribunal da Relação não ter acolhido a sua argumentação quanto a constar como não provado sob o ponto n.º 48, factos não alegados pelas partes e posteriormente não ter logrado obter a alteração dessa factualidade.


As Recorrentes vieram ainda alegar na conclusão xviii) que o acórdão recorrido desconsiderou a alegação da autora nos artigos 29º e 80º da petição. No entanto, nas conclusões do recurso de apelação, não consta que tenham suscitado essa questão no Tribunal da Relação e, por isso, configura questão nova e, consequentemente, não pode sequer ser objeto de apreciação nesta revista.


Relativamente à impugnação da factualidade constante do ponto n.º 48 dos factos não provados, como consta da transcrição supra, na fundamentação do recurso da matéria de facto o acórdão recorrido explicou pormenorizada e detalhadamente as razões pelas quais manteve esse ponto 48 e não julgou provado que a Autora jamais solicitou ou reclamou, no final de cada anuidade dos contratos, o pagamento de prémio por qualquer das sociedades Rés.


Por outro lado, o Tribunal recorrido não deixou também de conhecer a questão do ponto 48 dos factos não provados, não integrar factualidade não alegada pelas partes.


Assim dele consta: “Na alínea m) das conclusões de recurso, argumentam os apelantes que a sentença fixa como “não provado” o facto 48, não alegado pelas partes.


No ponto 48 dos factos não provados, consta:


48 – Até ao ano 2018, a autora nunca mencionou às rés o seu desejo de receber o prémio pela ultrapassagem das percentagens de 50% e de 70% de créditos cobrados respeitantes a determinados anos.


Como decorre do art. 5º do CPC o tribunal só pode decidir a questão de direito utilizando os factos alegados pelas partes, ou tratando-se de factos instrumentais ou complementares, desde que tenham sido objeto de contraditório, nos termos previstos no nº2 do citado preceito.


Desta forma, a ampliação da matéria de facto, sem respeitar o critério legal conduz a considerar não escrito o facto.


Na contestação as rés alegaram:


31. Por isso também jamais a Autora solicitou ou reclamou, no final de cada anuidade dos contratos, o pagamento de prémio por qualquer das sociedades Rés.


37. Se fosse esta a vontade das partes a Autora não teria deixado de reclamar o pagamento do prémio no final do ano em que atingisse os 50% de cobrança.


38. Nunca o fez.


Está em causa saber se a autora ao longo da relação contratual que manteve com as rés, mas apenas no período compreendido entre 2008 (data das alterações contratuais) e 2018 (data da denúncia), alguma vez reclamou junto das rés o pagamento das quantias previstas nos contratos a título de prémio, pois está assente que após a denúncia, em 2018, reclamou por escrito o pagamento de tais quantias (pontos 17 e 19, 34 e 36 dos factos provados).


O ponto 48 dos factos julgados não provados reflete a resposta a tal questão. Não se provou que a autora jamais requereu o pagamento.


O facto de se introduzir a expressão “até 2018” e as “taxas de sucesso” em nada contende com a matéria alegada, por se tratar de uma resposta explicativa, contida na matéria alegada e que decorre da prova produzida, na medida em que pelo menos em 2017 a autora reclamou o pagamento dos referidos prémios.


Desta forma, não se justifica a eliminação do ponto 48 dos factos julgados não provados.”


Ainda relacionado com a questão, o acórdão recorrido fundamentou a desnecessidade de responder à factualidade constante dos artigos 31º, 37º e 38º da contestação, adiantando a seguinte argumentação:


“Consideram os apelantes que se omitiu a resposta aos art. 31, 37 e 38 da contestação, sugerindo que se julgue provado:


-“Jamais a Autora solicitou ou reclamou, no final de cada anuidade dos contratos, o pagamento de prémio por qualquer das sociedades rés”.


Em bom rigor a resposta à questão está dada pela decisão da anterior questão, o que significa dizer que o tribunal se pronunciou sobre tais factos quanto responde ao ponto 48 e ainda, com a resposta que consta dos pontos 17 e 34 dos factos provados.


Contudo, sempre se dirá que, nos termos do art. 666º/2 c) CPC, mostrando-se indispensável ampliar a matéria de facto, deve o tribunal da Relação alterar a decisão da matéria de facto, se a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa. Não sendo possível fazer uso de tal faculdade, deve o tribunal anular a decisão.


A ampliação da matéria de facto mostra-se indispensável, quando se tenham omitido dos temas da prova factos alegados pelas partes que se revelam essenciais para a resolução do litígio, na medida em que assegurem enquadramento jurídico diverso do suposto pelo juiz do tribunal “a quo”.


