Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1981/20.3T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
FIANÇA
VALIDADE
INTERPRETAÇÃO EXTENSIVA
FORMA ESCRITA
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
REMUNERAÇÃO
BENEFÍCIO DA EXCUSSÃO PRÉVIA
RENÚNCIA
OBRIGAÇÃO SOLIDÁRIA
ABUSO DO DIREITO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 12/12/2023
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Sumário :
I. É nulo o contrato de mútuo da quantia de 35.000,00 euros formalizado em escrito particular, por inobservância da forma legal imposta pelo artigo 1143.º do Código Civil;

II. Da declaração de tal nulidade, com efeito retroativo, resulta a obrigação de restituição integral da quantia recebida pelo “mutuário” na pressuposição da validade do mútuo, ficando sem efeito todas as cláusulas eventualmente acordadas entre as partes, nomeadamente as referentes à retribuição do mútuo e a garantias prestadas;

III. Quando a fiança não seja prestada com benefício de excussão, apesar da natureza geralmente subsidiária da obrigação do fiador, a obrigação do devedor principal e a do fiador pela restituição por invalidade do contrato são solidárias;

IV. Tendo o fiador conhecimento da causa da nulidade do mútuo na data em que prestou a fiança e, apesar disso, garantido à credora a satisfação do seu crédito, a fiança permanece válida e vigente nas relações entre o fiador e a credora, apesar da nulidade da obrigação principal, por aplicação por interpretação extensiva do disposto no artigo 632.º n.º 2 do Código Civil.

V. Nessas circunstâncias o fiador é responsável perante a credora pelo pagamento da retribuição do mútuo, no caso correspondente a uma percentagem do valor dos custos bancários suportados pela credora com a obtenção de financiamento a fim de satisfazer a entrega da quantia “mutuada” ao devedor principal.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


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RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA demandou em acção declarativa com processo comum BB e CC, pedindo, na procedência da acção a sua condenação nos seguintes termos:

a) a reconhecer o crédito da autora sobre os réus no montante global de 43.555,39 euros, sem prejuízo dos custos com a obtenção de crédito que venha a suportar desde a propositura da acção até ao seu integral pagamento;

b) a pagar a quantia de 17.375,34 euros, a título de juros vencidos à taxa legal de 4% desde 1 de janeiro de 2008 sobre o capital de 35.000,00 euros;

c) a reconhecerem a fiança prestada pelo réu CC ao réu BB garantindo o bom cumprimento do crédito da autora;

d) A pagar a quantia de 10.000,00 euros a título de danos não patrimoniais causados à autora pelos réus.

2) Alegou para tanto a autora, em síntese, que no dia 8 de novembro de 2007, emprestou 35.000,00 euros ao réu BB, para o que contraiu um empréstimo junto do “Banco Santander Totta, S.A.” no valor de 55.000,00 euros, tendo os réus assumido o compromisso de lhe devolver a referida quantia de 35.000,00 euros bem como os custos que ela viesse a ter com a obtenção do empréstimo bancário na proporção do valor recebido pelo primeiro.

Mais alegou que os réus assinaram em dezembro de 2007 uma “Declaração” reconhecendo o BB dever à autora a indicada quantia e comprometendo-se a depositar mensalmente na conta desta a quantia percentualmente equivalente à sua parte do empréstimo efetuado (63,64% do valor da prestação e dos respectivos custos bancários), amortizando a quantia no prazo de 6 anos, a partir do dia 1 de janeiro de 2008 e declarando o CC prestar fiança ao réu BB em caso de incumprimento.

Porém, os réus apenas lhe pagaram a quantia de 11.069,56 euros, sendo que há doze anos que vem tentando receber a quantia emprestada, assim como todos os custos inerentes ao pagamento do crédito, pelo que se encontra profundamente afetada devido ao comportamento dos réus.

3) Os réus apresentaram contestação, invocando a nulidade do contrato de mútuo e da fiança por não ter sido respeitada a forma legal e sustentando que apenas o réu BB se encontra obrigado a restituir à autora a quantia de 35.000,00 euros, deduzida do valor por ela já recebido, mas acrescida da percentagem de 63,64% sobre o valor total dos encargos suportados com o crédito bancário, não sendo devidos juros de mora nem havendo lugar a qualquer indemnização por danos não patrimoniais.

4) A autora, em articulado de resposta manteve a posição defendida na petição inicial.

5) Teve lugar a audiência final sendo depois proferida sentença que:

a) Decretou a nulidade, por inobservância da forma legalmente prevista, do contrato de mútuo celebrado entre a autora e o réu BB em novembro de 2007;

b) Declarou a ilegitimidade da invocação da nulidade da fiança, por violação do princípio da confiança, na modalidade venire contra factum proprium;

c) Condenou solidariamente os réus a restituírem à autora a quantia de 35.000,00 € (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa prevista para os juros civis, calculados desde o dia 3 de setembro de 2012 e até efectivo e integral pagamento;

d) Condenou solidariamente os réus a pagar à autora os custos do crédito bancário por si contraído junto do “Banco Santander Totta, S.A.”, na proporção de 63,64% (sessenta e três vírgula sessenta e quatro por cento), no valor liquidado de 7.682,18€ (sete mil, seiscentos e oitenta e dois euros e dezoito cêntimos) e em montante a liquidar;

e) condenou solidariamente os réus, a pagar à autora, a quantia de 1.000,00€ (mil euros), a título de danos não patrimoniais;

f) Absolveu os réus do demais peticionado.

6) Inconformados ambos os réus interpuseram recurso de apelação.

Por seu acórdão de 28 de setembro de 2022 o Tribunal da Relação de Coimbra decidiu:

- Julgar parcialmente procedentes as apelações;

- Revogar correspondentemente a sentença proferida em primeira instância;

- Condenar os réus solidariamente a restituir à autora a quantia de € 22.630,44 (vinte e dois mil, seiscentos e trinta euros e quarenta e quatro cêntimos)1, acrescida dos juros de mora à taxa de juros civis desde 3 de setembro de 2012 e até efectivo pagamento;

- Condenar o réu CC a pagar à autora a percentagem de 63,64% dos custos do crédito bancário por ela suportados, no valor de € 20.051,74 (vinte mil, cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos) (Cfr rectificação em conferência) e dos que vierem a ser liquidados até ao termo da operação de financiamento;

- Condenar cada um dos réus a pagar à autora a quantia de € 500 (quinhentos euros) para ressarcimento dos danos não patrimoniais que lhe foram causados, absolvendo-os de tudo o mais peticionado.


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Parte II – As Revistas

A) Revista interposta pelo réu CC

7) Inconformado o réu CC interpôs recurso de revista, tendo formulado as seguintes conclusões:

“1 – Com a presente revista pretende o Recorrente suscitar as seguintes questões:

a) O ter considerado abuso de direito o facto de o Recorrente ter invocado na contestação da nulidade da fiança, por força da invalidade formal do contrato de empréstimo que lhe estava subjacente e consequentemente ter considerado o aqui Recorrente como responsável pelo montante da obrigação principal e não pela restituição da invalidade, com consequências ao nível da parte decisória quanto aos montantes devidos à Recorrida Ilda;

b) O Acórdão ter considerado o Recorrente como responsável solidário pela obrigação de que procede a responsabilidade e não como responsável subsidiário que é o fiador.

2 - A fundamentação do Acórdão recorrido para declarar ilegítima a invocação da nulidade da fiança por parte do Recorrente assenta na alteração que ao nível da jurisprudência e da doutrina se vem verificando quanto à possibilidade de recurso à invocação das inalegabilidades formais.

3 - A 2ª instância recorre à transcrição de algumas passagens quer da doutrina quer da jurisprudência, sem cuidar de verificar se elas se aplicam á factualidade dos autos até porque a invocação das inalegabilidades formais incidem sobre realidades muito diferentes e não se pode ter por seguro, que tais considerações, feitas em abstracto, se apliquem, sem mais, ao caso presente, como parece resultar da leitura do Acórdão recorrido.

4 - As respostas dadas à matéria de facto são completamente omissas sobre quem elaborou e como foi elaborado o contrato de mútuo com fiança e ainda a razão pela qual ao mesmo não foi dada a forma prescrita na lei para ser formalmente válido, designadamente se o Recorrente teve qualquer intervenção nessa matéria.

5 - Não se provou, e nem sequer foi alegado, que a inobservância da forma do mútuo, no qual não interveio e do qual não beneficiou, possa de alguma forma ser imputada ao Recorrente pelo que não se vê que este tenha contribuído objectivamente para a inobservância da forma do mútuo e da fiança.

6- Por último dar nota que o empréstimo dos € 35.000,00 foi feito no dia 8 de novembro de 2007 (facto 1) e que em 6 de Dezembro desse ano foi assinado o documento particular que titulou o empréstimo (facto 4), ou seja, o documento foi assinado pelo Recorrente quase um mês depois do empréstimo ter sido feito.

7 - Refira-se a este propósito que a Autora no artigo 1º do seu requerimento de 16/10/20 reconhece como verdade o facto de ter sido ela a expor ao Recorrente a sua disponibilidade para ajudar o irmão deste (artigo 17º da contestação) o que evidencia que a iniciativa para realização do empréstimo não partiu daquele.

8 - A intervenção do Recorrente resulta tão somente do pedido da Autora, que queria ajudar o irmão daquele, para ficar como garante do empréstimo.

9 - Partir desta realidade para se dizer, como se diz no Acórdão recorrido, que o Recorrente, só porque é advogado, estava obrigado a chamar atenção para a insuficiência do documento em causa não nos parece legítimo, tanto mais que não é interveniente no mútuo, precisamente de onde parte a invalidade do negócio.

