Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4419/13.9TBGDM.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ATROPELAMENTO
DEVERES DE SEGURANÇA NO TRÁFEGO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
INDEMNIZAÇÃO
EQUIDADE
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 02/26/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
DIREITO ESTRADAL – TRÂNSITO DE PEÕES / LUGARES EM QUE PODEM TRANSITAR / ATRAVESSAMENTO DA FAIXA DE RODAGEM.
Doutrina:
- Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Coimbra, Almedina, 1997, p. 108 e 109;
- Manuel A. Carneiro da Frada, A equidade ou a justiça com coração, A propósito da decisão arbitral segundo a equidade,: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656, 675 e 676;
- Maria Manuel Veloso, Danos não patrimoniais, Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, Volume III, Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 506.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 496.º, N.º 4 E 570.º, N.º 1.
CÓDIGO DA ESTRADA (CEST): - ARTIGOS 99.º, N.º 1 E 101.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 28-02-2013, PROCESSO N.º 4072/04.0TVLSB.C1.S1, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I. O dever de prevenção do perigo impõe a todos os peões que adoptem uma conduta adequada à situação concreta em que se encontram, o que implica, na hipótese de atravessamento da via, atender a circunstâncias como as dimensões e a intensidade de circulação na via, as condições de visibilidade dos condutores ou a existência de passagens seguras na proximidade, e, consoante elas, adoptar comportamentos não exigidos rigorosamente pela lei, como apressar o passo, só atravessar na travessia própria ou até nem atravessar de todo.

II. Dado o intenso tráfego da via, era exigível que o peão tivesse procurado e utilizado a passadeira própria para travessia de peões; não o tendo feito, há concurso de culpa do lesado.

III. Estando em causa os danos não patrimoniais pela perda da qualidade de vida, o julgador tem margem para valorar segundo a equidade, cumprindo ao Supremo Tribunal de Justiça averiguar apenas se, na fixação daquele montante o Tribunal a quo respeitou os ditames de origem legal e jurisprudencial relevantes e arbitrou, portanto, uma indemnização adequada ao caso em concreto.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA, S.A.

Recorridos: BB e CC

BB intentou acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra a Companhia DD, S.A. – hoje, DD, S.A.

Pedia a condenação da ré no pagamento da quantia global de € 474.001,00 – correspondendo € 324.001,00 a danos patrimoniais e € 150.000,00 a danos não patrimoniais – acrescida de juros de mora, bem como no pagamento da quantia, a liquidar em execução de sentença, referente a obras de adaptação em casa da autora.

Pretendia, deste modo, ser ressarcida dos prejuízos decorrentes de um acidente de viação ocorrido em 20.10.2012, no qual foi embatida pelo veículo automóvel de matrícula ...-XL, a cujo condutor imputa a culpa pelo sucedido, veículo aquele cuja responsabilidade civil emergente da sua circulação se encontrava transferida para a ré.

Na contestação, a ré, essencialmente, imputa o acidente, antes, a culpa da autora e impugna parte da factualidade alegada.

Foi proferido despacho saneador, com fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.

Entretanto, tendo sido requerida a interdição da autora, é proferida sentença decretando a interdição daquela, com início em 20.10.2012, tendo sido nomeado como tutor o seu marido, EE.

Tendo, em 17.02.2016, falecido a autora, foram habilitados, para prosseguir os termos da acção, o referido EE e os filhos do ex-casal, CC e FF e, tendo falecido, em 20.11.2016, EE, foram habilitados para prosseguir os termos da acção os já referidos CC e FF.

Então, os agora habilitados CC e FF apresentaram articulado superveniente requerendo a ampliação do pedido nos seguintes termos: € 75.000,00 pela perda do direito à vida; € 40.000,00 a título de danos não patrimoniais sofridos por cada um; e € 60.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos pelo referido EE, direito para si transmitido por via sucessória, acrescidas de juros de mora.

Fundamentam aquela ampliação no dano da perda da vida, alegando ter o falecimento da autora ocorrido em consequência das lesões resultantes do acidente, bem como nos danos não patrimoniais que tal lhes causou e ao seu pai.

Admitido liminarmente o articulado superveniente a ré, pronunciando-se sobre o mesmo, essencialmente impugnou o alegado.

Realizado o julgamento foi proferida sentença na qual se decidiu, julgando a acção parcialmente procedente, condenar a ré a pagar aos autores CC e FF a quantia global de € 142.104,91 (já deduzida do valor arbitrado no âmbito do apenso A), acrescida de juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação até integral pagamento.

 Inconformados, os autores interpuseram recurso para o Tribunal da Relação do Porto, pedindo que fossem reapreciadas a questão da responsabilidade pelo acidente e a questão do valor da obrigação de indemnização.

Peticionavam, mais precisamente, que fosse revogada a decisão do Tribunal de 1.ª instância, não devendo ser imputada a BB, na qualidade de peão, qualquer parcela de responsabilidade na produção do sinistro e ser atribuída uma indemnização de € 75.000,00 pelo dano da morte, de € 150.000,00 pelos danos não patrimoniais sofridos por BB e, por fim, de € 60.000,00 e de € 40.000,00 por danos não patrimoniais próprios, sofridos, respectivamente, pelo falecido marido e por cada um dos filhos recorrentes.

Em Acórdão de 24.09.2018 (fls. 924 e s.), o Tribunal da Relação do Porto concluiu, ao contrário do Tribunal de 1.ª instância, que a ocorrência do acidente se deveu a culpa exclusiva do condutor do veículo XL e, relativamente à obrigação de indemnização, decidiu que apenas existia razão para alterar o seu valor quanto aos danos não patrimoniais sofridos por BB entre a data do acidente (20.10.2012) e o seu falecimento (17.02-2016), tendo fixado esta em € 90.000,00.

