Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3941/20.5T8STB-A.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: PRAZO DE PRESCRIÇÃO
OBRIGAÇÃO CARTULAR
LIVRANÇA EM BRANCO
PREENCHIMENTO ABUSIVO
ABUSO DO DIREITO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVAL
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EXIGIBILIDADE DA OBRIGAÇÃO
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
BOA FÉ
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM
SUPRESSIO
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A questão da prescrição do direito cartular não deve ser confundida com a questão do preenchimento abusivo da data de vencimento da obrigação cartular no caso de livrança em branco.

II. As duas questões surgem frequentemente “entrelaçadas”, porque o (eventual) preenchimento abusivo tem repercussões na contagem do prazo de prescrição do direito: esta contagem inicia-se na data que deveria ter sido aposta na livrança como data de vencimento e não na data que foi (indevidamente) aposta.

III. A data em que ocorre o facto relevante para a exigibilidade da obrigação subjacente (tipicamente, o incumprimento definitivo) apenas marca o momento em que o portador fica constituído no dever de preencher a livrança em branco quando isso resulte do que foi acordado entre os intervenientes (do sentido que era possível deduzir tendo em conta as regras de interpretação previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC), do que seria previsivelmente acordado se eles não tivessem omitido aquele ponto ou do que seria imposto pela boa fé, nos termos do artigo 239.º do CC.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO


1. AA, executado nos autos principais de execução para pagamento de quantia certa que lhe moveu o Novo Banco, S.A., veio deduzir oposição à execução mediante embargos de executado, pedindo a extinção da execução, alegando para tanto, em síntese:

(i) o abuso de direito por parte do exequente;

(ii) a prescrição do direito cartular;

(iii) a prescrição dos juros; e

(iv) o preenchimento abusivo da livrança exequenda quanto ao montante em dívida.


2. Regularmente notificado, o embargado contestou, defendendo-se por impugnação e pugnando pela total improcedência dos embargos.


3. O Tribunal de 1.ª instância proferiu despacho que dispensou a realização de audiência prévia a que se seguiu a elaboração de despacho saneador-sentença que culminou com o seguinte dispositivo:

Face ao exposto, julgo a presente oposição à execução mediante embargos de executado deduzida pelo Embargante AA contra o Embargado NOVO BANCO, S.A. totalmente procedente e, em consequência, determino a total extinção da execução.

Fixo à causa o valor de € 662.293,39 (cfr. arts. 304.°, n.° 1 e 306.°, n.°s 1 e 2, do Cód. Proa Civil).

Custas pelo Embargado.

Registe e notifique”.


4. Inconformado, veio o embargado apresentar recurso de apelação.


5. Em 28.10.2021 proferiu o Tribunal da Relação ... um Acórdão em cujo dispositivo pode ler-se:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal em conceder provimento ao presente recurso de Apelação apresentado por Novo Banco, S.A. e em consequência decidem:

a) Revogar a sentença recorrida, declarando improcedentes os embargos de executado no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada e aqui reapreciada devendo os mesmos prosseguirem os seus termos no Tribunal recorrido para apreciação das demais questões neles suscitadas pelo Embargante/Apelado, mais determinando o prosseguimento da acção executiva declarada extinta na sentença recorrida.

b) Fixar as custas a cargo do Apelado, nos termos do disposto no artigo 527°, n° 1 e 2, do CPC”.


6. Não se conformando, vem o executado / embargante interpor recurso de revista, pedindo a revogação do Acórdão e, consequentemente, a procedência dos embargos e a extinção da execução.

São as seguintes as conclusões da alegação de recurso:

A. Salvo o muitíssimo respeito devido, o aresto em crise contém diversos indícios de que o Tribunal a quo não protagonizou um julgamento ponderado, individualizado e detalhado do caso sub judice.

B. Com efeito, no acórdão transcrevem-se conclusões de um suposto Embargado que, na verdade, não pertencem aos presentes autos. As referidas conclusões transcritas para o aresto em crise respeitam a consumos de água e eletricidade, a atas e a deliberações sociais, sendo que o recurso decidido trata de saber se havia ou não ocorrido a prescrição de uma livrança em branco.

C. Já no âmbito da fundamentação de Direito, o douto aresto incorre num lapso quanto ao sentido do argumento do Recorrido. Não é exato que, como se afirma no acórdão, o Recorrido sustente que a dissolução/extinção da pessoa coletiva torna imprestável a livrança em branco por esta subscrita, não podendo a mesma ser utilizada designadamente contra os avalistas. Antes, o Recorrido defende que a dissolução/extinção da sociedade devedora e subscritora da livrança implica o incumprimento definitivo da obrigação subjacente e marca o momento do vencimento da livrança em branco, devendo contar-se, pelo menos, a partir dessa data os três anos para executar os obrigados cambiários, sob pena de prescrição do título de crédito.

D. Finalmente, cumpre notar que a fundamentação/discussão de Direto vertida no acórdão se resume a uma remissão para outros acórdãos, não se demonstrando, sequer, a coincidência casuística justificante da analogia, abdicando-se absolutamente da ponderação da bondade dos argumentos aduzidos pelo Recorrido/Embargante.

E. No que ao vencimento das livranças em branco diz respeito, no caso sub judice, a questão que se coloca é a seguinte: na falta de qualquer estipulação no pacto de preenchimento, o vencimento de uma livrança em branco ocorre, no máximo, com o incumprimento definitivo da obrigação subjacente, ou, pelo contrário, pode o beneficiário da livrança, que seja sujeito da relação material subjacente, atribuir-lhe a data de vencimento que entender?

F. A LULL não resolve o problema. No seu artigo 10.º, prevê-se a admissibilidade das livranças em branco. No artigo 70.º dispõe-se sobre a prescrição, contando-a desde a data do vencimento. Todavia, nenhum preceito da LULL determina o momento em que ocorre o vencimento das livranças em branco.

G. Nos casos em que o pacto de preenchimento é omisso quanto à data de vencimento da livrança em branco, deixar a fixação do vencimento ao critério do beneficiário da livrança não constitui o mais justo equilíbrio de interesses, sendo mesmo ilegal.

H. A vigorar tão extensa permissão, através da subscrição da livrança em branco as partes estariam criando um direito imprescritível ou poriam o devedor na posição de renunciar antecipadamente à prescrição, o que violaria o disposto nos artigos 300.º e 302.º CC.

I. Seria aliás nula, por violação dos mesmos preceitos legais, a convenção constante do pacto de preenchimento em que se concedesse ao credor a faculdade de determinar o vencimento quando entendesse.

J. Adicionalmente, como sucede com todos os direitos, o exercício do direito de preenchimento da livrança está limitado pela boa-fé (artigo 334.º CC). Ora, reconhecer ao beneficiário da livrança a faculdade de determinar a seu bel-prazer a data de vencimento da livrança corresponderia a desconsiderar totalmente os princípios da segurança e da estabilidade jurídicas que tutelam a posição dos devedores cambiários, pois nunca seria determinável o conteúdo dos direitos incorporados no título de crédito e deixaria os devedores cambiários à mercê do arbítrio do beneficiário da livrança.

K. Pelo que, salvo melhor entendimento, deve de ser imposto um limite ao exercício do direito de fixar o vencimento da livrança em branco, ou seja, deve ser criada uma regra que não deixe este aspeto crucial no total arbítrio do beneficiário da livrança.

L. Assim acontece noutros ordenamentos jurídicos, como no inglês [§20(2) do Bills of Exchange Act 1882, aplicável às livranças ex vi §89(1)], no qual se exige que o preenchimento da livrança em branco tem de ser realizado dentro de um prazo razoável, ou no italiano (artigo 14.º do Regio Decreto 5 diciembre 1933, n. 1669), onde se estipula que o portador perde o direito de preencher a letra de câmbio em branco três anos após a data da respetiva emissão.

M. Atualmente, a livrança é utilizada sobretudo para garantia em operações bancárias, sendo emitida em branco não por capricho do credor ou obsequiosidade do devedor, mas antes porquanto apenas desse modo pode cumprir integralmente a sua função de garantia, uma vez que nestas operações se desconhece se, quando e por quanto o devedor entrará em incumprimento.

N. Excluindo as situações em que a livrança haja circulado (pois nessas hipóteses seria necessário ter em consideração os direitos do endossatário, que porventura desconheceria em absoluto o que sucedeu à relação subjacente), nos casos em que o preenchimento é realizado pelo beneficiário da livrança que é simultaneamente o sujeito da relação subjacente, ou seja, o mutuante, tal como sucede na hipótese sub judice, este não pode invocar o desconhecimento sobre o estado da obrigação subjacente.

O. Aliás, no presente caso, como ficou amplamente alegado nos embargos deduzidos, o controlo efetivo da sociedade subscritora da livrança pertencia a três sociedades do Grupo Espírito Santo, entre as quais se encontrava o Banco Espírito Santo, S.A., a que a Exequente sucedeu. O ora Recorrente era um mero avalista, que teve de se sujeitar às disposições dos credores das sociedades que havia fundado, entre as quais a subscritora da livrança.

P. O direito de preenchimento da livrança em branco há de ser moldado, quanto ao conteúdo e modo de exercício, na função de que a livrança se desempenha: garantia do cumprimento da obrigação subjacente.

Q. Consequentemente, o credor pode exercer este direito de preenchimento logo que se verifique o incumprimento da obrigação que causou a emissão da livrança, restando apenas saber até quando pode exercê-lo.

R. Ora, a solução de não limitar cronologicamente esse direito é de legalidade duvidosa (artigos 300.º e 302.º CC) e introduz na relação cambiária um desequilíbrio injustificado, pelo que não é de admitir (artigo 762.º/2 CC).