10 - O Acórdão recorrido transcreve algumas passagens para referir que a lei não deve emprestar a sua força vinculativa para projectos e propósitos desonestos pondo também em causa a boa-fé do Recorrente.

11 - A este respeito, duas observações se impõem:

a) Sendo o Recorrente um Advogado experiente, como refere o Acórdão, se tivesse actuado com reserva mental, poderia não ter assinado o documento particular invocando um qualquer pretexto, uma vez que o empréstimo já tinha sido feito um mês antes; e

b) Um advogado experiente e matreiro actuando com reserva mental, sabendo da invalidade do escrito que titulava o empréstimo e a fiança, não tinha escrito em 2012/14 os mail’s transcritos nos autos nos termos em que o fez.

12 - Resulta do exposto que o Acórdão recorrido não retrata de forma correcta a realidade, fazendo juízos de valor (até contraditórios) sobre o comportamento do Recorrente não assentes em factos mas numa realidade por ele ficcionada para chegar à conclusão a que pretendia: considerar ilegítima a invocação por parte do Recorrente de uma inalegabilidade formal.

13 - Aliás, ao contrário do Acórdão recorrido, nunca a Autora nas suas peças processuais deixou transparecer qualquer juízo censurável sobre os comportamentos do Recorrente ao longo do tempo, nomeadamente que tivesse actuado de má-fé ou de forma desonesta; será caso para dizer que o Tribunal está a ser mais papista que o próprio Papa.

14 - As transcrições da doutrina feitas no Acórdão recorrido, seja do Prof. Menezes Cordeiro seja do Prof Pais de Vasconcelos, não passam de considerações abstratas sem qualquer adesão á factualidade dos autos, transcrições essas que são aplicáveis a realidades bem diferentes,

15 - Como diz o Prof. Menezes Cordeiro, não podem as inalegabilidades formais ser abandonados ao sentimento ou à deriva linguística dos “casos clamorosos contrários à Justiça” ou, acrescentamos nós, a expressões equivalentes como “oportunismo” ou “desonestidade”.

16 - O mesmo se pode dizer relativamente à jurisprudência invocada no Acórdão recorrido, uma vez que este não demonstra que as posições defendidas nos diversos arestos se apliquem, sem mais, à factualidade aqui em apreciação.

17 - Em resumo, quer a doutrina quer a jurisprudência invocadas só são válidas se tiverem adesão à realidade a que se aplicam, o que não acontece no caso presente, nem tal adesão se mostra evidenciada no Acórdão recorrido.

18 - Outra questão que decorre da inalegabilidade de vícios formais prende-se com as consequências que decorrem para o Recorrente da posição perfilhada no Acórdão recorrido.

19 - A situação de confiança do credor no fiador não é, só por si, suficiente para afastar a possibilidade de este invocar uma qualquer invalidade formal.

20 - A factualidade aqui em apreciação não configura uma situação em que o Recorrente, mesmo sendo advogado, estivesse numa situação de inalegabilidade perante a inobservância do formalismo exigido pela lei para o contrato de empréstimo e fiança.

21 - A 1ª instância não se pronunciou directamente sobre a questão das consequências para o fiador da posição que perfilhou de que são inalegáveis as nulidades invocadas por falta de forma, ao contrário do Acórdão recorrido que a aborda directa e explicitamente, assumindo o entendimento de que o património do fiador responde pelo montante da obrigação principal e não pelo da restituição, com a consequente perda da característica da acessoriedade própria da fiança.

22 - Este entendimento, começa desde logo por violar o artigo 634º do Código Civil que estabelece que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal.

23 - Para dar respaldo à sua posição, o Acórdão recorrido invoca (??!!!) o disposto no artigo 632º, nº 2 do Código Civil, fazendo uma aplicação analógica ao caso presente.

24 - O que não é de todo admissível não só porque o artigo 632º nº 2 se aplica a uma determinada situação concreta que constitui uma excepção ao nº 1 da mesma norma, a qual nada tem a ver com a dos presentes autos, como também porque lhe está vedado o recurso analogia em função do que dispõem os artigos 10º, nº 1 e 11º do Código Civil.

25 - Mesmo que o Tribunal considere que no caso presente se está perante uma situação de inalegabilidade formal – o que só por mera hipótese de raciocínio se admite – ainda assim, a responsabilidade do Recorrente como fiador tem como conteúdo a restituição por invalidade, por força do disposto no artigo 634º do Código Civil.

26 - Acresce ainda, o disposto no artigo 631º, nº 1 do Código Civil que prescreve que a fiança não pode exceder a obrigação principal e sendo esta, no caso presente, a restituição que decore do disposto no artigo 289º do Código Civil, sempre seria este o limite da responsabilidade do Recorrente caso a fiança fosse considerada válida, além do mais porque só dessa forma se respeitaria a característica da acessoriedade que é própria da fiança – artigo 627º do Código de Processo Civil.

27 - Ainda no âmbito da questão das inalegabilidades formais há um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que é contraditório sobre a mesma questão fundamental de direito com a qual nos defrontamos nos presentes autos – o Ac. do STJ de 11/07/1991 de que se junta cópia.

28 - Perante Acórdãos com posições opostas sobre a mesma questão de direito - da invocação e em que termos de inalegabilidades formais por parte do fiador - cumpre ao STJ em sede de revista conhecer desta questão.

29 - A outra questão que o Recorrente pretende suscitar em sede de revista é a sua condenação solidária com o 1º Réu e não como responsável subsidiário, como deveria ser, caso a fiança fosse considerada válida – o que só por hipótese de raciocínio se admite –, porquanto a fundamentação utilizada nas duas anteriores instâncias é essencialmente diferente uma da outra.

30 - Na 1ª instância o fundamento para a condenação solidária com o 1º Réu foi o facto de não ter alegado o benefício da excussão prévia.

31 - Já na 2ª instância o fundamento para a condenação solidária reside, no dizer do Acórdão recorrido, da lei.

32 - Das normas que regulam o instituto da fiança resulta que a responsabilidade do fiador é acessória da do devedor principal, sem prejuízo de aquele poder renunciar ao benefício da excussão prévia, situação esta que a verificar-se coloca os dois devedores a responder solidariamente.

33 - No caso presente, do documento junto aos autos, não consta que o Recorrente tenha renunciado ao benefício da prévia excussão ou que tenha admitido responder nos mesmos termos em que responde o devedor principal, o 1º Réu.

34 – O único fundamento legitimo a que o Acórdão recorrido podia recorrer no caso presente para condenar solidariamente os Réus era se isso resultasse da vontade das partes plasmada no documento junto aos autos, o que não se verifica.

35 - Mas se o fundamento é a lei, como se alega no Acórdão, a solução não era diferente, porque quando se parte para análise dos termos em que o Recorrente, como fiador, é responsável, não é possível fazer tábua rasa, desde logo, dos artigos 627º, nº 2 e 638º do Código Civil.

36 - Isto é, o Acórdão recorrido “revogou” estas normas do instituto da fiança.

37 - O Acórdão recorrido, violou o disposto nos artigos 627º, nº 2, 631º, 634º, 638º e 334º, todos do Código Civil.”

8) A autora AA apresentou articulado de resposta às alegações de revista do réu, na qual:

- defendeu a inadmissibilidade do recurso de revista interposto pelo réu face ao disposto no artigo 671.º n.º 3 do Código de Processo Civil e, caso assim se não entenda;

- defendeu que a conduta do réu recorrente integra abuso de direito na modalidade de violação da regra da inalegabilidade formal, ao invocar a nulidade da fiança que prestou;

- pediu a improcedência da revista.


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B) Revista interposta pela Autora

9) Também a autora AA interpôs recurso de revista do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, tendo formulado, por sua vez, as seguintes conclusões:

“1. (…) a Autora não se pode conformar com a condenação solidária dos Réus apenas quanto à quantia de € 12.369,56 (doze mil, trezentos e sessenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa prevista para os juros civis, desde 03-09-2012; nem com a condenação de (somente) o 2.º Réu a pagar à Autora na percentagem de 63,64% dos custos do crédito bancário por esta suportados, no valor de € 20.051,74 (vinte mil, cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos);

2. (…) não pode a Autora, aqui Recorrente, conformar-se com a douta decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, porquanto a mesma padece não só de erros de cálculo e de lapsos de escrita, bem como, se encontra viciada com errada interpretação (e falta de fundamentação) e aplicação de direito à factualidade dada como assente; in fine, culminando na nulidade do acórdão por obscuridade, ambiguidade e ininteligibilidade do mesmo, violando o disposto no art.º 615.º n.º 1 al. b), c) e d) do Código de Processo Civil ;

3. Especificamente, a Relação, apenas condenou solidariamente os dois Réus no que respeita ao valor da quantia mutuada (incluindo juros de mora até integral e efetivo pagamento), ignorando ou descurando por completo a igual responsabilidade dos réus quanto aos custos com o crédito suportado, não apresentando fundamentação de Direito que permita almejar e blindar tal conclusão;

4. Assim, a presente Revista fica desde já limitada:

• À retificação de erros materiais e de cálculo por manifesto lapso;

• Ao erro na interpretação e aplicação de direito à factualidade dada como provada, mais precisamente no que concerne à solidariedade dos devedores nas quantias peticionadas pela Autora, aqui Recorrente;

• À nulidade do acórdão por violação do disposto no art.º 615.º n.º 1 al. b), c) e d) do CPC;

