Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
47/20.0YRGMR.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA
ESCRITURA PÚBLICA
UNIÃO DE FACTO
Data do Acordão: 10/13/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDER A REVISTA E A REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DA ESCRITURA PÚBLICA DE DECLARAÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :

I– A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.

II– Verificados os requisitos previstos no artigo 980.º do CPC, deve a escritura pública de declaração de união estável ser revista e confirmada por tribunal português.

Decisão Texto Integral:
Processo nº 47/20.0YRGMR.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – Relatório

1. AA, portador do cartão de cidadão nº ..., válido ate …/2027, pela República Portuguesa, NIF ...; e BB, portadora do passaporte nº ..., de nacionalidade brasileira, ambos, quando em Portugal, residentes na ..., nº.., freguesia de ..., do concelho de ..., vêm intentar ação especial de revisão e confirmação de escritura pública de união estável, alegando para o efeito que:

1) Os autores outorgaram, em 01 de abril de 2009, na República Federativa do Brasil, …. – Comara da Capital, no Cartório …, 1º Ofício de Protesto – 2º Ofício de Notas – Comarca ...– …, perante a Tabeliã CC, uma Escritura de Pública Declaração de União Estável, lavrada a fls … e …, do Livro nº …;

2) Aí declaram que a partir do mês de setembro de 1992, resolveram de comum acordo estabelecer entre si convivência de união estável em carácter público, contínuo, duradouro e ininterrupto, com o objetivo de constituição de família, tal como preceitua o artigo 1723º do Código Civil Brasileiro, tendo estabelecido ainda que tal união se rege pelo Regime da Comunhão Parcial de Bens, desde o seu início;

3) Mais declararam que da união estável que mantêm, nasceu uma criança, de nome DD, nascida a ….1993, na cidade ...(cfr. teor da certidão de Escritura emitida pelo Cartório …da Comarca ...e apostilada – que se junta como documentos nºs 1 e 2, cujo o teor, por brevidade, aqui se dá como reproduzido).

4) Ambos subscreveram regularmente a declaração de União Estável, na presença de duas testemunhas (EE e FF), como resulta do teor do doc. junto como nº 1;

5) Ficou, desta forma, declarada e reconhecida juridicamente, no Brasil, a união estável que os Autores mantinham desde setembro de 1992, com caráter público, contínuo, duradouro e ininterrupto e estabelecida com o objetivo de constituição de família;

6) Prevê o artigo 1723º do Código Civil Brasileiro - “É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.”;

7) Da união estável mantida entre os Autores nasceu a única filha de ambos, DD, em … 1993; - cfr. doc. que se junta como nº 2;

8) Os AA., em virtude da escritura pública de declaração de união estável lavrada no Brasil, pretendem ver agora reconhecida e declarada tal escritura pública, em Portugal, país de nacionalidade do A. e também da filha de ambos (que possui dupla nacionalidade);

9) Os outorgantes são de nacionalidades diferentes, ele (AA) é cidadão português, e ela (BB) é cidadã brasileira (cfr teor dos documentos que se juntam como doc.s nºs 3 e 4 - certidão de nascimento dos AA).

10) A decisão descrita em 1) a 4), proferida por entidade administrativa, que a lei brasileira atribui competência para o efeito, pelo que nada obsta a que seja confirmada, para que produza efeitos em Portugal.

11) Dessa forma constituiu-se, para efeitos do ordenamento jurídico brasileiro, a união estável existente entre AA e BB, aqui AA., desde o mês de setembro de 1992 e da qual nasceu, em ...1993, uma filha de ambos de nome DD;

12) Esta decisão já transitou em julgado, foi proferida pela entidade brasileira legalmente competente para esse efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei.

13) Assim, a escritura pública de declaração de união estável deve ser considerada como uma decisão sobre direitos privados abrangida pela pelo artigo 978º, nº 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal;

14) Ainda, a escritura pública, que se junta como nº1, é um documento devidamente autenticado, bem inteligível e escrito em língua Portuguesa;

15) O facto de a lei processual brasileira consagrar a possibilidade da união estável em carácter público, contínuo, duradouro e ininterrupto, com o objetivo de constituição de família ser efetivada por via administrativa - por escritura pública - não afasta a aplicação dos artigos 980º e seguintes do Código de Processo Civil;

16) Não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou esses interesses privados e provém duma autoridade administrativa, pelo que estão preenchidos os requisitos para a confirmação do seu conteúdo.

17) A decisão revidenda não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

18) Até porque não devem existir dúvidas acerca a autenticidade das declarações de vontade em causa nem sobre a inteligibilidade delas, nem o seu reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português;

19) A mesma encontra-se em condições de ser revista e confirmada em Portugal.

20) Encontram-se preenchidos todos os requisitos impostos pelo artigo 980º do Código de Processo Civil.

21) Os AA. pretendem fazer executar em Portugal a referida decisão - escritura pública de declaração de união estável;

22) Pelo que vêm requerer a sua revisão e confirmação.

23) A forma de processo é a própria, as partes são legítimas e o Tribunal é competente.

Concluem pedindo que deve a invocada decisão revidenda – escritura pública de declaração de união estável – ser revista e confirmada, com todas as consequências legais.

Foram juntos os referidos documentos.

Foi cumprido o disposto no artigo 982.º do Código de Processo Civil (CPC), sendo apresentadas alegações pelo MP, que não se opôs à revisão e confirmação, e pelos requerentes.