Irresignada, por seu turno, a ré DD, S.A., vem agora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

As conclusões das suas alegações (fls. 973 e s.) são as seguintes:

1.a Vem o presente recurso interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto nos autos em referência e é o mesmo apresentado na firme convicção de que este enferma de violação de lei substantiva, por via de erro na interpretação e aplicação das normas legais convocadas pela situação fáctica em apreço (artigo 674.°, n.°, ai. a) do CPC), na parte em que revogou a decisão segundo a qual existia uma concorrência de culpas entre o condutor do veículo seguro na Recorrente e a peã atropelada e na parte em que atribuiu, a título de compensação pelo dano não patrimonial da vítima relativo ao período de tempo que mediou entre o acidente e a sua morte, o montante de 90.000,00 €, em vez dos 35.000,00 € atribuídos pelo Tribunal de primeira instância.

1. Quanto à concorrência de culpas

2.a O douto acórdão recorrido viola os artigos 101.° do Código da Estrada e o artigo 570.°, n.° 1 do Código Civil, por atribuir a total responsabilidade pelo atropelamento dos autos ao condutor do veículo XL.

 3.a Contrariamente ao que entendeu o Tribunal a quo, a conduta de BB, evidenciada entre os factos provados 1 a 18 e no facto não provado g), é violadora do disposto no artigo 101.°, n.° 1 do Código da Estrada, nessa medida impendendo sobre aquela uma presunção de culpa.

4.a A um condutor é exigível que obedeça às normas de direito estradai que se lhe dirigem mas não que esteja a contar permanentemente que os outros as infrinjam, sendo legítimo confiar nisso mesmo.

5.a Era pouco previsível para o condutor do XL, colocado naquelas concretas circunstâncias, que BB fizesse a travessia da via naquele local, dado que acabava de passar por um loca! de travessia para peões.

6.a A faixa de rodagem destina-se ao trânsito de veículos e os passeios aos peões, pelo que qualquer peão minimamente diligente, colocado na situação de BB, sabe que se expõe a uma grande situação de perigo ao colocar-se em plena faixa de rodagem, sem atentar nos veículos que ali circulam.

7.a Da matéria de facto resulta evidente que a sinistrada não atentou na presença do veículo XL previamente a fazer a travessia da via, irrompendo pela faixa de rodagem sem previamente se certificar se o podia fazer em segurança, muito embora se tratasse de uma rua de intenso tráfego e que conhecia bem e que o veículo vinha a percorrer uma longa recta de 140 metros a uma velocidade moderada e adequada para o local.

8.a Um automóvel a circular na faixa de rodagem é mais visível para um peão do que o contrário, dado que, pelas suas dimensões, pelo barulho que produz e por estar em posição de destaque na via, chama mais a atenção.

9.a Tudo, pois, inculca, que o facto de BB ter feito a travessia da via naquele local e da forma descrita contribuiu para a eclosão do acidente dos autos.

10.a Nas outras três decisões judiciais (duas sentenças e um acórdão) que já julgaram o presente acidente foi sempre atribuída uma parcela de culpa à sinistrada, até em medida superior à que foi atribuída na sentença de primeira instância dos presentes autos.

11.a O artigo 570.°, n.° 1 do Código Civil deve ser interpretado, no caso sub iudice, no sentido de a culpa dos intervenientes dever ser graduada nos termos determinados em primeira instância: 1/5 para BB e 4/5 para o condutor do veículo.           

12.a O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 101.° do Código da Estrada e 570.°, n.° 1 do Código Civil, por ter responsabilizado unicamente o condutor do veículo pelo acidente, devendo, por isso, ser revogado e substituído por outro que repristine a decisão proferida em primeira instância, nos termos da qual houve concorrência de culpas entre o condutor do XL e a sinistrada, na medida de 4/5 para aquele e 1/5 para esta, reduzindo-se consequentemente todas as indemnizações devidas a 4/5 do montante reputado adequado para ressarcimento dos danos.

//. Quanto à compensação pelo dano não patrimonial da vítima

13.a A Recorrente insurge-se também quanto à decisão do Tribunal a quo segundo a qual os danos não patrimoniais da vítima entre a data do acidente e o seu falecimento devem ser compensados com a quantia de 90.000,00 €, em vez dos 35.000,00 € determinados em primeira instância.

14.a É extremamente difícil encontrar um critério para atribuir uma compensação numa situação como a presente, restando-nos fazer uso da equidade, nos termos do artigo 496.°, n.° 4 do Código Civil, sendo certo que a Recorrente pugna pela redução do valor da compensação sem que isso represente uma atitude de desvalorização do sofrimento humano, de desrespeito pela dignidade pessoal da sinistrada ou da sua memória, de apoucamento das consequências de um acidente grave ou de desconsideração pelo sofrimento dos familiares sobrevivos, que surgem na acção como autores.

 15.a Na impugnação do valor arbitrado pelo Tribunal a quo, a Recorrente terá sempre como pressuposto uma atitude de profundo respeito pela dor e sofrimento dos familiares da sinistrada e pela dignidade pessoal e memória desta última.