5. Atentando ao teor do douto acórdão e confrontando-o especificamente com o dispositivo, jamais o Tribunal da Relação de Coimbra poderia ter condenado solidariamente os Réus na quantia de € 12.369,56 (doze mil, trezentos e sessenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) acrescida de juros de mora à taxa prevista para os juros civis, desde 03-09-2012;

6. A Autora, no dia 8 de novembro de 2007, emprestou a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) ao 1.º Réu, tendo, para o efeito, contraído um empréstimo junto do Banco Santander Totta, S.A., no valor de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), sendo que ambos os Réus assumiram o compromisso de lhe devolver a referida importância – de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) – bem como todos os custos que ela viesse a suportar com o recurso ao empréstimo bancário, na proporção que lhes caberia – em 63,64%;

7. No dia 6 de Dezembro de 2007, os Réus assinaram um documento intitulado de “Declaração”, em que o 1.º Réu. declarou dever, à Autora, a referida quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), comprometendo-se a depositar mensalmente na conta desta a quantia percentualmente equivalente à sua parte do empréstimo efetuado pela Autora, o que corresponde à percentagem de 63,64% do valor da prestação (bem como de todos os custos inerentes), amortizando a quantia no prazo de 6 (seis) anos, a partir do dia 1 de Janeiro de 2008;

8. O 2.º Réu declarou, nesse documento, garantir o cumprimento integral do 1.º Réu, prestando fiança em caso de incumprimento deste;

9. Todavia, os Réus até à entrada da Petição Inicial apenas haviam pago a quantia de € 11.069,56 (onze mil, sessenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos). No decurso da ação liquidaram o valor de € 1.300,00 (mil e trezentos euros), assim perfazendo a importância global de € 12.369,56 (doze mil, trezentos e sessenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos);

10. Quantia essa que vem o Tribunal da Relação de Coimbra condenar a pagamento dos Réus a título solidário, o que se compreende tratar-se de um erro material. Porquanto, ainda que aquele douto Tribunal entendesse que o valor efetivamente pago à Autora fosse subtraído à quantia mutuada – o que de todo não se concede, conforme recita que infra se abordará – deveria efetuar o seguinte cálculo:

• € 35.000,00 (quantia mutuada) - € 12.369,56 (importância liquidada pelos Réus) = 22.630,44 (vinte e dois mil, seiscentos e trinta euros e quarenta e quatro cêntimos):

11. Ainda, no dispositivo, é possível constatar um erro quanto ao valor referente aos custos do crédito bancários, na proporção de 63,64%, que perfaz a quantia de 20.051,74 (vinte mil, cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos), “20.0551,74€”;

12. No que à retificação diz respeito, importa ainda referir que, após a assinatura dos Venerandos Juízes Desembargadores, surge um texto desprovido de qualquer relação com o dispositivo, o qual deve ser retirado, sob pena de gerar confusão na correta compreensão e interpretação do acórdão;

13. Ainda que se materialize a requerida retificação, a Autora/Recorrente não se pode conformar com a conclusão a que chegou o digníssimo Tribunal da Relação de Coimbra;

14. Porquanto, existe, desde logo, uma errada interpretação e aplicação da matéria de direito aos factos, que acaba por culminar na nulidade do acórdão por violação do disposto no art.º 615.º n.º 1 al. b) e c) do CPC, por não especificar e detalhar os fundamentos de direito que o sustentam, revelando ambiguidade e obscuridade, tornando-o ininteligível:

15. O Tribunal de primeira instância julgou e bem:

• Declarar a ilegitimidade da invocação da nulidade da fiança, por violação do princípio da confiança, na modalidade de venire contra factum proprium;

• Condenar solidariamente os Réus a restituírem à Autora a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa prevista para os juros civis, calculados desde o dia 3 de Setembro de 2012 e até efetivo e integral pagamento;

• Condenar solidariamente os Réus a pagarem à Autora os custos do crédito bancário por ela contraído junto do “Banco Santander Totta, S.A.”, na proporção de 63,64%, no valor liquidado de € 7.682,18 (sete mil, seiscentos e oitenta e dois euros e dezoito cêntimos) acrescido do valor a liquidar;

• Condenar solidariamente os Réus a pagar à Autora a quantia de € 1.000,00 (mil euros), a título de danos não patrimoniais;

16. O contrato de mútuo celebrado tinha valor superior a € 20.000,00 (vinte mil euros) carecendo de ser sujeito a escritura pública – o que 2.º Réu (como Advogado, bem sabia) – sendo, pois, tal contrato nulo por vício de forma;

17. A declaração de nulidade do mútuo, por falta de forma, tem como consequência a restituição pelo mutuário de tudo o que tiver sido prestado, por força do disposto no artigo 289.º n.º 1 do Código Civil;

18. Assim, deviam ambos os réus restituir não só o capital mutuado como também a quantia equivalente ao montante dos juros de mora – como frutos civis que são – porquanto o n.º 3 do artigo 289º do Código Civil remete para os artigos 1269.º e ss do Código Civil.

19. Relativamente aos encargos inerentes ao crédito bancário, somos em crer que tanto o 1.º Réu como o 2.º Réu são de igual modo responsáveis, porquanto decorre do documento intitulado por “Declaração” que «Se ocorrer incumprimento deste acordo, será meu fiador CC.» e, o acordo não se resumia à restituição da quantia mutuada, envolvendo também a responsabilidade quanto aos custos inerentes ao crédito bancário, veja-se: «Mais declaro que, me comprometo a depositar mensalmente na sua conta, a quantia percentualmente equivalente à minha parte do empréstimo efetuado e de amortizar a totalidade da minha parte no prazo de seis anos, a partir do dia um de janeiro de 2008. (…)

20. Salvo o devido respeito que como já se disse, imenso é, pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, não deveria ter ignorado que ambos os Réus criaram a expectativa legítima na Autora que iriam restituir todos os valores adiantados por esta, seja a título de quantia mutuada seja a título dos custos inerentes ao crédito bancário na proporção que lhes competia;

21. Todavia, este não foi o entendimento perfilhado;

22. A Relação de Coimbra partilha do entendimento que apenas existe solidariedade na obrigação de restituição no que se refere ao capital mutuado (incluindo os juros de mora), e assim sendo, o (parco)valor que foi pago pelos Réus ao longo dos anos deverá ser abatido àquele, e não aos custos inerentes ao crédito bancário como a Autora pretende;

23. Na perspetiva da Autora, aqui Recorrente impõe-se esclarecer que o valor já entregue pelos Réus deverá, primeiramente, ser abatido não ao capital mutuado, mas sim, aos custos inerentes ao crédito bancário, porquanto, é usual e costumeiro – no pagamento de uma qualquer dívida – se liquidar primeiro os valores referentes a encargos e, posteriormente, se liquidar o capital propriamente dito;

24. Aliás, assim foi determinado pela douta sentença proferida em 1.ª Instância;

29. Em nosso entendimento, somos em crer que os Venerandos Juízes Desembargadores não justificaram inteligivelmente e cabalmente o seu pensamento, comprometendo seriamente o sentido e alcance do mesmo, pois que, no segmento de texto imediatamente posterior podemos constatar o seguinte:

“A obrigação de juros deveria ser, no entanto, diversa relativamente a um e outro dos devedores RR .

Como atrás já se evidenciou o 1º R. paga juros demora sobre a aludida quantia desde que tem conhecimento que está a lesar a Autora - 3/9/2012.

Mas o 2º R. deveria pagar juros sobre a aludida quantia de € 22.630,44, em data anterior, porventura, desde 31/12/ 2014 - 6 anos sobre 1/1/2008 - mas, na verdade a questão deixa de relevar, desde o momento em que esta instância não pode piorar a situação deste R, como o implica a proibição da reformatio in pejus.

Importa ainda saber se, tendo este R. sido condenado nos custos bancários – em cujo valor se incluem, obviamente juros, estes a favor do Banco - não devia já ser condenado nos juros de mora sobre a quantia mutuada, por tal implicar nas palavras do apelante, «dupla penalização que não se afigura legitima».

Também aqui, e salvo melhor opinião, não assiste razão ao apelante” (negrito e sublinhados nossos).

30. Do conjunto de normas do Código Civil mobilizadas (artigos 289.º, 497.º, 513.º, 1269.º e seguintes) pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra, não é possível extrair conclusão diversa à qual chegou o Tribunal de 1.ª Instância;

31. Porquanto, não se vislumbra qual o erro na interpretação de Direito que enferma a sentença do Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, Juízo Central Cível;

32. Salvo melhor opinião, apenas identificado que estivesse o erro e/ou vício da decisão proferida em1.ª Instância, poderia (e deveria) o Tribunal da Relação de Coimbra, saná-lo;

33. Atento o teor do acórdão proferido, partilhamos do entendimento que, em bom rigor, a sentença proferida em 1.ª Instância não padece de qualquer vício e, consequentemente, não merece qualquer reparo pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra e, tanto assim o é que, pese embora tenha, este, almejado conclusão distinta, a mesma não se encontra minimamente fundamentada ou justificada.