S. Logo, não estabelecendo a nossa lei qualquer prazo, a data do vencimento da livrança em branco só pode ser a data do incumprimento definitivo da obrigação subjacente, momento em que o credor adquire a informação necessária para preencher a livrança, bem como o interesse (processual) na cobrança coerciva do crédito.

T. Só assim se alcança um justo equilíbrio dos interesses jurídicos em jogo, segurança e previsibilidade jurídicas, obviando a que o devedor seja colocado na disponibilidade arbitrária do credor.

U. Ora, no caso sub judice: (a) a última prestação em que foi dividido o cumprimento da obrigação subjacente venceu-se em 18.11.2007; (b) a devedora na relação subjacente e subscritora da livrança foi administrativamente dissolvida em 19.10.2011; (c) o credor e beneficiário da livrança atribuiu-lhe o vencimento em 15.01.2020.

V. Posto isto, a livrança venceu-se, senão antes, em 19.10.2011, uma vez que o incumprimento definitivo da obrigação subjacente não poderá fixar-se em data posterior ao da dissolução e liquidação da devedora e subscritora da livrança.

W. A presente ação foi proposta em 03.08.2020, isto é, mais de 8 anos após a data de vencimento da livrança, tendo, por conseguinte, sido largamente ultrapassado o prazo de três anos estipulado pelo artigo 70.º da LULL para o exercício judicial dos direitos cambiários.

X. Consequentemente, o direito incorporado no título dado à execução já havia prescrito, pelo menos, há mais de cinco anos, quando a ação foi proposta, pelo que se deverá declarar extinta, por prescrição, a obrigação exequenda e, em consequência, ser declarada extinta a execução (artigo 732.º n.º 4 do CPC)”.


7. O exequente / embargado veio responder, concluindo:

I. Vem o recurso de revista a que ora se responde interposto do douto Acórdão da Relação ... de 28/10/2021, o qual julgou procedente a apelação do Novo Banco, S.A., ora Recorrido, e em consequência, decidiu: a) revogar a sentença recorrida, declarando improcedentes os embargos de executado no tocante à questão da prescrição do direito cambiário invocada e aqui reapreciada devendo os mesmos prosseguirem os seus termos no tribunal de 1ª Instância para apreciação das demais questões neles suscitadas pelo Embargado, mais determinando o prosseguimento da acção executiva declarada extinta na sentença recorrida; b) fixar as custas a cargo do Embargante, ora Recorrente.

II. Inconformado, começa o Recorrido por enunciar três questões prévias.

III. Quanto à primeira, diz que, “no acórdão transcrevem-se conclusões de um suposto Embargado que, na verdade, não pertencem aos presentes autos. As referidas conclusões transcritas para o aresto em crise respeitam a consumos de água e eletricidade, a atas e a deliberações sociais, sendo que o recurso decidido trata de saber se havia ou não ocorrido a prescrição de uma livrança em branco.”

IV. Já no que concerne à segunda, afirma que, o acórdão recorrido não sindicou o fundamento que aduziu a intento do incumprimento definitivo da obrigação subjacente e do consequente vencimento da livrança em branco – ou seja, que “a dissolução/extinção da sociedade devedora e subscritora da livrança implica o incumprimento definitivo da obrigação subjacente e marca o momento do vencimento da livrança em branco, devendo contar-se, pelo menos, a partir dessa data os três anos para executar os obrigados cambiários, sob pena de prescrição do título de crédito.”

V. E, por fim, no que respeita à terceira questão prévia, diz que, “a fundamentação/discussão de Direto vertida no acórdão se resume a uma remissão para outros acórdãos, não se demonstrando, sequer, a coincidência casuística justificante da analogia, abdicando-se absolutamente da ponderação da bondade dos argumentos aduzidos pelo Embargante.”

VI. Entrando no âmago da sua alegação, formula, então, a seguinte questão: “na falta de qualquer estipulação no pacto de preenchimento, o vencimento de uma livrança em branco ocorre, no máximo, com o incumprimento definitivo da obrigação subjacente, ou, pelo contrário, pode o beneficiário da livrança, que seja sujeito da relação material subjacente, atribuir-lhe a data de vencimento que entender?”

VII. Defendendo que, a livrança venceu-se, senão antes, em 19.10.2011, uma vez que o “incumprimento definitivo” da obrigação subjacente não poderá fixar-se em data posterior ao da dissolução e liquidação da devedora e subscritora da livrança.

VIII. Sem razão.

IX. Desde logo, quanto à primeira questão prévia, estamos, segundo se crê, diante de um lapso material do acórdão recorrido, o qual, contudo, não influiu na apreciação e conhecimento da questão decidenda.

X. Já quanto à segunda questão prévia, certo é que, o recurso foi balizado pelas conclusões das alegações do Recorrente (actualmente aqui Recorrido).

XI.E nessa medida, o ora Recorrido, então Recorrente, nos art.ºs 44 a 70 da sua alegação de recurso de 15/06/2021 suscitou o tema do início da contagem do prazo a que alude o art.º 70.º da LULL.

XII. E, desta forma, o acórdão recorrido sobre o mesmo se pronunciou, fundamentadamente.

XIII. Não assistindo, por isso, razão ao ora Recorrente.

XIV. No que respeita à terceira questão prévia, de novo, ao contrário do expendido pelo ora Recorrente, o acórdão recorrido não se limita a reproduzir jurisprudência, antes enuncia sucintamente as questões a decidir no recurso, expondo de seguida, os fundamentos e conclui pela decisão, conforme dispõe o art.º 663.º, n.º 2 do CPC.

XV. Veja-se, inclusivamente, que a sua análise é escrita a negrito, destacando-a, assim, da jurisprudência que cita, a qual, de resto, a complementa, sendo, aliás, pertinente.

XVI. Fá-lo de forma expressa, clara, coerente e suficiente; explicitando os motivos pelos quais decidiu da forma que decidiu, dirimindo o litígio que lhe foi colocado; e também porque dissente do ora Recorrente.

XVII. Pelo que, mais uma vez, não assiste, portanto, razão ao ora Recorrente

XVIII. Já quanto à questão central que suscita, no sentido de que, a dissolução/extinção da sociedade devedora e subscritora da livrança implica o incumprimento definitivo da obrigação subjacente e marca o momento do vencimento da livrança em branco, identicamente não lhe assiste razão.

XIX. Num primeiro momento, cumpre esclarecer que, a questão – efectivamente – conhecida pelo acórdão recorrido prende-se com a determinação do início de contagem do prazo de prescrição a que aludem os art. ºs 70.º e 77.º da LULL. Estamos, pois, no domínio da acção cambiária apenas.

XX. No entender do respectivo acórdão - ao contrário do entendimento do tribunal de 1ª instância - tal prazo inicia-se a partir da data de vencimento que vier a ser aposta pelo portador de uma livrança, que lhe tenha sido entregue para preencher esse elemento.

XXI. Acrescentando, depois, e já num segundo momento que, a data aposta pode exceder em período mais ou menos largo o momento da constituição da obrigação no negócio subjacente à relação cartular, uma vez que não decorre da LULL, ou de qualquer outro diploma legal aplicável a títulos cambiários, a fixação de um período temporal limite para o preenchimento da livrança em branco.

XXII. Já o ora Recorrente, extrapolando o âmago do recurso do ora Recorrido, então Recorrente, sobre a concreta questão do início da contagem do prazo de prescrição dos art.ºs 70.º e 77.º da LULL, veio, então suscitar a questão da data-limite a fixar para o preenchimento da livrança, relacionando-a directamente e desde logo, com a relação subjacente.

XXIII. O que não foi sequer conhecido pelas instâncias antecedentes.

XXIV. Defendendo que, deve ser imposto um limite ao exercício do direito de fixar o vencimento da livrança em branco.

XXV. E citando, para tanto, o ordenamento jurídico inglês que introduziu um conceito, desde logo, indeterminado -“prazo razoável” – e por isso passível da mais diversa discussão e querela na cena jurídica.

XXVI. E o ordenamento jurídico italiano o qual, ao invés, definiu uma data precisa e concreta - três anos após a data da emissão do título – e, nessa medida, ausente de qualquer dúvida.

XXVII. Em Portugal tal data-limite não se encontra regulamentada. E, portanto, ter-se-á de atender aos prazos prescritivos.

XXVIII. O que está conforme à Convenção de Genebra de 1930. Com efeito, a Lei uniforme relativa às letras e livranças (LULL), aprovada pela respectiva Convenção de Genebra de 1930, admitiu que os Estados signatários e aderentes fizessem reservas, mas Portugal inclusivamente não usou dessa faculdade. Abstraindo deste aspecto, tal regime uniforme pôde ser completado com regras de direito interno.

XXIX. Sem conceder, a sociedade mutuária/subscritora extinguiu-se com o registo de encerramento da liquidação e, consequentemente, cessou a sua personalidade jurídica (cfr. art.160.º, n.º 2 do CSC).

XXX. No entanto, subsistiram relações jurídicas depois de extinta a sociedade, desde logo como ora Recorrido, porquanto o seu crédito não foi satisfeito.

XXXI. E nessa medida, o credor – ora Recorrido – goza de liberdade para decidir o futuro da sua relação creditícia.

XXXII. Efectivamente, os contratos, como é sabido, devem ser pontualmente cumpridos (406º do CC).

XXXIII.   No caso dos autos, a obrigação tornou-se exigível após 18/11/2007 - dada de vencimento da última prestação do contrato de transacção - podendo, então, o Banco mutuante, ora Recorrido, exercer o seu direito de cobrança dos montantes em dívida decorrentes do incumprimento do contrato.

XXXIV. Sendo que, para cobrança do crédito junto dos avalistas, onde se inclui o ora Recorrente, realizou-se uma reunião em 2015 com os avalistas sobrevivos para tentar um acordo extrajudicial e uma outra, já em 2019, com o ora Recorrente.