16.a Dos factos provados 20, 21, 26 e 42 e dos factos não provados s), t) e u) resulta, como se pode ler na sentença de primeira instância, que a sinistrada perdeu a consciência logo no momento do atropelamento e não a re-adquiriu, permanecendo em estado vegetativo até ao falecimento, sem ter qualquer sofrimento no sentido de consciência da dor, das limitações físicas impostas pelas lesões, do antecipar do fim da vida e a angústia de deixar a família.

17.a Não se afigura adequado nem equitativo, à luz do artigo 496.°, n.° 4 do Código Civil, compensar o dano moral por tal período de coma profundo com um valor superior ao da própria perda da vida que se lhe seguiu, sendo certo que tudo foi um processo contínuo, da perda de consciência (que ocorreu instantaneamente no momento do acidente) até ao falecimento.

18.a De um ponto de vista objectivo, a sinistrada não mais teve qualquer consciência de si e do mundo, do seu estado de saúde, da vida que a rodeava e não mais sentiu, nesse sentido - e apenas nesse - se podendo falar de um antecipar da própria morte, a qual inevitavelmente se seguiu ao estado de saúde em que a sinistrada ficou logo após o atropelamento.

19.a Segundo os doutos ensinamentos do Exmo. Senhor Juiz-Conselheiro JOAQUIM JOSÉ DE SOUSA DINIS (Dano Corporal em Acidentes de Viação - Cálculo da.indemnização em situações de morte, incapacidade total e incapacidade parcial - perspectivas futuras, in "Colectânea de Jurisprudência - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça", Ano IX, Tomo I - 2001, Coimbra, p. 7), a morte é o dano supremo e os montantes da compensação por quaisquer outros danos não patrimoniais devem situar-se abaixo da valoração deste dano, sendo certo que, pelo menos à data do escrito citado, era também seu entendimento que, nos casos de coma profundo desde o acidente até à morte, nem haveria lugar à indemnização.

20.a Ainda que se compreenda que em certos casos em que há consciência da dor e do estado vegetativo por longos anos a jurisprudência tenha evoluído rio sentido de compensar, ainda, os danos não patrimoniais e que o respectivo valor possa exceder os valores habitualmente praticados pelo perda da vida, num caso como o dos autos, em que a lesada tinha já idade avançada e que o período de tempo em estado vegetativo é relativamente curto, não tendo havido qualquer consciência ou qualquer sentimento de dor entre o acidente e a morte, o critério de determinação na compensação devida deve, ainda, ter presentes dois vectores essenciais: por um lado, o valor atribuído pela perda da vida como limite máximo; por outro lado, a duração, a maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte como critérios aferidores do valor a atribuir.

21.a Considerando a idade da lesada, o tempo relativamente curto de coma em estado.. vegetativo (quando comparado com situações de pessoas que ficam em estado vegetativo pw-y décadas), a ausência de qualquer consciência do estado em que se encontrava ou do mundo ao seu redor e de qualquer sentimento de dor e o valor atribuído para compensar a perda da vida, entende-se por equitativo para compensar o dano não patrimonial relativo ao período de tempo entre o acidente e a morte os 35.000,00 € fixados em primeira instância.

22.a Assim sendo, o Tribunal a quo, ao valorar este dano em 90.000,00 €, violou o disposto no artigo 496.°, n°s 1 e 4 do Código Civil, pelo que deve ser revogado e substituído por outro que repristine a sentença de primeira instância, fixando este dano em 35.000,00 €.

///. Quanto à totalidade do valor da indemnização

23.a   Em consequência da pretendida culpabilização da sinistrada em 1/5 pelo acidente dos autos e da redução da compensação pelo dano não patrimonial relativo ao período de tempo que mediou entre o acidente e a data da morte, deve o douto acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que repristine a sentença proferida em primeira instância, condenando-se a Recorrente a pagar aos Recorridos a quantia de 142.104,91 €.

Contra-alegou FF e Outro (fls. 1000), pugnando pela manutenção na íntegra do Acórdão recorrido.

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as seguintes:
1.ª) se a recorrente DD, S.A., é a exclusiva responsável pelo acidente; e
2.º) se o montante da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima deve manter-se em 90.000,00.

                                                           *

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

O factos que vêm dados como provados pelo Tribunal a quo são os seguintes:

1- No dia … de … de 20…, pelas 09h40m, na rua D…, junto ao nº. de polícia ..., em ..., ..., ocorreu um acidente de viação no qual foram intervenientes o veículo automóvel de matrícula ...-XL, na altura pertença da sociedade “GG, Ldª”, e conduzido por HH, e a BB, como peão [artigo 2º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

2- No local do acidente a rua D. ... descreve uma recta [artigo 4º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação]…

3- … Com pelo menos 140 metros de extensão [artigo 4º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

4- Na data e local do acidente o tempo estava bom, e o pavimento da rua apresentava bom estado de conservação, possuindo 7,35 metros de largura e possibilitando a formação de 2 vias de trânsito, uma em cada sentido de marcha [artigo 5º da petição inicial; matéria expressamente reconhecida nos artigos 6º a 8º da contestação].

5- No local do acidente, em frente ao nº. de polícia ..., existem 2 paragens de autocarro [artigo 5º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

6- Momentos antes do acidente, a BB pretendia realizar a travessia da rua D. …, no sentido nascente – poente, do local onde se encontram implantadas as paragens de autocarro para o lado onde se encontra implantado o nº. de polícia ... [artigo 7º da petição inicial; matéria expressamente reconhecida no artigo 16º da contestação] …

7- … Pelo que deu início à travessia [artigo 9º da petição inicial; matéria expressamente reconhecida no artigo 16º da contestação].