O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão datado de 07-05-2020, decidiu o seguinte:

«Nestes termos, acorda-se em julgar improcedente a pretensão dos requerentes e, em consequência, não se concede a revisão da escritura melhor identificada nos factos provados».

2. Os requerentes, inconformados, interpõem recurso de revista, em que pedem que a escritura pública de declaração de união estável seja revista e confirmada, com todas as consequências legais, com base nos seguintes fundamentos:

 «1) Os requerentes, ora recorrentes, intentaram a presente ação especial, pedindo que seja revista e confirmada a escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada em 1 de Abril de 2009, perante a Tabeliã CC, que declarou e reconheceu juridicamente a união estável dos requerentes (conforme certidão junta).

2) O MP emitiu parecer favorável ao pedido.

3) Não obstante, o douto acórdão recorrido, indeferiu o pedido formulado pelos requerentes, alegando que o documento apresentado, ou seja, a escritura de união estável, outorgada em 1 de Abril de 2009, na República Federativa do Brasil, não contém qualquer decisão, mesmo que fosse homologatória e/ou proveniente de autoridade administrativa estrangeira, pelo que, no seu entender, não se mostram verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira, citando a seu favor, a jurisprudência dos Acórdãos do STJ de 28.2.2019, e de 21.3.2019.

4) Salvo o devido respeito, por opinião em contrário, não podemos concordar com tal entendimento.

5) Para que uma sentença seja confirmada, é necessário que se encontrem preenchidos os requisitos do art. 980º do CPC.

6) Com efeito, existe jurisprudência - como é o caso dos acórdãos do STJ melhor indicados no acórdão recorrido e ainda do Ac. do STJ de 09/05/2019, 828/18 e o Ac. TRL de 26/09/2019, 1777/19 - que considera que os atos em causa não podem ser objeto de revisão e confirmação por não se reconduzirem a verdadeiras decisões, mesmo considerando o sentido mais amplo do conceito, por conterem, tão só, um mero "enunciado assertivo ou constativo", limitando-se o notário a atestar o que lhe declaram os requerentes sem acrescentar qualquer atividade decisória ainda que meramente homologatória.

7) Todavia, esta questão já foi apreciada de forma diametralmente oposta, designadamente, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.1.2019, Alexandre Reis, 896/18), cujo sumário é o seguinte: «I– A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença. II– Verificados os requisitos previstos no art. 980 do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português.»

8) A união estável é erigida à qualidade de entidade familiar, podendo ser constituída por escritura pública perante tabelião de notas.

9) Essa escritura pública – como foi o caso – integra um verdadeiro contrato, designadamente com disposições sobre as relações patrimoniais entre os companheiros.

10) Esse contrato pode ser objeto de registo, colhendo então efeitos perante terceiros.

11) A lei processual equipara a extinção consensual da união estável aos casos de divórcio consensual, podendo efetuar-se todos por escritura pública, a qual não depende de homologação judicial.

12) Ou seja, a ordem jurídica brasileira atribui efeitos e reconhece a união estável, formalizada por escritura pública, sem necessidade de intervenção judicial.

13) E, no que tange quer à extinção do casamento por divórcio consensual quer à extinção da união estável, não exige que as escrituras que os determinam sejam objeto de homologação judicial.

14) Ora, o alcance do termo decisão relevante para efeitos do art. 978º do CPC, foi apreciado, designadamente, pelos Acórdãos do STJ de 22-05-2013, no processo 687/12.1YRLSB.S1, e de 25-06-2013, no processo 623/12.5YRLSB.S1, revelando uma jurisprudência reiterada e uniforme, no sentido que, abrange não só casos de “emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo ato, ainda que de carácter meramente homologatório”, e também, casos em que não há exatamente uma emissão formal de vontade — em que há, tão-só, “um ato caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”.

15) Daqui resulta que, sendo admissível a formalização da união estável no Brasil através de escritura pública perante tabelião, como foi o caso, a intervenção e controle feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que caucionam o ato, ao qual são atribuídos efeitos precípuos pela ordem jurídica brasileira.

16) A intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis. Ou seja, a intervenção do notário assume a natureza de caucionamento do ato em causa, na sequência de delegação administrativa sui generis por parte do Estado brasileiro. A intervenção notarial permite que o ato despolete efeitos na ordem jurídica brasileira, tal como se tivesse sido objeto de declaração judicial em sentido estrito, estando mesmo a atividade notarial sujeito à fiscalização do Poder Judiciário. Em suma, a outorga da escritura de união estável perante o notário, a função deste e o controlo da atividade notarial pelos tribunais no Brasil são suscetíveis de equivaler aos requisitos de ato jurisdicional impostos pelo art. 3º, nº2, do Regulamento nº 2016/2014, do Conselho de 24.6.2016. (Veja-se neste sentido, o Ac. TRL de 11.12.2019, processo nº 1807/19.0YRLSB-7).

17) Acresce que, merece a nossa adesão a análise conclusiva feita nos Acórdãos do TRL de 24.10.19, processo nº 2403/19.8YRLSB.L1-2, e de 21.11.2019, processo nº 1429/19.6YRLSB-2, ambos do relator Pedro Martins, que por brevidade se dá por integralmente reproduzida, para todos os efeitos legais.

18) Flui de todo o exposto, que a escritura pública em causa integra ainda uma decisão sobre direitos privados para efeitos do art. 978º, nº1, do Código de Processo Civil, estando sujeita a revisão. (Veja-se neste sentido, o Acórdão desta Relação de 21.11.2019, Ana Azeredo Coelho, 1899/19).