XXXV. Almejando, pois, o Recorrido fazer uso extrajudicial das garantias que caucionaram o crédito. E nessa medida apenas posteriormente optou pelo ulterior preenchimento da livrança.

XXXVI. Noutra perspectiva, o legislador consagrou, inclusivamente, a responsabilidade dos sócios pelo passivo não satisfeito ou acautelado das sociedades extintas (art. 163.º do CSC). Os sócios sucedem na titularidade da relação jurídica. Os liquidatários são representantes legais dos sócios nas acções de responsabilidade pelo passivo superveniente e não podem renunciar às suas funções (arts. 163.º, n.ºs 2 e 5).

XXXVII. Seria descabido que, com a extinção da sociedade, os credores deixassem de ter direito aos seus créditos e de decidir sobre o momento do seu vencimento/accionamento. Se assim fosse, os sócios poderiam utilizar a liquidação como meio de escape a alguns credores das sociedades, porquanto e desde logo sequer lhes comunicam a extinção das mesmas.

XXXVIII. Por seu lado, não se vê um qualquer fundamento para aplicar, antes do preenchimento da livrança, o prazo de prescrição previsto no art.º 70.º da L.U.L.L. (aplicável às livranças ex vi 77.º do mesmo diploma). A questão é colocada/pode ser colocada neste exclusivo plano e não no plano do preenchimento abusivo, que exigiria a consideração do exacto teor da autorização de preenchimento.

XXXIX. Desde logo, porque não estando a livrança preenchida não se trata de um verdadeiro título cambiário.

XL. Não faz, por isso, qualquer sentido aplicar o prazo de 3 anos previsto na LULL para efeitos de prescrição de livrança em branco, antes do seu preenchimento como faz a sentença recorrida, ao invés do prazo ordinário (20 anos), previsto no artigo 309º do Código Civil: esse é o prazo estabelecido pelo legislador para quando não exista uma regra especial.

XLI. Além de que, é entendimento generalizado na jurisprudência e doutrina portuguesa, que a contagem do prazo previsto no art.º 70.º da LULL apenas tem o seu início com o preenchimento da livrança (já não, a partir do momento é quem é possível esse preenchimento /olhando ao acordo de preenchimento).

XLII. Concluindo-se, assim, que o Exequente poderia apor na livrança a data de vencimento que entendesse, desde que se verificasse – como sucedeu in casu - o incumprimento, nos termos dados como provados.

XLIII. O não exercício prolongado de um direito, por si só, não seja suficiente para consubstanciar uma situação de preenchimento abusivo de livrança e a subscrição de livrança em branco tem um alcance e risco que o Recorrido (bancário e empresário), não podia desconhecer:

XLIV. Como refere o Acórdão do STJ de 19 de Fevereiro de 2003, mantendo-se o aval prestado pelo Recorrido, este deveria contar, a qualquer momento, com o exercício do direito de cobrança coerciva dos créditos vencidos, designadamente pela via da ação cambiária; até ao limite de vinte anos, fixado no artigo 309º do CC; a não ser assim, qual então a razão de ser desta previsão legal?

XLV. Em suma, a livrança não se encontra prescrita nos termos do art.º 70.º da LULL pois que se venceu em 15/01/2020 (i.e. a contagem do prazo de prescrição previsto no art.º 70.º da LULL, conta-se da data aposta como data de vencimento e não, tese do ora Recorrente, da data a partir da qual podia ter sido preenchida).

XLVI. Concluindo-se como no acórdão recorrido.

XLVII. Não assiste, por todo o exposto, razão ao ora Recorrente, devendo as alegações ser julgadas improcedentes por ausentes de fundamento de facto e de direito atendível que contradite o douto acórdão recorrido”.


8. Em 20.01.2022 proferiu o Exmo. Desembargador do Tribunal da Relação ... despacho com o seguinte teor:

1 - Sobre requerimento de recurso apresentado pelo Apelado AA:

I - Por ser tempestivo, ter sido interposto por quem detêm legitimidade e resultar documentado o pagamento da respectiva taxa de justiça, admite-se o recurso de revista apresentado pelo Recorrente, o qual sobe de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao abrigo do disposto nos artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 671.º, n.º 1, 674.º, 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1, a contrario, “ex vi” dos artigos 852.º e 854.º, todos do CPC.

II - Subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, com os habituais cuidados de estilo.

2 - DN”.


*


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), as questões a decidir, in casu, são as de saber se:

1.ª) o direito cartular prescreveu; e

2.ª) a letra podia ser preenchida com a data com que foi preenchida.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados, tal como vêm provados, no Acórdão recorrido:

1. Por escrito intitulado “Contrato de Abertura de Crédito em Conta Corrente”, datado de 18.11.1999, celebrado entre o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. (doravante BES), o BANCO INTERNATIONAL DE CRÉDITO S.A. (BIC), o BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A. (doravante BES INVESTIMENTO), a G..., S.A. (G..., S.A.), AA, BB e CC, aqueles Bancos declararam colocar à disposição da G..., S.A. um crédito até ao montante de 300.000.000$00 (€ 1.496.392,46) destinado à recomposição do fundo de maneio permanente da G..., S.A., tendo esta última se declarado então devedora do montante já utilizado de 45.000.000$00 (€ 224.458,87).

2. Para garantia do reembolso aos Bancos do capital a utilizar ao abrigo daquele contrato e do pagamento dos respetivos juros remuneratórios e de mora, bem como do pagamento das despesas, judiciais e extrajudiciais em que os Bancos viessem eventualmente a incorrer para cobrança dos seus créditos, a G..., S.A. entregou-lhes naquela data (incluindo ao BES) três livranças em branco, sendo uma para cada Banco, subscritas pela G..., S.A. e avalizadas por AA, BB e CC e respectivos termos de autorização de preenchimento.

3. Por escrito intitulado “Contrato de Transação”, também datado de 18.11.1999, celebrado entre a G..., S.A., a G..., LDA., a T..., S.A., a G..., S.A., a G..., LDA., a G..., S.A. (Primeiras Contraentes), o BES, o BIC, o BES INVESTIMENTO, o BESLEASING MOBILIÁRIA, S.A. (Instituições Credoras) e AA, BB e CC (Garantes), as Primeiras Contraentes declararam-se devedoras perante as Instituições Credoras do montante global de 696.004.344500 (€ 3.471.652,18) - saldo credor total -, que se obrigaram solidariamente a restituir em 12 prestações semestrais e variáveis de capital, vencendo-se a primeira prestação em 18.05.2002 e a última no dia 18.11.2007.

4. Ficou então ajustado no referido “Contrato de Transação” que o saldo credor total não venceria juros durante os três primeiros anos de vigência daquele contrato e que, a partir de 18.11.2002, passaria a ser remunerado a uma taxa indexada à taxa LISBOR a um ano, em vigor no segundo dia útil anterior ao início de cada período de contagem de juros e seriam pagos da seguinte forma:

a. anualmente, ocorrendo o primeiro pagamento em 18.11.2003, sendo que a quantia a pagar não poderia em caso algum ultrapassar 50% do resultado corrente consolidado positivo das Primeiras Contraentes que houvesse no final do exercício anual anterior ao período de contagem dos juros em causa; e

b. os juros que se vencessem a partir de 18.11.2002, cujo pagamento não tivesse sido efetuado por força do disposto supra em “a.”, seriam integralmente pagos no último dia do prazo de vencimento do contrato, ou seja, em 18.11.2007.

5. A G.…, S.A. foi dissolvida administrativamente, encerrada a sua liquidação e cancelada a respetiva matrícula em 19.11.2011.

6. Por deliberação do Banco de Portugal de 3.04.2014 foi determinada a transferência para o Embargado NOVO BANCO, S.A., dos activos, passivos, elementos extrapatrimoniais e activos sob gestão do BES.

7. O Embargado procedeu ao preenchimento da livrança exequenda, emitida em 18.11.1999, que havia sido entregue ao BES nos termos acima referidos em 1., com vista ao cumprimento das responsabilidades emergentes do “Contrato de Transação”, tendo inscrito em tal livrança o valor de € 669.173,39 e o vencimento em 15.01.2020, sendo que no verso desta livrança consta a assinatura do Embargante sob os dizeres: “Por aval à subscritora”.


Da consulta aos autos via Citius efectuada neste Supremo Tribunal, devem considerar-se ainda provados os seguintes factos:

8. O documento intitulado “Termo de autorização de preenchimento”, a que se faz referência na cláusula décima terceira, treze do Contrato de Transação foi assinado pela G.…, S.A., por AA, BB e CC e ainda, após os dizeres “Damos o nosso acordo ao acima exposto”, pelo BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A., e tem o seguinte teor:

Para garantia da totalidade do capital em dívida ao BANCO ESPÍRITO SANTO DE INVESTIMENTO, S.A. (adiante BES INVESTIMENTO) emergente do Contrato de Transacção celebrado em 18 de Novembro de 1999 entre o GRUPO G... e os AVALISTAS abaixo identificados, o BES INVESTIMENTO, o BANCO ESPÍRITO SANTO, S.A. e o BANCO INTERNACIONAL DE CRÉDITO, S.A. que, à presente data, é de Esc. 261.024.163$00 (duzentos e sessenta e um milhões vinte e quatro mil cento e sessenta e três escudos), dos juros remuneratórios e de mora e demais encargos, bem como das despesas judiciais e extrajudiciais que a Instituição Credora venha a fazer para boa cobrança dos seus créditos, à data do respectivo vencimento ou das suas eventuais prorrogações, compreendendo o saldo que for devido, comissões, juros remuneratórios e de mora e demais encargos ou despesas que possam resultar do referido contrato e eventuais alterações que venham a ocorrer ao texto do mesmo por acordo entre as partes, junto remetemos uma livrança subscrita pela sociedade G..., S.A. (neste termo designada por SUBSCRITORA) e avalizada pelos Exm°s Senhores AA, BB e CC, cujo montante e data de vencimento se encontram em branco para que o BES INVESTIMENTO os fixe, completando o preenchimento do título, em caso de incumprimento por parte da SUBSCRITORA e das sociedades G..., LDA, T..., S.A.., G..., S.A.., G..., LDA., G..., S.A. (neste termo todas em conjunto designadas por GRUPO G...) de qualquer das obrigações assumidas no Contrato de Transacção acima identificado, o que, desde já, e por este termo, se autoriza.