34. Ou seja, a alteração promovida pelo Tribunal da Relação de Coimbra encerra em si mesmo o caso previsto no artigo 615.º n.º 1 als. b) e c) do Código de Processo Civil;

35. O que nos leva em crer que a ambiguidade e obscuridade existentes – já carreadas – não permitem almejar quais os fundamentos de Direito que justificam e sustentam o acórdão, verificando-se, ainda, que as normas mobilizadas entram em clara oposição com a decisão proferida a final;

36. De modo a clarificar os Venerandos Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal impõe-se referir que Réus apresentaram recurso de apelação perante o Tribunal da Relação de Coimbra tendo por base 6 (seis) erros de apreciação jurídica, os quais se passam a citar:

• Condenação solidária do 2.º Réu com o 1º Réu no pagamento das diversas quantias a que foram condenados;

• A decisão não respeitar o preceituado no art.º 631º do Código Civil relativo ao âmbito da fiança prestada;

• Condenar simultaneamente os Réus nos juros de mora sobre a quantiamutuada e nos custos bancários;

• Condenação ao pagamento de juros sobre a quantia mutuada a partir de 03/09/2012, data a partir da qual o Tribunal a quo considerou ter havido interpelação para o pagamento por parte da Autora;

• Erro de apreciação ainda relativo à condenação em juros - excesso de pronúncia;

• Erro de apreciação quanto ao pagamento de danos não patrimoniais – entendendo o 2.º Réu que não cabem no âmbito da fiança o pagamento de danos não patrimoniais como decorre do artigo 631º do Código Civil, para mais quando o Recorrente é terceiro relativamente ao contrato de mútuo.

37. A Autora não se conformou com a argumentação mobilizada pelos Réus e, por conseguinte, apresentou Contra-Alegações;

38. Atentando ao teor do acórdão de que se recorre, tudo nos leva em crer – atenta a obscuridade, ambiguidade e ininteligibilidade – que apenas no que concerne ao alegado primeiro erro de apreciação jurídica, tiveram os Réus parcial procedência, sendo julgados totalmente improcedentes todos os restantes;

39. No que concerne à solidariedade dos devedores quanto à totalidade dos valores peticionados pela Autora (à exceção dos danos não patrimoniais, entendimento com o qual a Autora/Recorrente aqui se conforma) convém relembrar que o 2.º Réu garantiu à Autora, na qualidade de Credora, a satisfação total do seu crédito sobre o 1.º Réu – o devedor principal, caso este não cumprisse com o acordado;

40. A invocação da nulidade da fiança por parte daquele, configuraria uma situação de abuso de direito, na modalidade venire contra factum proprium, sendo que o tribunal a quo acolheu e perfilhou este entendimento, fundamentando de modo exímio a douta sentença, não merecendo qualquer reparo;

41. Mais, atentando aos pressupostos de aplicação do instituto do abuso de direito, devidamente anunciados na sentença proferida em primeira Instância, vide pp. 16 e 17, somos em crer que os factos provados espelham uma situação de justificada confiança, levada a cabo pelo 2.º Réu, despoletando na Autora uma expectativa legítima, segundo a qual, aquele asseguraria os eventuais incumprimentos do seu irmão – 1.º Réu – em momento algum conjeturando que aquele invocaria a nulidade da fiança;

42. Todas as comunicações trocadas entre 2.º Réu e Autora, designadamente as que foram juntas aos autos como Docs. 10, 11 com a Petição Inicial, é impossível extrair que aquele iria invocar a nulidade da fiança em consequência da nulidade do mútuo. Outrossim, sempre manifestou consciência da responsabilidade e da obrigação que mantinha para com a Autora, assumindo-se como verdadeiro devedor, transmitindo a necessária confiança até pela proximidade que mantinham;

43. Neste sentido, importa ressalvar que o nosso Ordenamento Jurídico, por via do instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), por exceder em larga medida os limites impostos pela boa-fé, torna ilegítimo ao 2.º Réu invocar e referida nulidade, não restando outra possibilidade ao Tribunal de 1.ª Instância, em condenar solidariamente os Réus no pagamento dos valores devidos à aqui Recorrida, pois que, o benefício de excussão prévia nem sequer foi invocado pelo 2.º Réu;

44. No caso em apreço, e ao contrário do alegado pelos Réus, a Meritíssima Juiz de primeira instância, não conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento, nem tão-pouco, os condenou em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido formulado pela Autora, o que aliás acabou por ser confirmado pelo acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra;

45. Em face do acima exposto, bem se compreende que o 2.º Réu assumiu a responsabilidade pelo incumprimento do 1.º Réu em toda a sua extensão, não apenas quanto à quantia mutuada;

46. Criou a expectativa legitima, na Autora, que caso o 1.º Réu falhasse, aquele suportaria o pagamento, numa clara expressão do princípio jurídico denominado pacta sunt servanda que norteia todos os negócios jurídicos e, que, aliás tem a sua consagração no Código Civil (artigo 406.º/n.º 1);

47. De salientar – uma vez mais – que a garantia prestada pelo 2.º Réu foi determinante para a Autora emprestar aquela quantia monetária ao 1.º Réu, pois tratava-se de uma quantia avultada com encargos bancários associados;

48. Sem olvidar que a Autora teve necessariamente de hipotecar a sua casa a favor do Banco para lhe poder ser concedido o mútuo bancário;

49. O que jamais faria se o 2.º Réu não lhe assegurasse o cumprimento do empréstimo celebrado, o que aliás, sempre sucedeu através de todas as comunicações trocadas.

50. Inclusive, apresenta-se como um verdadeiro devedor, assumindo o crédito como seu.

51. Note-se que a Autora mantinha uma relação de proximidade e de confiança com o 2.º Réu, e sabendo que este era Advogado, conhecedor e sabedor de lei e de direito, em momento algum conjeturou que o mútuo celebrado estava ferido de nulidade, por vício de forma (inobservância da forma legalmente prevista), desconhecendo ainda se a fiança prestada revestia ou não todos os pressupostos legais exigidos;

52. Os Réus obrigaram-se a liquidar a quantia mutuada, bem como os encargos com a constituição do mútuo bancário na proporção de 63,64%;

53. Os factos dados como provados nos pontos 4, 6, 10, são ilustradores e comprovadores desta realidade, id est:

“4.º No dia 6 de dezembro de 2007, os réus assinaram um documento particular com o seguinte teor:

«Eu, BB (…) declaro para os devidos efeitos, de que me encontro em débito para com AA, da quantia de € 35.000,00 (…).

«Para a concretização deste empréstimo, a AA fez um financiamento em novembro/07 (…) no valor total de € 55.000,00 (...).

«Mais declaro que me comprometo a depositar mensalmente na sua conta, a quantia percentualmente equivalente à minha parte do empréstimo efetuado e de amortizar a totalidade da minha parte no prazo de seis anos, a partir do dia um de janeiro de 2008. (...)

«Se ocorrer incumprimento deste acordo, será meu fiador CC.» - cf. “declaração” junta sob documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

6.º Os réus mostraram dificuldades em cumprir com o acordado com a autora, embora reconhecessem estar em dívida com esta e se comprometessem a resolver a situação – cf. mensagens de correio eletrónico e missivas juntas sob documentos n.º 4 a 10 com a petição inicial, cujo teor dou por integralmente reproduzido.

10.º Ao longo destes autos, os réus fizeram promessas sucessivas de que iriam pagar o valor em dívida.”

54. Reportando-nos por ora à interpretação da matéria de Direito que versa sobre a nulidade do mútuo celebrado e a solidariedade da obrigação dos Réus – artigos 289.º n.º 1 e3,497.º, 512.ºe513.º, 1269.º e seguintes–importa referir que ao abrigo do disposto no n.º 1 do art.º 289.º do Código Civil “Tanto a declaração de nulidade como a anulação do negócio têm efeito retroactivo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.” e, por força da remissão operada pelo art.º 289.º n.º 3 do Código Civil “3.É aplicável em qualquer dos casos previstos nos números anteriores, directamente ou por analogia, o disposto nos artigos 1269.º e seguintes.”, a obrigação de restituir abrange não só o capital mutuado, como também a quantia equivalente ao montante dos juros de mora;

55. Assim sendo, os Réus têm de restituir à Autora não só a quantia mutuada, mas também os juros de mora legais, como frutos civis que são (artigos289.º n.ºs1e3, 212.º, 1269.º a 1271.º, 805.º, n.º 1, e 806.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

56. Resulta dos factos provados que a Autora, por escrito datado de 31 de julho de 2012, apresentou aos Réus propostas de pagamento da dívida e concedeu até ao dia 31 de agosto de 2012 para escolha de uma dessas propostas, sob pena de instauração de ação, no dia 3 de setembro de 2012, para pagamento integral da dívida;

57. Pelo menos, a partir desta data os Réus bem sabem que a sua posse lesa o direito da mutuante, devendo restituir os frutos que desde então poderiam ser produzidos até ao termo da posse, atuando com diligência normal.

58. Desde modo, os juros que incidem sobre a quantia mutuada são devidos, pelo menos, desde o dia 3 de setembro de 2012 e até efetivo e integral pagamento.

59. Relativamente à responsabilidade solidária propriamente dita cumpre observar o que dispõe o artigo 497.º nº 1do Código Civil: “Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade.” dispondo o art.º 512.º do Código Civil que: “A obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela prestação integral e esta a todos libera, ou quando cada um dos credores tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral e esta libera o devedor para com todos eles.”

A obrigação não deixa de ser solidária pelo facto de os devedores estarem obrigados em termos diversos ou com diversas garantias, ou de ser diferente o conteúdo das prestações de cada um deles; igual diversidade se pode verificar quanto à obrigação do devedor relativamente a cada um dos credores solidários;

60. Ainda a este propósito cumpre citar o art.º 513.º do Código Civil “A solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou da vontade das partes.”

