Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1267/03.8TBBGC.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO JOAQUIM PIÇARRA
Descritores: ADMINISTRADOR
DESTITUIÇÃO
SOCIEDADE IRREGULAR
ENCERRAMENTO DE ESTABELECIMENTO COMERCIAL
ABUSO DO DIREITO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Data do Acordão: 06/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS
DIREITO PROCESSUAL CIVIL
Doutrina: - Alberto dos Reis, “Código Processo Civil, Anotado”, vol. III, pág. 441.
- Baptista Machado, “Estudo sobre a tutela da confiança e venire contra factum proprium”, in Obra Dispersa, Vol. I, págs. 345 e ss.
- Castanheira Neves, Questão de Facto – Questão de Direito ou o Problema Metodológico da Juridicidade, I, Coimbra, 1967, pág. 529.
- Coutinho de Abreu, Do Abuso de Direito, Livraria Almedina, 1983, pág. 43.
- Dário Moura Vicente, “Culpa na formação dos contratos”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Volume III, Coimbra Editora, 2007, pág. 270.
- Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, Coimbra, 1989, págs. 355 e 624 e ss,
- José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, 1993, págs. 138 a 141.
- José Lebre de Freitas, A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984, págs. 55 e 56.
- Manuel António Pita, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Ferrer Correia, Orlando Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume III, Coimbra Editor, pág. 253.
- Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 230; Teoria Geral das Obrigações, I, Coimbra, 1958, pág. 63 (com a colaboração do Prof. Rui de Alarcão).
- Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Coimbra, 1985, Vol. I, pág. 583; Manual de Direito das Sociedades, I, 2ª edição, 2007, Almedina, págs. 478 e 482; Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, págs. 356 a 358.
- Vaz Serra, “Abuso do Direito”, BMJ, n.º 85, pág. 253.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 376.º, N.ºS 1 E 2, 986.º, 988.º, 1009.º, 1012.º, 1015.º E 1016.º.
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGO 36.º, N.º2.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 712.º, N.ºS 1 A 4.
Sumário :

I - A Relação tem a última palavra relativamente à fixação da matéria de facto, só a esta instância competindo, em regra, censurar, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 a 4 do art. 712.º do CPC, a decisão proferida nesse particular pela 1.ª instância, limitando-se o STJ, no exercício da sua função de tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados.
II - O STJ poderá exercer o controlo e decidir do juízo formado pela Relação sobre a matéria de facto, quando esta deu como provado um facto sem a produção da prova considerada indispensável, por força da lei, para demonstrar a sua existência, ou com violação da força probatória fixada. Nessas situações, do que se tratará é de saber se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), o que constitui matéria de direito.
III - Se a autoria de determinados documentos particulares não foi posta em causa a força probatória que deles emana é a fixada no art. 376.º, n.ºs 1 e 2, do CC, provando as declarações aí exaradas, mas deixando de fora outros factos relevantes que poderiam ser comprovados por outros meios probatórios.
IV - O abuso do direito, na configuração expressa no art. 334.º do CC, tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações. Uma modalidade especial da proibição do venire é a chamada verwirkung (ou supressio) e que se pode caracterizar do seguinte modo: a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer; b) com base nesse decurso de tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido; c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.
V - É consabido que o iter constitutivo de uma sociedade resulta de um processo ou acto complexo de formação sucessiva, por vezes moroso, tendo o legislador, ciente desta situação e encarado como normal a chamada pré-vida societária, procurado, no art. 36.º, n.º 2, do CSC, solucionar expressamente essa problemática, mandando aplicar à sociedade não formalizada o regime das sociedades civis, nomeadamente a destituição do administrador, por justa causa (art. 986.º do CC), o dever deste prestar contas aos outros sócios (art. 988.º do CC) e os termos a observar na liquidação do respectivo património (arts. 1010.º e segs. do CC).
VI - Não é pelo facto de se encontrar encerrado o estabelecimento de uma sociedade irregular, há mais de cinco anos relativamente à data da instauração da acção, que a aludida sociedade desaparece da ordem jurídica, pois há que proceder à sua dissolução e liquidação e, como resulta dos arts. 1009.º, 1012.º, 1015.º e 1016.º do CC, nestas fases o administrador continua a ter poderes, sendo, por isso, razoável, perante a persistente recusa do administrador em outorgar a escritura e avançar para o encerramento unilateral do estabelecimento, a pretensão de judicialmente o destituir, a qual mantém toda a utilidade e interesse em ser concretizada.
VII - Não pode o réu/recorrente (administrador) socorrer-se da figura do abuso do direito em ordem a paralisar a pretensão de o afastar da administração; aliás, o exercício tardio de um direito, pelo respectivo titular, em princípio só o prejudicaria a ele próprio e não a quem o direito poderá ser oposto.


Decisão Texto Integral:          

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Relatório

I AA, por si e em representação da sociedade comercial “AA e BB”, intentou acção declarativa com processo especial de destituição de administrador contra BB, alegando, em síntese, que:

Constituiu com este uma sociedade comercial, cuja escritura pública de constituição não se realizou, mas que iniciou a sua actividade durante o mês de Fevereiro de 1990 com um estabelecimento comercial de produção, comercialização, importação e exportação de produtos e derivados de madeira.

Essa sociedade irregular actua comercialmente perante terceiros em todos os seus actos e contratos, em nome da sociedade por quotas denominada CC – … Lda.

O requerido praticou diversos actos em prejuízo da sociedade, designadamente, utilizou em proveito próprio bens sociais que nunca restituiu à sociedade, não registou correctamente as vendas efectuadas, sacou letras assinando-as, sem que para tal tivesse poderes, em nome de CC, Lda, e abriu um estabelecimento comercial concorrente, utilizando para o efeito o nome do seu genro, para o qual desviou mercadorias.

No final do mês de Outubro de 1998, o requerido encerrou unilateralmente o estabelecimento, o que causou prejuízos directos à sociedade e indirectamente à requerente, que estima em mais de 250.000,00 €uros por ano.

Com tais fundamentos, concluiu por pedir o seguinte:

a) suspensão imediata do requerido do cargo de administrador da sociedade “AA e BB” até à decisão final;

b) destituição do requerido do cargo de administrador da sociedade;

c) condenação do requerido a entregar imediatamente à requerente as chaves do estabelecimento comercial da sociedade, sito na Urbanização da ..., ..., em Bragança, bem como todas as mercadorias, dinheiro, cheques, depósitos bancários e bens do imobilizado da sociedade, designadamente, todas as viaturas;

d) declaração de que a conta de depósitos à ordem existente no Crédito Predial Português de Bragança, em nome de DD e de EE pertence à sociedade “AA e BB”;

e) notificação dos referidos DD e de EE para sacarem um cheque sobre aquela conta da quantia que nela se encontrar depositada nesta data, para entrega à requerente.”

O R. contestou, por excepção, arguindo o erro na forma de processo e a ilegitimidade da A., e, por impugnação, contrapondo uma versão diferente em que refutou a constituição da sociedade irregular com a A. e sustentou que apenas acordara com FF, companheiro dela, montar um estabelecimento comercial em Bragança, agindo sempre de acordo com as orientações deste, designadamente a nível de contabilidade, sendo que todos os documentos do estabelecimento estiveram sempre ao seu dispor e a escrituração esteve sempre a cargo dele.

Com tais fundamentos, pugnou pela procedência das invocadas excepções e improcedência da acção, tendo ainda provocado a intervenção principal, como seu associado, do FF.