O montante até ao qual a livrança poderá ser preenchida está limitado à participação desse Banco na totalidade do crédito emergente do referido Contrato, a qual corresponde a uma percentagem de 37,5032%.

A referida livrança não implica uma novação da dívida, mantendo-se integralmente válidas as obrigações emergentes para o GRUPO G.… do referido Contrato de Transacção e dos contratos identificados no seu Anexo II.

Os AVALISTAS dão o seu assentimento à remessa da livrança, nos termos e condições em que é feita, pelo que connosco assinam a presente autorização”.


9. Do Quadro A - Organigrama do GRUPO G.…, junto aos autos, consta:



O DIREITO

Esclarecimento quanto às questões a apreciar

Nas palavras do recorrente, a questão suscitada no presente recurso é a seguinte: “na falta de qualquer estipulação no pacto de preenchimento, o vencimento de uma livrança em branco ocorre, no máximo, com o incumprimento definitivo da obrigação subjacente, ou, pelo contrário, pode o beneficiário da livrança, que seja sujeito da relação material subjacente, atribuir-lhe a data de vencimento que entender? [cfr. conclusão E) da alegação de revista].

O recorrido manifesta reservas a esta afirmação, observando que, “extrapolando o âmago do recurso do ora Recorrido, então Recorrente, sobre a concreta questão do início da contagem do prazo de prescrição dos art.ºs 70.º e 77.º da LULL, veio, então suscitar a questão da data-limite a fixar para o preenchimento da livrança, relacionando-a directamente e desde logo, com a relação subjacente” – “[o] que não foi sequer conhecido pelas instâncias antecedentes (cfr. conclusões XXII e XXIII da contra-alegação),

Compulsando os autos, verifica-se que a questão remanescente daquelas que foram expressamente suscitadas no requerimento de embargos é a prescrição do direito cartular.

O mesmo já acontecia no recurso de apelação.

O Tribunal recorrido enuncia esta (única) questão assim:

(…) no caso vertente impõe-se proceder à reapreciação do mérito centrando a análise na (in)existência de prescrição do direito cambiário do Apelante”.

E abre a fundamentação do Acórdão assim:

[p]assemos de seguida à reapreciação da questão de mérito atinente à prescrição do direito cambiário do Apelante (…)”.

Pode parecer (e as alegações do recorrente contribuem para essa impressão) que esta questão – a questão da prescrição do direito cartular – se identifica com a questão da existência de um eventual prazo-limite para o preenchimento da livrança em branco. Saber se ocorre a prescrição pressupõe, evidentemente, saber qual é data de vencimento da obrigação cartular pois começa aí, em princípio, a contar-se o prazo de prescrição. A verdade é que, havendo preenchimento abusivo, esta pode não ser a data efectivamente aposta na livrança, mas uma outra (a data que deveria ser se não tivesse havido preenchimento abusivo).

Nada disto não impede que se veja que uma coisa é saber se é admissível, em face do Direito, preencher a livrança com a data com que foi preenchida e uma coisa diferente é saber se o direito cartular prescreveu.

Veja-se, levando às últimas consequências a distinção entre as duas questões, o que diz no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 30.09.2003 (Proc. 03A2113):

A prescrição da obrigação cambiária conta-se a partir da data do vencimento e essa data é a que consta do título e não aquela que, eventualmente, deveria constar de acordo com o pacto de preenchimento”.

Trata-se, em suma, de duas questões diferentes e é preciso dissociá-las[1].

A questão referida em segundo lugar respeita à conformidade do preenchimento da livrança e suscita a discussão de saber se houve preenchimento abusivo ou, como se prefere, numa formulação mais ampla, preenchimento em contrariedade ao Direito.

O preenchimento abusivo está associado à violação de acordos firmados entre as partes, em especial do chamado “pacto de preenchimento”. A ocorrência desta hipótese conduz à inexigibilidade da obrigação nos termos em que é exigida, isto é, pela positiva, a obrigação é exigível nos termos que sejam conformes ao Direito.

Pode ilustrar-se com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4.05.2004 (Proc. 04A1044), onde se diz:

Sendo impossível a data da emissão aposta na livrança, tal facto determina a nulidade dessa menção, tudo se passando como se o título não estivesse preenchido com a data em que foi emitido[2].

Enquanto isso, a prescrição do direito gera, simplesmente, a extinção / a modificação do direito. Como se vê, então, as duas hipóteses distinguem-se também na óptica das consequências.

É indiscutível que as instâncias apreciaram e decidiram a questão do preenchimento indevido.

Leia-se, entre outras passagens, na sentença:

(…) conferir ao credor cambiário, portador de uma livrança subscrita (e, eventualmente, avalizada) em branco, a possibilidade de a preencher livremente, dilatando a cobrança do seu crédito a seu bel-prazer, sujeitaria o devedor cambiário a uma intolerável e desproporcional situação de incerteza, contrária aos ditames da boa-fé e, além do mais, seria incompatível com as exigências de celeridade no exercício do direito cambiário que, como se disse, o legislador pretendeu conferir através do prazo prescricional previsto no art. 70.º da LULL”.

Leia-se, também, só para uma breve ilustração, o Acórdão recorrido:

“concordamos com a posição, aliás largamente prevalecente nos nossos Tribunais Superiores, mormente no Supremo Tribunal de Justiça, que defende que no caso da subscrição de uma livrança em branco apenas com o seu preenchimento e mormente com a aposição na mesma da respectiva data de vencimento é possível considera-la um título cambiário ilustrativo de uma dívida, naquele incorporada, certa, líquida e exigível ao obrigado cambiário, passível, como tal, de integrar a previsão respeitante à prescrição do crédito cambiário prevista no aludido artigo 70.°, "ex vi" do artigo 77.°, da LULL., podendo a data de vencimento ser aposta mesmo tendo decorrido um largo período de tempo sobre a constituição da obrigação, uma vez que não decorre da LULL, ou de qualquer outro diploma legal aplicável a títulos cambiários, a fixação de um período temporal limite para o preenchimento da livrança em branco, desde que a data aposta não se revele anterior ao facto que justificou tal preenchimento, máxime o incumprimento da obrigação extracartular assumida pelo obrigado cambiário e, naturalmente, não viole o que tenha sido convencionado a propósito no pacto de preenchimento da livrança (…)”.

Pelo exposto não assiste razão ao recorrido quando adverte para a (inadmissível) novidade do alegado pelo recorrente: a questão foi – é certo entrelaçada com aquela outra – abordada antes. Ela é, além do mais, uma questão de conhecimento oficioso, por isso, ainda que não tivesse sido alegada, sempre seria ou deveria ser conhecida pelo julgador.

Não há, em suma, obstáculo a que a questão de saber se era admissível que a livrança fosse preenchida com a data com que foi preenchida seja (re)apreciada no presente recurso. Como se verá, aliás, a resposta tem impacto na resposta à questão da prescrição.


1. Da prescrição do direito cartular (enquadramento e remissão)

Como é sabido, a livrança qualifica-se como um título de crédito[3] e, como título de crédito, desempenha funções jurídico-económicas dignas de relevo, que podem reconduzir-se a três: “proporcionar maior rapidez e segurança na circulação da riqueza e na concessão do crédito, favorecer a posição do devedor, assegurando que este paga a quem está legitimado (para receber), e tutelar os (terceiros) adquirentes de boa fé[4].

Os títulos de crédito têm como características fundamentais a literalidade (o conteúdo literal do título corresponde ao direito representado, chamado “direito cartular”), a autonomia, tanto do título (o título de crédito é autónomo em relação ao negócio subjacente), como dos direitos dos portadores (o direito de cada portador é independente dos subscritores precedentes) e, em certos casos, a abstracção (o título de crédito vale independentemente da relação subjacente).

A livrança, em particular, é um título de crédito pertencente à subcategoria dos títulos cambiários (destinados a circular), através da qual um sujeito (o subscritor) se compromete a pagar a outro (o beneficiário), ou à sua ordem, uma determinada quantia.

Ela é, na sua essência, uma promessa de pagamento, mas, actualmente, é mais utilizada como um modo de um sujeito ou entidade (normalmente uma empresa) garantir uma operação (normalmente um empréstimo bancário) perante outro sujeito ou entidade (normalmente uma instituição de crédito). No caso (comum) de a subscritora da livrança ser a empresa mutuária a favor ou à ordem do banco mutuante, é frequente os sócios figurarem como avalistas.

A livrança está regulada, de forma sumária, nos artigos 75.º a 78.º da LULL, aplicando-se-lhe, a título subsidiário, o regime da letra de câmbio (ex vi do artigo 77.º da LULL).

A questão da prescrição do direito cartular prende-se directamente com o artigo 70.º da Lei Uniforme de Letras e Livranças (doravante LULL), onde se dispõe:

Todas as acções contra o aceitante relativas a letras prescrevem em três anos a contar do seu vencimento (…)”.

Embora o preceito se refira expressamente à “prescrição das acções”, deve esclarecer-se que ele não regula a prescrição do direito de acção (sempre seria caducidade) mas sim a prescrição do direito.

A regra é aplicável às livranças por força do artigo 77.º da LULL, que determina:

São aplicáveis às livranças, na parte em que não sejam contrárias à natureza deste escrito, as disposições relativas às letras e respeitantes a (…) prescrição (artigos 70.º e 71.º) (…)”.

