Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5173/15.5T8BRG.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
TRANSPORTE COLECTIVO
ATROPELAMENTO
PEÃO
CULPA
DANO
CONTRA-ORDENAÇÃO FISCAL
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE TRANSPORTE
Data do Acordão: 03/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / FUNDAMENTOS DA REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / RESPONSABILIDADE POR FACTOS ILÍCITOS.
Doutrina:
- MARIA DA GRAÇA TRIGO, Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação, Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 485 e ss.;
- RAUL GUICHARD, Comentário do Código Civil. Direito das Obrigações, UCE, lisboa, 2018, p. 405, 415 e 416.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 674.º, N.º 3 E 682.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 503.º E 505.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 17-05-2012, PROCESSO N.º 1272/04.7TBGDM.P1.S1;
- DE 01-06-2017, PROCESSO N.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1;
- DE 11-01-2018, TODOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :

I – A responsabilidade pelo acidente que se traduziu no atropelamento da perna esquerda da autora por veículo de transporte público (onde havia sido transportada), no momento em que este reiniciou a marcha e aquela se encontrava no passeio e caiu, na consideração de (i) a autora ser maior e imputável e (ii) ter a qualidade de peão, (iii) não ter havido violação de normas de circulação estradal pela autora ou pelo condutor, (iv) e de o condutor ter ilidido a presunção de culpa decorrente da relação de comissão, deve ser “imputado” (no sentido de por ela causado) à autora e resolvido pelo disposto no art. 505.º do CC.
II – O facto de o acidente ter sido causado por um acto involuntário da autora não exclui a responsabilidade do detentor efectivo do veículo pelos riscos próprios do mesmo e da seguradora para quem a responsabilidade fora transferida – art. 503.º, n.º 1 do CC.
III – A prova de que o acidente não foi causado por conduta gravemente culposa da lesada arreda a hipótese de excluir ou reduzir a indemnização fundada no regime da responsabilidade objectiva.
IV – A responsabilidade do condutor do autocarro por violação do contrato de transporte soçobra por a autora não ter logrado demonstrar todos os respectivos pressupostos, nomeadamente o facto ilícito e a culpa.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório
1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação, emergente de acidente de viação, com processo comum, contra “BB, S.A.”, CC e COMPANHIA DE SEGUROS “DD.” (que entretanto alterou a denominação da firma para “EE, S.A.”) pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhe a indemnização global líquida de € 511.894,67, acrescida de juros de mora vincendos, contados à taxa legal de 4% ao ano, desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento, bem como a indemnização que vier a ser liquidada em decisão ulterior a título de danos futuros.

Alegou, para tal, ter sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais nesse montante, na sequência de acidente de viação de que foi vítima, por atropelamento do veículo automóvel pesado de transporte público (colectivo) de passageiros propriedade da 1ª. Ré, conduzido pelo 2º Réu e segurado na 3ª. Ré, cuja responsabilidade imputa ao condutor deste último. 

Acrescentou que seguia nesse veículo como passageira transportada, tendo celebrado com a 1ª. Ré um contrato de transporte.

A 3ª. Ré foi a primeira a contestar, nos termos constantes de fls. 378 e 379 do processo físico, impugnando a factualidade alegada pela Autora, respeitante nomeadamente à dinâmica do acidente e os danos invocados e considerando exagerados os montantes indemnizatórios peticionados. Conclui, pedindo que a acção seja julgada de acordo com a prova produzida.

Os 1º e 2º Réus também contestaram (fls. 384 a 390 do processo físico), excepcionando em primeiro lugar a sua ilegitimidade passiva e impugnando, de igual forma, os factos alegados na petição inicial, defendendo que o acidente se terá ficado a dever a um provável desequilíbrio da Autora coincidente com o reinício da marcha do veículo. Impugnaram, ainda, os danos invocados e os montantes peticionados a título indemnizatório. Terminaram, pedindo a procedência da excepção e a improcedência da acção.

A Autora respondeu (fls. 404 a 419 do processo físico), impugnando os novos factos alegados pelos Réus nas respectivas contestações e deduziu incidente de intervenção principal de “FF, LDA.”.

Admitida a intervenção por despacho de 11-02-2016 (fls. 492 do processo físico), a interveniente veio em 17-03-2016 (fls. 496) declarar aderir ao teor dos articulados apresentados pela 1ª. Ré.

Por despacho de 03-05-2016 (fls. 527 do processo físico) foi ordenada a apensação aos presentes autos da acção de processo comum n.°354/16.7T8BCL, que corria termos na instância local de ..., versando sobre o mesmo acidente em discussão nos presentes autos e onde o “HOSPITAL GG, S.A.” formulou pedido de reembolso contra a aqui 3ª. Ré, no valor de € 12.942,03, acrescido de juros vincendos à taxa de 4%, sobre € 11.722,49.

Procedeu-se a uma audiência prévia (cfr. acta de 15-06-2016, a fls. 537 a 541 do processo físico), no decurso da qual foi elaborado despacho saneador, onde foi negado provimento à excepção de ilegitimidade deduzida pelos 1º e 2º réus.

Seguidamente, procedeu-se à fixação do objecto do litígio e à enunciação dos temas da prova.

Efectuado o julgamento foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:

Por tudo o exposto, decide-se julgar parcialmente procedentes ambas as acções e, em consequência:

- condenar a Ré “EE, S.A.” e a interveniente “FF, LDA.” a pagar à Autora AA a quantia global de € 167.918,36, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento;

- condenar a Ré “EE, S.A.” e a interveniente “FF, LDA.” a pagar à Autora AA a quantia que vier a ser liquidada referente ao custo da aquisição da cadeira de rodas, das canadianas, do calçado ortopédico e dos tratamentos de Medicina Física de Reabilitação já despendido pela Autora, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento;

- condenar a Ré “EE, S.A.” e a interveniente “FF, LDA.” a pagar à Autora AA a quantia que vier a ser liquidada referente ao valor a despender pela Autora com a substituição das canadianas, com o calçado ortopédico, com os tratamentos de Medicina Física de Reabilitação (duas vezes por ano) e com a medicação analgésica e anti-inflamatória e protector gástrico, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento;

- condenar a Ré “EE, S.A.” a pagar ao “HOSPITAL GG, S.A.” a quantia de € 11.722,49, acrescida de juros à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento;;

- absolver a Ré “EE, S.A.” e a interveniente “FF, LDA.” do restante pedido (por ambos os Autores, no tocante à Ré “EE, S.A.”);

- absolver os Réus “BB, S.A.” e CC de todo o pedido”.
Inconformados com esta sentença, recorreram a Autora AA, a EE, SA. e o Interveniente FF, Lda.
O Tribunal da Relação de Guimarães conheceu dos recursos, efectuando a reapreciação da matéria de factos e julgou o caso, tendo proferido acórdão com a seguinte parte dispositiva:
“Improcedente a apelação da Autora.
Improcedente a apelação da Ré EE, SA.
Procedente a apelação de FF, Lda. e, em conformidade, revoga-se a sentença recorrida e absolvem-se a Ré EE, SA., e a Interveniente FF, Lda., dos pedidos contra si formulados.
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Custas, na proporção do respectivo decaimento.”

2. Inconformado com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães dele apresentou recurso a A., formulando as seguintes conclusões (transcrição – fls. 908 e ss):
1. Vem a Autora impugnar pela via recursória a decisão proferida pelo Tribunal da Relação, na medida em que a mesma concedeu provimento  ao recurso para aí interposto pela Interveniente “FF” e em consequência revogou a sentença proferida em primeira instância, absolvendo a Ré “EE” e a dita Interveniente “FF”  dos pedidos contra si formulados.


I – Da nulidade do acórdão – art. 615º, nº 1 a) CPC
2. O douto acórdão recorrido não se acha assinado por todos os Exmos. Juízes que compuseram a respectiva conferência, sendo assim nulo por força do disposto no artigo 615º, nº 1 a) do CPC, nulidade que expressamente se invoca.
3. A menção aposta no final do texto do acórdão, na qual se lê “Tem voto de conformidade da Exma. Desembargadora Sra. Dra. Maria da Conceição Bucho, que não assina por não se encontrar presente.”, não é idónea a afastar ou sanar a nulidade ora invocada.

II – Da nulidade do acórdão – art. 615º, nº 1, e) do CPC
4. O Tribunal da Relação não conheceu outro recurso senão o interposto pela Interveniente “FF”, cujo objecto, nos termos do disposto no artigo 635º e 639, nº 1 do CPC, e ainda por força dos termos do art. 608º do mesmo código, é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente.
5. Dos pontos 41º até 47º das suas conclusões, decorre literalmente que a Recorrente, através da alteração da matéria de facto que requer, não recorre para que seja absolvida em virtude da sua desresponsabilização pelo acidente, mas antes para ver reduzida a indemnização a cujo pagamento foi condenada em primeira instância.
6. No entanto, a decisão recorrida absolveu a dita Recorrente, julgando-a parte não responsável pelo acidente e consequente ressarcimento dos danos, donde resulta manifesta e inconciliável divergência entre o que é objecto do recurso da Interveniente FF e o seu julgamento pelo Tribunal a quo.
7. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo condenou em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, o que fere a decisão impugnada com o vício de nulidade, por força do disposto no art. 615º, nº 1, e) do CPC – nulidade essa que expressamente se argui – ou, sem conceder, sempre tal configurará fundamento do presente recurso por ocorrer manifesta violação da lei processual pelo Tribunal a quo, decidindo em contravenção com o disposto nos artigos 608º, 635º e 639, nº 1 do CPC.

III – Da nulidade do acórdão – art. 615º, nº 1, e) do CPC
8. O recurso da Interveniente teve por objecto trazer ao Tribunal da Relação a discussão sobre a repartição da culpa no acidente, da qual a posição da Recorrente nunca se afasta (não pugnando sequer pela sua exclusão), e enquadrável, além do mais, pelo art. 570º do CC.
9. Jamais a Recorrente – ou qualquer outra demandada - equacionou a exclusão da sua responsabilidade pelo risco, estando a mesma implicitamente assumida (quer nas contestações, quer no recurso).
10. Ao apreciar a questão da exclusão da responsabilidade pelo risco, o Tribunal conheceu de questão nova, de que não podia tomar conhecimento, incorrendo assim na nulidade prevista pelo art. 615º, nº 1, d) do CPC – ou, no mínimo, fundamento do presente recurso por ocorrer manifesta violação da lei processual pelo Tribunal a quo, decidindo em contravenção com o disposto nos artigos 608º, 635º e 639, nº 1 do CPC.
11. Veja-se o decidido em caso similar (ac. STJ de 4-7-1995) a este propóstio (excerto transcrito em alegações).

IV – Da errónea extensão do efeito do recurso da “FF” à comparte “EE”
12. A Ré EE, na sua contestação, não alegou sequer qualquer versão do acidente contrária à alegada na petição inicial, por forma afastar a sua responsabilidade pelo risco – ou sequer afastar as presunções de culpa (três) operantes nestes autos.
13. Na sua apelação, Ré EE pugnou, invocando apenas razões atinentes à matéria de Direito, pela sua absolvição com fundamento no entendimento de que a factualidade apurada apenas deveria ter dado origem à aplicação da responsabilidade contratual (imputável à FF) rejeitando a imputação de natureza extra-contratual (a qual está na génese da sua condenação, enquanto entidade seguradora); E impugnou, subsidiariamente, as indemnizações arbitradas.
14. O Tribunal da Relação, ao julgar procedente a apelação da FF, mas improcedente a apelação da EE, faz aproveitar a esta última os efeitos do recurso interposto pela primeira, absolvendo a Ré EE dos pedidos contra si formulados.
15. Ora, tendo a EE deduzido apelação própria; não existindo nos autos situação de litisconsórcio necessário (passivo) entre a Ré EE e a Interveniente FF; não tendo a Ré EE um interesse que dependa essencialmente do interesse da FF – não estando portanto as partes em nenhuma relação de dependência ou subsidiariedade entre si; não tendo a EE aderido ao recurso interposto pela FF; não tendo a EE e a FF sido condenadas como devedores solidários; Não podia aproveitar à parte Ré EE o efeito do recurso interposto pela FF – sendo que aquela viu mesmo a sua apelação julgada improcedente, por falta do preenchimento de qualquer dos requisitos do artigo 634º do CPC – como tal frontalmente violado.
16. Impõe-se assim a revogação do acórdão recorrido, no sentido de manter a condenação da Ré EE determinada em sede de sentença de primeira instância.

Sem conceder:
17. O acórdão é omisso ou, pelo menos, ininteligível quanto aos fundamentos em que arvora a decisão de conferir tal extensão, não se alcançando do seu teor por força de qual ou quais motivos, de entre aqueles elencados no artigo 634º do CPC, entendeu o Tribunal da Relação beneficiar a Ré EE com a extensão dos efeitos da apelação da FF.
18. Padece assim acórdão recorrido de nulidade por não especificar os fundamentos que justificam a decisão, é ininteligível e ambígua. - art. 615º, nº 1, b) do CPC – o que se invoca expressamente para os devidos efeitos.