Foi elaborado despacho saneador, no âmbito do qual se decidiu indeferir a requerida intervenção principal, refutar a arguida excepção de ilegitimidade da A. e absolver o R. da instância, quanto aos três últimos pedidos, os atrás referidos sob as alíneas c), d) e e).

Realizada a audiência de discussão e julgamento, sem gravação dos depoimentos aí prestados, e, dirimida a matéria de facto, foi proferida sentença a destituir o R. da gerência da indicada sociedade irregular.

O R. apelou e a Relação do Porto, ainda que tenha modificado alguns pontos da matéria de facto[1], manteve o sentenciado pela 1ª instância.

Ainda inconformado, o R. interpôs recurso de revista, rematando a sua alegação, com as seguintes conclusões:

1. O documento de folhas 39 dos autos está assinado, contém a assinatura da Autora, foi por ela apresentado, e não foi de qualquer modo impugnado. Trata-se de documento particular com força probatória plena; e nele se diz que a CC Lda. de Viana do Castelo vai abrir uma filial em Bragança.

2. O documento de folhas 45 dos autos é uma acta de uma assembleia-geral dessa sociedade onde consta que autoriza uma auditoria às contas da filial de Bragança. Contém a assinatura da autora que não a impugnou de qualquer modo. Trata-se de documento com força probatória plena.

3. No documento n.° 4 junto com a contestação refere-se a Sociedade de Viana do Castelo ao estabelecimento de Bragança situado no bairro da …, como sua filial. Tal documento tem a assinatura da autora, que não a impugnou de qualquer modo. Trata-se de documento com força probatória plena.

4. O documento 7 de folhas 121, assinado pela autora, que não o impugnou, refere-se a um arrendamento que se destina a armazém da Sociedade de Viana do Castelo. Trata-se de documento com força probatória plena.

5. O documenton.° 4 junto em audiência de 14 de Maio de 2007 que é a acta n° 5 da Sociedade de Viana do Castelo referida, refere-se à "nossa filial" de Bragança" e ao BB, réu, como Director da mesma; está assinada pela autora que não impugnou assinatura, e por isso tem força probatória plena.

6. São documentos que abarcam um período de vários anos, 1990 a 1997.

7. São documentos com as características referidas no n.° 2 do artigo 363 do Código Civil, com letra e assinatura reconhecidas nos termos do artigo 374 do Código Civil, com a força probatória prevista no n.° 1 do artigo 376 do Código Civil.

8. O conteúdo destes documentos não pode ser posto em causa por quem os faz e assina, sob pena de dar cobertura legal a uma situação que nos papéis e público aparece de uma maneira, mas na realidade pretende que seja outra enganando nomeadamente o fisco.

9. Há aqui um comportamento de verdadeiro abuso do direito, pretendendo que o Tribunal legalize uma situação que ela sempre disse por escrito ser outra.

10. Não se pode apresentar uma vida às entidades públicas e ao público, de uma maneira, e depois vir ao Tribunal declarar que essa vida que mostrava era falsa e legal a que escondia. A autora abusou do direito nos termos do artigo 334 do Código Civil. Abusou do direito de acção.

11. Há igualmente abuso do direito nos termos atrás expressos pelo facto de a alegada sociedade estar inactiva desde 1998, ter sido decretado e feito o arrolamento de todos os seus bens, e pretender-se a destituição de um administrador que é fiel depositário, que nada administra, vindo a Tribunal cinco anos depois.

12. O douto acórdão do Tribunal da Relação, com todo o respeito, interpretou de forma inexacta os artigos 336, 374 e 376 do Código Civil, que por fixarem a força de determinado meio de prova, que não foi atendida, foram expressamente violados.

11-Igualmente houve incorrecta interpretação e não aplicação da alínea b) do n.° 1 do artigo 712 do Código de Processo Civil.

Pede, em consequência, a revogação do acórdão recorrido, decretando-se que os documentos acima referidos têm força probatória plena e, subsidiariamente, se assim se não entender, a sua absolvição do pedido por evidente abuso do direito da autora.

A Autora não ofereceu contra-alegação e, uma vez colhidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.

II -  Fundamentação de facto

A factualidade dada como provada, nas instâncias, é a seguinte:

1. A escritura pública de constituição de sociedade não chegou a ser outorgada.

2. A sociedade iniciou de facto a sua actividade durante o mês de Fevereiro de 1990.

3. Com um estabelecimento comercial de produção, comercialização, importação e exportação de produtos e derivados de madeira.

4. Sito na Rua …, n.º … e …, rés-do-chão, Bairro …, em Bragança.

5. O referido estabelecimento comercial desde o mês de Fevereiro de 1990 que actua comercialmente perante terceiros em todos os seus actos e contratos, em nome da sociedade por quotas denominada CC – ....

6. Que a requerente, em 19 de Julho de 1989, constituiu com o capital social de 400.000$00, dividido em duas quotas, uma do valor nominal de 380.000$00 pertencente à requerente, e outra do valor nominal de 20.000$00, pertencente a FF.

7. A CC, LDA, pessoa colectiva n.º … tem sede na Rua …, Lote …, …, em Viana do Castelo, e está matriculada na referida conservatória sob o n.º ....

8. A CC, LDA, é, por conseguinte, uma pessoa colectiva dotada de personalidade e capacidade judiciárias, legalmente constituída e devidamente colectada no Serviço de Finanças de Viana do Castelo para efeitos de pagamento de todos os impostos a que está obrigada.

9. Pela apresentação n.º 14/910422, a requerente registou o aumento do capital social da CC, LDA, para 10.000.000$00, subscrito e realizado integralmente pela requerente, que passou a ser titular de uma quota do valor nominal de 9.980.000$00.

10. Pela apresentação n.º 73/970828, a requerente registou a aquisição da quota do valor nominal de 20.000$00 que o outro sócio, FF, era titular na CC, LDA, passando a ser titular de uma quota do valor nominal de 10.000.000$00.

11. Pela apresentação n.º 74/970828, a requerente registou o aumento do capital social para 20.000.000$00, como consequência da admissão de um novo sócio, denominado GG – ..., LDA, que subscreveu e realizou uma quota do valor nominal de 10.000.000$00.

12. Actualmente, o capital social da CC, LDA, é de 99.759,58 euros, dividido em duas quotas iguais do valor nominal de 49.879,79 euros cada, pertencendo uma delas à requerente, e a outra quota a HH – PRODUTOS DE CONSTRUÇÃO, SA, anteriormente denominada GG – ..., LDA.

13. Portanto, nunca o requerido foi, nem é, sócio da sociedade CC, LDA.

14. Cujo objecto social, desde a data da sua constituição, consiste na produção, comercialização, importação e exportação de produtos e derivados de madeira.

15. Sendo a Requerente natural da freguesia de França, em Bragança, aí se deslocava todos os anos para visitar a família, por altura das festas da freguesia em Agosto e pela quadra do Natal e passagem de ano.

16. O negócio em Viana do Castelo corria bem, pois oferecia aos seus clientes produtos que estes necessitavam, de boa qualidade e a bons preços, fruto de um grande trabalho de negociação com os fornecedores.

17. Que obrigavam a requerente a frequentes deslocações, no país e no estrangeiro, e a despesas várias, investindo muito tempo e dinheiro a criar o bom nome da sociedade CC, LDA.

18. E dinamizando o know-how no ramo do comércio de derivados e produtos de madeira.

19. Por ocasião do Natal de 1989, e depois de efectuar diversos estudos de mercado, a requerente concluiu que existia mercado para um novo estabelecimento comercial de derivados e produtos de madeira no distrito de Bragança.