19) Portanto, mesmo que a intervenção no ato da autoridade prevista na lei brasileira se limite à verificação da prática do ato e à sua regularidade formal e não ao proferimento de uma decisão, tal significa o caucionamento pela ordem jurídica do ato em causa e ele pode ser revisto como se fosse uma sentença para os efeitos do art. 978º do CPC.

20) De facto, e como resulta ínsito nos acórdãos do STJ de 2013 supra citados, não releva que o reconhecimento da união estável se tenha produzido de maneira contratual apenas através das declarações dos outorgantes; basta que se trate de um ato caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido.

21) Como tal, a revisão pedida é necessária nem que seja do ponto de vista da prática e, o conteúdo do art. 978º, nº1 do CPC tem amplitude suficiente para abranger resultados de procedimentos legais previstos no estrangeiro, dirigidos por entidades administrativas, não judiciais, mesmo que esse procedimento se limite a lavrar/registar ou exarar escrituras públicas, declarações dos próprios particulares.

22) Em face dos elementos constantes dos autos não se suscita qualquer dúvida sobre a autenticidade do instrumento notarial revidendo, nem sobre a inteligibilidade do seu conteúdo.

23) A escritura de união de facto foi lavrada pela entidade brasileira legalmente competente para esse efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei, sendo válida segundo o ordenamento do país onde foi proferida e para que possa produzir os seus efeitos em Portugal, porquanto vincula um cidadão português.

24) Não há exceções de litispendência ou de caso julgado, nos termos da lei do país de origem.

25) O seu reconhecimento não conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

26) Pelo que, nada obsta à revisão e confirmação da escritura da união estável em causa.

27) A decisão recorrida fez desadequada aplicação do direito, devendo, por isso, ser revogada e substituída por outra em que, a escritura pública de declaração de união estável, seja revista e confirmada,          com todas as consequências legais, designadamente, o reconhecimento da união por ela decretada, produzir em Portugal todos os seus efeitos.

28) O douto acórdão recorrido, decidindo como decidiu, violou, frontalmente, o disposto nos arts. 978º e 980º do CPC e art. 36º, nº1 da CRP.

 

Termos em que e nos mais de direito aplicáveis, deve este Supremo Tribunal apreciar a matéria de direito em causa nos autos, devendo ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o acórdão sindicando, e substituindo-o por outro, em que a escritura pública de declaração de união estável, seja revista e confirmada, com todas as consequências legais».

           

            3. Notificado o Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, para que se pronunciasse, veio este dizer que devia o recurso de revista ser considerado procedente, e, em consequência, concedida a revisão e a confirmação da escritura de união estável em causa, para produzir efeitos em território nacional.

            Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação de facto

Damos como assente a matéria fáctica acima relatada.

 

III – Fundamentação de direito

1. A questão colocada no presente recurso diz respeito a um pedido de revisão e confirmação de uma escritura pública de declaração de união estável, outorgada na República Federativa do Brasil, por um cidadão de nacionalidade portuguesa e uma cidadã de nacionalidade brasileira, nos termos do artigo 1723º do Código Civil brasileiro.

Os requerentes, ora recorrentes, intentaram a presente ação especial, pedindo que seja revista e confirmada a escritura Pública de Declaração de União Estável lavrada em 1 de abril de 2009, no Cartório …, 1º Ofício de Protesto – 2º Ofício de Notas – Comarca ...– SC, perante a Tabeliã CC, que declarou e reconheceu juridicamente a união estável dos requerentes (cfr. doc. n.º 1).

  O Acórdão recorrido indeferiu o pedido formulado pelos requerentes, alegando que o documento apresentado, ou seja, a escritura de união estável, outorgada em 1 de abril de 2009, na República Federativa do Brasil, não contém qualquer decisão, nem mesmo meramente homologatória e/ou proveniente de autoridade administrativa estrangeira, pelo que não se mostrariam, assim, verificados os pressupostos de revisão de sentença estrangeira, citando a seu favor, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28-02-2019 e de 21-03-2019.

A questão a dirimir consiste em saber se a citada escritura pública integra o conceito de «decisão sobre direitos privados», proferida por tribunal estrangeiro, suscetível de revisão e confirmação, nos termos do artigo 978.º, n.º 1, do CPC, para o efeito de vigorar como sentença no Estado Português.
            Como tem sido reconhecido na doutrina (António Marques dos Santos, “Revisão e Confirmação de Sentenças Estrangeiras”, in Aspectos do Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997, p. 141) e na jurisprudência (cf. por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12.7.2011, proc. n.º 987/10 e de 23-03-2019), o sistema do direito português carateriza-se por ser um sistema do reconhecimento das sentenças estrangeiras mediante revisão ou controlo prévio (homologação). Ou seja, antes de confirmada (homologada), a sentença não produz na ordem jurídica nacional os efeitos que lhe correspondem como ato jurisdicional. Ela é simplesmente um facto jurídico, cuja eficácia está pendente até que sobrevenha a condição legalmente requerida (condicio uiris), que é a decisão de confirmação ou homologação proferida no referido processo especial de revisão de sentença estrangeira.
            O princípio do reconhecimento e execução das sentenças estrangeiras tem por finalidade a garantia da estabilidade, uniformidade e certeza da regulamentação das situações jurídicas interindividuais da vida internacional, tendendo à realização do mesmo tipo de justiça do Direito Internacional Privado, ou seja, de uma justiça formal, sob pena de adesão a um sistema de justiça material, que implicaria a sujeição sistemática de todas as sentenças estrangeiras a uma revisão de mérito ou de fundo.
            Sendo assim, a indagação dos requisitos da revisão de sentença estrangeira, no nosso sistema, implica um controlo da regularidade formal ou extrínseca da sentença estrangeira, que dispensa a apreciação dos seus fundamentos de facto e de direito. O tribunal português competente para a revisão e confirmação deve verificar apenas se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Trata-se de um processo especial de simples apreciação cujo objetivo é o de verificar se a sentença estrangeira está em condições de produzir em Portugal os mesmos efeitos que lhe são atribuídos no sistema de origem, condicionando-se a produção desses efeitos à observância dos requisitos enunciados no artigo 980º (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2020, p. 423).