V – O erro na apreciação das provas e fixação dos factos materiais
19. Em articulação com o disposto no artigo 674º, nº 3 do CPC, é reconhecido entre a jurisprudência dominante ser sindicável, em sede de revista, o uso pela Relação de presunções judiciais quando o mesmo ofender norma legal, padecer de ilogicidade ou se partir de factos não provados: cfr. excerto em alegações do ac. STJ de 19-1-2017
20. O caso dos autos preenche os supra indicados pressupostos para a intervenção e sindicância desta instância daquela matéria, nomeadamente quanto aos factos 8º (provado em primeira instância e revogado na segunda), 9º (com redacção alterada na segunda instância) e x) e y) (não provados em primeira instância e provados na segunda).
21. Não há qualquer meio de prova (nomeadamente testemunhal) produzido de forma directa sobre o concreto momento do acidente da Autora.
22. Mas o Tribunal decidiu alterar a decisão quanto aos factos 8º, 9º, x) e y), dando por provados factos desconhecidos: o que, embora não expressamente invocado no acórdão, só poderia acontecer por recurso a presunções judiciais – previstas no art. 351º do CC.
23. No entanto, os factos constitutivos do direito arrogado pela Autora gozam de três presunções legais, resultantes: da sentença condenatória penal (sentença condenatória, transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo Comum, nº 686/13.6GBBCL, que correu termos pela Instância Local, Secção Criminal, J1 de ... – certidão de fls. 419v-427); do contrato de transporte; da relação de comissão.
24. As presunções legais – previstas no art. 350º do CC – implicam que: quem delas beneficie esteja escusado de provar o facto a que ela conduz; só possam ser ilididas mediante prova em contrário.
25. Tinha de ter sido feita prova, em sede de julgamento, suficiente para que se pudesse chegar à conclusão contrária daquela a que chegou a Secção Criminal de ... – nomeadamente prova testemunhal.
26. Em caso algum a prova dos autos e a sua apreciação pela Relação demonstra que tenha sido feita prova do seu contrário: dela apenas decorre que se discorda que a prova dos autos tenha sido suficiente para provar os factos que já estavam alegados pela Autora e que estavam cobertos pela presunção legal.
27. A Autora não tinha de provar que ficou presa na porta do autocarro pelo capucho do casaco que trazia vestido, e que tal prensão, com o arranque da marcha do autocarro, a desequilibrou e fez cair à via, sendo então atropelada pelo veículo pesado: às demandadas é que cabia provar o contrário deste evento.
28. O Tribunal julgou a prova produzida, proferiu decisão sobre a matéria de facto e daí retirou conclusão quanto à imputablidade do acidente como se assim não fosse.

Vejamos:
29. Em primeiro lugar, o depoimento de HH (que afirmou ter visto o capucho do casaco da Autora preso na porta), só porque mereceu o descrédito do Tribunal a quo, não é prova do contrário da versão da Autora.
30. Em segundo lugar, o motorista CC, também 2º Réu:

- não soube esclarecer como ocorreu o acidente, diz que não viu como o mesmo aconteceu, e que não viu a Autora escorregar, dizendo até que era de noite e o tempo estava chuvoso, o que dificultou a sua visibilidade através do espelho retrovisor exterior traseiro. fr. Gravação de 7.11.2017, 10:22:03), 10:42:23, 12:00;

- chega a colocar a hipótese (alegada pela Autora e que se presume) de a Autora ter ficado presa – cfr. Gravação de 7.11.2017, 10:42:23)

- resume todo o seu depoimento a afirmar: que viu a Autora já no passeio; que se ela estivesse presa entre portas, o autocarro não arrancaria, por força do mecanismo de segurança de que o veículo se encontra dotado.
31. Além disso este depoimento estará sempre ferido ou condicionado pela parcialidade e subjectividade que o interesse que o mesmo forçosamente tem de se desculpabilizar pelo sucedido, não merecendo credibilidade a afirmação, pelo próprio, de que tomou todas as necessárias precauções que lhe eram exigíveis.
32. Tudo considerado, este depoimento não constitui, de forma alguma, a tal prova do contrário dos factos presumidos que possa suportar a respectiva ilisão.
33. Além dos citados, o Tribunal invoca assenta a sua convicção apenas no depoimento de duas testemunhas arroladas pela Interveniente: II e JJ, os quais: não assistiram ao acidente; têm a sua independência comprometida pela circunstância de serem funcionários e colaboradores da Interveniente; afirmaram ter conduzido um teste ao veículo interveniente no acidente, o qual não reconstruíram o acidente com idênticos pressupostos nem testaram as consequências resultantes do reinício de marcha do veículo perante as suas circunstâncias concretas – uma pessoa da idade da Autora, a sair do veículo (logo, em movimento e de costas para o mesmo) com uma parte do seu casaco (eventualmente o capucho) no meio das duas folhas da porta (19:50 do depoimento de II); não puderam pôr de parte que uma parte de tecido fique preso entre as borrachas das folhas tocantes da porta aquando do seu fecho, e que tal circunsância (pedaço de tecido preso) não obstaria ao desbloqueio do sistema de arranque do autocarro.
34. Tudo como resulta de depoimento de II de 7-12-2017 – 10:51:51, 04:47 a 11:03; e JJ de 7-12-2017 – 11:18:05, 05:00 a 08:34.
35. Mais referiram estas testemunhas – o que foi integralmente acompanhado pela Relação – que mesmo que alguma parte de tecido do casaco da Autora tivesse ficado preso aquando do fecho das portas, a “inércia” do rearranque do autocarro faria naturalmente com que esse tecido se soltasse das portas, não provocando qualquer dano.
36. Tais conclusões (sempre indirectas quanto aos factos) acham-se falaciosas porquanto recusam a hipótese altamente plausível de que o soltar desse pedaço de tecido de entre as borrachas das portas causado pela tal “inércia” do autocarro posto novamente em movimento tenha provocado um “abanão”, ou um puxão para que tal tecido de soltasse, e que tal puxão ou força exercida fosse suficiente e adequada a desequilibrar uma pessoa em  movimento, de costas para o veículo, e da idade da Autora.
37. A testemunha II acaba até por admitir a possibilidade dessa relação causal entre o arranque do autocarro com um pedaço do vestuário de um passageiro preso entre as borrachas das porta e a sua queda (18:10 do seu depoimento).
38. Pelo que jamais os depoimentos das testemunhas II e JJ, podiam configurar suficiente prova do contrário dos factos alegados pela Autora.
39. O Tribunal da Relação só chegou à factualidade dos factos x) e y) por via de presunções judiciais, e não por prova directa e concreta do contrário do que materialmente se encontrava vertido nos factos 8º e 9º da sentença de primeira instância.
40. As presunções judiciais não operam no momento da fixação da matéria de facto, mas após essa fixação, sendo o ónus que recai sobre as demandadas não jurídico ou “pós-probatório”, mas antes aplicável no próprio processo de valoração de prova e decisão do sentido do repectivo julgamento de facto.
41. As circunstâncias em que o acidente ocorreu (segundo a matéria de facto fixada) são de verificação impossível – especialmente tendo em conta as presunções legais que sobre os mesmos recaíam.
42. E mesmo o depoimento – tão valorado – do condutor do veículo na parte em que diz que viu a Autora já no exterior do veículo é altamente inverosímil e sobretudo incompatível com o facto – conhecido – de que a sua perna foi esmagada pela roda do autocarro, que presumivelmente circulava na via e não no passeio.
43. Estando a Autora já no passeio, não se explica que a mesma, entretanto, escorregasse ou se desequilibrasse de molde a que a sua perna e anca se fosse colocar novamente na via, debaixo do autocarro, em posição de ser esmagada pela roda: é uma descrição dos factos que desafia todas as regras de experiência comum e do normal acontecer das coisas.
44. Mostra-se muito mais plausível  perante o facto conhecido (o esmagamento pela roda) que a Autora tenha caído enquanto descia do autocarro, e não quando já estava em cima do passeio.
45. De todo o modo, a prova invocada pelo acórdão não poderia provocar mais do que a mera dúvida – que não pode resolver-se contra os factos presumidos.
46. Pelo que o Tribunal adquiriu o facto “A Autora estava já em cima do passeio quando caiu” - factos x) e y) - de forma ilógica e incongruente perante os factos já conhecidos, dando um salto mental especulativo, ilógico, partindo de factos não provados, contra legem relativamente ao que dispõe a lei substantiva quanto ao regime das presunções legais.
47. Não podia partir do Tribunal (pela presunção judicial) a prova do contrário de factos que estavam a coberto de presunções legais.
48. Não chegava, para tanto, o não convencimento do julgador através da prova arrolada pela Autora da veracidade dos factos presumidos nem sequer a contraprova, pelas demandadas, dos factos presumidos.
49. O depoimento do 2º Réu (condutor) – e no limite das duas testemunhas II e JJ – configura, no máximo, contraprova da versão da Autora sobre a dinâmica do acidente.
50. Só a prova positiva, materialmente demonstrativa de uma realidade contrária àquela vertida nos factos presumidos, poderia levar à ilisão da presunção: tal prova não se produziu.
51. Além de os factos 9º, x) e y) não oferecerem demonstração cabal do contrário do facto 8º e 9º na sua redacção original, o recurso às presunções judiciais para a sua aquisição pelo Tribunal a quo está ferida de ilegalidade, por violação, além do mais, do disposto no art. 350º, nº 2 do CC.
52. Estando ademais arredado, deste particular conjunto de factos, o princípio da livre apreciação das provas: cfr. Excerto supra transcrito do ac. do TRE de 20-9-1990 - pelo que o Tribunal não estava livre de apreciar as provas que julgou determinantes para a decisão dos factos 9º, x) e y), pese embora ter decidido como se o fora.
53. Assim, resulta também violado o disposto nas normas 350º, nº 1, 358º, 371 e 376º do CC e no art. 655º, nº 1 do CPC.
54. Donde se impõe a revogação da decisão recorrida nesta parte, repondo o decidido em primeira instância quanto aos factos provados 8º, 9º, e não provados x) e y).

Todavia, e sem conceder:

VI – A responsabilidade que já deriva da factualidade assente da Relação
55. Mesmo que se mantenha intacta a factualidade dada por provada na decisão recorrida a mesma é manifestamente insuficiente para que se considerem: afastadas as presunções de culpa operantes no caso dos autos; afastada a responsabilidade civil extra-contratual do condutor do veículo;
56. Ou, sem conceder: quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo; afastada a obrigação de indemnizar a Autora dentro do concurso entre o risco da circulação do veículo e a culpa ou mero facto imputável à Autora na eclosão do sinistro, bem como o grau de relevância do mesmo para a ocorrência do sinistro e a extensão dos danos por si sofridos.