20. O requerido tinha três filhas ainda jovens a estudar, uma das quais no Porto.

21. O requerido tinha construído uma casa na freguesia de França, onde reside actualmente.

22. O requerido, pelo Natal de 1989, auferia apenas uma pequena gratificação mensal pelo exercício das funções de presidente na Junta de Freguesia de França, deste concelho.

23. Com pena, a requerente propôs àquele seu irmão, no final de 1989 durante a quadra do Natal e passagem de ano, a constituição de uma sociedade comercial por quotas entre os dois, para explorar o comércio por grosso e a retalho de produtos e derivados de madeira naquela cidade de Bragança.

24. Em que cada sócio subscreveria quotas iguais de 50% do capital social que viesse a ser fixado.

25. O que aconteceu durante o mês de Fevereiro de 1990.

26. Quotas essas cuja realização em dinheiro o requerido não efectuou de imediato.

27. Tendo apenas a requerente realizado a sua quota durante o mês de Fevereiro de 1990.

28. E ainda se comprometeu a emprestar à sociedade, durante o tempo necessário, sem juros, o dinheiro destinado a financiar o investimento em imobilizado e o fundo de maneio necessário, ou seja, o crédito concedido a clientes e os stocks de mercadorias, indispensáveis ao normal desenvolvimento do negócio.

29. O requerido tinha regressado de França por volta do ano de 1980 para onde, com a sua mulher, II, emigraram, e no princípio de 1990 não tinham empregos fixos.

30. Por isso, a requerente propôs que o requerido exercesse funções de gerente, naquela sociedade, contra o pagamento de uma remuneração mensal de 60.000$00, correspondente a uma média de 20 dias de trabalho por mês, à razão de 3.000$00 por cada dia de trabalho.

31. Acordaram ainda a requerente e o requerido que a sociedade, durante o ano de 1990 pagaria à II, pelo seu trabalho, a quantia líquida mensal de 30.000$00, correspondente a uma média de 20 dias de trabalho por mês, à razão de 1.500$00 por cada dia de trabalho.

32. Como o requerido não entrou com nenhum dinheiro para a sociedade, obrigou-se perante a requerente a não retirar quaisquer remunerações, nem dele nem da esposa, as quais foram utilizadas na realização do capital que o requerido subscreveu na sociedade.

33. Juntamente com os lucros a que o requerido tinha direito.

34. A requerente aceitou desde o primeiro dia da sociedade que o requerido quinhoasse em 50% dos lucros que a sociedade viesse a gerar, mesmo sem aquele nunca ter entrado com dinheiro para a sociedade.

35. E, assim, a requerente e o requerido repartiram desde o início da actividade da sociedade os lucros desta, em partes iguais.

36. Ficou também acordado que se o negócio corresse mal, as mercadorias da sociedade irregular em Bragança seriam transferidas para a sociedade em Viana do Castelo.

37. Onde seriam vendidas no estabelecimento comercial da sociedade CC, LDA, que na data exercia, como continua a exercer, a mesma actividade comercial.

38. Nesse caso, a sociedade seria liquidada sem que o requerido tivesse de cobrir os prejuízos.

39. A requerente propôs estas condições ao requerido porque este aceitou exercer as funções de gerente da sociedade na condição de exercer o cargo de gerente enquanto pudesse, pelo menos, até atingir a reforma.

40. A sociedade comercial por quotas, entre a requerente e o requerido, só não foi constituída logo no início porque aquela era proprietária e gerente da sociedade comercial por quotas CC, LDA, a quem dedicava a totalidade do seu tempo de trabalho.

41. E também porque, caso o negócio corresse mal, a requerente teria de suportar sozinha todos os prejuízos comerciais acrescidos dos custos com a liquidação do património social da sociedade.

42. Na sociedade que a requerente acordou constituir com o requerido, só aquela detinha o know how da actividade comercial que constituía, como constitui, o objecto da sociedade em causa.

43. E só aquela entrou com o capital indispensável a todo o investimento, quer em imobilizado, quer em fundo de maneio (diferença entre o saldo clientes e de mercadorias e o saldo de fornecedores).

44. E aceitou suportar sozinha os prejuízos, caso os houvessem.

45. O negócio evoluiu tal como a requerente previu e, em 1992, a sociedade já distribuiu lucros de 5.000.000$00 para cada sócio.

46. E toda a gestão e representação da sociedade era assegurada unicamente pelo requerido.

47. Que além de sócio, era também o único administrador da sociedade.

48. A assembleia-geral da sociedade CC, LDA, realizada em 27 de Janeiro de 1990, deliberou autorizar o requerido a abrir e a movimentar uma conta de depósitos à ordem, no Crédito Predial Português de Bragança, em nome de CC, LDA.

49. Conta na qual passariam a ser depositados todos os cheques que os clientes emitissem em nome de CC, LDA, pois, era esse o nome com que girava o estabelecimento comercial de Bragança pertencente à sociedade entre a requerente e o requerido.

50. O requerido abriu, pelo menos, mais duas contas de depósitos à ordem, uma na União de Bancos Portugueses de Bragança, e outra no Montepio Geral, sendo ambas em nome de ambos os sócios.

51. Onde se passaram a depositar as receitas recebidas em dinheiro ou cheques ao portador.

52. Relativamente a essas contas bancárias, a requerente nunca chegou a assinar as respectivas fichas de abertura de conta.

53. Nem nunca sacou quaisquer cheques sobre tais contas.

54. A A. não tinha acesso à conta do Montepio.

55. Pois, foi sempre o requerido, na qualidade de único gerente da sociedade, quem movimentou todas as contas bancárias.

56. E todo o negócio era de facto administrado unicamente pelo requerido.

57. No início do ano de 1994, após a aprovação das contas do ano de 1993, foi acordado entre os sócios, requerente e requerido, comprar um armazém para a sociedade.

58. Naquela data também foram feitos acertos de contas, tendo a sociedade restituído à requerente parte do dinheiro que esta tinha emprestado à sociedade.

59. Durante o ano de 1994, o requerido forneceu diverso material a uma sociedade de construção civil, a JJ, LDA, destinado à construção de um edifício na Urbanização da ..., ..., em Bragança, que aquela estava a construir.

60. E negociou com aquela empresa a compra para a sociedade da fracção “W” do referido edifício, correspondente ao armazém sito na cave do mesmo prédio pelo preço de 15.000.000$00.

61. Sendo, uma parte paga em dinheiro, saído da conta aberta no Montepio Geral, em nome dos sócios, requerente e requerido, cujo saldo era constituído unicamente por dinheiro e cheques pertencentes à sociedade e, outra parte, em permuta de fornecimentos à empresa construtora de portas, aros, rodapés, guarnições e outros materiais pertencentes à sociedade.

62. A escritura foi outorgada em … de … de 19… no Cartório Notarial de Bragança, a fls. … e …-verso do livro ….

63. Todos os anos, em 31 de Dezembro, a requerente deslocava-se a Bragança para efectuar o inventário das mercadorias existentes em armazém no estabelecimento pertencente à sociedade.

64. Os inventários foram efectuados sempre pelo Dr. FF , Técnico Oficial de Contas da CC, LDA., e pelo requerido na qualidade de sócio e único administrador da sociedade.

65. A fim de prestar contas do seu mandato, por força do artigo 36º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais (CSC) e do artigo 987º, n.º 1, do Código Civil (CC), por indicação do Dr. FF, o requerido escriturava em livros próprios, com folhas presas e numeradas.