61. Atendendo aos normativos supra citados, mobilizados tanto pelo Tribunal de 1.ª Instância como pelo Tribunal da Relação de Coimbra, partilhamos do entendimento que atenta a factualidade dada como provada, ambos os Réus criaram a expectativa legítima na Autora que iriam restituir todos os valores adiantados por esta, seja a título de quantia mutuada seja a título dos custos inerentes ao crédito bancário na proporção que lhes competia, motivo pelo qual são ambos responsáveis solidariamente;

62. Relativamente aos encargos decorrentes do crédito bancário sempre se dirá que o pagamento dos mesmos decorre do referido contrato agora tido como nulo, pelo que – e sem existir lei expressa que tutele de outro modo – deveriam ambos os Réus ser, de igual modo, condenados solidariamente na proporção que lhes caberia, id est, em 63,64% desses custos (tal como a 1.ª Instância bem julgou e o acórdão da Relação revogou);

63. Ora, a este propósito, resultou provado que os custos (comissões, imposto de selo, juros e seguro de vida) inerentes ao pagamento do crédito bancário ascenderam, entre novembro de 2007 e julho de 2021, à quantia total de € 31.508,07 (trinta e um mil, quinhentos e oito euros e sete cêntimos) – ponto n.º 9 dos factos provados.

64. Tendo em conta o acordo firmado entre a Autora e os Réus, devem estes proceder à restituição de todas as importâncias que aquela suportou e que continuará a suportar a título de encargos bancários, na proporção que lhe cabe, que é, como referido, de 63,64%;

65. Temos, portanto, que a Autora tem direito ao recebimento dos encargos bancários comprovados, na respetiva proporção, os quais ascendem ao montante de € 20.051,74 (vinte mil, cinquenta e um euros e setenta e quatro cêntimos) (31.508,07€ x 63,64%);

66. Sendo que, a este montante deve ser deduzida a importância global entregue pelos Réus à Autora (€ 20.051,74€ - € 12.369,56) o que perfaz a quantia de € 7.682,18 (sete mil, seiscentos e oitenta e dois euros e dezoito cêntimos);

67. Sem olvidar que os custos do crédito bancário ainda não se encontram determinados na totalidade, uma vez que se vencem mensalmente, ao longo do período de duração do empréstimo, devendo este valor remanescente ser apurado a final em sede de liquidação;

68. Em face do acima exposto, salvo o devido respeito que imenso é pelos Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Coimbra, somos em crer que o acórdão proferido nos presentes autos padece não só de erros de cálculo e de lapsos de escrita, bem como, se encontra viciado por falta de fundamentação legal, errada interpretação e aplicação de direito à factualidade dada como assente, culminando na nulidade do acórdão por obscuridade, ambiguidade e ininteligibilidade do mesmo, violando o disposto no art.º 615.º n.º 1 al. b), c) e d) do CPC;

69. A sentença proferida em 1.ª Instância não padece de qualquer vício, devendo o teor da mesma, ser repristinado por este Venerando e Supremo Tribunal, mantendo a condenação dos Réus, especificamente nos seguintes moldes (sem prejuízo do restante):

• Condenar solidariamente os Réus a restituírem à Autora a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros), acrescida de juros de mora à taxa prevista para os juros civis, calculados desde o dia 3 de Setembro de 2012 e até efetivo e integral pagamento;

• Condenar solidariamente os Réus a pagarem à Autora os custos do crédito bancário por ela contraído junto do “Banco Santander Totta, S.A.”, na proporção de 63,64%, no valor liquidado de € 7.682,18 (sete mil, seiscentos e oitenta e dois euros e dezoito cêntimos) acrescido do valor a liquidar;”

10) Os réus / recorridos não apresentaram articulado de resposta às alegações na revista interposta pela autora.


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11) Admitidos que foram os recursos interpostos há que deles tomar conhecimento.

a) São as seguintes as questões colocadas no recurso de revista interposto pelo réu CC:

Se constitui abuso do direito a alegação da nulidade da fiança prestada pelo réu recorrente e, em caso de resposta afirmativa, se a sua obrigação enquanto fiador se limita à restituição por invalidade ou se se estende a toda a obrigação principal;

Se existe solidariedade ou simples conjunção entre a obrigação de restituição do valor recebido pelo réu BB e a obrigação do fiador recorrente perante a credora;

b) As questões colocadas na revista interposta pela autora AA:

A da nulidade do acórdão recorrido com fundamento no artigo 615.º n.º 1 alíneas b), c) e d) do Código de Processo Civil;

A da abrangência da responsabilidade (solidária) dos réus não só ao montante da quantia recebida pelo réu BB, mas também ao valor da percentagem com os encargos bancários suportados pela autora (esta questão está conexionada com a primeira questão colocada na revista do réu).

12) Tomar-se-á conhecimento das revistas começando por abordar a nulidade do acórdão recorrido invocada pela autora já que da eventual procedência de tal questão poderá resultar prejudicada a apreciação de todas as demais questões suscitadas em ambas as revistas.

Caso não resulte prejudicada a sua apreciação serão apreciados conjuntamente as questões colocadas nas duas revistas e os termos em que deve ser definida a responsabilidade de ambos os réus, perante a autora, seu enquadramento jurídico e conteúdo.

Comecemos por analisar a matéria de facto que foi dada como provada pelas instâncias.


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FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

São estes os factos considerados provados, e não provados, tal como descritos no acórdão recorrido:

A – Factos Provados

1.º No dia 8 de novembro de 2007, a autora emprestou a quantia de € 35.000,00 (trinta e cinco mil euros) ao 1.º réu.

2.º Para o efeito, no dia 5 de novembro de 2007, a autora contraiu um empréstimo junto do “Banco Santander Totta, S.A.”, no valor de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros), com prazo para pagamento de 252 meses – cf. “contrato n.º ...10 (com hipoteca)” junto sob documento n.º 2 com a petição inicial, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido.

3.º Para garantia de todas as responsabilidades assumidas no referido empréstimo, a autora constituiu uma hipoteca sobre a fração autónoma designada pelas letras “CG” do prédio descrito sob o n.º 505, da freguesia de ... – cf. mesmo documento.

4.º No dia 6 de dezembro de 2007, os réus assinaram um documento particular com o seguinte teor:

«Eu, BB (…) declaro para os devidos efeitos, de que me encontro em débito para com AA, da quantia de € 35.000,00 (…).

«Para a concretização deste empréstimo, a AA fez um financiamento em novembro/07 (…) no valor total de € 55.000,00, financiamento este que se encontra garantido com uma hipoteca do andar onde esta reside.

«Mais declaro que, me comprometo a depositar mensalmente na sua conta, a quantia percentualmente equivalente à minha parte do empréstimo efetuado e de amortizar a totalidade da minha parte no prazo de seis anos, a partir do dia um de janeiro de 2008. (…)

«Se ocorrer incumprimento deste acordo, será meu fiador CC.» - cf. “declaração” junta sob documento n.º 3 com a petição inicial, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido.

5.º (Facto eliminado pelo acórdão recorrido).

6.º Os réus mostraram dificuldades em cumprir com o acordado com a autora, embora reconhecessem estar em dívida com esta e se comprometessem a resolver a situação – cf. mensagens de correio eletrónico e missivas juntas sob documentos n.º 4 a 10 com a petição inicial, cujo teor foi dado por integralmente reproduzido.

7.º A autora efetuou várias interpelações junto dos réus, tendo em vista o pagamento da dívida, nomeadamente por escrito datado de 31 de julho de 2012, em que apresenta propostas de pagamento e concede até ao dia 31 de agosto de 2012 para escolha pelos réus de uma dessas propostas, sob pena de instauração de ação, no dia 3 de setembro de 2012, para pagamento integral da dívida – cf. mesmos documentos.

8.º Os réus pagaram à autora as seguintes quantias:

- 486,00€, em 18.04.2008;

- 486,00€, em 06.05.2008;

- 900,00€, em 23.09.2008;

- 600,00€, em 05.01.2009;

- 801,34€, em 03.03.2009;

- 729,00€, em 14.07.2009;

- 1.567,22€, em 01.02.2010;

- 2.000,00€, em 12.07.2010;

- 1.500,00€, em 01.02.2012;

- 500,00€, em 31.08.2012;

- 1.500,00€, em 19.07.2013, o que totaliza o valor de 11.069,56€.

9.º Os custos (comissões, imposto de selo, juros e seguro de vida) inerentes ao pagamento do crédito bancário ascenderam, entre novembro de 2007 e julho de 2021, à quantia total de 31.508,07€.

10.º Ao longo destes autos, os réus fizeram promessas sucessivas de que iriam pagar o valor em dívida.

11.º Em virtude do comportamento dos réus – de não pagamento da dívida - a autora sofreu, há mais de 10 anos, um quadro de perturbação de ajustamento/depressão reativa prolongada.

12.º E encontra-se profundamente afetada, sentindo-se enxovalhada, humilhada e diminuída na sua pessoa, não só perante os réus, como perante o seu círculo de amigos e os seus filhos.

13.º No decurso da ação, os réus efetuaram à autora o pagamento da importância global de 1.300,00€.

B) Factos não provados

As instâncias deram como não provado que ao longo destes autos, os réus tenham tentado dissuadir a autora de tomar diligências.


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Parte II – O Direito

Em apreciação estão dois recursos de revista independentes interpostos respectivamente pelo réu CC e pela autora AA.

Em relação à revista interposta pela autora AA, uma vez que em sede de conferência foram já rectificados os lapsos de escrita que o acórdão recorrido continha e esclarecida a razão de ser da inserção do sumário da decisão no final do texto de acórdão, nenhuma referência merecerão nesta sede as conclusões apresentadas nas alegações de recurso sob os números 1 a 13.

Quanto á revista da autora apreciar-se-á em primeiro lugar a questão da nulidade do acórdão recorrido suscitada pela autora.