A CULPA

a) contrato de transporte – presunção legal
57. Entre a Autora e a Interveniente foi celebrado um contrato de transporte público de passageiros – factos 1 a 5.
58. O não cumprimento da obrigação de conduzir o passageiro incólume ao seu destino determina a responsabilidade contratual do transportador pela reparação dos danos sofridos (art. 798º do Cód. Civil).
59. A culpa pelo incumprimento do contrato de transporte presume-se do transportador – art. 799º do Cód. Civil.
60. Estava a Interveniente onerada com o encargo de alegação (e subsequente demonstração) da imputação do acidente (e do consequente dano) a causas estranhas à sua esfera jurídica, como o caso fortuito, o de força maior, acto do lesado ou de terceiro.
61. À Autora competia tão só alegar, e provar, como alegou e provou: a existência do contrato de transporte; o facto ilícito (atropelamento); e o dano.
62. É a Interveniente que tem de alegar e provar factos novos que: demonstrem que actuou no integral cumprimento dos deveres que lhe estavam impostos (entre os quais o zelo, a diligência, a vigilância e o cuidado) e que mesmo assim o acidente se produziu; a Autora foi a única exclusiva culpada pela produção do acidente – o que não logrou fazer.
63. Isto porque:
64. Não se provou que o condutor efectivo do veículo LH tenha iniciado a sua marcha apenas depois de se certificar, visualmente (através de espelhos retrovisores ou outro meios) ou de outro modo ao seu alcance, que ao iniciar tal marcha não colocava em perigo a integridade física de terceiros. Não se provou que o condutor do veículo tenha visualizado toda a extensão lateral do autocarro essa medida de segurança antes do reinício da marcha, de modo a certificar-se que os passageiros acabados de apear já tinham saído e estavam a uma distância mínima de segurança relativamente ao veículo.
65. Não se provou que o autocarro estivesse dotado de espelhos e outras medidas e expedientes de segurança aptos a assegurar ao seu condutor que, no exacto momento do reinício da marcha do veículo após cada paragem e saída de passageiros, não se encontra nenhum passageiro acabado de apear em situação de perigo.
66. Não se provou que os espelhos retrovisores do autocarro disponíveis ao condutor permitiam visibilidade sobre toda a parte lateral do veículo, incluindo a zona junto à porta de saída de trás.
67. Não se provou que o espelho retrovisor exterior direito estava em condições de limpidez e nitidez que permitisse essa visualização.
68. Ficou também por provar que o condutor (2º Réu) se certificou que todos os passageiros peões – incluindo a Autora, idosa – saíram e foram entregues à via pública em segurança – segurança essa que inclui, necessariamente, a ausência de qualquer queda logo após a descida do peão do autocarro e acesso ao passeio público.
69. Era forçoso provar quanto tempo mediou entre a saída da Autora para o exterior e o arranque do autocarro, e a eventual distância (ou falta dela) percorrida pela Autora assim que colocou ambos os pés no passeio.
70. Não se provou que a Autora se tenha apeado em segurança, mas apenas que chegou “ao passeio” – o que não é a mesma coisa.
71. E supondo mesmo que a Autora tenha efectivamente escorregado, não era difícil ao motorista, através do espelho retrovisor exterior, ter visto que a Autora estava numa posição em que o autocarro poderia passar por cima das suas pernas.
72. Certo é que o acidente ocorreu.
73. POR OUTRO LADO,
74. Não ficou provado qualquer facto apto a imputar a culpa ao peão (Autora) pela ocorrência do acidente e consequente produção dos danos.
75. Não se provou que o peão tenha adoptado qualquer comportamento temerário, descuidado, imprudente ou contrário às normas do Código da Estrada, ou tenha tido actuação pessoalmente censurável ou reprovável.
76. Não se provou que a Autora tenha praticado, com culpa, qualquer facto causal e contributivo para a eclosão do sinistro.
77. A mera menção a uma “queda” devida a um “desequilíbrio” não cumprem, manifestamente, tal desiderato.
78. Não se provou em que circunstâncias concretas se deu a queda e desequilíbrio da Autora.
79. Isto porque a expressão contida no facto y) - “A queda da Autora deveu-se a um desequilíbrio (...)” não é suficiente para que o Tribunal possa imputar esse desequilíbrio a acto ou omissão da Autora – e, bem assim, imputar-lhe exclusivamente esse desequilíbrio – e muito menos valorá-la como pessoalmente censurável e assim atribuir-lhe um juízo da culpa.
80. Não se provou em que circunstâncias concretas a queda da Autora levou a que a sua perna esquerda tenha sido atingida pela roda traseira do veículo envolvido no acidente.
81. Não se provou de que modo é que a Autora, na eventualidade de ter caído no passeio, possa ter visto colocada a sua perna esquerda na faixa de rodagem, debaixo do autocarro, na direcção do sentido de marcha do veículo de molde a que a roda do mesmo a tenha atingido – mesmo na eventualidade de que esse ponto de contacto tenha ocorrido dentro da faixa de rodagem.
82. Sem prova da culpa do lesado, a presunção de culpa da interveniente permanece inabalada.
83. É indubitável que o acidente que sofreu a Autora decorreu causalmente do risco que para si implicou ser transportada naquele autocarro em concreto, nomeadamente ao momento da sua saída.
84. Existe uma margem mínima de distância entre o veículo prestes a arrancar e os peões acabados de apear que tem de ser verificada e mostrar-se salvaguardada pelo condutor antes de dar reinício à marcha do veículo potencialmente perigoso que conduz.
85. Porque a proximidade que a Autora tinha relativamente ao autocarro,  proximidade essa que era de tal grau que a mera queda sua a deixou com a perna debaixo do autocarro, deriva causalmente do facto de ter sido transportada por aquele autocarro em concreto e por dele se ter acabado de apear,
86. Essa proximidade é absolutamente consequencial do transporte e causal do acidente, E  deveria ter sido tomada em conta por parte do condutor, e só uma vez debelado esse factor de risco (a proximidade), e salvaguardada uma distância mínima entre todos os passageiros acabados de apear e o veículo, deveria o condutor ter reiniciado a sua marcha.
87. Se houve uma queda de um passageiro que acabara de apear-se, e ainda por cima uma perna sua, de forma não apurada, acabou colocada (supostamente) na faixa de rodagem, é sinal forçoso e evidente do seguintes factos: - o tempo decorrido entre a paragem do autocarro e o reinício da sua marcha foi escasso, tendo o condutor rearrancado sem ter em conta o tempo adicional de que passageiros mais idosos e portanto de marcha lenta e possivelmente claudicante necessitam para: a) chegarem a colocar ambos os pés na via pública; E b) estabilizarem o equilíbrio do seu corpo após a descida; E c) darem os passos suficientes para se afastarem do veículo de forma a alcançar uma distância de segurança que prevenisse que uma eventual queda não os colocaria prostrados na faixa de rodagem e  sujeitos a ser colhidos pelo reinício da marcha do autocarro;
88. - O condutor do autocarro não efectuou, visualmente, a verificação de que todos os passageiros recém-apeados se encontravam já a distância suficiente do veículo e de modo a que o acto de recolocar em marcha do mesmo não os poria em perigo, mesmo na eventualidade de um deles sofrer uma queda súbita e imprevista;- OU, se o condutor fez a verificação descrita no ponto anterior, ignorou ou  conformou-se com esse perigo, arrancando assim mesmo.
89. Mas mesmo que não houvesse factualidade apta a dar o condutor como culpado, a não imputação de culpa do condutor questão não se confunde com a desresponsabilização dos seus agentes, para efeitos da responsabilidade contratual.
90. A Interveniente não podia ignorar as condições da estação de paragem de autocarros em concreto, nem as circunstâncias em que os passageiros, sobretudo idosos – recorde-se que a Autora tinha 73 anos à data dos factos – fazem o apeamento de autocarros, de forma bastas vezes lenta e periclitante, propícia ao desequilíbrio, atenta a diferença de altura entre o veículo e o solo e as dificuldades de locomoção inerentes à idade avançada – factos esses que são notórios.
91. O feixe de obrigações contratuais do transportador, incluindo os devers acessórios supra referidos, não se esgotam e acham integralmente cumpridos com o facto material de um passageiro se encontrar no exterior do veículo e em cima do passeio da via pública.
92. A interpretação do contrato de transporte no sentido de que o mesmo se esgota no instante em que um passageiro acaba de colocar o segundo pé na via pública leva a uma visão mecanicista e desconforme à realidade e à finalidade das normas legais que o regulam.
93. A Interveniente deveria ter previsto que, naquela paragem, tornar-se-ia aconselhável, para a segurança dos passageiros acabados de apear, que o reinício da marcha do autocarro fosse efectuado com visibilidade para toda a extensão lateral do autocarro, principalmente as zonas das portas traseiras que ficam junto ao respectivo rodado, e não meramente do interior do autocarro, sem essa visibilidade.
94. Veja-se a este propósito o Ac. STJ 31-1-2012, excertos transcritos em alegações.
95. Há um dever de cuidado ostensivamente omitido, quer pelo condutor e 2º Réu, quer pela Interveniente que, enquanto sua entidade patronal, lhe deveria ter facultado formação específica e instruções de segurança suficientes para evitar tal omissão.
96. Culpa da Interveniente “enquanto empresa, ou seja, organização de factores produtivos com auto-regulamentação do respectivo funcionamento.”
97. O caos dos autos espelha uma evindete violação da “cláusula tácita e implícita de incolumidade que, visando a segurança do passageiro, vincula o transportador a prevenir e evitar danos na integridade pessoal e patrimonial deste quer durante a viagem propriamente dita, quer no período de tempo compreendido entre o momento em que o passageiro se confina à área da Estação ou apeadeiro para a viagem e o momento em que, chegado ao destino, deixa essa área” - ac. do STJ de 31.1.2012.
98. A Interveniente não formou os seus condutores no sentido de temporizar o rearranque e aguardando por uma distância mínima entre veículo e passageiros; e ainda dotando os veículos de meios físicos (como retrovisores plenamente funcionais) aptos a permitirem essa cautela.
99. A Interveniente incorreu em violação contratual positiva, por inobservância de deveres acessórios mas integrados no feixe obrigacional que para si decorria do contrato de transporte, como sendo os de protecção, de consideração e de cuidado com a pessoa transportada.
100. Verifica-se o cumprimento defeituoso do contrato, imputável à Interveniente e a correspondente obrigação de indemnizar.
101. O acórdão recorrido é completamente omisso quanto à questão da responsabilidade contratual da Interveniente e da presunção legal que daí lhe advém e tão pouco se a mesma e em que termos foi a mesma eficazmente afastada pela materialidade concreta dos factos que dá como assentes.
102. Tudo quanto vem de alegar-se quanto aos factos provados e àqueles que ficaram por provar aplica-se também ás demais presunçoes de culpa, dando-se por reproduzida nesta parte a sua alegação.

b) A relação de comissão
103. Opera nestes autos ainda uma outra presunção legal, que é a que decorre da relação entre comissário e comitente, prevista no art. 500º do CC.
104. Sobre esta matéria, e com valor de acórdão uniformizador de jurisprudência, o Assento do STJ de 14/04/83, estabeleceu uma presunção de culpa do condutor do veículo, por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele, como lesante, e o titular ou titulares do direito à indemnização. 
105. Não está provado nos autos qualquer facto material que que permita ao Tribunal alcançar a conclusão de que o condutor do veículo, no preciso momento em que volta a pôr o autocarro em marcha após a descarga, usou da diligência necessária que, naquelas circunstâncias, tomaria um homem médio colocado na sua posição por forma a evitar passar com o rodado traseiro do veículo por si conduzido sobre o corpo da Autora.
106. Tão-pouco o Tribunal da Relação explicita de forma suficiente as razões pelas quais entende ter-se ilidido tal presunção – ou qualquer outra, não merecendo qualquer análise a existência desta presunção legal de culpa no acórdão recorrido.
107. O acordão recorrido emprega raciocínio totalmente inverso àquele a que deve aplicar-se aquando da operância das presunções supra invocadas: não é a ausência de factos que permitam dirigir um juízo de censura ao condutor do veículo que, havendo presunção, o desresponsabiliza, é antes a ausência de factos que permitam assacar essa culpa ao lesante, aliada à prova de factos que explicitem que o mesmo tomou todas as diligências aptas a evitar o acidente, que, fazendo então operar as presunções de culpa, logram essa desresponsabilização.
108. Não basta não haver prova da culpa do lesante: é obrigatório haver prova da culpa do lesado – que os factos provados não traduzem.
109. O Tribunal, no entendimento acolhido, ignora frontalmente o disposto no artigo 350º do Cód. Civil: “Quem tem a seu favor a presunção legal escusa de provar o facto a que ela conduz.” - E por inerência, o disposto nos artigos 503º, nº 3 e 487º do CC.
110. O que releva dizer quanto a todas as presunção legais operantes no caso dos autos.

c) A sentença penal condenatória
111. Deixa-se aqui reiterado o que ficou já alegado nas alíneas anteriores quanto à não ilisão da presunção de culpa, sendo que por força da decisão judicial em processo crime que acima se identificou, existe uma presunção de culpa decorrente de sentença penal condenatória quanto aos factos contitutivos da responsabilidade pelo acidente, não só contra o condutor mas também contra terceiros – in casu, a Ré EE e a Interveniente FF.
112. “Tendo o Réu sido condenado, em processo crime por sentença transitada em julgado por factos ocorridos em acidente (…) não se pode deixar de considerar que existe presunção de culpa, mesmo em relação a terceiros.” - in ac. RL de 25.5.2006.

d) A responsabilidade civil-extracontratual
113. Os factos demonstram que o condutor do veículo violou objectivamente um dever de cuidado, que o faz incorrer em responsabilidade civil extra-contratual – cujos pressupostos também se encontram preenchidos de forma inequívoca – já que, enquanto condutor de veículo pesado de passageiros, não se certificou, como devia, que podia reniciar a marcha daquele sem que com essa manobra colocasse em perigo ou comprometesse a segurança dos utilizadores das vias e sem guardar a necessária distância entre veículo e passageiros recém-apeados até decidir arrancar, e cabia-lhe  a quem cabia um dever de cuidado e atenção especiais atenta a vulnerabilidade da posição da Autora, em comparação com o veículo que acabou por atropelá-la.
114. Não podiam as demandadas deixar de ser condenadas nos rigorosos termos do decidido em 1º instância (sem prejuízo do recurso de apelação interposto pela Autora e não apreciado pela Relação, porque apenas atinente ao quantum indemnizatório arbitrado.)
115. Subscrevendo-se, no demais, a douta solução jurídica dada pela primeira instância à coincidência, na eclosão deste sinistro, entre a responsabilidade pela via contratual (da Interveniente) e pela prática de um facto ilícito extra-contratual (transferida para a Ré EE).
116. Sem conceder, e repristinando nesta sede tudo o que se vem alegando:


O RISCO
117. Mesmo que debeladas as várias presunções de culpa operantes no caso dos autos, não pode nunca excluir-se, pela factualidade apurada, a responsabilidade pelo risco prevista no art. 503º do CC.
118. A prova dos factos supra discriminados e que não resultaram provados (a maior parte dos quais nem sequer alegados pelas partes demandadas) era requisito sine qua non para fazer operar a exclusão prevista pelo artigo 505º do Cód. Civil.
119. Os factos 9, x) e y), lidos e interpretados na sua globalidade, não estão dotados de substrato factual que afaste a conclusão de que os danos se produziram por força dos riscos próprios do veículo interveniente no sinistro (acidente), e de modo algum podem ser subsumidos ao regime do artigo 505º do Código Civil, assim excluindo a imputação de responsabilidade objectiva, independente de culpa, que emerge para o condutor efectivo de veículo de circulação terrestre, nos termos do artigo 503º do mesmo diploma.
120. O dano corporal da Autora é adequado e proveniente dos riscos próprios do veículo em circulação: um autocarro, pesando várias toneladas, propulsionado por motor de combustão, que posto em circulação passa por cima e esmaga parte do corpo da Autora.
121. A factualidade assente também não é suficiente para concluir pela existência, sequer, de um facto da Autora (qualquer acção ou omissão) – mesmo que não culposo – que possa excluir a culpa do lesante, nem a sua responsabilidade pelo risco, porque a “queda” provinda do “desequilíbrio” se deu em circunstâncias não apuradas.
122. Nenhum facto permite imputar à Autora uma conduta ou um acto material de descuido ou de falta de prudência exigida pela circulação.
123. Ocorrendo, maxime, o acidente em circunstâncias não apuradas, subsiste e tem de subsistir sempre a culpa presumida, e o risco.
124. Mostra-se quase impensável a concepção de que um acidente em que, mesmo sem culpa do condutor, um autocarro passe por cima, esmagando, a perna de passageiro idoso acabado de se apear, não se se enquadre como um risco próprio do veículo, assim se lhe negando qualquer direito de indemnização.
125. Mesmo que se entenda rompido o nexo causal que levaria à responsabilização pelo risco, nem assim inexiste a obrigação de indemnizar, atenta a aplicação que deve fazer-se ao caso concreto do concurso entre o risco dos veículos de circulação terrestre e, por exemplo, a conduta – não necessariamente culposa – imputável ao lesado.
126. Trata-se de questão que o Tribunal a quo nem sequer equacionou, embora amplamente admitido e discutido na nossa jurisprudência: cfr. ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, em acórdão de 29-5-2012;
127. E mesmo que – e sem conceder – houvesse factualidade apta a considerar a Autora como exclusiva culpada pelo acidente nos autos, ainda assim não é de excluir a responsabilidade pelo risco assacável ao detentor da condução – mas antes se impõe a ponderação de uma distribuição dessa mesma responsabilidade.
128. Uma jurisprudência moderna, progressista e esclarecida tem vindo a reforçar, de forma quase irrestrita, a protecção e a garantia de ressarcimento dos lesados em acidentes de viação, mais ainda quando os mesmos, sendo peões, se encontram numa situação de tal desigualdade na distribuição do risco em relação aos veículo motorizados, no que diz respeito à circulação de uns e outros.
129. Mais uma vez, trata-se de questão que o Tribunal a quo nem sequer equacionou, embora amplamente admitido e discutido na nossa jurisprudência: cfr. ac. do  Supremo Tribunal, datado de 11-1-2018; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 04/10/2007, proferido no âmbito do Processo n.°1710; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05/06/2012, proferido no âmbito do Processo n.°100/10.9YFLSB;
130. “não é compatível - com o direito comunitário - uma interpretação do art. 505.° do CC da qual resulte que a simples culpa ou mera contribuição do lesado para a consecução do dano exclua a responsabilidade pelo risco, prevista no art. 503.° do CC.”: Acórdão deste Supremo Tribunal, de 01/06/2017;
131. “não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo” - idem.
132. No caso dos autos, mesmo havendo (sem conceder) alguma contribuição da Autora para a eclosão do acidente, ela está longe de se considerar suficientemente gravosa e censurável para que, à luz de uma leitura actualista deste regime de responsabilidade, se permita aniquilar em absoluto a responsabilidade pelo risco da circulação do veículo e assim arredar o reconhecimento de um direito da Autora a ser indemnizada.
133. Pois que só nos casos extremos (nos antípodas do factualismo dos autos) em que um peão age de forma particularmente gravosa, imprudente e temerária perante o trânsito estradal, se pondera a hipótese de exclusão absoluta do direito indemnizatório.
134. A solução encontrada pelo Tribunal da Relação, ao não arbitrar qualquer indemnização, deixa a Autora num estado de desamparo e desprotecção, face aos gravíssimos danos e alteração de vida que sofreu com o acidente, de um grau absolutamente chocante.
135. Por tudo quanto segue alegado, e além das demais identificadas no douto suprimento, o acórdão recorrido violou e interpretou erradamente o disposto nas seguintes normas legais: artigos 349º, 350º, nº 2, 351º, 358º, 371º, 376º, 399º, 483º, 487º, 500º, 503º, 505º, 570º, 798º e 799º do Cód. Civil; artigos 608º, 615º, nº 1 , al. a), b) d) e e), 623º, 634º, 635º, 639º, 655º e 666º; art. 187º nº 2 do Regulamento dos Transportes Automóveis.
136. Pelo que deve ser o acórdão recorrido revogado na estrita conformidade com as presentes conclusões.
Termos em que, não obstante o douto suprimento do Tribunal ad quem, deve dar-se integral provimento ao presente recurso, julgando-o integralmente procedente, dando por violadas as normas jurídicas supra invocadas, dadas por verificadas as nulidades supra suscitadas,
E, em consequência deve o acórdão recorrido ser integralmente revogado, em conformidade e rigorosamente de acordo com conclusões supra formuladas – mantendo-se, no limite, o doutamente decidido em primeira a instância. Pelo que assim fará inteira JUSTIÇA.”

3. A Ré, EE Portugal, SA, contra-alegou, considerando que a A. não tinha razão nos fundamentos invocados, mas não recorreu subordinadamente, nem requereu a ampliação da revista quanto aos fundamentos em que ficou vencida na apelação.

4. A interveniente FF, Lda, também contra-alegou e requereu a ampliação do objecto do recurso, a título subsidiário, nos termos do art.º 636.º CPC, apresentando 30 conclusões (fls. 989 e ss), nos seguintes termos conclusivos (transcrição):
“i. A sentença recorrida violou o disposto no artigo 513º do Código Civil, na medida em que determinou a condenação solidária da Recorrente e da 3ª Ré seguradora à revelia do disposto no citado preceito em matéria de fontes de solidariedade; Depois,
ii. A sentença recorrida violou o disposto no contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, na medida em que considerou que os danos que pudessem resultar para os passageiros se encontram excluídos do seu âmbito de cobertura tendo por base o instituto da responsabilidade civil contratual;
iii. O contrato de seguro de responsabilidade civil celebrado entre a Recorrente e a 3ª Ré seguradora abrange quer os danos decorrentes de responsabilidade civil contratual, quer os danos decorrentes de responsabilidade civil extracontratual;
iv. Os danos reclamados pela Recorrida são exactamente os mesmos, não se verificando qualquer distinção em razão da natureza das responsabilidades;
v. A aplicação da decisão vertida na sentença de fls. sempre determinaria para a Recorrente, na qualidade de sociedade transportadora de passageiros, a obrigação de suportar custos com o pagamento de indemnizações para ressarcimento de danos cuja responsabilidade se encontra devidamente transferida por via do contrato de seguro de responsabilidade civil obrigatória; vi. E, a manutenção de tal decisão sempre teria ainda como consequência a impossibilidade de previsão, por parte da Recorrente, da responsabilidade no ressarcimento de danos cuja responsabilidade se encontra transferida pela mera circunstância de tal ser feito depender de acto de vontade do sinistrado.
Nesta conformidade, caso seja julgado procedente o recurso de revista interposto pela Autora, e revogado o Acórdão recorrido, deve ser admitida a presente ampliação do recurso, e consequentemente, deve ser alterado o quantum indemnizatório conforme supra requerido e absolvida a Interveniente FF Lda. do pedido contra si formulado.
Termos em que se formulam as seguintes CONCLUSÕES (quanto à ampliação do âmbito do recurso ora requerida):
1. Entende a Recorrida não merecer provimento o recurso interposto pela Recorrente, devendo manter-se o Acórdão recorrido.
2. Não obstante, sem prescindir, mas por mera cautela, caso venha a proceder o recurso apresentado pela Recorrente e com ele seja revogado o Acórdão recorrido, impõe-se a apreciação das seguintes questões: – Da redução quantum indemnizatório - Da ausência de responsabilidade da Interveniente
3. O que se requer a este Supremo Tribunal de Justiça.
4. É manifestamente, excessivo e desproporcionado o quantum indemnizatório fixado na sentença recorrida, impondo-se, nessa medida, a correspondente redução, o que se requer.
5. Pois que, a sentença recorrida atribuiu à Autora indemnização a título de ajuda de terceira pessoa durante três semanas, após o seu regresso a casa na sequência do período de hospitalização.”


5. Considerando a posição do interveniente, a EE, S.A., exerceu o contraditório na parte relativa à ampliação do objecto do recurso (fls. 1011 e ss), concluindo (transcrição):
    “1. A ampliação da matéria do recurso requerida pela recorrida BB não é admissível, quer à luz das regras do recurso de revista, quer à luz das regras do recurso de apelação, plasmadas no artigo 636º do C.P.C., pelo que não deve ser admitida.
2. Caso seja admitida, terá de considerar-se que a ora alegante, enquanto sujeito afectado pela aludida matéria de ampliação, tem direito ao contraditório, quer por aplicação da regra do nº 8 do artigo 638º, quer pela regra do artigo 3º do C.P.C., legitimando a presente peça processual.
3.   A responsabilidade da EE pela circulação do veículo LH foi assumida perante o tomador do seguro, BB, e   não   perante   a   BB,  sendo   alheia   às   relações   contratuais estabelecidas entre estas.
4. A EE não responde pelos danos causados pela BB à autora, 6 derivados do incumprimento de um contrato de transporte, ainda que para a execução desse contrato tenha sido utilizado o veículo LH,   objecto do contrato de seguro automóvel celebrado entre a EE e a BB.
Termos em que deve manter-se a absolvição da EE, com o que se fará a melhor e mais perfeita JUSTIÇA.”


6. O Tribunal da Relação admitiu o recurso a fls. 1028, com subida imediata e efeito devolutivo.

Colhidos os vistos, cumpre analisar e decidir

II. Fundamentação

5. Vêm provados os seguintes factos, após alteração efectuada pelo Tribunal da Relação, com aditamento e supressão (a negrito):

1. No dia 22 de Janeiro de 2013, pelas 17H50, o Réu CC conduzia o veículo pesado de passageiros de matrícula 35...-LH-..., no exercício das suas funções de motorista de veículos automóveis pesados de transporte colectivo público de passageiros, ao serviço e sob as ordens e instruções da interveniente “FF – ... Ldª.”, dentro do seu horário de trabalho e em itinerário previamente determinado por esta.

2. O LH era, naquela data, propriedade da 1ª. Ré “BB, S.A.”, que se dedica com fins lucrativos, à actividade de exploração de uma empresa de transporte público colectivo de passageiros.

3. O LH efectuava a carreira de serviço público entre a cidade de ... e a freguesia de São Julião do Freixo, concelho de Ponte de Lima, a qual se encontrava concessionada à interveniente, que utilizava o referido veículo para a actividade de transporte público de passageiros por força de um acordo de exploração conjunta celebrado com a 1ª. Ré.

4. A interveniente organizou aquele serviço de transporte público e deu ao 2º Réu as ordens e instruções necessárias à sua execução.

5. No interior do referido veículo seguia a Autora, como passageira transportada, a qual adquiriu e pagou à interveniente o preço do bilhete de viagem correspondente ao percurso efectuado naquela qualidade.

6. Ao quilómetro 48,5 da Estrada Municipal n.° 306, na freguesia de Galegos Santa Maria, concelho de ..., no sentido ...-São Julião de Freixo, o 2º Réu imobilizou o LH na metade direita da faixa de rodagem, atento o referido sentido, perto do passeio destinado ao trânsito de peões situado do mesmo lado da referida via.

7. A Autora percorreu a distância desde o banco em que seguia sentada até à porta do autocarro que se encontra situada mais junto à retaguarda, do lado direito do LH, de modo a sair para a via pública.

8. (eliminado)

9. Quando a Autora se encontrava já fora da viatura, caiu ao chão, tendo o pneu do LH colocado junto à dita porta traseira, passado por cima da perna esquerda da Autora.

10. Como consequência directa e necessária da queda e atropelamento, a Autora sofreu as seguintes lesões: fractura da bacia, com desvio, envolvendo ramos isquiopúbicos, bilateralmente e vertente direita do sacro; fractura exposta de grau III dos ossos da perna com desluvamento e luxação de Chopart do pé esquerdo; rotura extraperitoneal da bexiga com hematoma extraperitoneal.

11. Como sequelas ficou a padecer de: marcha claudicante, com recurso a ajudas técnicas de duas canadianas; sequelas de fractura da bacia com desvio envolvendo os ramos ilio-isquio púbicos de forma bilateral bem como da vertente direita do sacro. Rigidez moderada; distrofia grave da perna e pé com deformação cicatricial desde o terço médio da perna até os dedos do pé; sequelas de luxação de Chopar e anquilose da articulação tibio-társica em posição desfavorável (pé equino varo acentuado); encurtamento do membro de 4 cm a menos que o lado contra lateral; hipotrofia muscular da perna com 18 cm lado esquerdo e 25 cm lado direito; hipotrofia muscular ligeira da coxa; cicatrizes hipocrómicas resultantes de enxerto na face anterior da coxa com dimensões de 12x29 e 7x6cm.

12. A Autora foi transportada, na ambulância do INEM para o Hospital de ..., onde foi recebida no Serviço de Urgência do Hospital de ... e onde lhe foram prestados os primeiros socorros.

13. Foram-lhe, aí, efectuados exames radiológicos, lavagens cirúrgicas, desinfecções, curativos e pensos às feridas, escoriações e ao esfacelo da perna sofridos.
14
. Ficou aí internada até ao dia 21 de Maio de 2013, data em que teve alta do Hospital de ....

15. Ao longo do período de tempo de internamento, a Autora manteve-se, permanentemente, retida no leito, sempre deitada na mesma posição, de costas, sem se poder virar, na cama.

16. Tomou todas as suas refeições no leito, que lhe foram servidas por uma terceira pessoa e fez as suas necessidades no leito, com o auxílio de uma arrastadeira, que lhe eram servidas por uma terceira pessoa.

17. No Hospital de ..., a Autora foi submetida a uma intervenção cirúrgica, para correcção do esfacelo da perna esquerda, consubstanciada em osteotaxia, com fixadores externos AO+ e redução da luxação de Chopart, com fios de K, na admissão.

18. Como preparativo dessa intervenção cirúrgica, a Autora fez a análises clínicas e foi-lhe ministrada uma anestesia geral.

19. No Hospital de ..., a Autora foi, também, sujeita a mais duas intervenções cirúrgicas, por cirurgia plástica, consubstanciadas em desbridamento e filastia, com enxerto, em 20 de Fevereiro de 2013 e em 6 de Março de 2013.

20. Como preparativo dessas duas operações plásticas, a Autora fez análises clínicas e foram-lhe ministradas duas anestesias gerais.

21. No dia 2 de Abril de 2013, a Autora foi submetida a uma quarta (4ª.) intervenção cirúrgica, no Hospital de ..., consubstanciada ma extracção dos fixadores externos, de K, limpeza e desbriamento cirúrgico, à perna esquerda.