66. Nos quais registava durante todo o ano as despesas, as compras, as vendas e o crédito concedido aos clientes.

67. Livros esses que até ao ano de 1995, eram adquiridos no início de cada ano pelo Dr. FF.

68. E, a partir do ano de 1996, passaram a ser adquiridos pelo requerido.

69. Num dos livros, o requerido escriturava todas as compras.

70. Noutro desses livros, o requerido escriturava todas as vendas.

71. Noutro dos livros, o requerido escriturava todas as despesas.

72. E no último livro, o requerido escriturava as dívidas dos clientes.

73. Não sendo necessário livro para escriturar as dívidas aos fornecedores, já que todas as compras da sociedade eram pagas em dinheiro, com o objectivo de beneficiar de descontos de pronto pagamento em média de 5%.

74. A existência e escrituração dos referidos livros, complementados com a inventariação no final do ano das mercadorias existentes em armazém permitiram determinar o lucro líquido anual da sociedade.

75. Assim aconteceu todos os anos até 1994.

76. Cujo lucro apurado no balanço sempre coincidiu com o lucro apurado na demonstração de resultados líquidos.

77. Tendo por base os elementos fornecidos pelo requerido obtidos a partir daqueles livros por ele escriturados e do inventário das mercadorias existentes em armazém em 31 de Dezembro de cada um daqueles anos.

78. Depois das actualizações, em 1995, pelo exercício das funções de administrador da sociedade, o requerido auferia a remuneração de 100.000$00 por mês, correspondente ao valor actualizado da jeira à razão de 5.000$00 por cada dia de trabalho.

79. Em Agosto de 1996, por ocasião das festas locais, o requerido disse à requerente que estava cansado de trabalhar na sociedade.

80. A requerente sugeriu-lhe então que tirasse umas férias, pois, podia deslocar um ou dois funcionários da outra sociedade que detinha, como detém, em Viana do Castelo, para assegurarem o funcionamento do estabelecimento da sociedade de Bragança, enquanto o requerido estivesse de férias.

81. O requerido calou-se e nunca mais nada disse sobre este assunto, pois, certamente a sua intenção era outra já que, nem tirou férias nem voltou a manifestar o seu cansaço à requerente.

82. No final de 1996, além do requerido e da sua esposa II, também trabalhava no escritório da sociedade, a DD, filha daqueles, que estava desempregada e com uma filha de 3 anos de idade.

83. A DD, tal como o seu pai, além de atender os clientes, efectuava alguns trabalhos de escritório.

84. Pelo menos, a partir do ano de 1996, contrariando aquilo que vinha a ser feito nos anos anteriores, por instrução do requerido, a DD registava, ora no respectivo livro, ora em folhas soltas as vendas a crédito que efectuava aos clientes.

85. Recebia dinheiro dos clientes que efectuavam pagamentos para saldar ou para abater à dívida.

86. A requerente, com receio que o requerido emitisse cheques sem cobertura sobre as contas bancárias abertas em nome da firma CC-..., em assembleia geral de sócios desta sociedade, realizada em 31 de Março de 1997, deliberou retirar a autorização ao requerido para abrir e movimentar contas bancárias em nome da referida sociedade.

87. Tanto mais que a requerente se tinha apercebido que o requerido e a filha DD, pelo menos, a partir do ano de 1996, sem qualquer justificação e contra a vontade da requerente, ora escrituravam as dívidas dos clientes no livro de vendas a crédito, ora em folhas soltas que rasgavam e deitavam para o lixo depois de receberem o dinheiro dos clientes.

88. Assim, levou a requerente a desconfiar que o irmão desviava valores da sociedade, pelo que, não aprovou as contas da sociedade apresentadas pelo requerido relativas ao ano de 1996.

89. Por ser irmão e para evitar conflitos na família, a requerente achou que o melhor era vender a sua parte na sociedade a alguém que pudesse acompanhar o negócio, ou, em alternativa, começar a intervir na administração da sociedade em Bragança.

90. Por isso, em 13 de Janeiro de 1997, a requerente publicou na página regional de Bragança do Jornal de Notícias um anúncio destinado à venda da sua parte de 50% na sociedade comercial irregular.

91. Em 20 de Março de 1997, a pedido da requerente, o Dr. FF, deslocou-se ao armazém de Bragança, para mostrar a dois potenciais interessados na compra da parte da requerente na sociedade constituída pelas dívidas dos clientes, os bens móveis e imóveis, o stock de mercadorias e todos os restantes bens, direitos e obrigações que constituíam o estabelecimento daquela sociedade.

92. Na altura, o requerido não mostrou as contas ao potencial interessado mas, na presença do Dr. FF foi dizendo ao potencial interessado que o negócio pertencente à sociedade valia mais de 200.000 contos (cerca de 1.000.000,00 de euros).

93. Pois, tinha em stock mais de 60.000 contos (cerca de 300.000,00 euros) de mercadoria, outro tanto a receber dos clientes e ainda uma carrinha, um empilhador e o prédio que valia em seu entender, pelo menos, cerca de 70.000 contos (cerca de 350.000,00 euros).

94. E continuou dizendo que o estabelecimento comercial pertencente à sociedade irregular dava em média um lucro líquido anual superior a 40.000 contos (cerca de 200.000,00 euros).

95. O Dr. FF relatou à requerente o que observou aquando da sua visita ao estabelecimento da sociedade irregular em 20 de Março de 1997, nomeadamente, os procedimentos da DD e do requerido, atrás referidos.

96. Os potenciais compradores nada mais disseram e, em face do que lhe foi relatado pelo Dr. FF, a requerente, que também tinha direito a exercer a administração da sociedade independentemente de nunca o ter feito até àquela data, decidiu acompanhar mais de perto o negócio.

97. E pretendeu assumir, de facto e de direito, a administração da sociedade de Bragança conjuntamente com o requerido.

98. Implementando a facturação por meios informáticos por forma a permitir um controlo das receitas e despesas do estabelecimento da sociedade em Bragança.

99. Assim, a requerente destacou um seu empregado, o perito contabilista Dr. FF, e mais duas pessoas com prática na elaboração de inventários para realizarem o inventário de todos os produtos existentes no estabelecimento da sociedade em Bragança.

100. Para tanto, levou um computador, uma impressora e programas de facturação e de gestão de stocks.

101. O inventário acabou por ser feito pela DD e pelo sr. EE, à data funcionário da CC, LDA, em Viana do Castelo.

102. O total das mercadorias inventariadas no armazém da sociedade irregular foi de 65.267.724$00 (cerca de 325.000,00 euros).

103. Para, assim, dar início à facturação e gestão de stocks informatizada e a uma auditoria à administração do requerido na sociedade.

104. Por mero acaso, a deslocação a Bragança em 3 de Abril de 1997, coincidiu com uma deslocação do requerido a fornecedores de Braga e de Barroselas (Viana do Castelo), para ir carregar mercadorias.

105. Pelo que, no armazém encontravam-se apenas a II, esposa do requerido, e a filha KK.

106. Foi aberta uma conta bancária em nome da filha do requerido, para gerente em conjunto com EE, empregado da CC, Lda., de Viana do Castelo, no Crédito Predial Português de Bragança.

107. O requerido BB sacou uma letra, assinando-a, em nome da sociedade CC - ....

108. A CC LDA, apenas o autorizou, desde o início da actividade da sociedade, em Fevereiro de 1990, até 31-03-1997, a abrir e a movimentar contas bancárias.