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1) Invoca a autora a nulidade do acórdão recorrido - conclusões 14 a 34 das alegações de recurso – com o fundamento legal expresso no artigo 615.º n.º 1 alínea b) e c) do Código de Processo Civil, ou seja, por omissão dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão e por os fundamentos expressos estarem em oposição com a decisão ou conter ambiguidade ou obscuridade que a tornem ininteligível.

Como é sabido, trata-se de vícios respeitantes à estrutura da sentença (ou acórdão) que ocorrem, no que se refere à alínea b) quando não seja expressa a indicação dos fundamentos de facto e de direito da decisão, sendo certo que uma fundamentação menos aprofundada do aspecto jurídico da causa que, por exemplo, não aborde todos os argumentos esgrimidos pelas partes, mas trate as questões efectivamente colocadas, não torna a decisão anulável.

Quanto à primeira parte da alínea c) a oposição prevista pelo legislador como fundamento de nulidade da sentença assenta na contradição lógica entre os fundamentos e a decisão, em termos tais que apontando os primeiros num determinado sentido conclusivo o dispositivo acaba por ser de sentido oposto ou divergente.

Já a segunda parte da mesma alínea c) se reporta aos casos em que os termos em que os fundamentos e a decisão da sentença estão redigidos não são suficientemente esclarecedores do percurso lógico seguido pelo decisor.

2) No caso da anulabilidade da sentença com os fundamentos invocados não está em causa a existência de erros de julgamento.

A invocada nulidade do acórdão recorrido assentaria no facto de, sendo, no entender da autora recorrente, irrepreensível a sentença proferida em primeira instância não se encontrar explicada no acórdão recorrido a razão pela qual ela foi alterada, reduzindo-se em segunda instância a abrangência da responsabilidade solidária dos réus à restituição do capital mutuado e imputando apenas ao réu CC. a responsabilidade pelo pagamento dos custos da operação de crédito bancário que tinha sido em primeira instância considerada da responsabilidade solidária de ambos os réus.

3) Visto o acórdão recorrido facilmente se alcança que ele explicita de forma adequada a forma como, divergindo do entendimento da sentença proferida em primeira instância acerca do regime de solidariedade entre os réus quanto à restituição da importância recebida apenas pelo réu BB, chegou à conclusão de que, embora com diferente enquadramento jurídico, a responsabilidade pela devolução do capital era solidária – quanto ao réu BB por efeito direto da nulidade do contrato de mútuo celebrado e do recebimento da quantia acordada e quanto ao réu CC por efeito de lhe ser vedada a invocação da nulidade da fiança por efeito do abuso de direito, respondendo este como se ela fosse válida.

Mais se fundamentou a diferente condenação de cada um dos dois réus na circunstância de ficar sem efeito quanto ao mutuário do contrato nulo a retribuição acordada – respondendo apenas pela restituição resultante da invalidade – e de, não operando a invocação de nulidade do contrato de mútuo e da fiança em relação ao réu CC, não haver razão para o isentar do cumprimento da obrigação assumida perante a autora.

E quanto à condenação de cada um dos autores a pagar a indemnização arbitrada por danos não patrimoniais – questão que não é abordada nas revistas interpostas – ficou expressamente justificada a decisão e a opção pela fixação de obrigações conjuntas e não solidárias.

A discordância da autora recorrente quanto à solução encontrada não significa que a fundamentação esteja omissa ou seja deficiente, vício de que no caso presente o acórdão recorrido não padece.

Improcede nesta parte a revista interposta pela autora AA.


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4) Nas restantes conclusões das suas alegações do recurso de revista a autora AA, ora recorrente defende ter havido erro de julgamento no acórdão recorrido ao não reconhecer a solidariedade entre os dois réus perante a autora senão quanto ao valor da quantia entregue ao réu BB, pugnando pela condenação solidária dos réus também em relação à obrigação de pagamento à autora dos custos por ela suportados relativos ao crédito bancário para financiamento na proporção de 63,64%.

A questão da solidariedade das obrigações dos réus quanto à devolução do capital e à percentagem dos custos do crédito bancário solicitado pela autora é comum a ambos os recursos e depende da prévia definição dos termos em que o réu CC deve responder perante a autora, enquanto fiador.

Vejamos em primeiro lugar em que termos a questão foi resolvida nas instâncias.

5) Do quadro da matéria de facto fixada pelas instâncias decorre que estamos perante um contrato de mútuo celebrado entre a autora AA e o réu BB e relativamente ao qual não foi respeitado, em função do valor entregue, o comando do artigo 1143.º do Código Civil no que se refere à forma do contrato legalmente imposta.

A omissão da forma legalmente estabelecida para o contrato de mútuo celebrado entre a autora AA e o réu BB tem por efeito, como consta da norma em causa e resulta da sua conjugação com o disposto no artigo 220.º do Código Civil, que o contrato de mútuo celebrado é nulo e de nenhum efeito.

A nulidade do contrato de mútuo em causa é, por outro lado, de conhecimento oficioso (artigo 286.º do Código Civil).

6) Constitui jurisprudência pacífica neste Supremo Tribunal de Justiça que, sendo nulo o contrato de mútuo e operando a declaração de nulidade retroactivamente, na regulação dos direitos entre o “mutuante” e o “mutuário” tudo se passa como se o contrato nunca tivesse sido celebrado, não ficando as partes contratantes vinculadas ao cumprimento de quaisquer cláusulas que lhe tenham sido associadas, nomeadamente as relativas à retribuição, a prazos e a garantias de cumprimento.

A nulidade do contrato de mútuo tem, nessa perspectiva, como único efeito lógico a reposição da situação anterior ao acordo através da obrigação de devolução à parte “mutuante” da quantia dela recebida pelo “mutuário” no pressuposto da sua validade (artigo 289.º n.º 1 do Código Civil).

Daí que, no caso presente, o réu BB, que comprovadamente recebeu da autora a quantia de 35.000,00 euros esteja obrigado a restituir-lhe tal quantia face à invalidade do contrato, devendo ser considerada na determinação do montante a devolver à autora a totalidade do valor já entregue à autora (sobre este ponto assim decidiu também o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 31 de janeiro de 2019 na revista 89/16.8T8VGS.P1.S2).

Está em conformidade com tais considerandos o acórdão recorrido ao afirmar, numa primeira abordagem, que apenas o réu BB é responsável pela restituição à autora da quantia dela recebida.

7) Resulta ainda dos factos apurados que a declaração em que o réu BB reconhecia ser devedor da autora foi subscrita pelo réu CC que por esse modo reconheceu ser responsável como fiador do “mutuário” caso este não cumprisse o acordo a que a declaração alude.

A fiança assim prestada pelo réu CC constitui parte integrante do contrato de mútuo celebrado entre a autora e o réu BB – cuja nulidade foi reconhecida pelas instâncias – e através dela o fiador assumiu perante a credora a satisfação do seu direito de crédito.

Apesar de a fiança prestada pelo réu CC ser nula (artigo 632.º n.º 1 do Código Civil) por efeito da nulidade do contrato de mútuo, ambas as instâncias acabaram por condenar solidariamente os réus a restituir à autora a quantia entregue pela autora ao réu BB.

8) A fundamentar tal decisão na sentença proferida em primeira instância fez-se constar o seguinte:

A obrigação de restituição decorrente do n.º 1 do artigo 289.º do Código Civil tem natureza diversa da obrigação inicial assumida no contrato nulo, tudo se passando, face à retroatividade da declaração de nulidade, como se o negócio não tivesse sido realizado, não vinculando da mesma forma todos os contraentes, até porque a fiança, muito embora tenha o mesmo conteúdo da obrigação garantida (artigo 634.º do Código Civil), é uma obrigação distinta daquela, trata-se de duas obrigações, com dois sujeitos diferentes, devedor e fiador.

Portanto, não tendo o 2.º réu (fiador) recebido qualquer quantia, face à acessoriedade da garantia prestada (artigo 627.º, n.º 2, do Código Civil) e à invalidade da fiança decorrente da nulidade da obrigação principal (mútuo), haverá que concluir que não se encontra vinculado à restituição (do valor que não recebeu).”

Mas – ponderou a sentença – sendo ilegítimo e abusivo o exercício do direito de invocação pelo réu CC da nulidade da fiança, também ele deveria responder, solidariamente com o réu BB, pela satisfação do crédito da autora.

9) Por sua vez o acórdão recorrido considerou que na origem da solidariedade não estava a fiança, mas sim a circunstância de os réus “estarem obrigados por título diferentes mas em função da mesma relação jurídica material à satisfação do mesmo interesse do credor (pagamento da mesma quantia à mesma pessoa), de tal modo que cada um deles responde pelo valor de € 22.630,44 e juros acima referidos e o pagamento à autora desta quantia por um deles, aos dois libera – cfr artigo 512.º do Código Civil”.

10) No entanto, divergiram as instâncias quanto à responsabilidade dos réus pelo pagamento à autora da percentagem dos custos do crédito bancário por ela suportados.

Partindo ambas da nulidade do contrato de mútuo e dos seus efeitos, por um lado, e do facto de o réu CC ter actuado em abuso de direito ao invocar a nulidade da fiança, por outro, ao passo que a sentença proferida em primeira instância condenou ambos os réus solidariamente numa percentagem dos custos do mútuo bancário contraído pela autora AA, isto é, a cumprir integralmente o acordado, o acórdão recorrido excluiu nessa parte a responsabilidade do réu BB.