Tudo se resume, afastada a hipótese de contrariedade com os princípios de ordem pública internacional, aqui ausente, à questão de saber se a escritura de declaração de união estável consiste numa decisão sobre direitos privados suscetível de revisão e confirmação.

2. A jurisprudência não tem decidido de forma uniforme, quer nos tribunais da Relação, quer neste Supremo Tribunal de Justiça, sobre situações similares à que é objeto destes autos.

Uma corrente jurisprudencial defende que estas escrituras públicas não podem ser equiparadas ao conceito de decisões sobre direitos privados para o efeito de serem objeto de um processo de revisão e de confirmação (Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 28-02-2019, proc. n.º 106/18.0YRCBR.S1; de 21-03-2019, nº 559/18.6YRLSB.S1;de 09/05/2019, proc. 828/18.5YRLSB.S1; de 10-12-2019, proc. n.º 249/18.0YPRT.S2; Ac. da Relação de Lisboa, de 26-09-2019, proc. n.º 1777/19.5YRLSB-2), concluindo que «A declaração dos requerentes numa Escritura Pública Declaratória de União Estável, perante uma autoridade administrativa estrangeira (tabelião) de que vivem em união de facto desde Julho de 2013, não deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1, do CPC, não podendo ser revista e confirmada para produzir efeitos em Portugal».

As razões aduzidas para este entendimento residem, no essencial, na consideração de que os requerentes não obtiveram na escritura uma decisão homologatória por parte do tabelião que pudesse servir de base à presente revisão, mas apenas declararam viver como se fossem casados, numa convivência duradoura, pública e contínua. Assim, entende esta corrente que estamos perante um simples meio de prova sujeito à apreciação de quem haja de julgar a causa, ou seja, de quem haja de decidir sobre os direitos atribuídos ou reconhecidos em Portugal à união de facto, ficando este tipo de escrituras excluídas do processo de revisão de sentença estrangeira (Acórdão deste Supremo Tribunal, de 21-03-2019). Para esta corrente «(…) nem a declaração da junta de freguesia prevista pelo direito português nem (muito menos) a escritura declaratória de união estável prevista pela lei brasileira fazem com que o acto composto pelas declarações dos requerentes seja “caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido” - com a consequência de que a escritura declaratória de união estável apresentada pelos Requerentes não pode ser confirmada / revista» (cf. Acórdão deste Supremo Tribunal, de 28-02-2019).

Outra corrente entende, pelo contrário, que o conceito de “decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro” (artigo 978.º, n.º 1, do CPC), deve ser interpretado em sentido amplo para abranger decisões proferidas, seja por autoridades judiciais, seja por autoridades administrativas (cf., os acórdãos deste Supremo Tribunal, de 08-09-2020, processo n.º 1884/19.4YRLSB.S1; de 29-01-2019, processo nº 896/18.0YRLSB.S1; de 25-05-2013, proc. n.º 687/12.1YRLSB.S1; 25-06-2013, proc. n.º 623/12.5YRLSB.S1; de 12-07-2005, proc. n.º 05B1880; e uma vasta jurisprudência da Relação de Lisboa, por exemplo, entre outros, os seguintes acórdãos: de 10-11-2009, proc. n.º 1072/09.8YRLSB-7, de 30-11-2017, proc. n.º 1072/09.8YRLSB-7;  de 24-10-2019, proc. n.º 2403/19.8YRLSB.L1-2; de 21-11-2019, proc. n.º 1899/19.2YRLSB-6; de 17-12-2019, proc. n.º, de 23-01-2020, proc. n.º 3106/19.9YRLSB-2, de 04-02-2020, proc. n.º 2816/19.5YRLSB-7, de 21-05-2020, proc. n.º 190/20.6YRLSB-2), aqui se incluindo as declarações dos requerentes, que vivem em união de facto, prestadas perante um notário, à luz do direito civil brasileiro, e a escritura pública que outorga o divórcio entre as partes.

A doutrina, no mesmo sentido, como descreve João Gomes de Almeida, O divórcio em direito internacional privado, Almedina, 2017, págs. 596-597, citado no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 30-11-2017:

«Verifica-se que sobre esta questão existem, no essencial, duas posições. Uma considera que, em regra, apenas relevam as decisões proferidas por órgãos jurisdicionais estrangeiros, podendo, contudo aplicar-se, por analogia, o regime de reconhecimento de decisões estrangeiras, às decisões proferidas por autoridades administrativas estrangeiras [Cfr. Lima Pinheiro (2012: 491-492)]. A outra posição considera que a expressão "tribunal estrangeiro", prevista no nº l do artigo 978 do CPC, abrange não só os órgãos jurisdicionais do Estado de origem mas também qualquer autoridade à qual o Estado de origem tenha cometido o poder jurisdicional [cf. Ferrer Correia (2000:455-456), Carlos Ferreira Da Silva [2000: 468-469] e Marques Dos Santos (1997: 105-106) e, aparentemente, Maria José Capelo (2015: 283 e ss.)»