109. LL abriu um estabelecimento na Rua …, n.º … e …, r/c, no Bairro … ., em Bragança.

110. A requerente intentou uma acção judicial de inquérito que corre os seus termos sob o n.º 329/1999, do 1º Juízo desta comarca para esclarecer diversos factos directa e indirectamente relacionados com a actuação do requerido.

111. Existe um pequeno livro de apontamentos com 51 folhas, com as medidas de 31 cms de comprimento por 10,5 cms de largura, em cuja capa constam manuscritas pelo punho do requerido, as expressões APONTAMENTOS DO ARMAZÉM ….

112. E da folha 1-vº desse livro, verifica-se que foi o requerido, quem pagou à sociedade MM, LDA, sita na Zona …, a quantia de 16.965$00.

113. Verifica-se ainda que o requerido requisitou também a impressão dos livros de facturas do estabelecimento comercial concorrente.

114. E em diversas outras folhas desse livro, aparecem escriturados pela mão do requerido diversos fornecimentos de mercadorias, nomeadamente nas folhas 1-vº, 2 e 2-vº, 3 e 3-vº, entre outras.

115. Foi o próprio requerido quem, com o seu punho, preencheu o quadro 21, da declaração de início de actividade em sede de IRS, em nome do genro LL, entregue no dia 16 de Abril de 1997 na Repartição de Finanças de Bragança, para efeitos de colectar o início de actividade do dito estabelecimento comercial concorrente.

116. Lograram-se todos os esforços da requerente no sentido de outorgar a escritura pública de constituição da sociedade por quotas, para a qual a requerente já dispunha do indispensável certificado de admissibilidade de firma ou denominação social e dos estatutos sociais.

117. Pois, quando em finais do mês de Abril de 1997 a requerente apresentou ao requerido, o referido certificado de admissibilidade de firma e os estatutos com vista à constituição legal da sociedade, este recusou-se a outorgar a escritura pública de constituição da sociedade por quotas.

118. O que, aliás, facilmente se alcança também da correspondência através da qual a requerente ofereceu ao requerido a quantia de 100.000.000$00 pela quota deste, correspondente a 50% da universalidade do estabelecimento da sociedade.

119. Tendo o requerido preferido encerrar o estabelecimento para repartir com a requerente algum dinheiro e as poucas mercadorias (as obsoletas) que ele não conseguiu vender.

120. Mesmo sem a indispensável deliberação da assembleia-geral ou decisão judicial, o requerido encerrou o estabelecimento contra a vontade da requerente, não lhe tendo entregue as chaves para que esta pudesse dar continuidade ao negócio.

121. Alegando apenas pretender fazer a divisão das mercadorias e do dinheiro existente à data do encerramento, o que veio a fazer em 31 de Outubro de 1998.

122. Recusou-se a prestar contas da sociedade com a requerente a partir do ano de 1996, inclusive.

123. Não organizou os balanços anuais, obrigatórios nos termos dos artigos 62º e 63º do CCP.

124. Em 12/09/97, o estabelecimento concorrente forneceu 9 chapas de contraplacado marítimo de 2,5x1,25x0,10, no valor total de 76.500$00, ao Sr. NN, emigrado em França, onde reside na …, Avenue … – … …, e quando em Portugal na freguesia de …, do concelho de Bragança.

125. Tudo como consta da factura n.º …, relativa ao referido fornecimento.

126. A requerente ainda não aprovou as contas prestadas pelo requerido dos anos de 1994, 1995 e 1996.

127. E o requerido nunca prestou contas à requerente a partir do ano de 1996.

128. Desde o início da sua actividade, em Fevereiro de 1990, que a sociedade da requerente com o requerido apresentou lucros em crescimento.

129. Uma vez que as contas ainda não estavam aprovadas, e a título de adiantamento sobre os lucros do ano de 1996, o requerido entregou ao Dr. FF, para que fossem entregues à requerente, vários cheques no valor global de 12.000 contos.

130. A AA é, e apenas, sua irmã, e nessa qualidade, por viver em comunhão de vida com o Dr. FF desde cerca 1988, trouxe este ao convívio do contestante, como seu cunhado se comportando.

131. FF foi apresentando como pessoa conhecedora do negócio do ramo de madeiras, e com grandes conhecimentos de contabilidade.

132. Porque em Bragança o ramo não estava devidamente explorado, houve conversas entre FF, a requerente, o requerido e esposa deste, no sentido de montarem um estabelecimento comercial juntos.

133. Foi arrendado o r/c do nº … da Rua H do Bairro da …, da cidade de Bragança, e posteriormente o nº 19 daquela mesma rua.

134. Os contratos de arrendamento foram efectivamente lavrados em nome de “CC”, …., L.da, com sede em Viana do Castelo.

135. Abriu-se e entrou em funcionamento o estabelecimento.

136. O estabelecimento iniciou a sua actividade durante o ano de 1990, e o requerido BB exerceu o seu trabalho nesse estabelecimento comercial.

137. Todo o fornecimento de materiais para venda no estabelecimento de Bragança era facturado e comprado em nome de “CC”, …, L.da, com sede em Viana do Castelo.

138. Também os documentos de venda do estabelecimento de Bragança eram pertencentes à “CC”, timbrados e carimbados com o nome da “CC”, de Viana do Castelo.

139. Todos os documentos do estabelecimento de Bragança eram pertença da “CC” de Viana do Castelo, timbrados e tinham o seu nome.

140. Os documentos relativos à escrituração do estabelecimento de Bragança eram levados para Viana do Castelo, para entrarem na contabilidade da “CC”, de Viana do Castelo.

141. FF orientava a escrita e a contabilidade, levando os documentos para Viana do Castelo.

142. Havia já anos que o BB tinha regressado ao País, quando do início da actividade.

143. Era um ex-emigrante com uma boa casa, carro, com algumas terras, filhas a estudar e outras já estudadas, com algum dinheiro de lado, para a sua vida normal, mas só com a escolaridade obrigatória, a quarta classe.

144. Começou a funcionar com os produtos documentados em nome da “CC” de Viana do Castelo.

145. O requerido pôs o seu trabalho, a sua força de trabalho.

146. As vendas e os lucros do negócio, nos primeiros anos, eram para pagar os produtos fornecidos, contabilizando o requerido BB os seus salários, que não levantava nem recebia, até igualar o investimento efectuado pela requerente.

147. Que girava com todos os papéis, facturas e outros, em nome da “CC” de Viana do Castelo, sendo esta que os recebia para organizar a contabilidade.

148. O BB regressou de França em 1983.

149. Além do mais, trabalhava na agricultura e fazia pequenas obras de construção civil, por conta própria e à jeira, como é hábito nas aldeias.

150. O Dr. FF era o Técnico de contabilidade responsável pelo mesmo.

151. Por essa função é que o BB receberia a quantia de 60.000$00 e a sua esposa, com a função de auxiliar no armazém, a quantia de 30.000$00 mensais, e isto logo que o estabelecimento abriu.

152. As mercadorias eram facturadas em nome da “CC”.

153. A requerente foi professora de Francês até 1989, e só começou a perceber, na realidade, do negócio de madeiras após a constituição da CC, em Julho de 1989.

154. Existia uma conta em nome do requerido BB e da requerente na União de Bancos Portugueses.

155. A A. tinha conhecimento e acesso aos movimentos da conta que tinha na União de Bancos em conjunto com o requerido BB.