11) Tal divergência assenta no facto de a sentença proferida em primeira instância ter considerado a cláusula em que o réu BB se comprometeu a pagar uma percentagem dos custos do crédito bancário suportados pela autora como não fazendo parte do contrato de mútuo, constituindo um acordo paralelo não afectado pela declaração da nulidade do mútuo e de o acórdão recorrido a ter considerado como cláusula remuneratória do mútuo abrangida pelos efeitos da declaração de nulidade sobre a obrigação do “mutuário”.

12) Cremos que neste particular bem andou o acórdão recorrido ao excluir a responsabilidade do réu BB pelo pagamento da percentagem dos custos com o crédito bancário suportados pela autora AA.

A convenção através da qual o réu BB se comprometeu a suportar parte dos custos suportados pela autora AA com a obtenção do crédito bancário não pode deixar de ser havida, na economia do acordo estabelecido, como representando a remuneração do contrato de mútuo celebrado e não como assunção de dívida a favor da instituição de crédito relativamente a quem de resto, se desconhece se a ratificou.

13) Tal como já mencionado no anterior ponto 6), constitui jurisprudência sedimentada neste Supremo Tribunal de Justiça – de que são exemplo as decisões citadas no acórdão recorrido – que a nulidade do contrato de mútuo abrange todo o seu conteúdo, incluindo os acordos a que as partes tenham eventualmente chegado sobre a remuneração do mútuo ou sobre as garantias prestadas.

Desaparecendo por efeito da retroactividade da declaração de nulidade do contrato de mútuo o acordo a que as partes chegaram acerca do pagamento pelo réu BB da percentagem de 63,64% do valor dos custos suportados pela autora, só ocorre fundamento legal para a sua condenação a restituir “tudo o que tiver sido prestado” no pressuposto da validade do contrato, tal como foi decidido no acórdão recorrido.


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14) E quanto ao réu CC, ora revistante? De onde deriva, de acordo com as instâncias, a sua responsabilidade perante a autora AA quanto ao pagamento da quantia entregue ao réu BB e ao pagamento da percentagem dos custos suportados pela autora com o crédito bancário?

O réu CC, recorde-se, interveio no acordo celebrado entre a autora AA e o réu BB como fiador, assim garantindo pessoalmente à autora a satisfação do seu crédito.

Ao passo que a sentença de primeira instância fez assentar a solidariedade das duas obrigações na fiança assumida pelo réu CC – uma vez que o exercício abusivo do direito a invocar a sua nulidade tornava ineficaz tal invocação – o acórdão recorrido encontrou o fundamento da sua responsabilidade solidária com o réu BB no artigo 512.º do Código Civil, considerando que ambos estavam obrigados em função da mesma relação jurídica material à satisfação do mesmo interesse da credora, restringindo, naturalmente, a solidariedade à obrigação de restituição da quantia recebida.

15) O fiador garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor (artigo 627.º n.º 1 do Código Civil). No entanto, a obrigação do fiador é acessória da que recai sobre o devedor principal (artigo 627.º n.º 2 do Código Civil), sendo a acessoriedade da fiança a sua principal característica distintiva.

Da acessoriedade da obrigação do fiador derivam várias consequências, das quais importa salientar as que se referem ao conteúdo da obrigação do fiador (artigo 631.º, 632.º e 634.º do Código Civil). No dizer de Luís de Menezes Leitão 2 da acessoriedade da obrigação do fiador em relação à do devedor principal resulta que ela se apresente em termos genéticos, funcionais e extintivos na dependência da obrigação do devedor.

16) Por outro lado, a responsabilidade do fiador é subsidiária da do devedor principal, revelando-se a subsidiariedade na possibilidade de o fiador recusar o cumprimento da obrigação enquanto não forem excutidos os bens do devedor principal.

Sem embargo, o credor pode, ainda que o fiador goze do benefício da excussão, demandá-lo em acção declarativa, só ou juntamente com o devedor, e porque, respondendo o fiador e o devedor principal pela prestação integral, o cumprimento da obrigação por qualquer deles a ambos libera perante o credor.

17) Ainda que não se verifique, no caso presente, identidade jurídica do fundamento da obrigação de ambos os réus perante a credora, há identidade material da prestação, comunhão de fins da obrigação de ambos e o efeito de extinção recíproca da obrigação resultante do cumprimento por qualquer deles.

Se é certo que o devedor principal – o réu BB – e o fiador – o réu CC – não são condevedores solidários, em sentido rigoroso face à subsidiariedade da obrigação do fiador, ocorrendo renúncia ao benefício da excussão, o fiador equipara-se nas relações entre ele e o credor, a um devedor solidário, ainda que, não o sendo realmente, possa exigir do afiançado, caso cumpra a obrigação, a totalidade do que pagou (cfr. Mário Júlio de Almeida Costa in Direito das Obrigações a página 368 da 2ª Edição revista e actualizada – Atlântida Editora).

18) Tem, pois, aplicação ao caso dos autos o regime da solidariedade entre a obrigação do réu BB – devedor principal – e o réu CC - seu fiador, perante a autora AA, visto o disposto no artigo 512.º n.º 1 do Código Civil.

De onde não pode deixar de se concluir que, tal como decidiu o acórdão recorrido, os réus respondem solidariamente perante a autora pela restituição da quantia que foi objecto do contrato de mútuo declarado nulo.


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19) Importa, por último, decidir se o réu CC deve igualmente ser condenado, tal como decidido no acórdão recorrido, a pagar a percentagem de 63,64% do valor dos custos da operação de financiamento bancário levada a cabo pela autora AA para satisfazer a entrega ao réu BB da quantia de 35.000,00 euros.

A questão equaciona-se da forma seguinte: Uma vez que a obrigação do devedor principal não abrange o pagamento dessa remuneração do mútuo, deverá, ainda assim o seu fiador responder pelo integral cumprimento do contrato por ser conhecedor da causa da anulabilidade da fiança ao tempo em que ela foi prestada?

20) A propósito da acessoriedade da fiança refletida no artigo 632.º do Código Civil, escreve Luís de Menezes Leitão (obra e local citado na nota de rodapé n.º 2) o seguinte:

“Uma outra manifestação da acessoriedade é a de que a invalidade da obrigação principal, seja ela nulidade ou mera anulabilidade, acarreta também a invalidade da fiança, por força do artigo 132.º n.º 1. No caso, porém, de mera anulabilidade, o facto constitutivo da obrigação principal tem que ser efectivamente anulado, para que a obrigação do fiador deixe de subsistir. No entanto, a fiança mantém-se como válida se, anulada a obrigação principal, por incapacidade ou por vício de vontade do devedor o fiador conhecia a causa da anulabilidade ao tempo em que a fiança foi prestada. A razão para esta solução reside na circunstância de uma declaração de fiança com conhecimento da anulabilidade da obrigação principal por esse motivo dever valer também como garantia, prestada pelo fiador, de que a obrigação principal não será anulada, respondendo este por incumprimento da garantia caso tal venha a suceder”.

Sobre a justificação para essa solução o Professor Mário Júlio de Almeida Costa escreveu (Direito das Obrigações – Atlântida Editora, SARL – a página 366 da 2ª edição revista e actualizada):

“Explica-se a referida excepção. Pois se o fiador se obrigou sabendo que a dívida principal estava afectada por um vício que a tornava inválida, é porque se quis responsabilizar tanto para o caso de ela vir a ser anulada como para a hipótese inversa”.

21) Porém, este eminente Professor restringe a solução prevista no artigo 632.º n.º 2 do Código Civil aos casos de mera anulabilidade, por incapacidade ou vício de vontade que sejam conhecidos do fiador ao tempo em que a fiança é prestada, excluindo todos os casos de nulidade da obrigação principal que entende serem apenas regulados pelo n.º 1 do artigo 632.º do Código Civil.

Por sua vez Luís de Menezes Leitão discorda da opinião de que nos casos de nulidade da fiança por motivos conhecidos do fiador à data em que a fiança foi prestada esta passe a valer apenas para obrigação de restituição por invalidade, fundando a sua divergência na circunstância de a fiança se destinar a permitir ao credor a execução do património do fiador pelo montante da obrigação principal e não pela restituição resultante da invalidade.

22) Foi este o entendimento seguido no acórdão recorrido.

Que dizer?

Não se alcançam razões numa perspectiva sistemática global para excluir a tutela dos interesses patrimoniais do credor quando o fundamento da nulidade da obrigação principal seja já conhecido do fiador no momento em que ele presta a fiança.

Devendo as partes actuar sempre de boa-fé na preparação e celebração dos contratos impõe-se ao contratante que se dispõe a afiançar uma qualquer obrigação de terceiro que esclareça o credor das vicissitudes relativas à validade do contrato que sejam suas conhecidas e que não crie expectativas, que sabe serem infundadas, acerca da obrigação de cumprimento da prestação contratual.

Apesar da letra da lei, não se encontram razões que justifiquem que a fiança seja válida, não o sendo a obrigação principal, apenas nos casos de anulabilidade da obrigação principal por incapacidade ou vício de vontade do devedor principal conhecidos do fiador no momento em que presta a fiança e não se tenha a fiança por válida nos casos de nulidade da obrigação do devedor principal decorrente de violação de norma legal imperativa acerca da forma a observar, como é o caso dos autos.

23) Tal como se estabelece no artigo 9.º n.º 1 do Código Civil a interpretação dos textos legais não deve cingir-se à letra da lei, mas “reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico”, sem deixar de presumir que o legislador soube exprimir adequadamente a sua vontade.

Ora a questão da validade da fiança nos casos de nulidade da obrigação do devedor principal por causa conhecida do fiador no momento em que presta a fiança não está expressamente regulada no artigo 632.º n.º 2 do Código Civil.