22. Como preparativo dessa intervenção cirúrgica, a Autora fez análises clínicas e foi submetida a uma anestesia geral.

23. No hospital de ..., a Autora foi diariamente medicada com analgésicos, anti-inflamatórios, antibióticos e soro.

24. Perdeu, permanentemente, sangue, com abundância, pelo que foi sujeita a catorze transfusões de sangue.

25. No Hospital de ..., a Autora foi submetida a tratamento de Medicina Física de Reabilitação.

26. Após a alta do Hospital de ... foi transferida para a rede nacional de cuidados continuados (Santa Casa da Misericórdia X), onde permaneceu internada até 16 de Agosto de 2013 e onde também foi submetida a tratamento diário de Medicina Física de Reabilitação.

27. Na Unidade de Cuidados Continuados de Riba de Ave, a Autora, ora se mantinha retida no leito, ora se deslocava de cadeira rodas.

28. No dia 18 de Agosto de 2013, a Autora obteve alta na Unidade de Cuidados Continuados de Riba de Ave.

29. De regresso à sua casa de habitação, a Autora permaneceu e deslocou-se numa cadeira de rodas até ao fim do mês de Maio de 2014, altura em que passou a caminhar, com o auxílio de canadianas.

30. A Autora tem necessidade permanente e para o resto da vida de uso de canadianas, como auxiliar de locomoção, de calçado ortopédico e ortóteses de silicone para os dedos do pé esquerdo.

31. A Autora necessita de ajudas técnicas permanentes: ajudas medicamentosas; tratamentos médicos regulares; ajudas técnicas; ajuda de terceira pessoa.

32. Após a sua alta da Unidade de Cuidados Continuados de ... e o seu regresso à sua casa de habitação, a Autora continuou a frequentar tratamento de Medicina Física de Reabilitação todos os dias durante sete meses e, depois, três vezes por semana, durante um período dois meses seguidos, na Santa Casa da Misericórdia B.

33. A Autora necessita de frequentar tratamento de Medicina Física de Reabilitação para o resto da sua vida, duas vezes por ano.

34. A Autora necessita de medicação analgésica e anti-inflamatória e protector gástrico para o resto da sua vida.

35. A Autora sofreu dores muito intensas, nomeadamente, ao nível da sua anca/bacia, do membro inferior esquerdo, da perna esquerda e do pé esquerdo, dores essas que continuam a afectar a Autora a partir dessa data e vão continuar a afectá-la ao longo de toda a sua vida.

36. A Autora deixou de poder participar em eventos que impliquem manter-se de pé e que impliquem a marcha, deixou de poder executar as tarefas de doméstica, na sua casa de habitação, apresenta dificuldade para correr, para se ajoelhar, para passar da posição de decúbito e deambular, para subir e ao descer escadas, para entrar para o interior de um veículo automóvel e para utilizar as carreiras dos transportes públicos.

37. A consolidação médico-legal das lesões sofridas pela Autora ocorreu em 23-04-2014.

38. Como consequência directa e necessária do acidente, a Autora ficou afectada de défice funcional temporário total durante 207 dias e parcial durante 250 dias.

39. Sofreu um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 19 pontos.

40. Sofreu um quantum doloris de grau 5 (numa escala de 1 a 7), um dano estético de grau 4 (também numa escala de 1 a 7) e um grau de repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer de 2 (ainda na mesma escala de 1 a 7).

41. A Autora nasceu no dia ... de 1940.

42. A Autora era uma mulher saudável, ágil, dinâmica, forte e robusta e não apresentava lesões e sequelas sem relação com o evento.

43. Fazia caminhadas, na companhia de amigos e familiares, confeccionava as refeições para o seu agregado familiar e trabalhava no sector da agricultura, no cultivo de terrenos próprios.

44. Devido ao acidente ficou impossibilitada de exercer estas actividades.

45. As sequelas de que ficou a padecer causam-lhe um profundo desgosto.

46. A Autora, à data da deflagração do acidente de trânsito que deu origem à presente acção, exercia a dupla actividade de doméstica e de agricultora.

47. No desempenho da sua actividade de agricultora, a Autora, na companhia do seu marido, agricultava dois terrenos de cultivo e cultivava, colhia e produzia produtos hortícolas, frutas e vinho para consumo próprio e do seu agregado familiar.

48. Criava, também, animais domésticos, igualmente para consumo próprio e do seu agregado familiar.

49. Como consequência directa e necessária do acidente e das sequelas dele resultantes, a Autora necessitou de adquirir uma cadeira de rodas, canadianas e calçado ortopédico.

50. Como consequência directa e necessária do acidente e das sequelas dele resultantes, a Autora necessitou de adaptar o rés-do-chão da sua casa de habitação, por forma a conferir-lhe condições de habitabilidade adequadas às sequelas de que ficou a padecer após a alta clínica mencionada em 28º e 29º, pois deixou de poder subir escadas para aceder ao 1º andar da mesma habitação, onde antes vivia.

51. Para o efeito realizou obras no referido rés-do-chão, com o que despendeu: custo de materiais de construção (tela, soalho e tubos para equipar a casa de banho adequada às necessidades da Autora) 419,00 €; execução de uma casa de banho completa (tijoleira, pintura e mão-de-obra) 3.225,06 €; um conjunto de móveis de cozinha 2.460,00 €; custo do granito para os móveis de cozinha 601,63 €; 1 exaustor de cozinha 130,00 €; 1 placa de indução 359,00 €; 1 forno eléctrico de cozinha 560,00 €; 1 frigorífico 435,00 €; 1 roupeiro 300,00 €; 1 sofá de dois (2) lugares 300,00 €; 1 colchão de base articulada 1.990,40 €; 1 sistema de aquecimento central 7.138,27 €.

52. (eliminado).

53. A responsabilidade civil emergente de danos decorrentes da circulação do veículo LH encontrava-se transferida a para a 3ª. Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., em vigor à data aludida em 1º.

54. Como consequência directa e necessária das lesões resultantes do acidente, o Autor Hospital de ... prestou serviços médicos à Autora ... entre 22-01-2013 e 10-12-2014 no valor global de € 11.722,49.

55. “A Recorrida recebeu por parte da Segurança Social, uma quantia (€:50,00/ mensais), a título de auxílio de terceira pessoa”.

x) Quando o 2º Réu retomou a marcha do LH já a Autora se encontrava totalmente no exterior do veículo e em cima do passeio na via pública.

y) A queda da Autora deveu-se a um desequilíbrio coincidente com o reinício da marcha do LH.

6. Não resultaram provados os seguintes factos, tal como alterados pelo Tribunal da Relação (a negrito):

a) Um dos percursos efectuados pelos veículos automóveis pesados de transporte público de passageiros da 1ª. Ré “RODOVIÁRIA …” é a carreira diária, correspondente à ..., entre a cidade de ... e a freguesia de ....

b) O CC … era, como é, ainda, empregado da 1ª. Ré, para a qual desempenhava, como desempenha, ainda, a profissão de motorista de veículos automóveis pesados de transporte colectivo público de passageiros.

c) Na altura da ocorrência do acidente de trânsito, o CC …conduzia o LH, em cumprimento de ordens e instruções que a 1ª. Ré lhe havia, previamente transmitido.

d) Na altura da ocorrência do acidente de trânsito que deu origem à presente acção, o CC … conduzia, assim, o veículo automóvel pesado de transporte público colectivo de passageiros, de matrícula LH, à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direcção efectiva da 1ª. Ré.

e) O LH recuou por duas vezes, em movimentos sucessivos de marcha-atrás e de marcha-à-frente e nesses dois movimentos de marcha-atrás e de marcha-à-frente voltou a pisar e entalar a perna esquerda da Autora com o pneu do rodado traseiro do lado direito do referido autocarro.

f) A Autora necessita e vai necessitar, ao longo de toda a sua vida, do uso de uma cadeira de rodas, para as suas deslocações, nomeadamente para a casa de banho e para o chuveiro.

g) A Autora receou pela própria vida.

h) A Autora ficou a padecer de uma Incapacidade Total, Absoluta e Permanente/Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica – de 100% - Profissional, para o trabalho.

i) O resultado ou rendimento líquido das actividades de doméstica e da agricultura, exercidas pela Autora, não pode computar-se em menos de 40,00 €, por dia.

j) Pelo que a Autora, do conjunto do seu trabalho doméstico e agrícola, auferia, à data do acidente, um rendimento do seu trabalho nunca inferior a (30,00 dias x 40,00 €) 1.200,00 €, por mês.

k) A Autora efectuou as seguintes despesas: obtenção dos Relatórios Médicos juntos aos autos 400,00 €; consulta em médico especialista 410,00 €; medicamentos 175,73 €; internamento e cuidados de saúde prestados na Unidade de Cuidados Continuados de ... 1.723,47 €; despesas com ... – fisioterapia – em ... 239,10 €; despesas com tratamentos ao pé esquerdo 120,00 €; despesas com transporte de ambulância pela Cruz Vermelha Portuguesa de ... 270,00 €; aquisição de calçado ortopédico, por medida e encomenda 1.067,94 €; custo de uma cadeira de rodas 200,70 €; deslocações em veículo automóvel próprio, para o Hospital de ... e para a Unidade de Cuidados Continuados de ... (488,54 € + 399,29 €) 887,83 €; despesas com parqueamento de veículo automóvel próprio 180,10 €; custo de certidões (GNR e Conservatória Automóvel) 29,95 €; peças de vestuário danificadas e inutilizadas 234,00 €; custo de uma certidão de nascimento 20,00 €; custo de uma certidão da Conservatória do Registo Automóvel 17,00 €.

l) Como consequência directa e necessária do acidente e da necessidade de adaptar a sua casa de habitação às sequelas dele resultantes, a Autora necessitou de instalar 1 kit de aquecimento a energia solar de 300 litros na sua casa de habitação, no valor de € 3.850,00.

m) No futuro, a Autora vai ver-se na necessidade de se submeter a uma ou mais intervenções cirúrgicas, principalmente da especialidade de ortopedia, de cirurgia plástica, além de outras.

n) Vai, por isso, ter necessidade de recorrer a consultas médicas das especialidades de Ortopedia, de Cirurgia, de Cirurgia Plástica e de Pedologia além de outras.

o) Vai ter necessidade de se submeter a análises clínicas e a exames radiológicos, ressonâncias magnéticas, ECOs e T.A.C (s), além de outros meios de diagnóstico.

p) Vai ter necessidade de se submeter a uma ou mais anestesias gerais.

q) Vai sofrer os riscos e os padecimentos inerentes a essa ou a essas intervenções cirúrgicas.

r) Vai sofrer um ou mais períodos de internamento hospitalar.

s) Vai sofrer um ou mais períodos de doença, com Incapacidade Temporária Absoluta para o trabalho.

t) E, a final, vai ver a Incapacidade Parcial Permanente, para o trabalho, de que ficou a padecer ainda mais agravada.

u) A Autora vai necessitar, ao longo de toda a sua via, de comprar múltiplos pares de canadianas de substituição, como auxiliar de locomoção, já que essas canadianas têm uma duração limitada, não superior a um (1) ano.

v) Vai necessitar de comprar múltiplas e sucessivas cadeiras de rodas, ao longo de toda a sua vida, para se poder deslocar, dentro da sua casa de habitação e na via pública e essas cadeiras de rodas têm, também elas, uma duração limitada, não superior a um/dois (1/2) anos.

w) A Autora necessita já e vai necessitar, ao longo de toda a sua vida de um veículo automóvel preparado para a sua condição de deficiente, embora conduzido por outra pessoa.

x) (eliminado)

y) (eliminado)

52. Após a alta hospitalar, a Autora pagou os serviços de uma terceira pessoa durante 3 semanas, 8 horas por dia, à razão de € 5,00/hora, período após o qual passou a ter a ajuda diária da filha.

7. Considerando que o objecto dos recursos é balizado pelas conclusões das alegações do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, as questões colocadas são:

i) Nulidades do acórdão;

ii) Violação da lei – na alteração da matéria de facto; na resolução da questão de direito;

iii) Extensão do efeito do recurso da interveniente à Ré, EE.

Em resultado da eventual procedência do recurso da A., pode vir a tornar-se necessário conhecer do pedido de ampliação da revista da Interveniente, que vem formulado a título subsidiário.

8. A recorrente imputa ao acórdão recorrido diversas nulidades, fundadas no art.º 615.º do CPC: i) acórdão não foi assinado por todos os juízes que integravam o colectivo; ii) excesso de pronúncia – o recurso não visava a absolvição mas apenas a diminuição da condenação; o recurso trata de questão nova não apreciada pela sentença; iii) falta de fundamentação; iv) ambiguidade ou obscuridade dos fundamentos decisórios.

O Tribunal recorrido teve oportunidade de se pronunciar sobre as alegadas nulidades – acórdão de fls.1020 e ss.

Aí se disse que:
i) quanto à nulidade por falta de assinatura de todos os juízes que compõem o colectivo – não ocorre nulidade quando a assinatura de um dos membros do colectivo é colhida mais tarde, por força da interpretação conjugada com o art.º 153.º, n.º1 do CPC;
ii) quanto à nulidade por condenação em quantidade ou objecto diverso do pedido, que o Tribunal não extravasou o pedido ou os limites, estando a absolvição pedida nomeadamente na conclusão 72;
iii) quanto à nulidade por se versar questão nova – tratando-se nos autos de apurar a responsabilidade por ocorrência de um acidente, o tribunal deve conhecer das questões colocadas e que envolvem a aferição da responsabilidade na íntegra – a partir dos factos provados – e não apenas de repartir as culpas, tendo todas estas temáticas sido versadas na sentença, pelo que não há questão nova, nem excesso de pronúncia.