8- Quando a BB se encontrava a cerca de 1/4 de finalizar a travessia da rua D. ..., foi violentamente atingida pela frente, sobre o lado esquerdo, do veículo automóvel de matrícula ...-XL [artigos 10º e 14º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 2º da contestação] – rectificação ordenada por despacho de 30-4-2018, constante de fls 895.

9- Com o embate a BB foi projectada para o ar, após o que caiu ao chão, imobilizando-se a pelo menos 12 metros de distância do ponto de embate [artigo 11º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

10- No momento do acidente o veículo automóvel de matrícula ...-XL circulava no sentido norte – sul, à velocidade de cerca de 50 km/h [artigo 12º da petição inicial; matéria parcialmente reconhecida no artigo 9º da contestação, e parcialmente impugnada nos artigos 2º e 10º da contestação].

11- Na altura do acidente o condutor do veículo automóvel de matrícula ...-XL circulava completamente distraído, quer em relação às condições da via, quer em relação ao trânsito que por ali circulava [artigo 13º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 2º e 11º da contestação].

12- Por força da travagem, os rodados do veículo automóvel de matrícula ...-XL deixaram no pavimento marcas com 16,5 e 18 metros de comprimento [artigo 16º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

13- A BB efectuou a travessia da rua D. ...em passo normal [artigo 18º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 2º da contestação].

14- Relativamente aos pontos onde a BB iniciou a travessia da rua D. ...e onde foi atropelada, inexistem passadeiras para travessia de peões a menos de 60 metros para qualquer dos lados [artigo 19º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

15- A rua D. ..., no local onde ocorreu o acidente, habitualmente apresenta intenso tráfego, nela estão localizadas paragens de autocarros, e existem várias casas e estabelecimentos comerciais a ladear a via [artigo 20º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

16- O local do atropelamento encontra-se entre placas delimitadoras de localidade [artigo 22º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação]…

17- … Sendo de 50 km/h a velocidade máxima instantânea ali permitida [artigo 23º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

18- A BB conhecia bem o local onde ocorreu o atropelamento [artigo 25º da contestação].

19- À data do acidente em causa nos autos, por contrato de seguro titulado pela apólice nº …, a proprietária do veículo automóvel de matrícula ...-XL havia transferido para a ré a responsabilidade civil por danos causados a terceiro com a utilização daquele [artigo 25º da petição inicial; matéria não impugnada na contestação].

20- Na sequência do atropelamento, a BB foi transportada para o “Hospital Stº. António”, no Porto, dando entrada no serviço de urgência [artigo 26º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação]...

21- … Sendo-lhe diagnosticado politraumatismo com traumatismo crânio-encefálico grave (grau 8 da escala de coma de Glasgow), e múltiplas fracturas dos ramos púbico esquerdo e direito, fractura do sacro e asa do ilíaco esquerdo, traumatismo torácico com contusão pulmonar e hemotórax direito, e fractura de pelo menos 5 costelas à direita, e atelectasia lobar inferior direita [artigo 27º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

22- Esteve internada na unidade de cuidados intensivos do “Hospital Stº. António”, no Porto, sendo posteriormente transferida para a enfermaria de TCE [artigos 28º e 29º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

23- A 23 de Outubro de 2012 iniciou ventilação mecânica por agravamento da função pulmonar, e a 30 de Outubro de 2012 foi submetida a traqueostomia percutânea [artigo 31º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

24- A 29 de Dezembro de 2012 foi-lhe diagnosticada hemorragia intracerebral volumosa espontânea [artigo 32º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

25- Em 2015, por complicação por hidrocefalia, foi submetida a novo internamento para prova terapêutica [artigo 30º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

26- Por força do atropelamento a BB sofreu tetraplegia (estado vegetativo) com grave afectação das funções cognitivas [artigo 33º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

27- Por força do acidente, a BB ficou totalmente incapacitada para o exercício de qualquer profissão, dependente do auxílio de terceiros para todas as actividades pessoais e da vida diária, vivendo numa cama hospitalar [artigos 36º, 37º, 77º, 95º a 97º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

28- A 11 de Abril de 2013, após alta hospitalar, a BB foi transferida para uma unidade de cuidados médicos continuados, onde ficou internada até 06 de Agosto de 2013, no que despendeu € 3 549,74 [artigos 33º e 38º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

29- A BB, nascida a ... de Maio de 19… [artigos 35º da petição inicial e 11º do articulado apresentado a fls 364 e ss; matéria impugnada no artigo 3º da contestação; documento que consta de fls 30 do apenso A]…

30- … Faleceu a … de … de 20… [artigo 1º do articulado superveniente de fls 364 e ss; matéria não impugnada pela ré; documento que consta de fls 326].

31- Entre 06 de Agosto de 2013 e 17 de Fevereiro de 2016, data do falecimento da BB, o marido desta contratou 2 pessoas com alguma preparação técnica para auxiliarem a BB em todos os actos da vida diária, 24 horas por dia, 365 das por ano [artigos 40º e 46º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação]…

32- … Designadamente auxiliando a BB a levantar, a deitar, a dar banho, a tomar a medicação e alimentação, a deslocar-se a consultas médicas e à fisioterapia [artigos 42º e 46º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

33- Entre 06 de Agosto de 2013 e 17 de Fevereiro de 2016, com os honorários das pessoas referidas em 31-, o marido da falecida BB despendeu a quantia global de € 36 915,00 [artigos 40º e 41º da petição inicial e 8º do articulado apresentado a fls 364 e ss; matéria impugnada no artigo 3º da contestação e nos artigos 6º e 8º do articulado de fls 581 e ss].

