Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05A3517
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: BORGES SOEIRO
Descritores: COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
PRESUNÇÕES
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
DANOS MORAIS
ACIDENTE DE VIAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
Nº do Documento: SJ200601060035171
Data do Acordão: 01/06/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2247/04
Data: 04/28/2005
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA - CONFIRMADO O ACÓRDÃO.
Sumário : 1. Não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão da Relação por via da qual, de factos assentes, extrai outros que sejam o seu desenvolvimento.
2. Em sede de presunções judiciais, - que são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos - , não pode o S.T.J. sindicar o conteúdo da ilação operada pela Relação.

3. É exclusivamente de facto a ilação retirada pelas Instâncias, de que a quantia mensal que a jovem vítima entregava a seus pais não era para o seu sustento ou só para o seu sustento, mas sobretudo para ajudar o agregado familiar constituído por seus pais, por si e irmãos, desta forma contribuindo para o mesmo agregado familiar.

4. Ao explicitar o conteúdo das mencionadas ilações, a Relação operou no âmbito da sua competência, no quadro da decisão da matéria de facto, na decorrência do princípio da livre apreciação da prova a que se reporta o artigo 655°, n° 1, do Código de Processo Civil.

5. Assim, não tem o S.T.J. competência funcional para sindicar o juízo da Relação ao operar as mencionadas ilações.

6. Ao Supremo Tribunal de Justiça apenas compete conhecer da matéria de facto apurada por presunções judiciais no caso de estar em causa a violação dos artigos 349° e 351° do Código Civil.

7. Não se verifica qualquer exagero no montante da indemnização global fixada (€ 39.903,83 para o pai e mãe da vítima), relativa à dor na sequência da morte do seu filho, sendo, antes patente a sua adequação à gravidade dos factos sofridos, pois que demonstrou-se de grande relevo a intensidade do dolo com que actuou o lesante, já que o mesmo procurou intencionalmente obter o resultado, ou seja a morte da vítima, conforme foi decidido em termos penais.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. "A" e B intentaram, na comarca de Santiago de Cacém, acção declarativa ordinária contra a Companhia de Seguros C, S.A., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhes a quantia de € 47.884,60, o equivalente a 9.600.000$00 (1.600.000$00 ou € 7.980,77 de danos patrimoniais e 8.000.000$00 ou € 39.903,83 de danos morais), acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.

Alegaram, para tanto e em resumo, a ocorrência de acidente de viação, nos termos do qual o condutor do veículo seguro na ré, embateu intencionalmente num ciclomotor conduzido por D, filho dos autores, causando a morte deste, sendo que o dito condutor do veículo, condenado como autor do crime de homicídio, foi o único culpado.

Mais alegaram que a vítima, para além do apoio moral concedia apoio financeiro aos autores, seus pais, contribuindo mensalmente para o lar familiar com determinada quantia em dinheiro, e que, para além dos danos morais, ainda tiveram despesas com o funeral da vítima.

Citada, contestou a ré, alegando que os factos em causa não integram o conceito de acidente, não estando abrangidos pelo seguro, invocando a ilegitimidade dos autores, por não fazerem prova de serem os únicos herdeiros da vítima e defendendo-se por impugnação, alegando desconhecer a factualidade alegada.

Requereu a intervenção provocada do condutor do veículo, E, com o fundamento de ter contra o mesmo direito de regresso.

Responderam os autores à contestação.

Foi proferido despacho a admitir o chamamento de E, o qual, citado, não interveio no processo.

Foi proferido despacho saneador, no qual se julgaram as partes legitimas, considerando-se sanada a invocada ilegitimidade face à junção de certidão da habilitação de herdeiros e se julgou improcedente a excepção peremptória invocada, sendo organizada a factualidade considerada assente e a base instrutória.

Inconformada com o decidido no despacho saneador no tocante à excepção de ilegitimidade invocada, interpôs recurso de agravo para o Tribunal da Relação de Évora que viria a subir com a apelação da sentença final.

Prosseguiram os autos os seus trâmites, tendo sido realizada a audiência de discussão e julgamento, tendo a final, o Ex.mo Juiz de Círculo de Santiago de Cacém julgado a acção procedente, condenando a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 45.889,40 referente à indemnização total, sendo que os danos patrimoniais foram fixados em € 5.985,57 e os não patrimoniais em € 39.903,83, respectivamente.

À aludida quantia acresceriam os juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal desde a citação e até integral pagamento.

Inconformada com o assim decidido veio a Ré apelar para o Tribunal da Relação de Évora que por Acórdão de 28.4.2005 julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida, para além de igualmente não ter dado provimento ao agravo interposto do despacho saneador.

De, novo inconformada veio recorrer de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua alegação pela seguinte forma:

1. O presente recurso tem por objecto o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora que negou provimento à apelação da recorrente e veio a confirmar a sentença recorrida.

2. A quantia de 25.000$00 que o falecido entregava no lar familiar era tão só a quantia mínima e necessária para as suas despesas mensais no lar.

3. Se a vítima, infelizmente, faleceu também as despesas por si originadas deixaram de existir, não fazendo qualquer sentido condenar, nesta sede, a ora recorrente.