Conhecendo das invocadas nulidades, são de subscrever as posições adoptadas no acórdão da conferência do Tribunal recorrido, com os indicados fundamentos, por corresponderem ao entendimento que este STJ tem uniformemente adoptado.
É ainda de acrescentar: considerando que a recorrente também alude à falta de fundamentação e à obscuridades ou ambiguidade da fundamentação do acórdão recorrido quando julga improcedente a apelação da EE e procedente o recurso do interveniente, que não se identifica no acórdão recorrido a invocada nulidade por falta de fundamentação. A falta de fundamentação ocorre apenas se não se verificar que a decisão tem um mínimo de motivação – e no caso o acórdão está motivado quando a estes dois pontos, nos quais não se identifica qualquer nulidade.
Improcedem, assim, as invocadas nulidades.

9. A recorrente considera ainda que o tribunal incorreu em violação de lei – substantiva e processual – ao ter efectuado a alteração da matéria de facto nos termos em que o fez.

Antes de entrar na análise da questão suscitada, importa deixar aqui o âmbito dos poderes deste STJ na parte relativa à alteração da matéria de facto – art.ºs 682.º, n.º2 e 674.º, n.º3 do CPC.

9.1. Pretende a recorrente que este STJ conheça da alteração da matéria de facto relativa aos pontos 8 e 9, por terem os mesmos sido alterados através de presunção judicial que aponta ser ilógica.

O Tribunal da Relação para alterar a matéria de facto apresentou a seguinte justificação:
“Procedemos à audição do depoimento da testemunha HH e das declarações do motorista do autocarro CC. Eis o que deles, de relevante, se extrai:
A testemunha HH referiu que conhecia a A. de vista e que estava dentro do autocarro e viu que a senhora ficou presa pelo capucho na porta, quando saiu do autocarro. “Não deu para ver a pessoa só deu para ver o próprio capucho”, disse. “Eu via a porta, eu não via era a cabeça dela”, referiu que do sítio onde estava não via a cabeça mas viu o capucho, “só deu para ver o capucho”, referiu. No entanto, não soube esclarecer como é que estando o capucho abaixo da cabeça da Autora (posto para trás) só consegue ver o capucho e não a cabeça. Nessa altura disse “alto” e o autocarro pára. Mas não sabe explicar o que aconteceu depois:  “Depois quando olho para a porta  já não vejo lá nada”. Não soube explicar se a porta se abriu ou fechou e se lá estava ou não o carapuço. A testemunha esclareceu que vinha sentada três ou quatro lugares atrás da porta de trás do autocarro, do lado esquerdo e que do lugar onde se encontrava não conseguia ver a cabeça da D. Aurora ao sair, mas apenas viu o capucho. Referiu que depois do acidente nunca mais encontrou a senhora mas só o marido é que vinha a casa dela. Este depoimento decorreu cheio de hesitações, incongruências e contradições e como tal, não é merecedor de credibilidade.
Sucede que o depoimento da testemunha HH é contraditório com o depoimento por si prestado no âmbito do processo penal nº 686/13.6GBBCL – Mº Pº do Tribunal Judicial da Comarca de ... (junto a fls. 76) onde se lê: “ (…) disse que viu a senhora que teve o acidente presa na porta... a senhora estava presa pelo casaco... aquando da queda o autocarro estava parado.... sobre o que provocou a queda de AA disse que não sabe”. Trata-se de um depoimento vago, com contradições e incongruências, muito escasso de informação e pouco esclarecedor sobre o modo como terá ocorrido o acidente, sendo infirmado pelas declarações do motorista CC e pelos depoimentos das testemunhas II e JJ, como adiante se verá.
O motorista do autocarro CC referiu nas suas declarações “eu vi a senhora fora do autocarro, tem um passeio”. Disse que “a senhora estava fora, não podia estar dentro. Se estivesse dentro não tinha acontecido o que aconteceu. E se o carro arrancou é porque a senhora estava fora, não ficou ali presa na porta, isso é impossível. A senhora estava fora. Eu vi pelo espelho”. E esclareceu que no preciso momento do arranque, de começar a andar, a senhora estava no passeio. Disse ainda que se as portas estivessem abertas o autocarro não andava. Foi assertivo ao afirmar que podia engrenar a primeira velocidade que o autocarro não arrancava se as portas não estivessem fechadas. Explicou o modo de funcionamento das portas: A porta tem que fechar totalmente”. Tem duas folhas e as duas folhas têm que fazer o contacto e se houver algum objecto entre elas explicou que “...eu tenho uma luz no visor que me acusa que a porta não está fechada. Tem lá uma luz, e quando as portas fecham totalmente, há uma luz no visor que deixa de…” Ainda de acordo com esta testemunha se houvesse algum objecto entalado, ou alguma parte do corpo de alguém entalado na porta “ Ali no caso de não arrancar, tinha uma luz”.
Estas declarações mostram-se verosímeis e esclarecedoras sendo corroboradas pelas testemunhas II e JJ, que realizaram uma averiguação técnica e acompanharam a própria perícia realizada pelas autoridades. Sendo conhecedores do veículo  em causa, explicaram o seu sistema de fecho de portas e arranque e ainda dos procedimentos a adoptar pelos Motoristas no descarregamento de passageiros.
A Testemunha II referiu, no seu depoimento, ter sido contactado no próprio dia do acidente, pelos serviços de operação, que  o informaram de que tinha havido um acidente com um ferido, tendo de imediato contactado o motorista para se inteirar da situação e perceber o que é que se tinha passado. Foi ao local com o motorista para perceber como é que poderia ter ocorrido o acidente. “Acompanhei a perícia efectuada pelas autoridades, neste caso a GNR, a posteriori acompanhei toda a perícia, nomeadamente do autocarro em si”, explicou. Fizeram testes à porta de saída traseira, verificaram que havia visibilidade interna do veículo pelo espelho retrovisor para a porta de trás. Referiu que para o último degrau em sentido descendente a visibilidade é muito diminuta ou não existe, (porque os bancos não permitem essa visibilidade) dependendo da dimensão do passageiro. Explicou que quem está neste último degrau está no interior do autocarro e que a porta não fecha, se alguém estiver entre portas, se alguém ficar apertado na porta.” Fica ali bloqueado no meio das duas portas, porque são duas portas que fecham de forma consecutiva, portanto, em folha. Caso essa porta esteja bloqueada, isso também fez parte da perícia, caso a porta não feche na totalidade o autocarro não arranca. Tem um mecanismo de segurança que não permite, sempre que a porta está aberta, que o autocarro arranque. Tem uma válvula de segurança”. Quanto ao carapuço de um Kispo explicou:É possível que ele fique no meio das portas, que ele fique. Contudo as portas têm também uma borracha, duas borrachas, aliás, uma de cada lado que encostam quando as portas fecham e permitem, se colocarmos uma mão, quando as portas fecham de não nos magoarmos, porque de facto as borrachas absorvem o impacto e permitem-nos retirar a mão. O capucho será ainda muito mais fácil, sendo tecido, será ainda muito mais fácil que uma mão”. Explicou que a parte metálica da porta não toca uma na outra, porque há entre elas um espaço com borracha que é extremamente flexível, de acordo com a explicação da testemunha.  A este respeito esclareceu: “Eu próprio fiz o teste e, aliás, coloquei a minha mão e não há problema absolutamente nenhum. Nem sequer magoa. (…). A senhora pode lá ter deixado ficar o capucho na porta. Pode. Acho um bocado estranho até pela dinâmica da saída. Não me parece que....Para apertar, eventualmente para apertar o capucho teria que a apertar a ela própria, não é, porque está encostado à senhora”.
Da análise que fez referiu o seguinte: “Da leitura que eu fiz, depois de fazermos uma reconstituição com as autoridades, internamente também fizemos essa reconstituição por aquilo que o motorista nos transmitiu e participou na nossa nota interna de participação, o motorista afirma claramente que viu a senhora do lado externo, exterior do autocarro, não tem dúvida disso.
Porque contou as pessoas que iam a sair, a última pessoa que desceu as escadas, ele garante que a viu do lado de fora do autocarro. Viu um vulto, viu uma pessoa e visualizou pelo espelho exterior e aí accionou o mecanismo de fecho da porta. O que me parece que possa ter acontecido é ser ao sair, por algum motivo se ter desequilibrado, efectivamente, e como existia, e isso é verificado, uma pequena diferença, um pequeno distanciamento entre o autocarro e o lancil do passeio, porque existia um passeio, e portanto, entre esse lancil existia ali um espaço de 20 ou 30 cm, digamos assim. A senhora ao sair, pudesse ter colocado o pé, ou pousado mal o pé no passeio ou junto ao lancil e de alguma forma se ter desequilibrado. De alguma forma se ter desequilibrado. E depois de se desequilibrar, efectivamente o motorista fechou a porta e arrancou. A senhora com esse desequilíbrio pode ter caído no passeio e depois, efectivamente, ao arrancar o motorista, a senhora tendo o pé, as pernas no passeio, o motorista ter efectivamente passado, ter passado com o autocarro por cima da senhora”.
A Testemunha --- corroborou no essencial o depoimento anterior. Referiu ter intervindo na verificação ou na inspecção interna que fizeram ao veículo no pós acidente. Referiu que as portas têm uma borracha em toda a extremidade, onde encosta e fecha. Que permite a passagem de coisas pequenas, e que muito dificilmente um carapuço poderia ficar lá entalado, porque passava só com a força do corpo “com o movimento de puxar normal, saía”. Referiu até que existe ali uma folga deixando passar o vento, e que nunca a porta fecharia se houvesse um objecto duro. Nessa circunstância a porta não fechava e o carro não arrancava. E explicou porque não era possível que o carapuço tivesse ficado preso nas portas: “Dos testes que foram feitos, daquilo que foi descrito, pronto, do que foi descrito e dos testes feitos, não era possível. Na minha perspectiva. Até porque, por uma razão simples, eu para ficar com o carapuço preso eu não podia estar no passeio. Porque eu tinha de ficar para trás, não é possível, nunca poderia estar na parte do passeio. Ou ficava a pessoa toda presa, ou então não ficava. Eu não posso estar a ver uma pessoa no passeio e ao mesmo tempo ela estar presa porque tinha que ficar com uma...” e referiu admitir que a senhora estava no passeio “porque há uma descrição de que a senhora estava no passeio. Portanto, estava na parte de fora do autocarro, não era possível, tinha de estar completamente virada para trás”. Referiu que mesmo que se admitisse que o carapuço tinha ficado preso, “só a inércia da pessoa a deslocar-se e a descer tirava o casaco da porta” . De acordo com a testemunha parece-lhe mais plausível que tenha havido um desequilíbrio da senhora quando esta já se encontrava no passeio.
Esta testemunha prestou um depoimento esclarecedor, coerente e credível, convergente com o depoimento da testemunha II e com as declarações do motorista CC.
Cabe notar que a versão que a Autora apresenta do acidente, vertida nos artigos 33º a 41º da petição inicial (onde, em síntese, alega que ficou presa e pendurada pelo seu kispo, entre as duas folhas da referida porta e de costas voltadas para a referida porta) é contraditória com as declarações por si prestadas no âmbito do  processo penal nº 686/13.6GBBCL Mº Pº do Tribunal Judicial da Comarca de ... (fls. 75 dos autos), onde se lê: “(…) no momento em que a depoente ia a sair a porta fechou-se e a carreira arrancou, a depoente ficou entalada na porta, tendo dado murros na mesma e gritado até que caiu para a estrada (...)”.
Assim, da prova produzida, apreciada à luz das regras da experiência comum e da normalidade, nomeadamente, do depoimento de parte de CC e dos depoimentos das testemunhas II e JJ, e da sua conjugação entre si com a restante prova, designadamente documental junta aos autos, impõe-se alterar as respostas dadas àqueles concretos pontos da matéria de facto, objecto de impugnação, nos seguintes termos: (sublinhados nossos)
Ponto 8. : Não provado.
Ponto 9.: Provado apenas que quando a Autora se encontrava já fora da viatura, caiu ao chão, tendo o pneu do LH colocado junto à dita porta traseira, passado por cima da perna esquerda da Autora.
Alíneas x) e y): Provados.”

A alteração realizada foi assim determinada por tal se justificar perante vários meios de prova, todos sujeitos ao princípio da livre apreciação do juiz – depoimentos testemunhas, depoimento de parte, documentos e regras de experiência (base de presunção judicial).

Não se sabe em que medida as regras da experiência por si só ditaram a alteração. Da justificação resulta que foram todos aqueles meios a determinar a alteração.

Nessa medida, ainda que tenha havido recurso a presunção judicial, a pretendida ilogicidade da mesma não conduziria a um resultado satisfatório para a pretensão da recorrente – é que as alterações sempre se manteriam por provadas com base nos outros indicados meios de prova, não sindicáveis por este tribunal.

Não procede o argumento da A. – não se tratou de justificar a alteração com base apenas em presunção judicial.

9.2. A A. também pretende que a alteração foi realizada em violação de três presunções legais que a beneficiariam, resultantes da sentença condenatória penal (sentença condenatória, transitada em julgado, proferida no âmbito do Processo Comum, nº 686/13.6GBBCL, que correu termos pela Instância Local, Secção Criminal, J1 de ... – certidão de fls. 419v-427), do contrato de transporte e da relação de comissão.

A primeira presunção legal a que a A. se reporta é a que indica provir da sentença condenatória penal.

Vejamos se tem razão.

A sentença condenatória penal constitui presunção ilidível no que se refere à existência de factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, em acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção – art.º 623.º do CPC. Tratando-se de presunção ilidível, a A. estava dispensada da prova. Mas o Réu não estava impedido de ilidir a presunção, socorrendo-se de quaisquer meios de prova admissíveis, excepto se a lei indicar que certos meios de prova não são admissíveis – o que não se afigura ser o caso – pelo que bastaria ao tribunal a convicção de factos opostos para poder julgar que foi feita prova do contrário, dando-se a presunção legal por ilidida – art.º 350.º, n.º2 do CC. Não se identifica na situação dos autos, para a alteração efectuada, que tenha sido usada uma mera contraprova (art.º346.º CC).