Os factos essenciais são aqueles que permitem individualizar a situação jurídica alegada na ação ou na exceção.


Os factos complementares são aqueles que são indispensáveis à procedência dessa ação ou exceção, mas não integram o núcleo essencial da situação jurídica alegada pela parte.


Ambos integram a categoria de factos principais porque são necessários à procedência da ação ou exceção, por contraposição aos factos instrumentais, probatórios ou acessórios que são aqueles que indiciam os factos essenciais e que podem ser utilizados para a prova indiciária destes últimos.


Em conformidade com o critério legal, a ampliação da matéria de facto tem de ser indispensável, o que significa que cumpre atender às várias soluções plausíveis de direito, o enquadramento jurídico em face do objeto do recurso e ainda, com a possível intervenção e interpretação do Supremo Tribunal de Justiça, ao abrigo do art. 682º/3 CPC.


No caso concreto o tribunal pronunciou-se sobre a matéria em causa, respondendo aos factos alegados na contestação conforme consta do ponto 48 dos factos julgados não provados.


Conclui-se, que não ocorre omissão de pronúncia sobre factos relevantes para a apreciação do mérito.”


Concordando com a fundamentação transcrita, entendemos que o acórdão recorrido não violou o disposto no artigo 5º do CPC, sendo certo que não deixou de se pronunciar sobre os factos essenciais alegados pelas partes.


A circunstância do referido ponto 48 dos factos não provados, não reproduzir o alegado pelas rés nos artigos 31º, 37º e 38º da contestação, não consubstancia violação do artigo 5º do CPC, dado que, como é pacifico, as instâncias podem responder de forma restritiva ou explicativa à factualidade alegada nos articulados.


Por outro lado, como resulta da fundamentação do acórdão recorrido atrás transcrita, a questão de saber se a autora reclamou das rés o pagamento das quantias previstas no contrato a título de prémio e quando efetuou essa reclamação, foi efetivamente objeto de pronúncia (pontos 17 e 19, 34 e 36 dos factos provados e 48 dos factos não provados), ou seja, as interpelações ocorrem em 04.07.2018 e 03.08.2018.


Saber qual a relevância das interpelações para pagamento apenas ter ocorrido nessas datas é questão de direito e não constitui vicio da decisão da matéria de facto, como sustentam as Recorrentes.


Quanto à arguida violação dos artigos 388º e 389º do Código Civil, defendem as Recorrentes que “desconsiderando parte dos resultados alcançados pelos peritos [colunas “O”, “P” e “Q”], as instâncias violaram o regime dos citados artigos.”


No entanto, ainda que não se subscrevam todas as considerações sobre a valoração da prova pericial expendidas no acórdão recorrido, esta está sujeita à livre apreciação das instâncias e como atrás se referiu, o STJ não pode escrutinar a exata e correta apreciação da prova produzida sujeita à livre apreciação do julgador.


Assim sendo, sendo o Tribunal da Relação livre na apreciação da prova pericial, ou seja, sem estar vinculado a qualquer critério legal, podendo afastar-se das conclusões dos peritos, carece de fundamento a alegação das Recorrentes que a não consideração das [colunas “O”, “P” e “Q”] constitua violação dos citados artigos 388º e 389º do CC.


Em síntese, estando subtraído ao STJ reapreciar a matéria de facto (que a Relação julgou ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova), não pode escrutinar se o que foi dado como provado pela Relação foi ou não bem dado como provado e se corresponde à exata e correta apreciação da prova produzida, designadamente a prova pericial, que, de resto, não se limitou ao relatório, tendo os Srs. Peritos prestados esclarecimentos na audiência de julgamento, que, seguramente permitiram, uma melhor compreensão das complexas questões objeto da perícia ( cf. neste sentido, acórdão do STJ de 21.03.2023, processo n.º 549/21.1T8VCT-B.G1.S1, relator Tibério Nunes da Silva, com o sumário: II. Não cabe no âmbito do recurso de revista analisar a apreciação que as instâncias fizeram quanto à prova pericial produzida nos autos, por estar sujeita à regra da livre apreciação da prova).


Improcedem ou são irrelevantes as conclusões das Recorrentes.


III- DECISÃO


Pelo exposto, julga-se improcedente a revista.


Custas pelas Recorrentes.


Lisboa, 31.01.2024


Os Juízes Conselheiros


Relator – Leonel Serôdio;


1ª Adjunta – Maria Olinda Garcia;


2º Adjunto – Luís Correia de Mendonça