3. Sobre a questão do conceito de “decisão sobre direitos privados” seguiremos o entendimento expresso no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29-01-2019, cuja orientação foi reiterada no Acórdão desta Secção, datado de 8 de setembro de 2020, por entendermos ser esta a posição mais conforme à promoção dos direitos familiares pessoais dos indivíduos e à proteção das suas expetativas, bem como à garantia de continuidade e segurança das relações jurídicas familiares, aqui particularmente relevante, pois esta união, segundo os documentos juntos aos autos, existe desde 1992 e foi acompanhada do nascimento de uma filha em 1 de maio de 1993 (documentos n.º 1 e 2 juntos com a petição inicial), não lhe podendo ser oposta qualquer suspeita de se tratar de uma simulação para o efeito de aquisição da nacionalidade portuguesa.

Dispõe-se no sumário do Acórdão de 29-01-2019:

I– A escritura pública, lavrada em cartório do registo civil situado no Brasil, que reconhece a “união estável e de endereço comum” entre uma pessoa com nacionalidade brasileira e outra com nacionalidade portuguesa, tem no ordenamento jurídico brasileiro força idêntica a uma sentença.

II– Verificados os requisitos previstos no art. 980º do CPC, e não relevando saber se a referida escritura é suficiente para atribuir nacionalidade portuguesa ao membro com nacionalidade brasileira, como pretendido, deve a mesma ser revista e confirmada por tribunal português».

O Código Civil brasileiro de 2002 reconheceu como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família (artigo 1723.º), conceito que a jurisprudência, através da analogia ou da interpretação extensiva, alargou às uniões entre pessoas do mesmo sexo, culminando esta evolução com a decisão do Supremo Tribunal Federal de 5 de maio de 2011, que decidiu que a união homoafetiva é uma entidade familiar e dela decorrem todos os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher, bem como admitindo-se, por via judicial, a conversão das uniões homoafetivas em casamentos civis e o casamento civil direto, que culminou com a resolução do Conselho Nacional de Justiça n.º 75, de 14 de maio de 2013, que proíbe as autoridades competentes de se recusarem a celebrar casamento civil ou a converter união estável em casamento entre pessoas do mesmo sexo (cf. Marianna Chaves, Homoafetividade e Direito, 3.ª edição, Juruá Editora, Curitiba, 2015, pp. 205 e ss; pp. 268 e ss).

 Uma relação de convivência entre duas pessoas (de sexo diferente ou do mesmo sexo), configurada na convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituir família, pode ser formalizada, no direito brasileiro, através da escritura pública declaratória de união estável e esta pode ser posteriormente convertida em casamento.  

Inexiste no direito brasileiro qualquer hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre o casamento e a união de facto, enquanto formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico. É importante lembrar que a união estável, no direito brasileiro, tem efeitos pessoais e patrimoniais mais amplos do que a união de facto no direito português, prevendo a lei um regime de bens supletivo de comunhão parcial (artigo 1725.º do Código Civil brasileiro) e efeitos sucessórios em caso de morte. Após a declaração de inconstitucionalidade, pelo acórdão do Supremo Tribunal Federal, de 10-05-2017 (disponível in http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=13579050]), do artigo 1790.º do Código Civil brasileiro, que atribuía ao/à companheiro/a de união de fato direitos sucessórios inferiores aos do cônjuge, estes efeitos sucessórios são idênticos aos do casamento.

O reconhecimento desta união com os efeitos jurídicos que lhe são próprios representa para as partes um grau de proteção jurídica idêntica ao casamento, para além de as subtrair à álea do princípio da livre apreciação da prova vigente no direito português para as uniões de facto (artigo 2.º-A, n.º 1, aditado à Lei n.º 7/2001, de 11-05, pela Lei n.º 23/2010, de 30-08), em cujo regime não se exige qualquer acordo escrito ou formalização notarial. A escritura pública faz prova plena da união, dotando-a de uma maior garantia de segurança e de publicidade. Em caso de rutura, quando a parte interessada tem que cumprir o ónus da prova da demonstração em tribunal da existência dessa união, colocam-se nos tribunais portugueses questões probatórias geradoras de insegurança para as partes. Se bem que os conviventes possam apresentar a escritura pública como meio de prova dotado de força plena, independentemente do processo de conformação e revisão, não se pode ainda assim afirmar que este processo seria inútil para as partes da união. Pode haver vantagens nos efeitos jurídicos da morte ou da separação, em caso de cessação da união de facto, pois, segundo as normas de direito internacional privado, há situações em que é aplicável não a lei portuguesa enquanto lei da residência habitual comum, mas a lei brasileira (por exemplo, se apenas um dos companheiros tem residência habitual em Portugal, aplica-se a lei do país com o qual a vida familiar se ache mais estreitamente conexa – artigo 52.º, n.º 2, ex vi artigo 55º, n.º 1, ambos os preceitos do Código Civil). Pelo que será permitido ao companheiro/a que invoca um benefício decorrente da cessação da união de facto, invocar a lei brasileira, se a vida familiar continuou a estar centrada neste Estado, apesar de um dos seus membros viver em Portugal. Assim, nesta hipótese, a união de facto terá efeitos mais amplos do que os atribuídos pela legislação portuguesa, que não equipara a união de facto ao casamento, nem lhe reconhece qualquer efeito sucessório.