34- A acrescer aos honorários das pessoas referidas em 32-, e no período referido em 33-, o marido da falecida BB diariamente forneceu ainda as refeições àquelas [artigo 47º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

35- Em despesas médicas e medicamentosas, e aparelhos de ortopedia, entre a data do acidente e o seu falecimento, a BB despendeu a quantia global de € 4 468,71 [artigos 51º da petição inicial e 8º do articulado apresentado a fls 364 e ss; matéria impugnada no artigo 3º da contestação e nos artigos 6º e 8º do articulado de fls 581 e ss].

36- Na habitação da BB foi necessário adaptar a casa de banho, por forma a lá caber uma cadeira de rodas, e substituir a banheira por uma base de chuveiro e demolir um muro, no que foi despendida a quantia global de € 3 078,69 [artigo 52º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

37- A BB necessitou adquirir uma cama hospitalar, no que despendeu € 414,00 [artigo 53º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

38- Em resultado das lesões sofridas e do estado físico em que ficou, entre a data do acidente e o seu falecimento a BB necessitou realizar tratamentos e exames, submeter-se a consultas médicas, e tomar medicamentos [artigos 54º, 56º, 57º, 93º e 94º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

39- Em resultado das lesões sofridas e do estado físico em que ficou, entre a data do acidente e o seu falecimento para o tratamento da BB foi necessário diariamente utilizar algálias, colectores, compressas, álcool, cremes hidratantes, lubrificantes, anestésicos, luvas, fraldas, laxantes, microclistéres, creme para a prevenção de escaras, desinfectantes, hidratantes dermatológicos, resguardos para a cama, almofadas e colchão anti-escaras, e uma cadeira de rodas eléctrica [artigos 58º e 59º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

40- Por forma a tentar evitar o seu sofrimento e o agravamento da situação, entre a data do acidente e o seu falecimento a BB efectuou tratamentos de fisioterapia, com uma periodicidade trissemanal, no que despendeu a quantia global de € 8 205,00, com um custo unitário de € 35,00/tratamento [artigos 64º da petição inicial e 8º do articulado de fls 364; matéria impugnada no artigo 3º da contestação e nos artigos 6º e 8º do articulado de fls 581 e ss].

41- Até ao acidente, a BB dedicava-se a agricultar um quintal que possuía em casa, cultivando produtos leguminosos e criando coelhos, galinhas e perus [artigos 73º e 74º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

42- A BB, entre a data do acidente e o seu falecimento, viveu alheada da vida e do mundo [artigo 88º da petição inicial; matéria impugnada no artigo 3º da contestação].

43- Até ao acidente, a BB gostava de passear e ir a festas, costumando passear com o marido e amigos [artigos 89º e 90º da petição inicial e artigos 13º e 48º do articulado de fls 364 e ss; matéria impugnada no artigo 3º da contestação e no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss]…

44- … Sendo pessoa saudável, activa, alegre e extrovertida [artigo 91º da petição inicial e artigo 12º do articulado de fls 364 e ss; matéria impugnada no artigo 3º da contestação e no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

45- A morte da BB ocorreu devido a lesões pulmonares [artigo 2º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

46- À data do seu falecimento a BB apresentava numerosas úlceras de decúbito grau 4, de conteúdo necrótico purulento, com atingimento ósseo [artigo 2º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

47- As úlceras de decúbito que a BB apresentava foram-se agravando ao longo do tempo, registando-se simultaneamente refratariedade aos antibióticos ministrados, contribuindo para o falecimento [artigo 3º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

48- A BB era muito amiga da sua família, a quem dedicava todo o apreço e carinho, todos vivendo em harmonia [artigos 14º e 27º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

49- Os habilitados CC e FF sofreram enorme desgosto e abalo psicológico, não só quando do atropelamento da sua mãe, com quem mantinham relacionamento muito próximo, mas também durante os vários anos que antecederam o falecimento da BB, e com a morte desta [artigos 20º a 26º, 29º e 30º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

50- A BB formava um casal harmonioso com o marido, EE [artigos 38º a 40º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

51- O EE acompanhou de perto todo o processo que, desde o atropelamento, culminou no falecimento da BB [artigos 41º, 45º, 46º, 49º, 50º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

52- O EE sofreu intenso desgosto com o referido em 51- [artigos 51º e 52º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

53- Com o falecimento da BB, o EE, pelo desgosto que sentou, entrou em estado depressivo, perdendo o interesse seja por que fosse, acabando por falecer a 20 de Novembro de 2016 [artigos 52º a 57º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss; documento que consta de fls 8 e 9 do apenso C].

54- Durante os seus 2 últimos anos de vida, a condição de saúde da BB foi-se agravando [artigos 64º e 65º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

55- Em Julho de 2015 a BB nada verbalizava nem conseguia comunicar; não reagia a estímulos externos nem era capaz de colaborar ou cumprir ordens simples; estava incapaz de, sozinha, alimentar-se ou tomar a sua medicação; havia perdido qualquer mobilidade; desenvolveu diversas úlceras de pressão; e não possuía controlo dos esfíncteres, necessitando permanentemente de fralda [artigos 67º a 72º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

