Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B875
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NORONHA DO NASCIMENTO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL COMPETENTE
TRIBUNAL COMUM
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
AMBIENTE
Nº do Documento: SJ200405130008752
Data do Acordão: 05/13/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 4287/03
Data: 10/20/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : I) Numa providência cautelar proposta pela "Quercus" contra um Município onde se pede a suspensão da conduta deste que ponha em perigo a nidificação e reprodução de aves protegidas em parque natural, a competência material para conhecimento do pedido radica-se nos Tribunais comuns.
II) Não está em causa a apreciação de qualquer relação jurídico-administrativa, mas sim um pedido de preservação do meio ambiental e da qualidade de vida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"Quercus, Associação Nacional da Conservação da Natureza" instaurou procedimento cautelar comum contra o Município de Freixo-de-Espada à Cinta alegando, em suma, o seguinte:
a) está a requerida a efectuar a construção de uma estrada municipal que liga a aldeia de Poiares à estrada nacional nº. 221, dentro do concelho de Freixo de Espada à Cinta;
b) tal estrada, situada na zona de Penedo Durão, atinge totalmente a nidificação e a reprodução de aves protegidas nacional e internacionalmente tais como a águia de Bonelli, o abutre de Egipto, o falcão peregrino, o grifo;
c) com tais obras de construção - que implicam a utilização de maquinaria que provocam enorme ruído que afectam a permanência na zona daquelas aves - está a ser destruído um património paisagístico e geológico irrecuperável;
d) até porque a zona em causa se integra em área protegida, o Parque Natural do Douro Internacional;
e) estamos, pois, perante uma violação às normas constitucionais que protegem o ambiente.
Pede, em conformidade:
1º) a suspensão imediata das obras;
2º) a abstenção da requerida em perturbar a nidificação das aves existentes nas escarpas adjacentes à estrada em construção;
3º) o pagamento de uma sanção pecuniária compulsória nos termos do art. 829º-A do C.Civil que não deve ser inferior a 500 euros diários.

Opôs-se a requerida, após o que a Srª. Juíza da 1ª instância proferiu despacho a considerar incompetente materialmente os Tribunais comuns já que, em seu entender, a competência pertence à jurisdição administrativa.
Em recurso interposto pela Quercus veio o Tribunal da Relação do Porto a revogar a decisão considerando competente, em razão da matéria, a jurisdição comum.
Agrava, agora, o Município do Freixo concluindo as suas alegações da forma seguinte:
a) o art. 45º da Lei nº. 11/87 tem que ser conjugado com o art. 212º, nº. 3 da Constituição da República e com o art. 3º do D.L. nº. 129/84 de 27/4 (ETAF) concluindo-se que é sempre da competência dos Tribunais administrativos toda a questão onde se discuta qualquer relação jurídico-administrativa mesmo em matéria ambiental;
b) no caso em apreço é isso o que sucede já que a violação ambiental em causa tem que pressupor a apreciação da legalidade dos actos administrativos que permitiram a abertura da estrada em jogo;
c) tais actos são de gestão pública, pelo que só em Tribunal Administrativo podem aqueles ser apreciados;
d) a abstenção de conduta que a "Quercus" pretende mais não é senão um embargo de obra nova, também impugnável apenas na jurisdição administrativa;
e) a decisão recorrida infringiu o disposto nos arts. 212º, nº. 3 da C.R.P., 3º, 4º, nº. 1, f), do ETAF, 45º da Lei de Bases do Ambiente, e 414º do C.Proc.Civil.

Pede o provimento do agravo, revogando-se o acórdão em discussão e repristinando-se a decisão da 1ª instância.
Contra-alegou a "Quercus" defendendo a bondade da decisão.

1º) A competência material do Tribunal afere-se pelo pedido formulado pelo autor e pela causa de pedir que a consubstancia.
É, por isso, a petição inicial que nos dá a pedra de toque que permite decifrar a competência: tal o modo como o pedido nos aparece concretamente delineado, assim se fixa qual o tribunal competente para o conhecer.
No fundo o que sucede com a competência do tribunal, sucede também com outros pressupostos processuais (legitimidade, forma do processo), ou seja, é a instância - no seu primeiro segmento consubstanciado no articulado inicial do demandante - que determina a resolução desses pressupostos.
Daí que, in casu, a questão da competência dos Tribunais comuns ou dos Tribunais administrativos tenha que ser aferida pelo modo como a lide nos aparece delineada pela "Quercus" no seu requerimento cautelar inicial.