Entendemos, por isso, que, emitida a escritura pública, pela autoridade administrativa brasileira legalmente competente para o efeito, tal documento, dotado de fé pública, tem, no ordenamento jurídico daquele país, força igual à de uma sentença que reconheça uma união estável e, assim, deve ser considerada como uma “decisão sobre direitos privados” abrangida pela previsão do artigo 978.º, n.º 1, do CPC, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal.

Como se afirma no Acórdão deste Supremo Tribunal, de 29-01-2019, «Na verdade, «[o] critério a ter em conta para a sujeição ao processo de revisão assenta na natureza da decisão – importando avaliar se a “decisão” estrangeira produz efeitos idênticos ou equivalentes a uma decisão judicial propriamente dita –, mostrando-se não relevante o órgão de que emana, dado que cada Estado é livre em definir as matérias que cabem na competência dos tribunais, não se mostrando o respectivo critério uniforme em todos os Estados».

3. Os requisitos formais a serem observados são os seguintes, nos termos do artigo 980.º do CPC, que dispõe o seguinte:

“Para que a sentença seja confirmada é necessário:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;

b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;

c) Que provenha de tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;

d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

e) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;

f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português”.

Na área do direito da família, integram a ordem pública internacional do Estado português as normas jurídicas estruturantes das relações de família que refletem a consideração dos direitos absolutos ou essenciais dos elementos da família e os princípios básicos do nosso ordenamento (v.g. normas que asseguram a liberdade de constituição da família, igualdade dos cônjuges, a monogamia, a não discriminação dos filhos nascidos fora do casamento).

Afastada qualquer incompatibilidade com um princípio de ordem pública internacional que impedisse o reconhecimento da união estável, uma vez que estamos perante uma união monogâmica entre duas pessoas maiores de idade, sem impedimentos matrimoniais de ordem pública, verifica-se, a partir dos requisitos enunciados no citado preceito do Código de Processo Civil, que a revisão do conteúdo da dita “decisão” (escritura) estrangeira, com vista a operar efeitos jurisdicionais na ordem jurídica portuguesa, envolve, tão só, a verificação da sua regularidade formal ou extrínseca, não pressupondo a apreciação dos fundamentos de facto e de direito da mesma.

No acórdão de 29-01-2019, que seguimos de perto, afirma-se o seguinte:

            «Ora, relativamente à escritura em apreço, verifica-se que concorrem as condições indicadas sob as alíneas a) e f) do citado artigo, porque não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do documento onde a mesma consta nem sobre a sua inteligência e, ainda, porque o seu conteúdo (união de facto de pessoas do mesmo sexo), em si, não é incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português. E também se não apura, através dos meios previstos no art. 984 do mesmo código, a falta de observância de qualquer um dos requisitos indicados sob as demais alíneas daquela outra norma (980), designadamente a d)».

Nos termos do acórdão da Relação de Lisboa, de 21-11-2019, proferido no proc. nº 1899/19.2YRLSB-6, entendemos que a escritura pública de declaração de união estável contém uma “decisão sobre direitos privados”:

 “Em suma, a evolução do entendimento do que seja decisão sobre direitos privados proferida por tribunal estrangeiro, implica já a ultrapassagem da dicotomia intervenção constativa ou performativa do oficial público para exigir uma outra ordem de classificação: intervenção de oficial público com ou sem repercussão performativa na ordem jurídica em que é prevista e praticada.

Esta a fronteira a estabelecer para a admissibilidade da revisão, ultrapassada como está a da decisão judicial em sentido estrito e, bem assim, a da decisão de oficial público não tribunal.

Na verdade, a revisão de sentença estrangeira tem uma razão de ser que decorre desde logo do artigo 978.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: nenhuma decisão (…) tem eficácia em Portugal (…) sem estar revista e confirmada.

A tónica é colocada na eficácia em território português. Admitindo, como a jurisprudência portuguesa admite, o alargamento da noção de decisão judicial à decisão de órgão público caucionada nos seus efeitos pelo sistema jurídico, é esta dimensão performativa que importa – intervenção com efeitos no sistema jurídico em que é prevista e realizada. Dizendo de outro modo, a intervenção com repercussão performativa, para além do mero reforço da força probatória, é suscetível de revisão por ser este o ponto específico que a revisão visa: produção de efeitos na ordem jurídica.

A união estável é um facto e não um ato jurídico. A intervenção do oficial público prevista no sistema jurídico brasileiro é constitutiva, no sentido de produzir efeitos na ordem jurídica, nomeadamente o declarativo da verificação da situação de união estável”.

Não existem dúvidas sobre a autenticidade das declarações de vontade em causa nem sobre a inteligibilidade delas, nem o seu reconhecimento conduz a um resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português (artigo 980.º, als a) e f), do CPC).

Não existem dados que indiciem que essas declarações tenham sido tomadas por órgão cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei, ou que esteja pendente ou já tenha sido proferida outra decisão sobre a mesma questão em Portugal (o artigo 980.º, als. b) a e), do CPC).