E são os seguintes os factos não provados:

a- no momento em que ocorreu o acidente referido em 1- o HH conduzisse o veículo automóvel de matrícula ...-XL em cumprimento de ordens dadas pela sua entidade patronal, no seu horário de trabalho; e que fosse a entidade patronal do mesmo HH quem custeava o combustível, seguro e manutenção do referido veículo automóvel [artigo 3º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

b- a recta que a rua D. ...descreve no local do acidente possua mais de 200 metros de extensão [artigo 4º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

c- no momento referido em 7- nenhum veículo se aproximasse da BB, designadamente da sua direita [artigo 8º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 2º da contestação];

d- no momento do acidente o veículo automóvel de matrícula ...-XL circulasse a velocidade não inferior a 90 km/h [artigo 12º da petição inicial; matéria expressamente impugnada nos artigos 2º e 10º da contestação];

e- o embate tenha ocorrido quando a BB se encontrava a 1,30 metros da berma da via, do lado do nº de polícia ... [artigo 15º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

f- após o embate, o veículo automóvel de matrícula ...-XL tenha ainda percorrido mais 7 metros antes de se imobilizar [artigo 16º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

g- quando a BB iniciou a travessia o veículo automóvel de matrícula ...-XL não fosse ainda visível [artigo 17º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 2º da contestação];

h- o condutor do veículo automóvel de matrícula ...-XL circulasse frequentemente pela rua D. ...[artigo 21º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

i- no momento em que a BB iniciou a travessia da rua . ..., um autocarro e um veículo ligeiro de mercadorias estivessem imobilizados no lado esquerdo da via, atento o sentido de marcha do veículo automóvel de matrícula ...-XL [artigos 12º e 21º da contestação; matéria contrariada pela versão dos factos invocada na petição inicial];

j- a BB tenha realizado a travessia da rua . ...em passo acelerado, provindo da traseira de um autocarro, entre este e um veículo ligeiro de mercadorias, surpreendendo o condutor do veículo automóvel de matrícula ...-XL [artigos 14º, 15º, 17º e 22º da contestação; matéria antecipadamente impugnada nos artigos 13º e 18º da petição inicial;

k- não tenha sido possível ao condutor do veículo automóvel de matrícula ...-XL avistar a BB quando esta iniciou a travessia da rua . ...[artigo 23º da contestação; matéria contrariada pela versão dos factos invocada na petição inicial];

l- a passadeira mais próxima do local onde ocorreu o atropelamento distasse deste 50 metros [artigo 24º da contestação; matéria contrariada pela versão dos factos invocada na petição inicial];

m- a BB tenha necessitado realizar outras obras na sua residência além do referido em 36-, designadamente executar rampas e alagar portas [artigo 54º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

n- além do referido em 35- e 37-, entre a data do acidente e o seu falecimento a BB tenha necessitado realizar outras despesas médicas e medicamentosas, em aparelhos ortopédicos ou meios auxiliares de diagnóstico [artigos 60º a 63º e 72º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

o- além do referido em 39-, entre a data do acidente e o seu falecimento a BB tenha necessitado realizar outras despesas em tratamentos de fisioterapia [artigos 64º a 68º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

p- entre a data do acidente e o seu falecimento a BB tenha necessitado recorrer a consulta de fisiatria [artigos 69º e 70º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

q- a BB vendesse a vizinhos e conhecidos o excedente da actividade referida em 41- [artigos 75º e 76º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

r- com a impossibilidade de continuar a desenvolver a actividade referida em 41-, a BB tenha sofrido uma quebra de rendimento anual no valor de € 2 400,00 [artigos 79º e 81º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

s- a BB tenha sofrido dores quando do acidente, durante os tratamentos e até à data do seu falecimento [artigo 82º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

t- a BB, após o acidente e até à data do seu falecimento, chorasse e risse conforme o estado emocional que no momento vivenciasse; que reconhecesse os familiares mais próximos; que reagisse a estímulos e conversas; e que soubesse o estado físico em que se encontrava [artigos 83º a 86º e 92º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação];

u- a BB tenha sofrido nos vários anos que mediaram entre o atropelamento e o seu falecimento [artigos 61º a 63º do articulado de fls 364; matéria expressamente impugnada no artigo 6º do articulado de fls 581 e ss].

O DIREITO

É altura de responder às questões suscitadas.

Quanto à 1.ª questão, ou seja, a questão da responsabilidade pelo acidente, deve esclarecer-se que não se põe em causa a responsabilidade do condutor do veículo, sendo os factos provados 8., 9., 10. e 11. mais do que suficientes para se dar esta por demonstrada. A questão reside, sim, em saber se este foi o único responsável ou se contribuiu também a conduta culposa do lesado, sendo o caso, portanto, de se observar o disposto no artigo 570.º, n.º 1, do CC.

Quanto a isto, decidiu o Tribunal de 1.ª instância que a conduta de BB não estava isenta de reparos, fixando em 1/5 a contribuição da sua conduta para os danos e reduzindo, nessa medida, o valor da indemnização. Já o Tribunal recorrido decidiu que o acidente ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo XL, justificando a sua decisão com base em que nada impedia BB de atravessar a faixa de rodagem naquele local. Veja-se a quem assiste razão.

Ora, o artigo 99.º, n.º 1, do Código da Estrada dispõe que “[o]s peões devem transitar pelos passeios, pistas ou passagens a eles destinados ou, na sua falta, pelas bermas”.

E o artigo 101.º do Código da Estrada dispõe, no n.º 1, que “[o]s peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente, no n.º 2, que “[o] atravessamento da faixa de rodagem deve fazer-se o mais rapidamente possível”.

Com interesse para a questão em apreço destacam-se da factualidade provada os seguintes factos:

13- A BB efectuou a travessia da rua . ...em passo normal.