156. Com os lucros do comércio havidos até 1995, foi acordado entre todos comprar um armazém.

157. O armazém sito em Vale D’Álvaro foi comprado pelo preço de 14.000.000$00.

158. Uma parte foi paga em dinheiro e a outra pelo fornecimento de materiais.

159. O armazém foi comprado em nome do BB e da AA, e não de qualquer Sociedade.

160. Foi por sugestão do requerido BB, que quis proteger a requerente do ponto de vista patrimonial, face à ligação que a mesma tinha com FF.

161. A documentação relativa ao estabelecimento estava a cargo do Dr. FF, e que era levada para Viana do Castelo.

162. O Dr. FF tinha o controlo da escrituração e levava os documentos para Viana do Castelo para fazer a escrita.

163. O BB recebia cerca de 100 contos mensais, pelo seu trabalho.

164. No final de 1996 a DD trabalhava no escritório do estabelecimento de Bragança, mas tinha contrato de trabalho com a CC de Viana do Castelo, que fazia os respectivos descontos para a Segurança Social, sob orientação e direcção do Dr. FF.

165. DD fazia o trabalho normal de escritório.

166. O Dr. FF apenas orientava a escrita como técnico de contas.

167. O requerido BB ajudou o genro LL a preencher alguns impressos burocráticos.

168. Em 1997, foi apresentada uma minuta para constituição da sociedade, já perto do encerramento do estabelecimento comercial e tal minuta apresentava o acordo inicial quanto à constituição irregular que existia.

III – Fundamentação de direito

A apreciação e decisão do presente recurso, delimitado pelas conclusões da alegação do Recorrente (art.ºs 684º, n.º 3 e 690º, n.º 1 do Cód. Proc. Civil[2]), passam pela análise e resolução das seguintes questões por ele colocadas a este tribunal:
q  Violação das regras de direito probatório e modificação da matéria de facto
q  Abuso de Direito

Apreciemos, então, separadamente cada uma dessas questões.

1 - O Recorrente pretende, ainda que de forma indirecta, que se dê por assente que o estabelecimento de Bragança era uma filial da CC – …, Ldª, sedeada em Viana do Castelo, e consequentemente não provados os factos atinentes à constituição da sociedade irregular com a Recorrida, socorrendo-se para o efeito da força probatória conferida a diversos documentos juntos.

Como se sabe, radica nas instâncias a competência para apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio e cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, salvo situações de excepção legalmente previstas, conhecer apenas da matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova (art.º 722.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil) podendo, no limite, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (art.º 729.º, n.º 3, do Cód. de Proc. Civil).

A Relação tem, assim, a última palavra relativamente à fixação da matéria de facto, só a esta instância competindo, em regra, censurar, através do exercício dos poderes que lhe são conferidos pelos n.ºs 1 e 4 do artº 712.º do Cód. Proc. Civil, a decisão proferida nesse particular pela 1.ª instância, limitando-se o Supremo Tribunal de Justiça, no exercício da sua função de tribunal de revista, a definir e aplicar o regime ou enquadramento jurídico adequado aos factos já anterior e definitivamente fixados (cfr. art.º 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, art.º 33º da Nova Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – aprovada pela Lei n.º 52/2008, de 28 de Agosto, e art.ºs 729º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Proc. Civil).

Pese embora as apontadas limitações, no que respeita à matéria factual, o Supremo Tribunal de Justiça tem competência para apreciar e decidir a questão suscitada pelo Recorrente, dado que o art.º 722º, n.º 2, do Cód. Proc. Civil expressamente admite o conhecimento pelo Supremo de questões referentes a pontos de facto nos casos de “ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”. Sobre esses aspectos relativos à matéria probatória, o Supremo Tribunal de Justiça poderá exercer o controlo e decidir do juízo formado pela Relação sobre a matéria de facto, quando esta deu como provado um facto sem a produção da prova considerada indispensável, por força da lei, para demonstrar a sua existência, ou com violação da força probatória fixada. Nessas situações, do que se tratará é de saber se a Relação, ao proceder da forma como o fez, se conformou, ou não, com as normas que regulam tal matéria (direito probatório), o que, no fundo, constitui, na realidade, matéria de direito, caindo, por isso, na esfera de competência própria e normal do Supremo Tribunal de Justiça.

Esclarecido isto e retornando ao caso em apreço vê-se que o litígio entre o Recorrente e a Recorrida centra-se essencialmente na controvérsia relativa ao giro comercial do estabelecimento sedeado em Bragança, à frente do qual se encontrava o Recorrente. Para a Recorrida, embora o dito estabelecimento funcionasse formalmente como filial da “CC – …, Ldª”, sedeada em Viana do Castelo, a actividade nele desenvolvida estava inserida no projecto societário que encetara com o Recorrente, enquanto este, ao invés, rejeita processualmente a existência da sociedade irregular.

As instâncias acolheram, nesse ponto nevrálgico do litígio, a versão factual delineada pela Recorrida e refutaram a trazida ao processo pelo Recorrente, baseando-se nos depoimentos não gravados de várias testemunhas e documentos juntos. No entanto, o Recorrente continua a persistir em não aceitar tal versão e, ancorado na força probatória que diz terem determinados documentos, pugna pelo afastamento da referida versão factual.

O primeiro dos documentos de que se socorre e que constitui fls. 39 dos autos é cópia da acta n.º 3 de uma assembleia-geral da “CC – ...”, onde consta ter sido deliberado: “autorizar o Sr. BB a movimentar a conta de depósitos à ordem que a sociedade vai abrir na filial do Crédito Predial Português em Bragança”. Também o segundo documento em que se abona e que constitui fls. 45 dos autos é cópia da acta n.º 29 de uma outra assembleia-geral da mesma sociedade, realizada em 30.03.1997, dela constando ter sido deliberado, no ponto 2: “ Autorizar o Dr. FF a verificar e auditar as contas da filial da sociedade em Bragança.”

Por seu turno, o documento n.º 4 junto com a contestação e que constitui fls. 118 foi emitido pela referida sociedade e nele igualmente se alude ao estabelecimento de Bragança como sua filial, respeitando o de fls.121 a cópia de contrato de arrendamento datado de 25.03.1995 em que figuram como 1ºs outorgantes e proprietários a A e o R e como 2ª outorgante a sociedade CC, constando da cláusula 2ª que o locado se destina a escritórios e armazém da sociedade arrendatária.

Além desses documentos, o Recorrente estriba-se ainda no que foi junto na audiência de 14.05.2007 (fls. 1124 e verso) e que é cópia da acta n.º 5 da assembleia-geral da CC, realizada em 02.08.1990, dela constando que Recorrida, sócia dessa sociedade e que presidiu à assembleia, declarou que: “ existe um armazém na rua H, sita no Bairro da … em Bragança que reúne as condições mínimas de funcionamento da nossa filial de Bragança e a senhoria pedia trinta mil escudos de renda mensal. Por outro lado, o contrato de arrendamento poderia ser outorgado pelo Sr. BB pois este vivendo em Bragança e sendo director da filial reúne todas as condições para a outorga da escritura de arrendamento.

A autoria de tais documentos particulares não foi posta em causa e a força probatória que deles emana, a fixada no art.º 376º, n.ºs 1 e 2, do Cód. Civil, conduziu a que as instâncias dessem como provados os factos elencados sob os n.ºs 5, 48, 49, 134, 137, 138, 139 e 140, que contemplam essa vertente factual, que a Recorrida expressamente aceitou desde a primeira hora.