Quanto à presunção do contrato de transporte e da relação de comissão sempre importaria dizer aqui que se trata de presunções de culpa, que não dispensam a demonstração dos demais pressupostos da responsabilidade civil – seja o incumprimento do contrato de transporte, seja o facto ilícito – e a alteração do ponto 8. e 9. reportam-se precisamente a estes pressupostos.

Recorde-se que os mesmos atestavam:

“8. Quando a Autora se encontrava a pousar o primeiro pé no aludido passeio junto à porta, o 2º Réu accionou o sistema de fecho das portas do LH, tendo então o casaco que aquela trazia vestido ficado agarrado na porta por onde a mesma saiu, ficando a mesma presa pelo referido casaco que ficou entalado entre as suas folhas da porta e de costas para a mesma.”

“9. Logo de seguida, o 2º Réu reiniciou a marcha do veículo e a Autora foi imediatamente puxada pelo casaco, acabando por cair ao chão, tendo o pneu do LH, colocado junto à dita porta traseira, passado por cima da perna esquerda da Autora”.

Adicionalmente, valem também as considerações já efectuadas sobre ilisão das presunções – o Réu pode defender-se na acção em que o A. goza destas presunções, fazendo prova do contrário, não podendo o STJ ir ouvir os depoimentos para afirmar ou infirmar o sentido que deles se extraem e dizer quais das declarações apreciadas pelo tribunal  que se afiguram mais credíveis.

Deve ainda dizer-se que não se compreende o sentido da alegação da A. quando afirma que forma violadas as normas dos art.º 358.º, 371.º e 376.º do CC sobre o valor da confissão, valor probatório do documento autêntico e particular, que apenas vem indicado, mas não fundamentado.

É, assim, de julgar improcedente a pretendida violação de lei quanto à alteração da meteria de facto realizada pelo tribunal recorrido.

10. Considerando os factos provados – e não provados – vejamos agora se a solução de direito foi correcta.

10.1. Em 1ª instância, a A. obteve vencimento de causa, a partir do instituto da responsabilidade civil extracontratual. Vieram condenadas, em favor da A., a Ré EE, seguradora do veículo interveniente no acidente, e a FF, detentora do veículo, pela: i) quantia global de € 167.918,36, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento; ii) quantia que vier a ser liquidada referente ao custo da aquisição da cadeira de rodas, das canadianas, do calçado ortopédico e dos tratamentos de Medicina Física de Reabilitação já despendido pela Autora, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento; iii) a quantia que vier a ser liquidada referente ao valor a despender pela Autora com a substituição das canadianas, com o calçado ortopédico, com os tratamentos de Medicina Física de Reabilitação (duas vezes por ano) e com a medicação analgésica e anti-inflamatória e protector gástrico, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento.

A EE, S.A.” também foi condenada a pagar ao “HOSPITAL GG, S.A.” a quantia de € 11.722,49, acrescida de juros à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento.

Foram absolvidos da acção a proprietária do veículo e o condutor do mesmo na altura do acidente: BB, S.A.” e CC.

 Por acórdão do Tribunal da Relação, recorrido, a situação inverteu-se, na parte relativa à condenação da EE e da interveniente em favor da Autora.

O Tribunal da Relação considerou que, perante os factos provados, não havia lugar ao funcionamento do regime da responsabilidade civil extracontratual objectiva – art.º503.º do CC. Em consequência, não responderia pelos danos decorrentes do acidente nem o detentor do veículo, nem a seguradora para quem aquele havia transferido a responsabilidade civil.

A solução do tribunal encontra-se motivada, através de várias páginas, das quais se extraem as seguintes justificações tidas por mais relevantes (nossa selecção):
“No caso em apreço, importa discutir se há ou não algum nexo de causalidade entre a conduta do condutor do autocarro e o acidente verificado de que foi vítima a Autora e danos daí resultantes e se ocorrendo tal nexo deve ou não ser considerada como culposa a conduta daquele condutor pelo acidente em apreço. (p. 31)
(…)
No caso sub judice, conforme resulta da factualidade apurada, não se nos afigura existir prova da culpa, concreta ou presumida do condutor do veículo ...-LH-... Ou seja, não existem factos que permitam dirigir um juízo de censura ao condutor do veículo, pelo acidente que vitimou a Autora.
Mas nem todos os danos sobrevindos ao facto ilícito são incluídos na responsabilidade do agente, antes apenas os resultantes do facto, os causados por ele, ou seja, exige-se um nexo de causalidade entre o facto e o dano. Para aferir da existência desse nexo de causalidade adoptou o legislador a chamada teoria da causalidade adequada (artº 563º do CC).
Para que os danos possam ser atribuíveis ao lesante, numa perspectiva de circulação rodoviária, torna-se necessário, na responsabilidade subjectiva, que ele haja praticado um facto ilícito que tenha virtualidade para ser tomado como causa adequada do dano, no exercício ou por causa do exercício da condução.
Ora, no caso dos autos, face à materialidade fáctica apurada, não se mostram verificados os pressupostos da responsabilidade civil, nos termos dos artºs 483º do CC, nomeadamente, a prática de um acto ilícito, a existência de um nexo de causalidade entre este e determinado dano e a imputação do acto ao agente, em termos de culpa, apreciada como regra em abstracto, segundo a diligência de um «bom pai de família». É ao lesado que incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa (artº 487º, nº2 do CC). (p.32)
 (…)
A responsabilidade pelo risco, dentro desta matéria, só abrange os danos provenientes dos riscos próprios do veículo. Dentro dos pressupostos da responsabilidade civil, o dano indemnizável  será aquele que estiver em conexão causal com o risco. Para traduzir esta ideia, a lei refere-se aos «danos provenientes dos riscos próprios do veículo». O dano liga-se por um nexo causal ao facto material em que se configura o risco. O dano terá de ser sempre condicionado por uma relação de causalidade, mesmo indirecta com o facto em que se materializa o risco (cfr. Manual de Acidentes de Viação, Dario Martins de Almeida, 2ª ed. Pág. 317 e ss).
A indemonstração do nexo causal inviabiliza a pretensão do lesado à indemnização com base no risco, pois a responsabilidade objectiva pressupõe todos os requisitos da responsabilidade subjectiva, menos a culpa e a ilicitude do facto (STJ, 21.11.1978, BMJ, 281º-307). (p. 32-33)
A causa juridicamente relevante de um dano é – de acordo com a doutrina da causalidade adequada adoptada pelo artº 563º do CC – aquela que em abstracto, se revele adequada ou apropriada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do lesante (cfr. Ac. STJ, 10.03.1998: BMJ, 475º-635).
No caso, de útil para a dilucidação desta questão, provou-se, para além do mais:
7. A Autora percorreu a distância desde o banco em que seguia sentada até à porta do autocarro que se encontra situada mais junto à retaguarda, do lado direito do LH, de modo a sair para a via pública.
9.  quando a Autora se encontrava já fora da viatura, caiu ao chão, tendo o pneu do LH colocado junto à dita porta traseira, passado por cima da perna esquerda da Autora.
x) Quando o 2º Réu retomou a marcha do LH já a Autora se encontrava totalmente no exterior do veículo e em cima do passeio na via pública.
 y) A queda da Autora deveu-se a um desequilíbrio coincidente com o reinício da marcha do LH.
Preceitua o artigo 505.º do Código Civil, “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
Verificado qualquer dos pressupostos enunciados no artº 505º do CC entende-se haver uma ruptura do nexo de causalidade – o dano passa a não ser efeito adequado do risco.
É esta a situação verificada no caso sub judice. (p. 34)
(…)
Por tudo o exposto, terá de concluir-se pela irresponsabilidade do condutor do veículo LH, em relação aos danos a que se reporta a Autora, por falta de verificação dos necessários pressupostos do dever de indemnizar emergente da responsabilidade por factos ilícitos a atribuir ao condutor desse veículo, em consequência do que não cabe ser-lhe arbitrada qualquer indemnização.
Tal conclusão torna inútil a apreciação das demais questões enunciadas, relacionadas com os valores indemnizatórios fixados em 1ª Instância.

10.2. A A. insurge-se, e bem, contra a solução adoptada pelo Tribunal recorrido. Insurge-se pela solução encontrada, e pelo caminho percorrido. Neste, questiona quer a exclusão da situação do regime contratual – “É indubitável que o acidente que sofreu a Autora decorreu causalmente do risco que para si implicou ser transportada naquele autocarro em concreto, nomeadamente ao momento da sua saída. Porque a proximidade que a Autora tinha relativamente ao autocarro,  proximidade essa que era de tal grau que a mera queda sua a deixou com a perna debaixo do autocarro, deriva causalmente do facto de ter sido transportada por aquele autocarro em concreto e por dele se ter acabado de apear, Essa proximidade é absolutamente consequencial do transporte e causal do acidente. Um qualquer outro peão que por ali circulasse e que não estivesse prestes ou tivesse acabado de ser transportado por aquele veículo não teria, em circunstâncias normais, proximidade do autocarro de tal forma perigosa como o teve, demonstradamente, a Autora. É essa proximidade – simultaneamente consequencial do transporte e causal do acidente – que deveria ter sido tomada em conta por parte do condutor, e só uma vez debelado esse factor de risco (a proximidade), e salvaguardada uma distância mínima entre todos os passageiros acabados de apear e o veículo, deveria o condutor ter reiniciado a sua marcha.” (cf. alegações) – quer o afastamento da responsabilidade civil extracontratual (objectiva) – “Ao invés do que entende o Tribunal da Relação, existe uma total adequação entre o risco da circulação do veículo e o dano. Mesmo que debeladas as várias presunções de culpa operantes no caso dos autos, não pode nunca excluir-se, pela factualidade apurada, a responsabilidade pelo risco prevista no art. 503º do CC.”; O Tribunal da Relação rejeita liminarmente ou nem sequer coloca, na sua (breve) análise da matéria – que é delicada e complexa – a possibilidade de concurso entre o risco dos veículos de circulação terrestre e, por exemplo, a conduta – não necessariamente culposa – imputável ao lesado. (cf. alegações)

10.3. Considerando que a situação dos autos veio decidida com base no regime da responsabilidade civil extracontratual, ainda que sejam feitas menções à responsabilidade contratual derivada co contrato de transporte, tendo que se aceitar os factos fixados pelas instâncias, é de analisar a situação, neste momento, à luz da obrigação de indemnizar por facto ilícito – art.º 483.º e ss do CC.

10.4. Como este STJ já teve oportunidade de referir – Ac. STJ 11/1/2018[1]  –  a questão jurídica relativa à conjugação do regime da responsabilidade objectiva com a culpa do lesado (ou imputação ao lesado do acidente), para efeitos de indemnização por danos, “constitui uma das mais complexas e controversas da jurisprudência civilista nacional dos últimos anos, circunstância para a qual contribui o facto de a mesma questão se apresentar de modos distintos em razão do tipo de situação litigiosa subjacente, ainda que com um núcleo essencialmente comum.”

Para uma correcta apreciação da sua problemática não pode senão fazer-se uma apreciação que não tenha “em conta a distinção entre este núcleo comum e as especificidades das diversas situações litigiosas apreciadas pela jurisprudência deste Supremo Tribunal.” – citado acórdão.

Importa, por isso, caracterizar a situação concreta dos autos com base nos seguintes factos provados relevantes:

2. O LH era, naquela data, propriedade da 1ª. Ré “BB, S.A.”, que se dedica com fins lucrativos, à actividade de exploração de uma empresa de transporte público colectivo de passageiros.
3. O LH efectuava a carreira de serviço público entre a cidade de ... e a freguesia de ..., concelho de ..., a qual se encontrava concessionada à interveniente, que utilizava o referido veículo para a actividade de transporte público de passageiros por força de um acordo de exploração conjunta celebrado com a 1ª. Ré.
9. Quando a Autora se encontrava já fora da viatura, caiu ao chão, tendo o pneu do LH colocado junto à dita porta traseira, passado por cima da perna esquerda da Autora.
x) Quando o 2º Réu retomou a marcha do LH já a Autora se encontrava totalmente no exterior do veículo e em cima do passeio na via pública.
y) A queda da Autora deveu-se a um desequilíbrio coincidente com o reinício da marcha do LH.
41. A Autora nasceu no dia 25 de Maio de 1940.
42. A Autora era uma mulher saudável, ágil, dinâmica, forte e robusta e não apresentava lesões e sequelas sem relação com o evento.
53. A responsabilidade civil emergente de danos decorrentes da circulação do veículo LH encontrava-se transferida a para a 3ª. Ré, mediante contrato de seguro titulado pela apólice nº ..., em vigor à data aludida em 1º;
- e ainda todos os elementos de facto relativos aos danos sofridos pela A.