Relevante é ainda o artigo 32.º da LULL, por força do qual os avalistas estão sujeitos ao mesmo regime de prescrição que é aplicável aos seus avalizados:

O dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.

Não se suscitando dúvidas sobre a regularidade do preenchimento da letra ou da livrança, a questão da prescrição é linear: apenas há que apurar se a acção foi proposta dentro do prazo de três anos a contar da data de vencimento, conforme previsto no artigo 70.º da LULL[5].

Como se diz no Acórdão desta 2.ª Secção de 19.06.2019 (Proc. 1025/18.5T8PRT.P1.S1):

Numa livrança em branco, o prazo de prescrição de três anos previsto no artigo 70º ex vi do artigo 77º, da LULL conta-se a partir da data de vencimento que venha a ser aposta no título pelo respectivo portador, quer essa data coincida ou não com o incumprimento do contrato subjacente ou com o vencimento da obrigação subjacente (…)”.

Destaca-se aí ainda a convergência da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça:

A questão de saber se o início de contagem do prazo de prescrição de três anos, previsto no art. 70º, nº 1, da LU (ex vi art. 77º da LU) se afere em função da data de vencimento inscrita na livrança ou com base no vencimento da obrigação causal, tem sido respondida em sentido afirmativo da primeira proposição pela jurisprudência reiterada deste Supremo Tribunal (cfr. entre muitos outros, os acórdãos de 12/11/2002(proc. nº 3366/02), de 30/09/2003 (proc. n.º 2113/03), de 29/11/2005(proc. nº 3179/05), de 09/02/2012 (proc. n.º 27951/06.6YYLSB-A.L1.S1), de 19/10/2017 (proc. n.º 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1),consultáveis em www.dgsi.pt), não havendo razões justificativas para nos afastarmos desta orientação consolidada”.

Mas a posição não se circunscreve ao Supremo, podendo ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18.02.2021 (Proc. 51/19.1T8SRE-B.C1), mencionado no Acórdão recorrido:

O prazo de prescrição a que se reportam os art.º 70º e 77º da LULL inicia-se a partir da data de vencimento que vier a ser aposta pelo portador de uma livrança que lhe tenha sido entregue incompleta nesse elemento, contanto que tal data não seja anterior ao momento em que se verificou o facto que, à luz do respectivo pacto, legitimou o preenchimento do título”.

A verdade é que, como se disse atrás, por força de preenchimento abusivo, a data de vencimento da obrigação cartular pode acabar por não ser a data efectivamente aposta na livrança, mas uma outra. E, com base nesta, pode vir concluir-se que, afinal, o direito prescreveu.

Deve, por conseguinte, remeter-se a resposta definitiva à questão da prescrição para momento posterior.


2. Do preenchimento da livrança com certa data

Sobre a letra ou a livrança, em particular a letra ou a livrança em branco, é possível encontrar na doutrina especializada algumas ideias importantes para compreender plenamente o caso dos autos e responder a esta questão[6].

A letra ou a livrança pode ser criada (sacada) e posta em circulação sem estar completamente preenchida, ficando o portador autorizado a preenchê-la mais tarde – é o que se chama letra ou livrança em branco.

Ensina António Ferrer Correia que “letra em branco é, antes de mais, aquela a que falta algum dos requisitos indicados no artigo 1.º da L.U., mas que incorpora, pelo menos, uma assinatura feita com a intenção de contrair uma obrigação cambiária[7]. Segundo o ilustre Professor, “a admissibilidade da letra em branco resulta claramente do art. 10.º da L.U.”.

Há uma multiplicidade de razões que podem justificar a criação de uma letra ou livrança em branco mas o mais habitual é ela estar associada a operações bancárias de abertura de crédito em conta corrente caucionada[8]. Neste caso, o banco mantém em carteira a letra (ou a livrança) com a data de vencimento e o valor em branco e preenche-os apenas quando, perante o incumprimento do cliente, toma a decisão de propor uma acção para cobrança da dívida.

O critério do preenchimento da letra ou livrança em branco deve ser feito de acordo com o chamado “pacto de preenchimento”, que consiste numa convenção, com natureza de pacto fiduciário, sobre o modo de preenchimento da letra. O pacto de preenchimento é pressuposto da criação da letra ou livrança em branco.

Em contrapartida, o preenchimento integral da letra ou livrança não é pressuposto nem da existência nem da circulação da letra embora seja pressuposto da sua apresentação a pagamento e da sua cobrança. Como se enuncia, sugestivamente, no Acórdão deste Supremo Tribunal de 25.05.2017 (Proc. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1), “o preenchimento, em obediência ao pacto, é o quid que confere força executiva ao título”.

Deve ficar claro, desde o início, que uma letra ou livrança em branco não deixa de produzir efeitos, vinculando logo os respectivos signatários, nomeadamente os avalistas do subscritor e sujeitando-os aos riscos inerentes a todos os títulos em branco.

Como é do conhecimento geral, o aval é uma garantia pessoal, mais precisamente uma garantia de pagamento do direito cartular dada por uma pessoa a favor de outra. Por força do aval surge um novo sujeito passivo, embora o responsável principal continue a ser a pessoa avalizada[9].

Esclarecendo a natureza jurídica do aval e a posição que ocupa o avalista, diz António Ferrer Correia:

Desta forma, parece fácil indicar a natureza jurídica do aval: é uma garantia; a obrigação do avalista é uma obri­gação de garantia – garantia da obrigação do avalizado. Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia: o fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário (...) e a simples leitura de algumas disposições legais convence-nos de que a apontada finalidade económica do acto se reflecte efectivamente no seu regime jurídico (...). Essa garantia [dada pelo avalista] vem inserir-se ao lado da obrigação de um determinado subscritor, cobrindo-a, caucionando-a (...) Por conseguinte, a extensão e o conteúdo da obrigação do avalista aferem-se pela do avalizado; quer isto dizer que a obrigação do avalista é acessória em face da do avalizado[10].

Enfatizando o aspecto do risco, diz, por seu turno, Paulo Melero Sendim:

O avalista de uma letra sacada em branco, se, antes de estar preenchida, garante uma das suas operações cambiárias (de saque, aceite, endosso, aceite ou outro aval), constitui o valor patrimonial de garantia com a sua declaração de confiança do aval dado. Nesse seu valor assume o risco inicial específico da letra em branco (…). A participação do aval no risco inicial próprio da letra em branco compreende-se, e com ela igualmente a sua acessoriedade com a operação da letra que avaliza, uma vez que se veja que esta garantia cambiária não só pode, por si, assumir esse mesmo risco, mas a ele não se pode furtar”[11].

Explicam ainda com notável clareza Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos que os signatários de uma letra ou livrança em branco estão vinculados mesmo antes do preenchimento da letra ou livrança:

Conjugados os artigos 1.º e 10.º da LULL, tem de se admitir que todos os que aponham a sua assinatura numa letra ou livrança em branco ficam vinculados duplamente. Por um lado, ficam numa situação jurídica de sujeição ao exercício do poder potestativo de preenchimento do título por qualquer dos portadores e, por outro lado, ficam ainda obrigados ao seu pagamento conforme a qualidade em que o assinam e a sua posição na cadeia cambiária. A questão não é de tempo, não é relevante a data do preenchimento, mas apenas que, ao tempo da sua cobrança, ele esteja preenchido. Na maior parte das vezes, nem é possível saber com precisão quando é que vieram a ser preenchidos (…).

Não tem sentido permitir a sua desvinculação antes do preenchimento. Os signatários de letras ou livranças em branco sabem que esses títulos estão em branco, porque tiveram oportunidade de o constatar quando os tiveram na mão para os assinar e quando os endossaram ainda em branco. Sabem também que esses títulos poderão mais tarde vir a ser preenchidos e apresentados a pagamento. Sabem ainda em que condições deverão ser preenchidos. Não é aceitável, nem crível, nem admissível que não saibam bem o que está convencionado sobre o seu preenchimento e os riscos envolvidos [12].

Mais adiante, precisam os autores:

Estruturalmente, a posição jurídica do interveniente na letra em branco, antes do preenchimento, é de sujeição. Está sujeito a que o portador a preencha, pelo valor que for e com vencimento na data que for. O portador, ao preencher a letra, exerce um poder potestativo. Quando, além de aceite ou sacada em branco, a letra seja ainda avalizada em branco, o pacto de preenchimento torna-se mais complexo. Pode incluir o avalista numa estrutura trilateral. Não é crível que alguém avalize em branco sem se informar do conteúdo do pacto de preenchimento e do risco que assume [13].

Não obstante tecidas a propósito da letra ou livrança ainda em branco (i.e., ainda antes de preenchida), estas considerações têm interesse para compreender a posição dos signatários e, sobretudo, dos avalistas em face do portador da letra ou livrança depois de preenchida. Percebe-se que os avalistas estão, ab initio, numa posição de verdadeira sujeição jurídica[14].

Não causará, pois, surpresa que os autores concluam, apreciando um caso-tipo próximo daquele que tratam os presentes autos:

A mesma doutrina [não ocorre preenchimento abusivo] vale quando é invocado pelo avalista para se desvincular que não pode ficar obrigado sem prazo e indefinidamente no tempo. Após o preenchimento, a obrigação do avalista já deixou de ser sem prazo. Antes do preenchimento, o avalista só pode invocar a incerteza do tempo de duração da vinculação se assim o tiver estipulado com o portador. O avalista tem todo o interesse em convencionar com o avalizado o tempo máximo de duração da sua vinculação. Se o convencionar com o portador, pode opor-lhe esta convenção em relação a responsabilidades que emerjam da relação subjacente após esse limite temporal. Se o tiver estipulado apenas com o avalizado pode exigir dele extra cambiariamente que obtenha esse resultado e pode responsabilizá-lo em relação à responsabilidade que este, como avalizado, tenha contraído após esse tempo, mas não pode opor esta convenção ao portador que cobra a letra ou a livrança [15].