Procedendo inteiramente para o caso que nos ocupa as razões justificativas da regulamentação legal da validade da fiança nos casos de anulabilidade por incapacidade ou vício da vontade do devedor principal, é legítimo concluir que o legislador disse menos do que queria dizer ao formular o preceito em causa.

Se o legislador tivesse previsto o conhecimento pelo fiador das causas de nulidade da obrigação do devedor principal quando prestou a fiança, teria seguramente regulado a situação nos termos definidos para os casos de anulabilidade com o fundamento previsto no artigo 632.º n.º 2 do Código Civil.

Assim sendo, por interpretação extensiva, tem-se por aplicável ao caso dos autos o preceituado no artigo 632.º nº 2 do Código Civil.

24) Ademais, na revista interposta pelo réu CC não são postos fundadamente em causa os pressupostos da declaração de abuso de direito na invocação da nulidade da fiança prestada para o caso de o réu BB não cumprir a sua obrigação para com a autora.

De facto, o réu CC, advogado de profissão, não podia deixar de saber que o contrato de mútuo celebrado entre a autora e o réu BB era nulo e, ainda assim, subscreveu a declaração de garantia pessoal de cumprimento da sua obrigação, e em momento posterior, assegurou que seria cumprido o contrato de mútuo por parte deste, levando a autora a confiar que, em caso de mora ou de incumprimento, não seria invocada a nulidade da fiança por ele prestada.

O réu CC exerceu de forma ilegítima o direito de invocar a nulidade do contrato de mútuo e a nulidade da fiança decorrente dessa nulidade da obrigação principal, pelo que sempre deveria responder perante a autora AA como se a fiança permanecesse válida (artigo 334.º do Código Civil).

25) Em conclusão, ainda que a obrigação do “mutuário” e devedor principal BB seja nula não pode o fiador CC valer-se dessa nulidade sendo a causa da nulidade do mútuo sua conhecida quando prestou a fiança, como decorre do artigo 632.º n.º 2 do Código Civil.

Deve, por isso o réu, ora revistante, CC, responder perante a autora AA pelo pagamento da percentagem de 63,64% dos custos com o crédito bancário a que a esta recorreu para satisfazer a entrega ao réu BB da quantia “mutuada” e que ela tem vindo a suportar.

Para além da percentagem do valor já suportado pela autora AA até julho de 2021 a esse título (cfr facto provado n.º 9.º), acrescerá igual percentagem do valor que vier a ser por ela suportado até ter sido integralmente restituída a quantia entregue ao réu BB., sendo este valor a apurar em sede de liquidação posterior, nos termos do artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil.

26) Em resumo, e quanto aos dois segmentos da parte dispositiva do acórdão recorrido que foram impugnados:

a) O revistante CC e o réu BB são condenados, solidariamente a restituir à autora AA a quantia que, na pressuposição da validade do contrato de mútuo, esta lhe entregou, deduzida que seja a quantia já entregue, mas acrescida dos juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis desde 3 de setembro de 2012, data que as instâncias justificadamente fixaram como sendo a da interpelação para pagamento e inerente cessação da boa fé do réu BB na retenção da quantia que devia restituir à autora.

b) O revistante CC é condenado, enquanto fiador, a pagar à autora AA a percentagem de 63,64% do valor dos custos do crédito bancário por esta suportados ou a suportar até à restituição da quantia calculada nos termos da alínea anterior.


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27) Ambos os recursos de revista improcedem, devendo ser confirmado o acórdão recorrido, nos seus precisos termos.

Os recorrentes CC e AA, porque decaíram nas respectivas pretensões em sede de recurso, suportarão em partes iguais as custas desta fase do processo.


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DECISÃO

Termos em que, julgam improcedente os recursos de revista interpostos pela autora AA e pelo réu CC, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

Os recorrentes, porque vencidos nesta instância de recurso em cada uma das revistas por si interpostas, suportarão em partes iguais as respectivas custas.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 28 de novembro de 2023

Manuel José Aguiar Pereira (relator)

Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé – vencida de acordo com a seguinte Declaração:

“Com todo o respeito, voto vencida com base nos seguintes fundamentos:

- de acordo com o art. 627.º, n.º 2, do CC, a obrigação do fiador é acessória da que impende sobre o devedor principal. I.e., existe uma relação de dependência da obrigação de garantia perante a obrigação garantida: dependência genética (a fiança não é válida se o não for a obrigação principal - art. 632.º, n.º 1, do CC, salva a hipótese prevista no n.º 2 do mesmo preceito); dependência funcional (o fiador pode opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor, salvo se forem incompatíveis com a obrigação de garantia - art. 637.º, n.º 1, do CC); dependência extintiva (a extinção da obrigação principal implica a da fiança - art. 651.º do CC). Aquela acessoriedade manifesta-se ainda noutros planos, designadamente no âmbito da fiança, que não pode exceder a dívida principal (arts. 631.º, n.º 1, e 634.º, do CC);

- a fiança é ineficaz stricto sensu em virtude da nulidade da obrigação principal decorrente da inobservância da forma legal (arts. 632.º, n.º 1, 1143.º e 220.º, do CC). A acessoriedade permite ao fiador opor ao credor os meios de defesa que competem ao devedor principal (art. 637.º, n.º 1, do CC) - in casu, a nulidade do mútuo e, por conseguinte, a ineficácia stricto sensu da fiança daí resultante que, por sua vez, é um meio de defesa próprio do fiador;

- no caso de nulidade da obrigação principal, subsiste a obrigação do fiador como garantia de satisfação do crédito restitutório (art. 289.º do CC). O que decorre do fim de garantia da fiança é que o fiador acompanhe, em termos de responsabilidade, as vicissitudes da obrigação principal;

- por força da nulidade da obrigação principal, o fiador não pode exigir do devedor aquilo que prestou ao credor e que este, por causa da nulidade, estava impedido de exigir ao devedor. Contudo, estando o devedor constituído na obrigação de restituir (art. 289.º n.º 1, do CC), o objeto da restituição não pode deixar de ser levado em linha de conta, uma vez realizada a prestação pelo fiador, sob pena de o devedor ficar enriquecido: o fiador sub-roga-se no direito de crédito à restituição do credor perante o devedor;

- a forma da declaração negocial do fiador é aquela exigida para a obrigação principal. Por conseguinte, no caso sub judice, a fiança encontra-se ferida de nulidade (arts. 628.º, 1143.º e 220.º, do CC); embora não alegada pelo fiador, esta nulidade pode ser declarada oficiosamente pelo Tribunal;

- existem casos, como aquele previsto no art. 632.º, n.º 2, do CC (que intenciona permitir a execução do património do fiador pelo montante da obrigação principal, e não pela restituição resultante da sua invalidade), em que em lugar da acessoriedade prevalece, no respetivo regime jurídico, a consideração do fim de garantia da fiança. Está em causa uma norma excecional, que prevê apenas situações de anulabilidade da obrigação principal (incapacidade, falta ou vícios da vontade do devedor principal) e que não parece suscetível de ser aplicada a hipóteses em que esta se encontra ferida de nulidade, quer por interpretação extensiva, quer por aplicação analógica. Para além de sancionarem interesses diferentes, a anulabilidade e a nulidade têm regimes jurídicos distintos;

- não foi estipulada a cláusula de fiador e principal pagador, nem o fiador renunciou ao benefício da excussão prévia (art. 638.º, n.º 2, do CC); no caso em apreço, sendo a fiança prestada um negócio gratuito, aplica-se, em caso de dúvida, a regra do conteúdo mais favorável ao fiador (art. 237.º do CC); o fiador, se acionado, pode opor ao credor a exceção de inexigibilidade do crédito, subsidiarizando a sua obrigação; não há fundamento para a solidariedade, porquanto na fiança civil a regra é a da subsidiariedade (ainda que virtual); a subsidiariedade respeita apenas à execução do património do fiador, não à demanda em ação declarativa. Assim, em ação executiva intentada contra si, o fiador pode invocar o benefício da excussão prévia como exceção;

- levando em linha de conta que o fiador, para além de ser advogado de profissão, pelo comportamento que adotou, durante um período de tempo significativo, perante o credor, propiciou um investimento de confiança deste na subsistência da fiança prestada e, mais tarde, pretende furtar-se à realização da garantia, invocando a sua ineficácia stricto sensu ou nulidade, poderá estar em causa um venire contra factum proprium. Trata-se da ilicitude do exercício inadmissível da faculdade de invocar tanto a ineficácia da fiança derivada da nulidade da obrigação principal como a nulidade da própria fiança por inobservância de forma legal e, assim, a fiança deve ser considerada como eficaz e válida. O art. 334.º do CC estabelece a ilegitimidade como consequência do exercício inadmissível de uma posição jurídica. Admite-se, como sanção, a “restauração” do negócio, tratando-o como se válido fosse. Nestas circunstâncias, em que a obrigação principal é nula e a obrigação de garantia é tratada como eficaz e válida, pode suceder que o fiador não deva aquilo que o devedor deve;

- em síntese: (i) condenaria o devedor principal no cumprimento da obrigação de restituição decorrente da nulidade do mútuo (deduzindo o montante já restituído ao credor e aplicando juros de mora à taxa legal prevista para os juros civis desde 3 de setembro de 2012); (ii) condenaria o fiador no cumprimento da obrigação de garantia, podendo este sub-rogar-se na posição do credor para exigir do devedor o correspondente ao crédito restitutório, no caso de este não ser observado pelo último.”

António Pedro de Lima Gonçalves

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1. Conforme rectificação em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra↩︎

2. Garantia das Obrigações – Almedina 2006 a página 120.↩︎