14- Relativamente aos pontos onde a BB iniciou a travessia da rua . ...e onde foi atropelada, inexistem passadeiras para travessia de peões a menos de 60 metros para qualquer dos lados [artigo 19º da petição inicial; matéria expressamente impugnada no artigo 3º da contestação].

15- A rua . ..., no local onde ocorreu o acidente, habitualmente apresenta intenso tráfego, nela estão localizadas paragens de autocarros, e existem várias casas e estabelecimentos comerciais a ladear a via.

18- A BB conhecia bem o local onde ocorreu o atropelamento.

Destes factos decorre, em síntese, que BB sabia que o local onde ocorreu o acidente tinha muito movimento, designadamente circulação de veículos e que havia duas passadeiras para travessia de peões por perto e, ainda assim, decidiu atravessar naquele local e em passo normal.

Não há dúvida de que BB infringiu as disposições conjugadas do n.º 1 do artigo 99.º e dos n.ºs 1 e 2 do artigo 101.º do Código da Estrada. Mais do que isso: omitiu o dever geral de prudência que impende sobre todos as pessoas e, em particular, o dever de prevenção do perigo de que estes preceitos do Código da Estrada constituem meras concretizações.

O dever de prevenção do perigo impõe a todos os peões que adoptem uma conduta adequada à situação concreta em que se encontram, o que implica, na hipótese de atravessamento, atender a circunstâncias como as dimensões e a intensidade de circulação na via, as condições de visibilidade dos condutores, a existência de passagens seguras na proximidade, etc., e, consoante elas, adoptar comportamentos não exigidos rigorosamente pela lei, como apressar o passo, só atravessar na travessia própria ou até nem atravessar de todo.

Deve salientar-se a propósito, seguindo Brandão Proença, que, se “a ordem jurídica não defende (a priori e a posteriori) as pessoas contra todos os actos prejudiciais aos seus interesses (…) não abdica de uma política de prevenção do acidente, estabelecendo regras que visam a segurança do titular dos bens ameaçados e cominando para o seu incumprimento determinadas punições (maxime coimas)[1], de que são exemplo os preceitos do Código da Estrada que regulam a circulação de peões.

Assim, embora, em rigor, não tenha infringido o disposto no n.º 3 do artigo 101.º do Código da Estrada (onde se diz que “[o]s peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem”), era exigível que, dado o intenso tráfego da via, BB tivesse procurado e utilizado a passadeira própria para travessia de peões.

Por tudo isto, não nos parece de censurar a decisão do Tribunal de 1.ª instância, que considerou que face ao contributo do lesado para o acidente, fixou este contributo em 1/5 e, ao abrigo do artigo 570.º, n.º 1, do CC, reduziu, nessa medida, o valor da obrigação de indemnização a cargo da ré / recorrente.

Passe-se, então, à 2.ª questão, respeitante, como se viu, ao montante da indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela vítima.

Estão em causa os danos não patrimoniais pela perda da qualidade de vida de que BB padeceu desde a data de ocorrência do acidente em causa nos autos (20.10.2012) até â data da sua morte (17.02-2016).

Recorde-se que, em resultado deste acidente, BB sofreu politraumatismo, com traumatismo crâneo-encefálico grave, múltiplas fracturas dos ramos púbicos esquerdo e direito, fractura do sacro e asa do ilíaco esquerdo, traumatismo torácico com contusão pulmonar e hemotórax direito, fractura de pelo menos 5 costelas à direita e atelectasia lobar inferior direita (factos 20. e 21.) . Isto determinou o seu internamento hospitalar e a sujeição a tratamentos diversos, entre eles ventilação mecânica e uma traqueotomia percutânea (factos 22., 23. 24., 25., e 28.). Sofreu ainda sofreu tetraplegia (estado vegetativo) com grave afectação das funções cognitivas (facto 26.), ficando dependente do auxílio de terceiros para todas as actividades pessoais e da vida diária (facto 27.). Devido às lesões sofridas e ao estado físico em que ficou, necessitou de realizar tratamentos e exames, submeter-se a consultas médicas e tomar medicamentos (factos 38., 39. e 40.). Antes do acidente, BB era uma pessoa saudável, activa, alegre e próxima da sua família (factos 41., 43., 44., 48. e 50.) e passou a viver alheada da vida e do mundo (facto 42.), sendo que, nos últimos anos de vida, a condição da sua saúde foi-se agravando (factos 46., 47., 54. e 55.). Em Julho de 2015, nada verbalizava, não conseguindo comunicar, não reagia a estímulos externos, não tinha qualquer mobilidade, desenvolvendo úlceras de pressão, e não possuía controlo dos esfíncteres, necessitando permanentemente de fraldas (facto 55.).

O valor da indemnização por estes (gravíssimos) danos foi fixado pelo Tribunal de 1.ª instância em € 35.000,00 e o Tribunal recorrido decidiu elevar este valor para € 90.000,00.

 A diferença não é insignificante.

A verdade é que, nesta sede, o julgador tem margem para valorar segundo a equidade[2]. Esta é, aliás, o único recurso do julgador, dizendo-se no artigo 496.º, n.º 4, do CC que “[o] montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso ainda que não descurando as circunstâncias referidas no artigo 494.º”, isto é, o grau de culpabilidade do agente[3], a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (por exemplo, a natureza e a intensidade e da lesão infligida). Dentro destes limites, o julgador tem liberdade para atender a critérios subjectivos (na perspectiva do lesado), isto é, “à luz de factores atinentes à especial sensibilidade do lesado [como] [a] doença, a idade, a maior vulnerabilidade ou fragilidade emocionais[4].