A escritura pública de união estável destes autos não ofende a ordem pública portuguesa, quanto à maneira como regulou os interesses privados em causa, e provém de uma autoridade administrativa. Não releva, para este efeito, o modo ou a via como se chegou à produção desse ato, ou seja, se através duma emissão formal da vontade da entidade administrativa responsável pelo ato, ainda que de carácter meramente homologatório, ou se de maneira «contratual» apenas através das declarações dos outorgantes. Por outras palavras, basta, como se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-05-2013, que se trate de um “ato caucionado administrativamente pela ordem jurídica em que foi produzido”. Não se exige, contudo, um ato de homologação por parte do notário. Mas a falta deste ato de homologação não impede que se integre a escritura de união estável no conceito de “decisão”. O notário não se limita ao papel meramente passivo de atestar que as declarações das partes foram produzidas na sua presença, pois terá de confirmar que elas foram livremente prestadas, por pessoas maiores de idade (i.e., devem ser observadas as regras gerais da incapacidade para a prática de atos jurídicos), assumindo o notário uma função de controlo ou de fiscalização acerca da inexistência de impedimentos à união de facto, que, segundo o artigo 1723º, § 1, do Código Civil brasileiro, coincidem com os impedimentos matrimoniais previstos no artigo 1521.º, salvo em relação ao impedimento de casamento anterior, no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou judicialmente. A intervenção e controlo feitos pelo tabelião consubstanciam a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o ato, ao qual são atribuídos efeitos pela ordem jurídica brasileira. A outorga da escritura de união estável perante o notário, a função deste e o controlo da atividade notarial pelos tribunais no Brasil são suscetíveis de equivaler aos requisitos de ato jurisdicional impostos pelo artigo 3.º, n.º 2, do Regulamento nº 2016/2014, do Conselho de 24.6.2016 (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa, de 11-12-2019, processo nº 1807/19.0YRLSB-7).

Em bom rigor, a intervenção do notário/tabelião de notas, no âmbito da escritura da união estável, é ainda uma intervenção integrante de uma função pública transferida pelo Estado ao particular, por meio de delegação administrativa sui generis, assumindo claramente a natureza de caucionamento do ato em causa.

Neste sentido, acórdão da Relação de Lisboa, de 24-10-2019:

“(…) o papel do tabelião brasileiro que lavra uma escritura declaratória de divórcio é exatamente o mesmo daquele que lavra uma escritura declaratória da união de facto. E aquela, como esta, serve de base para o registo civil (tal como uma sentença judicial declaratória da união estável). Uma e outra estão caucionadas pela ordem jurídica [e não só administrativamente].

Se não se aceitar a possibilidade de revisão da escritura declaratória da união de facto, também não se poderá aceitar a escritura declaratória do divórcio, pondo em causa o entendimento reiterado e uniforme, de que para que haja uma “decisão” basta que se esteja perante um ato caucionado pela ordem jurídica em que foi produzido».

Conforme se refere no Ac. do TRL de 21.11.2019, proc. n.º 1899/19:

«(…) o que importa é averiguar quais os efeitos da intervenção do oficial público na ordem jurídica em que essa mesma intervenção está prevista: os efeitos são de mera receção das declarações e avaliação formal da capacidade de quem as emite ou têm repercussão externa, constituindo um plus face à mera declaração. Sendo que esse plus não pode residir na mera força probatória acrescida atribuída às declarações presenciadas pelo oficial público.

Ora, no caso da escritura declaratória de união estável, a intervenção do oficial público envolve mais do que a força probatória acrescida, uma vez que autoriza, nomeadamente, o registo da situação de união de facto e a usufruição de direitos e privilégios atribuídos em razão dessa situação».

Por último, o acórdão da Relação de Lisboa, de 17-12-2019 (proc. n.º       2032/19.6YRLSB-7) apresenta o seguinte sumário, sintetizando os argumentos utilizados:

«I – A escritura pública declaratória da união estável é uma das formas adequadas de constituição, regulação e publicitação dessa situação de facto de cariz familiar, com expressa e directa cobertura jurídica no sistema legal brasileiro, consolidando o requisito da observância de forma escrita, enquanto absolutamente essencial para o reconhecimento da figura jurídica, sendo condição necessária para a legalização da união estável face à lei brasileira aplicável, tornando-a juridicamente relevante, produtora dos seus efeitos típicos e salvaguardando-a perante terceiros a quem é dada, desse modo, a conhecer.

II – Basicamente, o que está em causa é o reconhecimento jurídico de determinada situação de facto duradoura que constitui um verdadeiro modelo de família, em que existe entre os conviventes uma relação contínua, pública e análoga ao relacionamento próprio entre os cônjuges, com reflexos no plano do regime de bens vigente entre eles (com a aplicação do regime de comunhão parcial de bens) e a atribuição de outros benefícios no domínio da saúde e da proteção social.

III – Esta escritura pública tem a ver com o reconhecimento próprio e efectivo de determinada situação de facto que o legislador brasileiro erigiu à qualidade de modelo familiar, associando-lhe a produção de significados efeitos jurídicos, com a atribuição de direitos e deveres, não podendo ser afinal perspectivada - apenas e só - enquanto simples meio de prova, descobrindo-se nessa desfocada percepção da realidade o motivo decisivo para negar a pedida revisão e confirmação, a pretexto do disposto no artigo 978º, nº 2, do Código de Processo Civil.

IV -  Perante a solenidade formal do acto; o cuidadoso e especificado clausulado que contém em pormenor as regras jurídicas que regulam esta nova célula familiar em múltiplos e bem concretizados aspectos; as variadas assunções de responsabilidade dos declarantes, entre si e com reflexos junto de terceiros; o manifestado propósito de usarem este instrumento como forma de fazer valer perante entidades públicas e privadas a nova figura familiar que passam a constituir; a própria presença de testemunhas durante a prática a sua realização no Cartório de Notas, tutelando a autenticidade e fidedignidade do que foi dito e assumido pelos intervenientes, é por demais evidente que esta escritura pública declaratória da união estável corresponde indiscutivelmente à prática de um acto administrativo, presidido por oficial dotado de fé pública, onde se procede efectivamente ao caucionamento do reconhecimento de direitos privados conferidos aos conviventes.