Todavia, o valor probatório desses documentos queda-se por aí, ou melhor, como refere o Prof. José Lebre de Freitas, «circunscreve-se às declarações (de ciência ou de vontade que neles constam como feitas pelo respectivo subscritor», sendo que a prova plena por eles estabelecida «não respeita ao da sua validade ou eficácia»[3]. E Igual entendimento se retira das sábias palavras do Prof. Manuel de Andrade[4] que, reportando-se à força probatória deste tipo de documentos, escreve «uma vez estabelecida a autenticidade da letra e da assinatura…fica apurado que o contexto do documento procede a quem é atribuído e provado que essa pessoa emitiu as declarações lá documentadas».

Significa isto que os documentos referenciados pelo Recorrente provam apenas as declarações atribuídas à Recorrida que se encontram espelhadas nos ditos pontos do elenco factual, mas deixam de fora os outros factos relevantes atinentes ao invocado projecto societário que poderiam ser comprovados por outros meios probatórios[5].

Deste modo, contrariamente ao que sustenta o Recorrente, as instâncias não se encontravam vinculadas a dar como assente a sua versão factual sobre o litígio, com base nos documentos que indicou, e nada impedia que acolhessem a apresentada pela Recorrida, abonando-se, para o efeito, na livre apreciação e valoração dos depoimentos testemunhais prestados e outros documentos juntos (art.º 655.º n.º 1, do Código do Processo Civil).

Não ocorre, assim, a invocada violação do direito probatório em que o Recorrente se estribou, sendo certo também que a Relação respeitou integralmente o preceituado no art.º 712º n.º 1, alíneas a) e b), do Cód. Proc. Civil, pois não existindo gravação dos depoimentos prestados não tinha ao seu dispor todos os elementos de prova que serviram de base à decisão da 1ª instância e não podia, ao invés do que defende o Recorrente, alterar a matéria da facto em ordem a contemplar a sua versão sobre o litígio, na medida em que é inviável concluir que os elementos fornecidos pelo processo impõem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas.

Pese embora não possamos reapreciar a prova produzida, não resistimos, perante a veemência e continuada persistência do Recorrente em não aceitar a existência da actividade societária dada como assente pelas instâncias, em lembrar-lhe o teor do documento que constitui fls. 163 e 164 e reproduz cópia de uma carta, datada de 24.12.97, que enviou à Recorrida dizendo: “ O atraso que tem havido nas negociações para liquidação da nossa sociedade irregular não são da minha responsabilidade”. E mais esclarecedor é ainda o teor de fls. 166 e 167 que reproduz outra carta enviada pelo mesmo àquela, com data de 24.12.97, onde consta o seguinte: “Dando satisfação ao solicitado na carta de V.Exª datada de 18 do mês em curso, informo que a data mais propícia para ser dado início à inventariação das existências de mercadoria nos armazéns da nossa sociedade irregular, com a consequente elaboração das contas do ano de 1997, será o dia 12 de Janeiro de 1998, pelas 9 horas.

Em suma, improcedem em toda a linha as conclusões do Recorrente, no tocante à pretensa violação das regras de direito probatório e não deve ter lugar qualquer alteração da matéria de facto.

2 - Entende o Recorrente, por fim, que o acórdão recorrido, ao refutar o abuso de direito por banda da Recorrida, não fez correcta aplicação do disposto no art.º 334º do Cód. Civil que considera “ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

A doutrina do abuso de direito tem, para o Prof. Manuel de Andrade[6], a função de obstar a “injustiças clamorosas”, a que poderia conduzir, em concreto, a aplicação dos comandos abstractos da lei, existindo, assim, abuso de direito quando um certo direito, admitido como válido em tese geral, surge, num determinado caso concreto, exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça.

Igual concepção adopta o Prof. Vaz Serra[7], para quem “de um modo geral, há abuso de direito quando o direito, legítimo (razoável) em princípio, é exercido em determinado caso de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante”.

Por sua vez, para o Prof. Coutinho de Abreu[8]«há abuso de direito quando um comportamento, aparentando ser exercício de um direito, se traduz na não realização dos interesses de que esse direito é instrumento e na negação de interesses sensíveis de outrem» e para o Prof. Castanheira Neves[9]«o abuso de direito é um princípio normativo, um postulado axiológico-normativo do direito positivo que não precisaria sequer de ser afirmado em lei para se aceitar a sua vigência».

Esse princípio tem, porém, consagração legal, repousando no seio do já referido art.º 334º do Cód. Civil e envolve o controlo institucional da ordem jurídica no que tange ao exercício dos direitos subjectivos privados.

A figura do abuso do direito surge, assim, como um modo de adaptar o direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam, por forma considerada justa pela consciência social, em determinado momento histórico, ou obstando a que, observada a estrutura formal do poder conferido por lei, se excedam manifestamente os limites que devem ser observados, tendo em conta a boa fé e o sentimento de justiça em si mesmo.

Pode dizer-se que o abuso do direito, na configuração expressa no art.º 334º do Cód. Civil tem um carácter polimórfico, sendo a proibição do venire contra factum proprium uma das suas manifestações. A proibição do venire corresponde à primeira parte da formulação legal: é ilegítimo o exercício de um direito quando o seu titular exceda manifestamente os limites da boa fé. Trata-se portanto de uma aplicação do princípio da responsabilidade pela confiança, de uma concretização do princípio ético-jurídico da boa fé.

Como sublinha o Prof Baptista Machado[10], «o princípio da confiança é um princípio ético-jurídico fundamental e a ordem jurídica não pode deixar de tutelar a confiança legítima baseada na conduta de outrem. Poder confiar é uma condição básica de toda a convivência pacífica e da cooperação entre os homens; e assegurar expectativas é uma das funções primárias do direito».

Nos casos em que é aplicável a proibição do venire, “a «responsabilidade pela confiança» funciona em regra em termos preventivos, paralisando o exercício de um direito ou tornando ineficaz aquela conduta declarativa que, se não fosse contraditória com a conduta anterior do mesmo agente, produziria determinados efeitos jurídicos”.

Uma modalidade especial da proibição do venire – se não mesmo uma figura autónoma na fisionomia polimórfica do abuso do direito – é a chamada «verwirkung» e também apelidada supressio[11]e que, ainda segundo o aludido Mestre, se pode assim caracterizar:

a) o titular de um direito deixa passar longo tempo sem o exercer;

b) com base neste decurso de tempo e com base ainda numa particular conduta do dito titular ou noutras circunstâncias, a contraparte chega à convicção justificada de que o direito já não será exercido;

c) movida por esta confiança, essa contraparte orientou em conformidade a sua vida, tomou medidas ou adoptou programas de acção na base daquela confiança, pelo que o exercício tardio e inesperado do direito em causa lhe acarretaria agora uma desvantagem maior do que o seu exercício atempado.

No caso, o abuso de direito derivaria, segundo o Recorrente, por um lado do facto da Recorrida ter feito constar dos já citados documentos uma determinada situação que, agora, diz ser outra e, por outro, por o ter accionado judicialmente só passados cerca de 5 anos sobre o termo da actividade do estabelecimento.

Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa fé que há-de emergir o “venire” e a chamada «verwirkung» ou também apelidada supressio.

A boa fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art.º 762º, n.º 2, do Cód. Civil) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte[12]. Circunscrevendo mais o problema, dir-se-á que se trata de saber se a conduta passada da Recorrida, servindo de referência à conduta actual e sob valoração negativa, deslegitima esta última, ofendendo de tal modo aqueles valores que o direito de agora accionar o Recorrente deve ter-se como perdido ou precludido.

Como os factos provados abundantemente atestam, o Recorrente e a Recorrida acordaram em desenvolver um projecto societário que existiu, na realidade, mas acabaram por não o formalizar com a necessária escritura pública (art.º 7º, n.º 1, do CSC).