Verifica-se, deste modo, que:
- A A. lesada é pessoa maior e imputável;
- Participou no acidente com a qualidade de peão – encontrando-se no passeio depois de sair do autocarro;
- não vieram provadas violações de normas do Código da Estrada, nem pela A., nem pelo condutor da viatura;
- sendo o condutor da viatura o motorista na interveniente, foi ilidida a presunção de culpa que sobre o mesmo recaia, decorrente da relação de comissão;
- o acidente envolveu um veículo automóvel que reiniciou a sua marcha, tendo atropelado a A..
Conclui-se que estarmos perante um caso em que, comprovadamente, ocorreu um acidente, mas este resultou de uma situação, em certo sentido, “imputável” ao lesado, ainda que não se possa afirmar que o lesado teve culpa (é-lhe “imputável” o desequilíbrio de que sofreu), chamando à colação o disposto no art.º 505.º CC.
Bem se sabe que a conjugação do disposto no art.º 505.º com o regime do 503.º tem sido objecto de interpretação e aplicação – nem sempre coincidente – na jurisprudência.
Uma análise do desenvolvimento e aplicação jurisprudencial e doutrinal pode ser obtida também por referência a acórdãos deste stj. Assim, vejamos a explicação dada no acórdão deste Supremo Tribunal, de 01/06/2017 (proc. nº 1112/15.1T8VCT.G1.S1, consultável em www.dgsi.pt), que recupera o teor do acórdão, também deste Supremo Tribunal, de 17/05/2012 (proc. nº 1272/04.7TBGDM.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt), que aqui se transcreve:
“4. Segundo a tese que podemos qualificar de “clássica”, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o art. 505º do CC coloca um mero problema de causalidade.
Tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.
Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO).
A leitura destes e de outros arestos, assim como a análise da doutrina maioritária, revela a multiplicidade de argumentos que têm sido empregues na defesa desta solução.
Para além do relevo atribuído ao elemento literal, assume particular significado a ponderação da necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento.
5. Esta solução tem sido posta em crise por uma parte da doutrina mais recente.
Com argumentação diversa, passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.
Entre os defensores desta tese destacam-se BRANDÃO PROENÇA, em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs.,[2] e CALVÃO da SILVA, RLJ 134º, págs. 115 e segs.
Para o efeito, defendem a extracção do art. 505º do CC de um sentido que o torne compatível com o art. 570º, com o argumento de que só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo.
É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas.
Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência.
Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro.
Atalhando caminho, CALVÃO da SILVA conclui, a este respeito, que “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …” (RLJ 134º/115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10-07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137º/60), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado” (pág. 62).
Ao nível jurisprudencial, esta foi a solução admitida no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt - SANTOS BERNARDINO), publicado e comentado na RLJ 137º, págs. 35 e segs., no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.
Entendimento também expresso, ainda que de modo condicionado, nos Acs. do STJ, de 3-12-09 (www.dgsi.pt- BETTENCOURT FARIA),[3] ou de 12-11-09 (Revista nº 3660/04 - CARDOSO ALBUQUERQUE).
[…]
6. Mas para além das referidas teses, ainda se encontra espaço para a discussão de uma terceira via no sentido da responsabilização da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado.
Sendo colocada de lege ferenda por BRANDÃO PROENÇA, o maior relevo da sua discussão advém do facto de ter servido de mote à apresentação ao Tribunal de Justiça de processos de reenvio prejudicial cujo resultado poderia interferir na resposta.
Aquela solução pressupunha a verificação de uma situação de desconformidade entre o direito nacional regulador da responsabilidade civil automóvel e o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel.
A correspondente interrogação foi formulada ao Tribunal de Justiça por alguns Tribunais nacionais, dando origem aos processos de reenvio prejudicial “C-409/09”, “C-229/10” (J.O. de 17-7-10) e “C-13/11” (J.O. de 26-3-11), nos quais se inquiria se a necessidade de tutelar as vítimas de acidentes de viação prosseguida pelas referidas Directivas Europeias deveria levar à desconsideração da sua contribuição para os danos, à semelhança do que, relativamente a passageiros transportados em veículos, já fora declarado nos acórdãos “Candolin” e “Farrell”.
A resposta que foi dada resolve liminarmente a questão.
O Tribunal de Justiça, no âmbito do “Proc. C-409/09”, proferiu o Acórdão datado de 9-6-11, no qual concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” ().http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ
Para chegar a uma tal conclusão asseverou que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima”.
Ou seja, partindo do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do condutor (solução que, como se disse, apenas é sustentada ao abrigo da segunda tese anteriormente enunciada), o Tribunal de Justiça afirmou ser compatível com o Direito Comunitário uma solução em que a responsabilidade da seguradora seja excluída quando o sinistro seja exclusivamente imputável à vítima (…).
Na verdade, embora o art. 1º-A da 4ª Directiva sobre seguro de responsabilidade civil automóvel imponha a adopção de legislação que, no âmbito do seguro obrigatório, assegure “a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor”, acrescenta que a regulação do direito de indemnização é feita “de acordo com o direito civil nacional ”.
Por outro lado, não foi reflectida na redacção final da Directiva Europeia uma proposta mais arrojada que existia no sentido da defesa dos indivíduos mais vulneráveis, como os peões e ciclistas, que implicava a cobertura do seguro obrigatório dos respectivos danos não patrimoniais suportados por esses lesados independentemente da responsabilidade do condutor do veículo.
A propósito do desfecho do referido reenvio prejudicial, ALESSANDRA SILVEIRA e SOPHIE PEREZ FERNANDES, nos Cadernos de Direito Privado, nº 34, págs. 3 e segs., em artigo intitulado “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do TJUE em sede de reenvio prejudicial”, referem que “estávamos à espera de uma resposta mais contundente do Tribunal de Justiça da União Europeia que censurasse, sem recuos e nitidamente, a hipótese de exclusão de indemnização em casos semelhantes ao do processo principal, a fim de esclarecer as dúvidas do juiz nacional que lhe pediu ajuda e proteger peões e ciclistas vítimas de acidentes, sobretudo menores de tenra idade, sem discernimento suficiente para a percepção do risco” (pág. 17).
Esta terceira via pressupunha, pois, a existência de normas da União Europeia que directamente se sobrepusessem ao direito interno (emergente de Regulamento ou impostas por efeito directo de Directivas) ou que determinassem uma interpretação conforme com solução ditada pelo direito comunitário, o que não ocorre com a questão sub judice.
Por conseguinte, posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.”
[…]
 “No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional : ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.
Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.
E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, na sequência dos pedidos de reenvio atrás referidos, ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito.
É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente…”.

Procurando aplicar as orientações supra expostas ao caso sub judice, verifica-se que, tendo sido provado que o acidente foi causado pela conduta da A. lesada, sem que se possa invocar ter a mesma qualquer modo de a controlar, por se tratar de um acto completamente involuntário – pessoa maior e imputável, com a qualidade de peão, que se desequilibra e cai –, o juízo de adequação e proporcionalidade não leva a excluir a responsabilidade do detentor efectivo do veículo pelos riscos próprios do mesmo; e portanto, não é de excluir a responsabilidade da R. seguradora para quem tal responsabilidade fora transferida.

O desequilíbrio da A. nunca teria os efeitos gravosos que vêm provados se a mesma não tivesse sido atropelada pelo veículo utilizado pela Interveniente, cujos rodados, de dimensão e peso sobejamente conhecidos, tornaram a lesão muito mais grave do que a que ocorreria se a A. tivesse caído apenas e a essa queda não sobreviesse um atropelamento com veículo, maxime sendo um veículo pesado.

O risco de circulação do veículo, maxime sendo um veículo pesado, contribuiu sobremaneira para o dano. In casu, há que atribuir relevância à contribuição da interveniente para a causação dos danos mesmo quando não se apura uma causação do acidente.

Esta orientação é também perfilhada em escritos doutrinais, subscritos pela nossa jurisprudência mais recente, como o da autoria de MARIA DA GRAÇA TRIGO, “Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação”, in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Vol. II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.

No mesmo sentido, cf. ainda RAUL GUICHARD, Anotação ao art.º 503.º do CC, in Comentário do Código Civil. Direito das Obrigações, UCE, lisboa, 2018, p. 405 – com alusão aos danos abrangidos pela responsabilidade objectiva e os riscos específicos do veículo, nos quais se inclui o risco de circulação; na Anotação ao art.º 505.º do CC na p. 415-416 – quando existe concorrência de causalidade em relação ao dano, não se considerando arredada a responsabilidade objectiva, admitindo-se mesmo que a concorrência não conduza à exclusão da responsabilidade pelo risco se a culpa do lesado não é grave ou este não for passível de um juízo de censura, em razão de idade ou de outra causa, com o objectivo de proteger o lesado, quando este apresenta elementos de fragilidade – crianças/idosos.

Não há dúvidas que a FF tinha a qualidade de detentora do veículo, na altura em que o acidente ocorreu, e que o usava em seu interesse e proveito próprio.

Perante os factos provados, não há dúvida que o condutor do veículo ilidiu a presunção de culpa que sobre ele incidia.

Pelas razões expostas:

(i) impõe-se admitir a concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a imputação do acidente ao lesado;

(ii) Tal não implica que, por si só e de forma imediata, se responsabilize o detentor efectivo do veículo (e respectiva seguradora) pelos danos sofridos pelo lesado;

(iii) Implica sim que, em função da factualidade subjacente a cada caso concreto, se pondere a medida da contribuição do lesado, culposa ou não culposa;

(iv) Num caso como o dos autos em que ficou provado que o acidente não foi causado pela conduta gravemente culposa da A. lesada, pessoa maior e imputável, não deve a indemnização fundada no regime da responsabilidade objectiva ser excluída, nem reduzida.

Pelas razões expostas, procede o argumento da A. no sentido de os riscos próprios do veículo de circulação terrestre estarem presentes e serem relevantes em termos de daí se extrair a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, e da seguradora para quem os riscos haviam sido contratualmente transferidos, ao abrigo do regime de seguro obrigatório – questão esta decidida pelo acórdão do Tribunal da Relação, e que não vem impugnada pela recorrida EE[2].

Não se encontram motivos para afirmar que a conduta da lesada deve ser ponderada como elemento que permita reduzir a responsabilidade da seguradora, por se tratar de um comportamento não intencional, nem voluntário.

Tendo-se concluído pela responsabilidade objectiva da Interveniente, que se encontrava transferida para a seguradora pelo contrato de seguro obrigatório, e estando o montante da indemnização peticionado dentro dos limites do contrato de seguro, apenas é de condenar no pagamento da indemnização a seguradora – cf. do valor do pedido com o regime legal de seguro obrigatório à data do acidente.

Não há assim motivos para ampliar o objecto do recurso, tal como veio requerido pela interveniente, a título subsidiário, uma vez que a mesma não é considerada responsável pelos danos.

10.5. Analisando agora o regime da responsabilidade contratual por não cumprimento do contrato de transporte.

A A. não logrou demonstrar todos os pressupostos de que depende a atribuição de uma indemnização por violação do contrato de transporte, nomeadamente o facto ilícito e a culpa da Interveniente (através do seu motorista), a qual por seu turno, demonstrou que o acidente não lhe era imputável (ilidindo a presunção de culpa resultante da lei em matéria de responsabilidade contratual).

Não procedem os argumentos da A. no sentido de também dever haver condenação por violação do contrato, que só poderia ser deferida se estivessem demonstrados todos os pressupostos de que depende a sua atribuição: incumprimento do contrato; por facto imputável ao interveniente; com culpa do condutor da viatura; dos quais resultaram danos, que preencham o requisito de adequação entre facto e dano.

11. Quanto à questão suscitada relativa à extensão do efeito do recurso da interveniente à Ré, EE, porque a solução de direito que se propugna é no sentido de esta Ré, EE, ser condenada pela reparação dos danos, é de considerar prejudicada a análise da questão, por inutilidade.

12. No que respeita ao quantum indemnizatório, uma vez que o acórdão do Tribunal da Relação absolveu a interveniente FF e a EE do que contra elas havia sido peticionado, e a revista incide sobre o acórdão da Relação e não sobre a sentença, mesmo que este Tribunal revogue o acórdão a lei não permite que o STJ se substitua ao tribunal recorrido no conhecimento de questão que por aquele foi tida por prejudicada (Tal conclusão torna inútil a apreciação das demais questões enunciadas, relacionadas com os valores indemnizatórios fixados em 1ª Instância – citação do acórdão recorrido).

Impõe-se assim determinar a baixa do processo para determinação dos danos que devem ser indemnizados, à luz da responsabilidade objectiva, e com base nos factos provados, devendo o tribunal conhecer do quantum indemnizatório fixado na sentença e impugnado na apelação – questão que ficou prejudicada na apelação – quanto à condenação que na sentença incluía: i) a condenação da Ré “EE, S.A.” a pagar à Autora AA a quantia global de € 167.918,36, acrescida de juros de mora, à taxa de 4% ou outra que legalmente venha a estar em vigor, desde a citação até integral pagamento; ii) a condenação da Ré “EE, S.A.” a pagar à Autora AA a quantia que vier a ser liquidada referente ao custo da aquisição da cadeira de rodas, das canadianas, do calçado ortopédico e dos tratamentos de Medicina Física de Reabilitação já despendido pela Autora, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento; iii) a condenação da Ré “EE, S.A.” a pagar à Autora AA a quantia que vier a ser liquidada referente ao valor a despender pela Autora com a substituição das canadianas, com o calçado ortopédico, com os tratamentos de Medicina Física de Reabilitação (duas vezes por ano) e com a medicação analgésica e anti-inflamatória e protector gástrico, quantia essa acrescida de juros de mora, às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a notificação para a respectiva liquidação até integral pagamento.


III. Decisão
Pelas razões expostas é concedida, parcialmente, a revista:
- Revoga-se o acórdão do Tribunal da Relação na parte em que este absolveu a interveniente e a ré EE da condenação decretada em 1ª instância, determinando-se a baixa do processo para que seja conhecida da questão do quantum indemnizatório pelos danos provados, com base no regime da responsabilidade civil objectiva em que a responsável é unicamente a Ré EE, relativamente aos montantes em que ambas (Ré e Interveniente) vinham condenadas em regime de solidariedade.
- Mantém-se, no remanescente, a decisão recorrida.
Custas pela A e pela Ré, na proporção do decaimento.


Lisboa, 19 de Março de 2019


Fátima Gomes


Acácio Neves



Fernando Samões

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[1] Disponível em www.dgsi.pt.
[2] Porque não é de admitir a ampliação da revista, não se considera que a questão integre o objecto da revista. Não foi impugnada nem em recurso independente, nem subordinado, nem sobre a mesma ocorre ampliação da revista que aproveite à Ré, EE.