Mas vamos por partes.

Deve perceber-se bem o que é o preenchimento abusivo e, para isso, tem de se dar atenção ao artigo 10.º da LULL, onde se dispõe:

Se uma letra incompleta no momento de ser passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave”.

Prevendo a hipótese de a letra ser preenchida contrariamente aos acordos realizados (ao pacto de preenchimento), o artigo 10.º da LULL é geralmente apontado como a confirmação de que a lei admite a letra ou livrança em branco.

A norma suscita um par de observações para não ser mal entendida.

Em primeiro lugar, apesar de se referir à letra incompleta, ela dirige-se, em rigor, à letra em branco. Não deve confundir-se a letra ou livrança em branco com a letra ou livrança incompleta em sentido próprio. Esta última é uma letra ou livrança em vias de formação, que o seu criador não tinha intenção de deixar incompleta mas que é posta em circulação antes deste completamento (hipótese que está associada ao problema do desapossamento)[16].

Em segundo lugar, o portador a que a norma se refere é, não o interveniente no pacto de preenchimento, mas o terceiro portador ou portador mediato da letra ou livrança – o único a quem a boa fé pode aproveitar e a quem, portanto, o preenchimento abusivo não é oponível[17].

Assentes estas ideias, regresse-se ao caso em apreço.

A primeira coisa a assinalar é que a tutela concedida na norma do artigo 10.º da LULL não encontra beneficiário no caso em apreço, dado que a acção decorre no plano das relações imediatas. Quem preencheu a livrança e reclama o seu pagamento é ainda o primeiro adquirente da livrança, rectius: quem lhe sucedeu (cfr. facto provado 6).

Se a situação dos autos fosse alegada e comprovadamente de preenchimento abusivo, o embargante / recorrente poderia, na qualidade de avalista[18], opor ao embargado / recorrido, portador imediato da livrança, a falta de observância do pacto de preenchimento[19].

Acontece que, como se disse atrás, o preenchimento abusivo – preenchimento abusivo stricto sensu – decorre da violação do convencionado entre as partes, maxime do pacto de preenchimento.

Ora, o preenchimento abusivo deve ser alegado e demonstrado pelo embargante / recorrente uma vez que é ele o obrigado cambiário, portanto o sujeito a quem a excepção de preenchimento abusivo aproveita (cfr. artigo 342.º, n.º 2, do CC)[20].

A verdade é que isto não foi feito. O embargante / recorrente insurge-se contra os concretos termos do preenchimento da livrança, alegando que a livrança em branco não podia ser preenchida com uma data que ultrapassasse a data de incumprimento definitivo da obrigação subjacente [cfr. conclusões S) e V)]. Mas não logrou, desde logo, demonstrar que a vontade (real ou hipotética) dos intervenientes era no sentido da fixação da data de vencimento da obrigação cartular em função da data de incumprimento da obrigação subjacente.

E a verdade é que, embora exista um documento subscrito pelas partes que se qualifica como pacto de preenchimento[21], nem por via de interpretação (cfr., sobretudo, artigos 236.º a 238.º do CC[22]) nem por via de integração (cfr. artigo 239.º do CC) se consegue identificar qual é ou seria a sua vontade quanto à data de vencimento da obrigação cartular.

Teria sido possível incluir no pacto de preenchimento uma fórmula que não deixasse dúvidas quanto à total liberdade atribuída ao portador da livrança, como, por exemplo, “remete-se a livrança (…) cuja data de vencimento se deixa em branco para que o (portador) a fixe, quando considerar oportuno, o que desde já se autoriza” ou outra fórmula afim. Mas da inexistência de uma cláusula deste tipo não pode retirar-se que as partes tenham pretendido restringir a liberdade de fixação da data de vencimento da obrigação cartular.

Em suma, analisado o pacto de preenchimento à luz das regras dos artigos 236.º a 239.º do CC, não há indícios de que a vontade, ainda que hipotética das partes, era / seria no sentido daquela restrição[23] nem razões para entender que aquela restrição era imposta pela boa fé.

Como reconhecem tanto recorrente (cfr. conclusão F) e recorrido (cfr. conclusão XXVII), a lei não estabelece um prazo-limite para a data a inscrever na livrança em branco como data de vencimento da obrigação cartular.

Como também é apontado por recorrente e recorrido, existem limitações legais noutros ordenamentos jurídicos (cfr., respectivamente, conclusão L e conclusões XXV e XXVI). A verdade é do argumento de Direito comparado não é possível retirar um argumento relevante no sentido de que deve “descobrir-se”, no Direito português, um prazo-limite. Na estrita perspectiva do Direito português constituído, aliás, o argumento é susceptível de militar a favor do carácter deliberado do silêncio.

A jurisprudência consolidada deste Supremo Tribunal milita no sentido de que, não se apurando que a vontade dos intervenientes tenha ou tivesse sido a de estabelecer condicionamentos à data de vencimento e, não sendo estes impostos pela boa fé (cfr. artigo 762.º, n.º 2, do CC), o portador da livrança em branco é livre de a preencher com a data que considerar conveniente.

Leia-se, por exemplo, o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.1991 (Proc. 080851):

I. A lei não fixa qualquer prazo para o preenchimento da letra com vencimento em branco.

II. O facto de a livrança ter sido entregue ao credor com a data de vencimento em branco e sem haver pacto de preenchimento, servindo esse título de crédito de garantia de determinado débito, entretanto vencido, não implica para o portador o dever de apor naquele como data de vencimento a de vencimento do débito garantido pelo referido título[24].

Igualmente explícito é o Acórdão também deste Supremo Tribunal de 20.10.2015 (Proc. 60/10.6TBMTS.P1.S1):

IV. A recorrente afirma o preenchimento abusivo por banda da ré somente em relação à data de vencimento. Porém, a interpretação que o acórdão recorrido fez das cláusulas do pacto de preenchimento, foi correcta, não sendo aceitável a representação que a recorrente faz de tais itens. A obrigatoriedade d[e] a ré preencher a livrança (somente) na data do incumprimento pela mutuária das obrigações assumidas, como defende a autora, não encontra qualquer apoio na convenção de preenchimento”.

Veja-se, por fim, o Acórdão desta 2.ª Secção de 4.07.2019 (Proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1):

III. Quanto à questão do preenchimento abusivo ou indevido das livranças dos autos, tendo os pactos de preenchimento autorizado a exequente embargada a, de acordo com o seu próprio juízo, preencher a data de vencimento das livranças em função do incumprimento das obrigações pela devedora “ou para efeitos de realização do respectivo crédito”, não é possível concluir-se que aquela – ao apor nas livranças uma data mais de três anos ulterior em relação à declaração de insolvência da devedora, e alguns meses anterior à acção executiva –tenha incorrido em preenchimento abusivo”.

No que toca à boa fé, adquire particular interesse para o caso vertente o que se decidiu no Acórdão desta 2.ª Secção de 19.10.2017 (Proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1):

IV. O abuso de direito na sua vertente de “venire contra factum proprium”, pressupõe que aquele em quem se confiou viole, com a sua conduta, os princípios da boa fé e da confiança em que aquele que se sente lesado assentou a sua expectativa relativamente ao comportamento alheio.

V. O simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é suscetível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação que sobre ele impende.

VI. O preenchimento de uma livrança, entregue em branco ao credor quanto ao montante e data de vencimento, decorridos mais de doze anos sobre a data da constituição da obrigação e mais de sete anos sobre a declaração de insolvência da sociedade subscritora da livrança, e a instauração da ação executiva contra a avalista desta sociedade, só por si, não consubstanciam fundamento bastante para o reconhecimento do abuso de direito previsto no artigo 334º do Código Civil, na modalidade de "venire contra factum proprium".

Não se ignora que há quem defenda, na doutrina portuguesa, a existência de um limite temporal para o preenchimento da livrança – um momento que define a data a inscrever na livrança ou, pelo menos, determina o início de um prazo razoável para a data a inscrever na livrança[25]. Esta foi, aliás, a tese perfilhada e seguida na sentença.

A verdade é não se vislumbram razões para pôr em causa a tese já consolidada na jurisprudência deste Supremo Tribunal[26] [27].

Ponderadas todas as circunstâncias relevantes, podia o recorrido, portador da livrança, preenchê-la no momento em que veio a preenchê-la (15.01.2020), ou seja, nas palavras do recorrente (cfr. conclusão W), mais de oito anos depois da data do incumprimento definitivo da obrigação subjacente, ocorrido com a dissolução / extinção da sociedade subscritora (19.10.2011)?

Abordou este ponto, como se viu, o Tribunal recorrido dizendo:

“Concordamos com a posição, aliás largamente prevalecente nos nossos Tribunais Superiores, mormente no Supremo Tribunal de Justiça, que defende que no caso da subscrição de uma livrança em branco apenas com o seu preenchimento e mormente com a aposição na mesma da respectiva data de vencimento é possível considerá-la um título cambiário ilustrativo de uma dívida, naquele incorporada, certa, líquida e exigível ao obrigado cambiário, passível, como tal, de integrar a previsão respeitante à prescrição do crédito cambiário prevista no aludido artigo 70.°, "ex vi" do artigo 77.°, da LULL., podendo a data de vencimento ser aposta mesmo tendo decorrido um largo período de tempo sobre a constituição da obrigação, uma vez que não decorre da LULL, ou de qualquer outro diploma legal aplicável a títulos cambiários, a fixação de um período temporal limite para o preenchimento da livrança em branco, desde que a data aposta não se revele anterior ao facto que justificou tal preenchimento, máxime o incumprimento da obrigação extracartular assumida pelo obrigado cambiário e, naturalmente, não viole o que tenha sido convencionado a propósito no pacto de preenchimento da livrança (…)”.