Ora, é consabido que o iter constitutivo de uma sociedade «resulta de um processo ou acto complexo de formação sucessiva, por vezes moroso», e, em regra, ocorre «todo um período preparatório, em que se produzem já actos referentes à sociedade, mas em que esta ainda não atingiu o momento jurídico da sua perfeição»[13]. Aliás, ciente desta situação e encarando como normal a chamada pré-vida societária, o legislador procurou no art.º 36º, n.º2, do CSC, solucionar expressamente essa problemática, mandando aplicar à sociedade não formalizada o regime das sociedades civis[14], nomeadamente a destituição do administrador, por justa causa (art.º 986º do Cód. Civil), o dever deste prestar contas aos outros sócios (art.º 988º do Cód. Civil) e os termos a observar na liquidação do respectivo património (art.ºs 1010º e ss do Cód. Civil).

Deste modo, sendo tal situação considerada como normal pelo legislador, que lhe deu expresso tratamento jurídico, não parece que se deva chancelar como abusiva a conduta da Recorrida ao desenvolver temporariamente o projecto societário acordado com o Recorrente, sob a capa da CC, sendo certo que a eventual infracção tributária que tal envolva foi já denunciada, como bem sabe e se alcança de fls. 161, e, de qualquer forma, não tem o condão de afastar a disciplina imposta pelo art.º 36º, n.º2, do CSC.   

Além disso, em face da recusa do Recorrente em outorgar a escritura e avançar para o encerramento unilateral do estabelecimento, é de considerar perfeitamente normal e razoável (logo, não abusiva) a conduta da Recorrida traduzida na exigência de prestação de contas e pedido de destituição do mesmo do cargo de administrador da sociedade, tanto mais que, como bem equacionou o acórdão recorrido, nisso convergindo com a 1ª instância, ainda que discordasse da proposta que lhe fora apresentada para os termos da escritura de constituição da sociedade, «toda a actuação do Recorrente que culminou com o encerramento do estabelecimento que era a principal actividade da sociedade e vinha a produzir lucros, é manifestamente ilícita, culposa e causadora efectiva de danos».

Essa conduta fez desaparecer pressupostos pessoais e reais, essenciais ao desenvolvimento da relação societária em questão, pois revelam a óbvia violação dos deveres de lealdade, de fidelidade e de boa gestão, bases de qualquer relação associativa, gerando evidente quebra de confiança aos olhos de um sócio comum, colocado na situação do concreto sócio atingido (a Recorrida).

Também por, só passados cerca de 5 anos, a Recorrida o ter accionado judicialmente não pode ser tido como abusivo, na medida em que esta tentou extrajudicial e amistosamente solucionar o problema, tendo decorrido entre ela e o Recorrente negociações nesse sentido que se prolongaram, como bem o revela a já referida correspondência trocada entre os mesmos, e só avançou para a via judicial, depois de constatar que se frustrara a via amistosa a que o Recorrente inicialmente se mostrou até aberto.

Acresce que a Recorrida nunca fez crer ou deu a entender ao Recorrente que estaria na disposição de abdicar dos seus direitos societários, pelo que nada tem de ilegítimo a propositura desta acção, apesar de terem decorrido cinco anos sobre o encerramento do estabelecimento. Mais, não é por este se encontrar encerrado que a aludida sociedade irregular desapareceu da ordem jurídica, pois há que proceder à sua dissolução e liquidação e, como resulta dos art.ºs 1009º, 1012º, 1015º e 1116º do Cód. Civil, nestas fases o administrador continua a ter poderes, sendo, por isso, razoável, perante a persistente recusa do Recorrente, a pretensão de judicialmente o destituir, pretensão essa que mantém ainda toda a actualidade e interesse em ser concretizada.

Não há, assim, como bem ajuizaram as instâncias e já atrás se realçou, exercício abusivo de qualquer direito por banda da Recorrida e não pode consequentemente o Recorrente lançar âncora à figura do abuso de direito em ordem a paralisar a pretensão por ela formulada de o afastar da administração. Aliás, o exercício tardio de um direito, pelo respectivo titular, em princípio só o prejudica a ele próprio e não a quem o direito poderá ser oposto. Para se poder concluir o contrário, algo mais teria de estar alegado e comprovado, o que no caso não sucede.

Nesta conformidade, improcede toda a retórica argumentativa arquitectada, a tal propósito, pelo Recorrente, a quem não assiste razão para se insurgir contra o decidido pela Relação, que não merece os reparos que lhe aponta e, pelo contrário, deve ser inteiramente sufragado.

IV – Decisão

Nos termos expostos, decide-se negar a revista e confirmar consequentemente o acórdão recorrido.

Custas pelo Recorrente.


*

Lisboa, 12 de Junho de 2012


António Joaquim Piçarra (relator)


Sebastião Póvoas


Moreira Alves

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[1] E, além disso, negou provimento a agravo interposto pelo R. e não tomou conhecimento de dois interpostos pela A.(vide fls.1620 a 1650).
[2] Na versão anterior à introduzida pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto, uma vez que o processo se encontrava já pendente a 01 de Janeiro de 2008, data em que entrou em vigor tal diploma legal (cfr. os seus art.ºs 11º, n.º 1, e 12º, n.º 1).
[3] In  “ A Falsidade no Direito Probatório, Almedina, 1984”, págs. 55 e 56.
[4] In “Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 230.
[5] Prof. Alberto dos Reis, in “Código Processo Civil, Anotado”, vol. III, pág. 441, escreve, a este propósito, que «o documento prova o facto representado, prova a relação jurídica estabelecida, não prova outros factos que podem ter relevância jurídica quanto a essa relação».
[6]in “Teoria Geral das Obrigações”, I, Coimbra, 1958, pág. 63 (com a colaboração do Prof. Rui de Alarcão).
[7] In Abuso do Direito”, BMJ, n.º 85, pág. 253.
[8] Cfr, Do Abuso de Direito”, Livraria Almedina, 1983, pág. 43.
[9]In Questão de facto – questão de direito ou o problema metodológico da juricidade, I, Coimbra, 1967, pág. 529.
[10]Estudo sobre a Tutela da confiança e venire contra factum proprium, in Obra Dispersa, Vol. I, págs. 345 e ss. 
[11]Cfr.., sobre esta modalidade de abuso de direito e sua caracterização, Prof. António Menezes Cordeiro, Revista da Ordem dos Advogados, ano 65, Setembro de 2005, págs. 356 a 358. 
[12]Cfr, a este propósito, Prof. Menezes Cordeiro, Da boa fé no Direito Civil, Coimbra, 1985, Vol. I, pág. 583, Prof. Jorge Sinde Monteiro, Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações, Coimbra, 1989, págs. 355 e 624 e ss, e Prof. Dário Moura Vicente, culpa na formação dos contratos, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil, Volume III, Coimbra Editora, 2007, pág. 270.
[13] Cfr, a este propósito, Prof, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume IV, Sociedades Comerciais, 1993, pág. 138.
[14]Cfr, a este propósito, Prof, José de Oliveira Ascensão, obra citada, págs. 139 a 141, Prof. Meneses Cordeiro, Manual de Direito das Sociedades, I, 2ª edição, 2007, Almedina, págs. 478 e 482, e Prof. Manuel António Pita, Nos 20 anos do Código das Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Ferrer Correia, Orlando Carvalho e Vasco Lobo Xavier, Volume III, Coimbra Editor, pág. 253.