V -  Não faz sentido a desvalorização ou desconsideração de um acto jurídico formal e solene, praticado em plena conformidade com o ordenamento jurídico estrangeiro que o rege, perante uma entidade oficial desse país que o autoriza e certifica, dotado de fé pública e força probatória plena, destinando-se a servir para a constituição, mesmo perante terceiros, de relevantes direitos privados no plano geral das relações familiares e mesmo sucessórias.

VI – O regime jurídico estrangeiro que estabeleça regras próprias, de natureza patrimonial e pessoal, no quadro de um novo figurino familiar que tenha por base a convivência douradoura de um casal que não esteja unido pelo vínculo do casamento, mas que vive, em conjunto e reciprocamente, um relacionamento análogo ao dos cônjuges, não fere qualquer princípio fundamental do ordenamento jurídico nacional, que o poderia acolher com toda a abertura e naturalidade, existindo notória similitude entre a união estável brasileira e a figura da união de facto consagrada pela legislação nacional e consolidada na nossa comunidade jurídica e social (vide o artigo 1º da Lei nº 7/2001, de 11 de Maio, alterada pela Lei nº 23/2010, de 30 de Agosto) - embora se trate de realidades jurídicas perfeitamente distintas quanto ao seu regime.

VII – Deve a acção especial de revisão de sentença estrangeira que tem por base a escritura pública declaratória de união estável outorgada no Brasil, em conformidade com as regras exigidas pelo direito civil brasileiro, e não se verificando qualquer dos óbices formais previstos no artigo 980º, alíneas a) e f) do Código de Processo Civil, ser objecto de revisão e confirmação pelo Tribunal da Relação competente, produzindo os seus efeitos perante o ordenamento jurídico português.»

A escritura notarial declaratória da união estável serve também para a inscrição do facto no registo civil, tal como uma sentença, não havendo dúvidas de que se trata de um “ato caucionado administrativamente” pela ordem jurídica em que foi produzido.

Independentemente das concretas vantagens que as pessoas unidas de facto à luz do direito brasileiro possam usufruir, na prática, deste processo de revisão e de confirmação, a possibilidade de averbar no assento de nascimento a união de facto traduz-se sempre numa situação vantajosa em si mesma, nem que seja como forma de dar publicidade à situação perante terceiros (cf. no mesmo sentido, acórdão da Relação e Lisboa, de 24-10-2019). Por outro lado, se a ordem jurídica portuguesa não reconhecesse estas escrituras públicas de união estável estaria a denegar a força jurídica a um ato idóneo para produzir os seus efeitos no Estado de origem, e a denegar a competência da entidade que o produziu.

A esta constatação acresce que, na realidade social brasileira, a união estável é uma entidade familiar protegida constitucionalmente (artigo 226.º, § 3º, da Constituição da República Federativa do Brasil), e o recurso à união estável é muito comum, havendo também de ter em conta, na análise desta questão, o valor simbólico que a figura tem na mentalidade dos requerentes.    

Aceita-se, por isso, que o conteúdo do artigo 978.º do CPC tem amplitude suficiente para abranger decisões ou situações que resultem de declarações juridicamente previstas para o efeito, ainda que não provindas de um tribunal, quando tal seja admissível no país estrangeiro, o que no caso decorre dos artigos 1723.º a 1727.º do Código Civil brasileiro.

Esta solução é também exigida pelo princípio da igualdade e da não discriminação, já que, como também se afirma no acórdão da Relação de Lisboa, de 24-10-2019, citando a decisão do STF, de 10-05-2017, negando este reconhecimento «(…)está-se a discriminar um indivíduo em razão da forma pela qual escolheu constituir família, já que não há dúvida de que um outro indivíduo que  constituiu família através do casamento pode averbar esse casamento no seu registo de nascimento. Ora, “[a] dignidade como valor intrínseco postula que todos os indivíduos têm igual valor e por isso merecem o mesmo respeito e consideração. Isso implica a proibição de discriminações ilegítimas devido à raça, cor, etnia, nacionalidade, sexo ou idade, e também devido à forma de constituição de família adoptada. […]. […A] dignidade como autonomia garante a todos os indivíduos a possibilidade de buscarem, da sua própria maneira, o ideal de viver bem e de ter uma vida boa. A autonomia privada consiste na capacidade de o indivíduo fazer escolhas pessoais ao longo da vida sem influências externas indevidas. Nesse sentido, não há dúvida de que a opção de constituir uma família, bem como de adoptar uma determinada forma de constituição familiar é uma das mais relevantes decisões existenciais. […]”».

4. Em consequência, estamos perante um documento que integra a noção de “decisão sobre direitos privados”, para o efeito do artigo 978.º, n.º 1, do CPC, pelo que nada obsta à revisão e confirmação da escritura de união estável em causa.

 

 

III – Decisão

Pelo exposto, concede-se a revista e, por consequência, a revisão e confirmação da escritura pública de declaração de união estável.

Sem custas o recurso de revista.

As custas da ação são suportadas pelos requerentes que dela tiram proveito (artigo 527.º do CPC).

Nos termos do artigo 15.º-A do DL 20/2020, de 1 de maio, atesto o voto de conformidade do Juiz Conselheiro Alexandre Reis (1.º Adjunto) e do Juiz Conselheiro Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto).

Supremo Tribunal de Justiça, 13 de outubro de 2020

(Maria Clara Sottomayor - Relatora)

Alexandre Reis (1.º Adjunto)

Pedro de Lima Gonçalves (2.º Adjunto)