Em aplicação da tese acolhida, discorreu o Tribunal a quo:

Regressemos, agora, ao plano factual do caso concreto que temos em mãos (…).

Igualmente resulta dos factos considerados como assentes na sentença recorrida que essa livrança foi entregue em branco, designadamente no tocante à respectiva data de vencimento, bem como que foram entregues pela G.…, S.A. ao BES na aludida data de 18/11/1999 os "respectivos termos de autorização de preenchimento", ou seja as linhas orientadoras do pacto de preenchimento da aludida livrança.

Desconhece-se, porém, o conteúdo desse pacto, concretamente no tocante à data de vencimento a apor, pois nada resultou provado na sentença recorrida quanto a tal aspecto.

Conforme já o salientamos supra entendemos que recaia sobre o Embargante a prova desse elemento uma vez que foi o próprio a trazer à colação no arrazoado da petição inicial de embargos de executado a questão concreta da data de vencimento eventualmente convencionada no pacto de preenchimento.

Certo é que na sequência do preenchimento da livrança veio a ser aposta na mesma por parte da Embargada, ora Apelante, a data de 15/01/2020 como data de vencimento da obrigação (…).

Tão pouco se retira dos factos considerados como provados na sentença recorrida que o mero decurso do prazo de doze anos e cerca de um mês que mediou entre a data em que se venceu a obrigação extracartular do Embargante/Apelado, não cumprida pelo mesmo e a data de preenchimento da livrança que incorporou o negócio causal pela Embargada/Apelante traduza abuso de direito assente em desrespeito dos ditames da boa fé contratual.

Efectivamente e para além de toda a argumentação que já acima ficou expressa designadamente através das referências jurisprudenciais que fomos destacando sobre a matéria impõe-se sublinhar que no caso concreto o Embargante/Apelado até interveio activamente no negócio jurídico extracartular, ou seja no aludido "Contrato de Transacção", pelo que detinha todas as condições para saber, desde o primeiro momento, quando se gerou o incumprimento contratual daquele negócio causal por parte da sociedade anónima que avalizou, pelo que se tivesse querido resolver o incumprimento poderia desde logo tê-lo feito sem aguardar o preenchimento da livrança dada em garantia das obrigações assumidas pela outorga do dito negócio, sabendo de antemão que enquanto avalista da livrança se assumia como responsável pelo pagamento da quantia inserta na mesma nos mesmos termos que a subscritora do título.

Ademais, quem avaliza um título cambiário tem necessariamente que saber dos riscos que corre inerentes à responsabilidade pelo pagamento do mesmo, o que o ora Embargado certamente não desconhecia, não devendo contar com o mero decurso do tempo e alguma inércia do beneficiário ou tomador da livrança para se eximir do pagamento daquilo que deve”.

A posição do Tribunal a quo é, em síntese, a de que, não tendo ficado demonstrado que a vontade (real ou hipotética) das partes fosse no sentido de introduzir limitações ou condicionamentos ao preenchimento da data de vencimento, nem decorrendo da boa fé que fosse exigível respeitar quaisquer limitações do tipo, a data do incumprimento da obrigação subjacente era irrelevante, sendo de recusar que o recorrido, ao apor nas livranças a data que apôs, incorreu em preenchimento abusivo da livrança.

Acompanha-se, sem necessidade de grandes esclarecimentos ou aditamentos, o discurso do Tribunal a quo.

Para reforçar a conclusão apenas se acrescenta que o recorrente não alegou nem provou, designadamente, que estivessem em causa cláusulas contratuais gerais, hipótese em que seria possível apreciar a (in)validade das cláusulas contratuais de acordo com um regime especialmente protector do devedor[28].

Tão-pouco existem sinais de que se configure um abuso do direito (cfr. artigo 334.º do CC), na modalidade de venire contra factum proprium ou de suppressio (a Verwirkung do Direito alemão)[29], quer dizer, simplificadamente, de que o facto de o recorrido não ter exercido o direito imediatamente a seguir à dissolução / extinção da sociedade subscritora tenha criado no recorrente, pelas circunstâncias que rodearam essa inacção, a confiança que o mesmo já não viria a ser exercido e de que por essa razão o seu exercício agora não seja admissível[30].

Cumpre salientar ainda que o embargante / recorrente, na qualidade de avalista da sociedade subscritora, interveio pessoalmente não só no negócio que está na origem da livrança em branco como na criação da livrança e do respectivo pacto de preenchimento. O destaque justifica-se para afastar a possibilidade de se dizer que ele estava sujeito a uma vinculação indeterminada por força do aval dado à subscritora. Enquanto avalista (e ainda, ao que tudo indica, sócio) da subscritora, o embargante / recorrente detinha uma posição privilegiada quanto ao conhecimento e teve a possibilidade de acompanhar de perto o desenrolar dos acontecimentos. Ele tinha, inclusivamente, o poder de se desvincular, se quisesse, cumprindo voluntariamente a obrigação que sobre ele impendia e que, ele bem sabia, mantendo-se o aval prestado, podia ser-lhe exigida a qualquer momento.

É admissível, aliás, equacionar-se a hipótese de que a postergação do preenchimento da livrança relativamente à dissolução / extinção da sociedade subscritora tenha surgido apenas por terem fracassado as tentativas de o portador da livrança resolver de forma mais consensual a situação, portanto, tenha sido em benefício do recorrente e dos outros avalistas[31].

Vendo bem, o condicionamento da data de vencimento à data do incumprimento definitivo da obrigação subjacente tornaria relativamente fácil a certos avalistas desvincular-se sem cumprir – os avalistas que são sócios da sociedade subscritora e, portanto, são os sujeitos que, em última análise, formam a vontade desta.

Deve dizer-se, a propósito, que seria perverso que, como o embargante / recorrente pretende, a data da dissolução / extinção da sociedade pudesse marcar o prazo-limite do vencimento da obrigação cartular. Como é sabido, os sócios têm o poder de decidir a dissolução da sociedade (dissolução administrativa ou por deliberação) com fundamento em facto previsto na lei ou no contrato (cfr. artigo 142.º do CSC). Se o facto “dissolução da sociedade” tivesse aptidão para provocar o vencimento da obrigação ficaria sempre na disponibilidade deles o poder de fixar o timing do vencimento e do período de três anos em que, impreterivelmente, o pagamento deveria ser exigido.

Diga-se, de qualquer forma, que não seria compreensível que a data da dissolução / extinção da sociedade fosse, sem mais, a data de vencimento aposta na livrança. Para começar, nem sequer existe uma norma como a do artigo 91.º do CIRE, que determina que com a declaração de insolvência se produz (ex lege) o vencimento de todas as obrigações do devedor. Mas o mais importante é que a data em que ocorre o facto relevante (tipicamente, o incumprimento definitivo) apenas marca o momento em que o portador fica constituído no dever de preencher a livrança quando isso resulte do que foi acordado entre os intervenientes (do sentido que era possível deduzir tendo em conta as regras de interpretação previstas nos artigos 236.º a 238.º do CC), do que seria previsivelmente acordado se eles não tivessem omitido aquele ponto ou do que seria imposto pela boa fé, nos termos do artigo 239.º do CC[32].


3. Da prescrição do direito cartular (conclusão)

Depois deste excurso, a resposta à questão da prescrição não põe especiais problemas.

Tendo sido aposta na livrança a data de 15.01.2020 e não havendo razões para considerar que houve preenchimento abusivo, é essa a data de vencimento da obrigação para o efeito do início da contagem do prazo de prescrição previsto no artigo 70.º da LULL.

Logo se vê, então, que improcede a alegação do embargante / recorrente de que, quando a acção foi proposta, o direito cartular estava prescrito há mais de cinco anos (cfr. conclusão X), pois a data de vencimento não é a data da dissolução / extinção da sociedade subscritora (19.10.2011).

Pela positiva: quando, em 3.08.2020, foi proposta a acção, não haviam ainda decorrido os três anos referidos no artigo 70.º da LULL a contar da data de vencimento (15.01.2020), pelo que o direito cartular estava perfeitamente em tempo de ser exercido e podia ser exercido, não importando isso violação dos artigos 300.º e 302.º do CC ou de quaisquer normas ou princípios jurídicos.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

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Lisboa, 21 de Abril de 2021


Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] O mesmo esclarecimento foi necessário no Acórdão desta 2.ª Secção de 4.07.2019 (Proc. 4762/16.5T8CBR-A.C1.S1): “Antes de mais, importa deixar claro que a questão do decurso do prazo de prescrição da obrigação ou obrigações dos embargantes executados não se confunde com a questão do eventual preenchimento abusivo das livranças dadas à execução. Convém, por isso, tratar em separado de cada uma referidas questões”.

[2] Cfr. ainda, entre outros exemplos, os Acórdãos deste Supremo Tribunal de 12.02.2009 (Proc. 08B039), de 29.11.2012 (Proc. 10781/06.2YYPRT-B.P1.S1), 28.04.2016 (Proc. 1106/12.9YYPRT-B.P1.S1), e de 10.12.2019 (Proc. 814/17.2T8MAI-A.P1.S2).

[3] É corrente na doutrina encontrar a definição de títulos de créditos seguindo a noção de Vivante, ou seja, como documentos necessários para exercer o direito literal e autónomo neles mencionado. Para as noções possíveis de títulos de crédito (restrita, ampla e amplíssima) cfr. Fátima Gomes, Manual de Direito Comercial, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, pp. 199 e s.

[4] Cfr. Paulo Olavo Cunha, Lições de Direito Comercial, Coimbra, Almedina, 2010, p. 257, e Direito Comercial e do Mercado, Coimbra, Almedina, 2018 (2.ª edição), p. 363.