4. Relativamente aos danos morais dos AA., não discute a recorrente qual a sua dimensão, porque, obviamente, é grande, no entanto, considera que o valor a que foi condenada é manifestamente exagerado.

5. O Tribunal a quo violou, entre outras disposições legais, os arts. 496°, 564°, nº 3 do art. 566°, 804°, 805° do Código Civil.

Nas contra alegações, os recorridos defendem a manutenção do julgado.

Foram colhidos os vistos.

Decidindo.

2. Foi considerada, em 1ª Instância, como provada a seguinte factualidade:

1) No dia 08.08.1999, cerca da 1 hora e 30 minutos, na Estrada Municipal n° 553, no sentido Vale de Éguas / Vale Seco, numa parte recta da estrada, com a largura de 5,30 metros e bom piso, o E, conduzindo o veículo de marca "Toyota", modelo "Hilux x4"de matrícula KD, embateu intencionalmente no ciclomotor de matrícula l-STC, conduzido pelo D.

2) Como consequência do embate, e pelo facto do D ter sido arrastado cerca de 50 metros, sofreu este lesões de tal maneira graves que lhe causaram, directa e necessariamente, a morte.

3) O "D" teve dores e sofrimento, dada a brutalidade do acidente.

4) Por acórdão proferido no Processo Comum Colectivo n° 92/01 do 2° Juízo do Tribunal de Santiago do Cacém, transitado em julgado em 06.05.2002, foi o arguido E condenado na pena de dez anos de prisão como autor de um crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131° do C. Penal, na pessoa de D.

5) Os autores são os pais e únicos herdeiros do D, falecido no estado de solteiro em 08.08.1999.

6) Os autores sofreram uma enorme dor, face ao desaparecimento brutal do filho, e ao modo como a sua morte ocorreu.

7) O "D" constituía para os pais um forte apoio moral e um significativo apoio financeiro.

8) Contribuía para o lar familiar e despesas do mesmo com a quantia de 25.000$00 (€ 124,70) mensais.

9) Não tinha expectativas de casamento a curto ou médio prazo.

10) A responsabilidade civil emergente de acidentes de viação ocorridos com o KD encontrava-se, em 08.08.1999, transferida para a ré, por contrato de seguro titulado pela apólice 6.549.762.

3. - Análise do objecto da revista -.

É sabido que a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto representem corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal "ad quem" possa ou deva conhecer ex offício.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal "a quo", além de que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas - e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito - de todas as "questões" suscitadas com relevância para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, facilmente se constata que o objecto da revista incide, tão somente perante duas questões, a saber:

a) - a não consideração de danos patrimoniais, porquanto na perspectiva da Recorrente a contribuição do falecido, no montante mensal de € 124,70 para o lar de seus pais não correspondia a uma verdadeira contribuição para ajuda de tal lar, mas o ressarcimento de um valor das despesas mensais que o sustento do falecido acarretava, que teria cessado naturalmente com o seu decesso;

b) - redução da indemnização no que concerne aos danos morais, por, também, na perspectiva da Recorrente, o montante encontrado se apresentar excessivo.

3. a) No que se refere à primeira questão, é de atentar, antes de mais, na competência do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da matéria de facto. Assim e salvo casos excepcionais legalmente previstos, o Supremo Tribunal de Justiça apenas conhece de matéria de direito (artigo 26° do Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro - LOTJ99).

Nessa conformidade, como tribunal de revista, a regra é a de que o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o regime jurídico que julgue adequado (artigo 729º, n.° 1, do Código de Processo Civil).

Excepcionalmente, no recurso de revista, o Supremo Tribunal de Justiça pode apreciar o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa cometido pela Relação se houver ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou fixe a força probatória de determinado meio de prova (artigos 722°, n.° 2 e 729°, n.° 2, do Código Civil).

Assim, o Supremo Tribunal de Justiça só pode conhecer do juízo de prova formado pela Relação sobre a matéria de facto quando ela tenha dado como provado algum facto sem produção da prova por força da lei indispensável para demonstrar a sua existência ou ocorrer desrespeito das normas reguladoras da força probatória dos meios de prova admitidos no ordenamento jurídico.

Por isso, o erro na apreciação das provas e a consequente fixação dos factos materiais da causa, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos que sejam livremente apreciáveis pelo julgador, excede o âmbito do recurso de revista.

Em consequência, não cabe na competência do Supremo Tribunal de Justiça sindicar a decisão da Relação por via da qual, de factos assentes, extrai outros que sejam o seu desenvolvimento (1).

Analisemos, assim, como, nesta sede a Relação decidiu e que merece a discordância da Recorrente.

Conforme resulta da sentença proferida em 1ª Instância, o tribunal "a quo" fixou em € 5.985,57 o valor dos danos patrimoniais sofridos pelos recorridos, correspondentes à perda do contributo que o seu filho dava para o sustento do lar -valor esse correspondente ao que, a tal título, foi peticionado.