Visto isto, a única coisa que cumpre a este Supremo Tribunal de Justiça fazer é averiguar se, na fixação daquele montante, o Douto Tribunal a quo respeitou os ditames de origem legal e jurisprudencial relevantes para o caso concreto e arbitrou, portanto, uma indemnização adequada ao caso em apreço.

Na Douto Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação do Porto começa por convocar o artigo 496.º do CC, apoiando o processo de cálculo dos danos não patrimoniais.

Depois, seguindo de perto (e parafraseando) o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 28.02.2013, Proc. 4072/04.0TVLSB.C1.S1[5], salientou que “é pertinente distinguir, para efeitos de cômputo da indemnização, entre o plano objectivo da perda e degradação extrema do padrão de vida do sinistrado, enquanto lesão objectiva de um bem jurídico essencial da personalidade, ligado à própria dignidade da pessoa humana, que ocorre independentemente da percepção cognitiva pelo lesado do estado em que se encontra, envolvendo a drástica carência de autonomia e de eliminação das possibilidades de realização pessoal; e o plano subjectivo, decorrente de – a tal estado objectivo – se ter de adicionar o sofrimento psicológico necessariamente inerente à consciência, ainda que difusa ou mitigada, da total falta de autonomia pessoal e de qualidade de vida e da frustração irremediável de todos os projectos e satisfações alcançáveis no decurso da vida pessoal do lesado”. Quis com isto o Tribunal recorrido salientar que, apesar da referida tetraplegia (estado vegetativo) de que ficou a padecer, BB não deixará de ter tido consciência – ainda que difusa – da sua profunda perda. Assim, além da perda objectiva da qualidade de vida, há que ter em consideração a perda subjectivamente sentida por BB.

Apelando a critérios de justiça material e ponderando os últimos padrões jurisprudenciais, havia sido fixado no referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, com recurso a juízos de equidade, o valor de € 125.000,00. O quadro era semelhante aos dos autos. Respeitava a “lesado com cerca de 40 anos – um estado clínico persistente e irreversível de coma vegetativo, prolongado por quase 6 anos, abrangendo, quer os 3 anos de internamento hospitalar, quer o período posterior, em que o lesado teve alta e permaneceu em casa dos seus familiares, acamado e totalmente dependente para as mais elementares actividades da vida diária e de subsistência física, até acabar por sucumbir às gravíssimas sequelas das lesões causadas pelo acidente – não ficando demonstrado que o lesado, nesse prolongado estado de coma, tivesse – face à inconsciência profunda e perda de funções cognitivas – efectiva consciência do estado de total incapacidade em que se encontrava” e considerando o Supremo Tribunal de Justiça haver “lesão objectiva dos bens essenciais da personalidade – afectadas drasticamente com a permanência durante quase 6 anos num estado de coma profundo e irreversível”.

Seguindo de perto este Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, mas sem deixar de ter em conta as diferenças (designadamente de idade e de duração do estado vegetativo da vítima), o Doutro Tribunal recorrido encontrou e fixou o valor de € 90.000,00.

Em face do exposto, conforma-se que o Tribunal da Relação do Porto não procedeu discricionária ou acriteriosamente. Pelo contrário, observou as regras de Direito aplicáveis e os critérios jurisprudenciais relevantes.

É de destacar, em particular, esta atenção do julgador aos critérios usados na jurisprudência, que visa salvaguardar, na medida do possível, o princípio da igualdade, servindo ainda o propósito plasmado no artigo 8.º, n.º 3, do CC, da uniformidade na interpretação e na aplicação do Direito.

Verificados o Tribunal da Relação do Porto conduziu o processo de fixação da indemnização com o cuidado e a ponderação necessários, não existem razões para alterar o que ficou decidido no Douto Acórdão recorrido, não restando senão confirmar, nesta parte, a sua decisão, ou seja, o montante de € 90.000,00.

Nada havendo a alterar quanto ao montante da indemnização fixado pelo Tribunal recorrido (€ 292.631,14), a única alteração respeita à medida da responsabilidade da ré / ora recorrente, devendo a obrigação de indemnização desta ser reduzida em 1/5 (€ 58.562,23), correspondente à responsabilidade da vítima. Ao valor assim encontrado (€ 234.104,91) deverá, depois, ser deduzido o montante já atribuído na providência cautelar (€ 48.000,00), remontando o valor final a pagar pela recorrente € 186.104,91.


*

III. DECISÃO

Pelo exposto, concede-se provimento parcial à revista, repristinando-se a decisão do Tribunal de 1.º instância, que fixou a responsabilidade em 1/5 para a vítima e em 4/5 para o condutor, e condenando-se a ré / ora recorrente, DD, S.A., a pagar aos autores a quantia de € 186.104,91, e mantém-se no mais o decidido no Acórdão recorrido.

                                                           *

Custas pela recorrente e pelos recorridos na proporção do respectivo decaimento.

                                                           *

   LISBOA, 26 de Fevereiro de 2019

                                                            

Catarina Serra (Relatora)

Fonseca Ramos

Ana Paula Boularot 

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[1] Cfr Brandão Proença, A conduta do lesado como pressuposto e critério de imputação do dano extracontratual, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 108-109.

[2] Sobre o que é a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece poder dizer-se que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676.

[3] Este é uma manifestação da função sancionatória ou punitiva da responsabilidade civil e, em particular, da compensação de danos não patrimoniais.

[4] Cfr. Maria Manuel Veloso, “Danos não patrimoniais”, in: Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da reforma de 1977, volume III – Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 506.

[5] Disponível em http://www.dgsi.pt.