[5] Está implícito, mas deve salientar-se que enquanto a livrança não for preenchida e nela inserida a data de vencimento, não começa a contar o prazo de prescrição; este conta-se a partir da data constante do título como sendo a do seu vencimento.

[6] Cfr., entre muitos outros, Adriano Vaz Serra, “Títulos de crédito”, in: Boletim do Ministério da Justiça,1956, n.º 60, pp. 5 e s. e n.º 61, pp. 5 e s., Paulo Melero Sendim, Letra de câmbio – L.U. de Genebra, volume I – Circulação cambiária, e volume II – Obrigações e garantias cambiárias, Universidade Católica Portuguesa, Coimbra, Almedina, s.d., António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, volume III – Letra de câmbio, Universidade de Coimbra, 1975, José de Oliveira Ascensão, Direito Comercial, volume III – Títulos de crédito, Lisboa, 1992, Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, volume I, Coimbra, Almedina, 2020 (2.ª edição), pp. 349 e s., Paulo Olavo Cunha, Lições de Direito Comercial, cit., p. 256 e s., e Direito Comercial e do Mercado, cit., pp. 362 e s., António Pereira de Almeida, Direito Comercial, volume III – Títulos de crédito, Lisboa, AAFDL, 1988, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, Lisboa, Petrony, 1996 /7.ª edição), Fátima Gomes, Manual de Direito Comercial, cit., pp. 198 e s., Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, Coimbra, Almedina, 2016, e Aval e insolvência, Coimbra, Almedina, 2017.

[7] Cfr. António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, cit., p. 131.

[8] Neste sentido se pronuncia, por exemplo, Carolina Cunha, Aval e insolvência, cit., pp. 19-20.

[9] Cfr. Catarina Serra, “Nótula sobre o artigo 217.º, n.º 4, do CIRE (o direito de o credor agir contra o avalista no contexto de plano de insolvência)”, in AA.VV., Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto Carvalho Fernandes – vol. I, Universidade Católica, 2011, p. 383. O aval é uma garantida dita “tradicional” e, pela sua dependência em relação ao título de crédito e pela sua limitada autonomia, foi já “ultrapassada”, no contexto do comércio jurídico bancário, por garantias mais eficazes como a garantia autónoma. Cfr. Catarina Serra, “Garantia bancária on first demand e responsabilidade do banco perante o beneficiário da garantia na hipótese de insolvência do sujeito garantido”, in: Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Cândido de Oliveira, Coimbra, Almedina, 2017, p. 168.

[10] Cfr. António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, cit., pp. 206-207 (sublinhados do autor).

[11] Cfr. Paulo Melero Sendim, Letra de câmbio – L.U. de Genebra, volume II – Obrigações e garantias cambiárias, cit., p. 835 e p. 837 (sublinhados do autor).

[12] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 395.

[13] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 399.

[14] Esta sujeição é bem descrita nas palavras do Acórdão desta 2.ª Secção de 19.10.2017 (Proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1): “Ao dar o aval ao subscritor em livrança em branco, fica o avalistasujeito ao direito potestativo do portador de preencher o título nostermos constantes do contrato de preenchimento, assumindo mesmo orisco de esse contrato não ser respeitado e de ter de responder pelaobrigação constante do título

[15] Cfr. Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., pp. 405-406.

[16] Cfr., para uma breve distinção, Pedro Pais de Vasconcelos / Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Direito Comercial, cit., p. 391, ou Fátima Gomes, Manual de Direito Comercial, cit., pp. 217-218.

[17] Encontra-se nesta norma alguma correspondência com o disposto no artigo 17.º da LULL, onde se diz que, em regra, “as pessoas accionadas em virtude de uma letra não podem opor ao portador as excepções fundadas sobre as relações pessoais delas com o sacador ou com os portadores anteriores”.

[18] Confirme-se, a título de exemplo, com o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 25.05.2017 (Proc. 9197/13.9YYLSB-A.L1.S1): “IV. Intervindo no pacto de preenchimento e estando o título no domínio das relações imediatas, o executado/embargante/avalista pode opor ao exequente/embargado a violação desse pacto de preenchimento. V - No caso, o avalista pode opor ao credor exequente as excepções no que concerne ao preenchimento abusivo da livrança (…)”.

[19] Cfr., neste sentido, por exemplo, António Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, cit., pp. 137, e Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, cit., p. 80.

[20] Cfr., só para um par de ilustrações, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.04.2000 (Proc. 00B048), 11.04.2000 (Proc. 00A225), de 6.06.2000 (Proc. 00A428) e de 27.05.2003 (Proc. 03B4728),

[21] Este não tem de ser expresso. Cfr., categoricamente, Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, cit., p. 80.

[22] Cfr., neste sentido, por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.06.2006 (Proc. 06A616).

[23] Outra seria, inevitavelmente, a conclusão se, como ocorreu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30.04.2002 (Proc. 02A998), citado na sentença, “pela via da integração negocial, nos termos do art. 239º do CC, já que corresponde, na lógica contratual, ao que as partes teriam previsto se houvessem contemplado especificadamente esse caso cuja regulamentação omitiram”, se concluísse que “as datas de vencimento a apor nas letras seriam (…) em caso de incumprimento, aquela em que o mesmo teria tido lugar”.
[24] Sumário transcrito por Abel Delgado, Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, cit., p. 83.

[25] Cfr. Carolina Cunha, Manual de letras e livranças, cit., pp. 205-206, e Aval e insolvência, cit., pp. 81-82. Cfr. ainda Heinrich Ewald Hörster / Maria Emília Teixeira, “Aval e prescrição”, in: Revista de Direito Comercial, 2022, p. 204 (https://www.revistadedireitocomercial.com/aval-e-prescricao).

[26] Carolina Cunha apela, implicitamente, a um prazo razoável, mas não o define, o que torna difícil compreender e aderir à sua tese. Diz a autora: “se é verdade que o credor não está propriamente obrigado a preencher o título no exacto momento em que se verifica o incumprimento e/ou resolução do contrato fundamental, a verdade é que impende sobre si o ónus de o fazer com alguma brevidade, sob pena de, decorridos (no máximo) três anos sobre esse instante perder definitivamente a possibilidade de exercer o direito cambiário contra o obrigado principal” [Aval e insolvência, cit., p. 82 (sublinhados da autora)]. O seu principal argumento é a “valoração legislativa vertida na rapidez da prescrição cambiária” com a correspondente “incontornável […] exortação legal a que o credor, uma vez exercitável o direito cambiário, efetivamente o exerça num breve espaço de tempo” [cfr. ob. cit., p. 81 (sublinhados da autora)]. Se a autora quer dizer que, nos casos em que o preenchimento do título não é feito no exacto momento do facto relevante mas algum tempo mais tarde, o credor perde, da mesma forma, a possibilidade de exercer o direito ao fim de três anos, isso contraria a ideia (consensual) de que o prazo de prescrição começa a contar-se a partir da data efectivamente inscrita na livrança. O certo é que, no caso contrário, só resta concluir que tanto é possível que a prescrição se dê ao fim de três anos a contar do facto relevante como mais tarde, em data indeterminada, consoante o portador aponha a data exacta do facto relevante ou uma data próxima mas sempre posterior. Esta indeterminação ou variabilidade temporal repercute-se na segurança e na estabilidade da prescrição do direito cartular e faz cair por terra o fundamento em que a tese se sustenta (“rapidez da prescrição cambiária”).

[27] Por sua vez, Heinrich Ewald Hörster e Maria Emília Teixeira (“Aval e prescrição”, cit., pp. 218-220) parecem entender que o prazo de prescrição de três anos é para o preenchimento da livrança. Mas isso contraria a ideia (consensual) de que o prazo de três anos previsto no artigo 70.º da LULL é, não para o preenchimento da livrança, mas para o exercício do direito cartular e começa a contar-se desde a data que é – ou deveria ser, no caso de preenchimento abusivo – a data (de vencimento) aposta na livrança. Os próprios autores partem, aparentemente, deste pressuposto umas páginas antes (cfr. ob. cit., p. 207).

[28] Este era a hipótese apreciada no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 11.06.2019 (Proc. 5046/16.4T8CBR-A.C1), também citado na sentença, em que se concluiu que a possibilidade conferida ao mutuante de preencher livremente a livrança, designadamente no que se refere às datas de emissão e vencimento, era “desproporcionalmente desvantajosa para o mutuário, o qual fica, uma indesejável situação de incerteza, o que contraria os ditames da boa-fé objectiva nos contratos sujeitos ao regime das Cláusulas Contratuais Gerais constante do Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (RCCG)”.

[29] Sobre a suppressio / Verwirkung cfr. António Menezes Cordeiro, Da boa fé no direito civil, Coimbra, Almedina, 1997, pp. 797 e s.

[30] Para uma excelente síntese das modalidades do abuso do direito, incluída a suppressio, no contexto da cobrança ao avalista de uma livrança em branco e das posições doutrinais nessa matéria cfr. o Acórdão desta 2.ª Secção de 19.10.2017 (Proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1).

[31] Repetindo o que havia dito na contestação (cfr. artigos 25.º e 41.º), o recorrido alega que subsistiram relações jurídicas entre ele e o recorrido depois de dissolvida a sociedade subscritora (conclusão XXX), tendo-se realizado uma reunião em 2015 para tentar um acordo extrajudicial com os avalistas e uma outra, já em 2019, com o ora recorrente, tendo só posteriormente o recorrido optado pelo preenchimento da livrança (conclusões XXX, XXXIV e XXXV). Não pode dar-se a realização destas reuniões como provada. O certo é que – insiste-se – nada impedia que o recorrente tivesse, por sua iniciativa, resolvido a situação do pagamento pendente.

[32] A propósito, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7.01.2019 (Proc. 1025/18.5T8PRT.P1), paradigmático pela clareza e pela solidez da sua fundamentação.