Para tanto, fazendo uso da equidade, o tribunal referenciado teve em conta o facto de se ter provado que o D constituía para seus pais um significativo apoio financeiro e que entregava aos autores, mensalmente, uma quantia de 124,70, ou seja, 25.000$00 mensais na moeda corrente à data da sua morte, considerando ainda ser previsível que vivesse com os autores durante mais alguns, atento o facto de não ter qualquer compromisso.

A Relação considerou que "presumindo-se da factualidade dada como provada que a vítima estava integrada no agregado familiar dos autores, seus pais, parte das despesas desse mesmo lar teriam que respeitar à própria vítima (...) se o mesmo constituía um significativo apoio financeiro para os pais, tal só pode significar que a quantia em causa (25.000$00 mensais) se destinaria, em grande parte (até pelo seu montante), às despesas próprias dos seus pais (...) atenta a circunstância de viver com os pais (...) e o facto de se ter dado como provado que "não tinha expectativas de casamento a curto ou médio prazo", por força das presunções da experiência sempre seremos levados a concluir, conforme bem se considerou na sentença recorrida ser previsível que a vítima vivesse com os pais durante mais alguns anos."

(...)

Partiu-se do pressuposto, e julga-se que bem, que não se trataria de uma liberalidade do filho, mas face à carência económica patenteada pelo respectivo agregado familiar, uma obrigação natural que recaía sobre a vítima em virtude da necessidade de alimentos do aludido agregado familiar.

"Ora, perante os limites dados como provados, a que acima acabámos de fazer referência, afigura-se-nos de todo razoável a quantia fixada na sentença recorrida (€ 5.985,57, equivalente a 1.200.000$00).

Basta ver que, ainda que metade da quantia entregue se destinasse às despesas referentes à própria vítima, bastariam 8 anos para completar a referida quantia de 1.200.000$00 (12.500$00 x 12 meses x 8 anos = 1.200.000$00). Desta forma, haveremos de concluir no sentido de que a indemnização respeitante aos danos patrimoniais se mostra correctamente fixada".

Assim, em sede de presunções judiciais, - que são situações em que, num quadro de conexão entre factos provados e não provados, à luz da experiência comum, da lógica corrente e por via da própria intuição humana, a existência dos primeiros, em termos de alta probabilidade, justifica a existência dos últimos - , não pode este Tribunal sindicar o conteúdo da ilação operada pela Relação.

Na verdade, é exclusivamente de facto a ilação retirada pelas Instâncias, de que a quantia mensal que a jovem vítima entregava a seus pais não era para o seu sustento ou só para o seu sustento, mas sobretudo para ajudar o agregado familiar constituído por seus pais, por si e irmãos, desta forma contribuindo para o mesmo agregado familiar.

Com efeito, ao explicitar o conteúdo das mencionadas ilações, a Relação operou no âmbito da sua competência, no quadro da decisão da matéria de facto, na decorrência do princípio da livre apreciação da prova a que se reporta o artigo 655°, n° 1, do Código de Processo Civil.

Consequentemente, não tem este Tribunal competência funcional para sindicar o juízo da Relação ao operar as mencionadas ilações.

Ao Supremo Tribunal de Justiça apenas compete conhecer da matéria de facto apurada por presunções judiciais no caso de estar em causa a violação dos artigos 349° e 351° do Código Civil.

A Relação não infringiu as normas de direito substantivo relativas às presunções judiciais.

E este Tribunal não pode sindicar o juízo da Relação que operou as mencionadas ilações no quadro dai de facto.

Improcede, por isso, nesta parte a revista.

3. b).Quanto aos danos não patrimoniais, a Relação fixou o seu montante em € 39.903,83 (equivalente a 8.000.000$00), para ambos os recorridos.

Para tanto, após aludir à necessidade de revisão dos critérios miserabilistas, atendeu ao facto de os autores terem perdido um dos seus filhos, um jovem com um largo futuro à sua frente, ao facto de terem um bom relacionamento com o filho, que era um grande apoio económico para eles, tendo ainda em conta ser mais que inquestionável a dor intensa que qualquer pai sente pela morte de um filho, para além de nenhuma culpa se poder assacar ao falecido na produção do acidente.

Com efeito, a indemnização correspondente à dor resultante da perda de afeição da vítima deve ser calculada segundo critérios de equidade, levando- se em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, da criteriosa ponderação das realidades da vida, atendendo-se, ainda ao grau de culpabilidade e à situação económica do lesante, bem como à situação económica do lesado (art. 496° nº 3 do C.Civil).

Nestes termos, não se verifica qualquer exagero no montante da indemnização global fixada, sendo, antes patente a sua adequação à gravidade dos factos sofridos, pois é especialmente relevante a intensidade do dolo com que actuou o lesante, já que o mesmo procurou intencionalmente obter o resultado, ou seja a morte da vítima, conforme foi decidido em termos penais (vide pontos 1, 2 e 4 dos factos assentes).

Nenhuma censura merece, pois, também, nesta parte, a decisão cuja revista é pedida.

4. Consequentemente, acordam, no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 24 de Janeiro de 2006

Borges Soeiro,

Faria Antunes,

Moreira Alves.

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(1) Ac. deste S.T.J. de 7.12.2005 Relator Cons. Salvador da Costa, in http:///www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0 Processo 05B3853