2º) A "Quercus" não formula nenhum pedido que contenda com qualquer relação jurídico-administrativa, o que significa que o acórdão recorrido deverá ser confirmado.
O que está em jogo na demanda cautelar da requerente "Quercus" é um pedido de preservação do meio ambiental e da qualidade de vida (consagrados constitucionalmente) que não se conexiona nem interfere com a apreciação de um acto ou de uma violação jurídico-administrativa. Na verdade, a requerente mais não peticiona senão a suspensão da actividade da requerida que ponha em causa a nidificação de certas espécies de aves, por extensão, a sua reprodução.
Porque todos os factos alinhados pela "Quercus" que consubstanciam a causa de pedir do pedido cautelar, ocorrem numa área sensível protegida a tal ponto que integra um parque natural supra-nacional, o que ela requer não é senão a preservação do equilíbrio ambiental de molde a obviar a agressões humanos que descaracterizam e desvirtuam esse mesmo equilíbrio.
A competência material dos Tribunais Administrativos é meramente especial: compete-lhes julgar aquilo que expressamente lhes é cometido e que se conexiona com a apreciação de relações jurídico-administrativas. Tal é o comando constitucional e, complementarmente, o comando legal.
Porque aquilo que a "Quercus" peticiona (e que acima se resumiu) foge totalmente a matéria substancialmente administrativa, funcionará, aqui, a regra da competência residual dos Tribunais da orgânica comum.
Aliás, e conforme salientam que o acórdão recorrido quer a "Quercus", a competência dos tribunais comuns para julgar questões jurisdicionais sobre o ambiente aparece-nos expressamente consignada na lei (art. 45º da Lei de Bases do Ambiente - Lei nº. 11/87), exactamente porque a apreciação dessas questões não envolve quase nunca a coapreciação - de forma conexa e directa - de matéria jurídico-administrativa.
Repare-se aliás, que a própria Lei que regula o direito de acção popular coonesta esta mesma leitura: o seu art. 12º interliga a acção procedimental administrativa à apreciação obrigatória da ilegalidade de actos administrativos (Lei nº. 83/95).

2º) A interpretação restritiva que a Srª. Juíza da 1ª instância faz do art. 45º da Lei de Bases do Ambiente não tem razão de ser.
Bem pode acontecer que um acto administrativo validamente conformado, viole direitos de personalidade; quando isso acontece a apreciação da validade do acto nada tem que ver com a eventual competência dos Tribunais comuns para derimirem o conflito que resultou da violação dos direitos de personalidade.
Repare-se na previsão do art. 1347º do C.Civil que contempla expressamente uma hipóteses dessas: a autorização administrativa é uma coisa, a apreciação indemnizatória dos danos pelo direito violado e a cargo da jurisdição comum, é outra coisa.
Situações similares, encontramo-las constantemente: bastará pensar no licenciamento administrativo para actividades ruidosas em meios urbanos que atingem diariamente o direito ao descanso dos cidadãos. Em todos esses casos, a violação dos direitos de personalidade (e o direito ao ambiente e qualidade de vida é um direito social) é apreciada pelos Tribunais comuns independentemente e para além da legalidade do acto administrativo de autorização que lhe está subjacente.
Condicionar, aqui, a apreciação basilar de direitos fundamentais a uma questão de legalidade de acto administrativo (que nem sequer é objecto do processo) é inadmissível porquanto - conforme escreveu o ora relator em voto de vencido - "nenhum licenciamento administrativo tem o condão de legalizar a ofensa a direitos básicos de personalidade sob pena de a definição do direito ficar confiada à opção de qualquer agente administrativo " (B.M.J., nº. 486, p. 252).

3º) Do exposto, infere-se, desde logo, que não tem cabimento no caso em apreço a aplicação do art. 414º do C.P.C.
Esta norma pressupõe, na sua previsão, a existência de uma relação jurídico-administrativa; consoante se viu, não é nada disso que a "Quercus" questiona nesta providência cautelar. Daí que o art. 414º passe á margem destes autos.

Termos em que se nega provimento ao agravo, confirmando-se o acórdão recorrido.
Sem custas.

Lisboa, 13 de Maio de 2004
Noronha do Nascimento
Moitinho de Almeida
Bettencourt de Faria