Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
455/13.3GBCNT.C2.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: PROCESSO PENAL
ABSOLVIÇÃO CRIME
CONDENAÇÃO
PENA DE PRISÃO
PENA SUSPENSA
DIREITO AO RECURSO
DIREITO DE DEFESA
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
INCONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 10/30/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEITADO POR INADMISSIBILIDADE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516;
- Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 200.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 400.º, N.º 1, ALÍNEA E) E 432.º, N.º 1, ALÍNEA B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 32.º, N.º 1.
Referências Internacionais:
PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS (PIDCP): - ARTIGO 14.º, N.º 5.
CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS (CEDH): - ARTIGO 53.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 12-12-2018, PROCESSO N.º 211/13.9GBASL.E1.S1, IN SASTJ, CRIMINAL, 2018, WWW.STJ.PT;
- DE 16-05-2019, PROCESSO N.º 407/14.6TAVRL.C1.S1;
- DE 05-09-2019, PROCESSO N.º 8/12.3GAMDL.G3.S1;
- DE 19-09-2019, PROCESSO N.º 8083/15.2TDLSB.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

- ACÓRDÃO N.º 64/2006;
- ACÓRDÃO N.º 659/2011;
- ACÓRDÃO N.º 290/2014;
- ACÓRDÃO N.º 412/2015;
- ACÓRDÃO N.º 429/2016;
- ACÓRDÃO N.º 595/2018, DE 13-11-2018.
Sumário :
I - Nos termos dos arts. 400.º, n.º 1, al. e), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, não é admissível recurso para o STJ de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que, mesmo que inovatoriamente face à absolvição em 1.ª instância, apliquem pena de prisão suspensa na sua execução.

II - Este caso não se compreende no âmbito da inconstitucionalidade normativa declarada com força obrigatória geral no acórdão do TC n.º 595/2018, que se limita aos casos em que o tribunal da Relação, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos.

III - No estado actual da legislação e da jurisprudência do Tribunal Constitucional aquele regime de recurso para o STJ efectiva, de forma adequada, a garantia do direito ao recurso consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP, enquanto componente do direito de defesa em processo penal.

IV - Este direito encontra-se reconhecido em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais [arts. 14.º, n.º 5, do PIDCP, 53.º, da CEDH) e 2.º do Protocolo n.º 7 a esta Convenção].

V - Na falta de apresentação de reserva pelos Estados Partes, o art. 14.º, n.º 5 do PIDCP obriga estes a adoptar as medidas legislativas necessárias para garantir que possa ser revista por um tribunal superior uma decisão condenatória proferida em recurso após absolvição por um tribunal de categoria hierárquica inferior, conforme interpretação do Comité dos Direitos Humanos.

VI - A CEDH não contém norma expressa sobre o direito ao recurso, mas o art. 53.º estabelece que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis dos Estados-Partes ou de qualquer convenção em que estes sejam partes, como é o caso do PIDCP.

VII - O art. 2.º do Protocolo n.º 7 da CEDH reconhece o direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal, mas este pode ser limitado pelas excepções previstas no n.º 2, em que se incluem as «infracções menores», definidas nos termos da lei e as situações em que o interessado tenha sido «declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição».

Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:



I.  Relatório


1. AA, arguida, com a identificação dos autos, interpõe recurso do acórdão de 20.02.2019 proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra que, na procedência dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente BB da decisão absolutória de 1.ª instância, alterando a decisão em matéria de facto, a condenou na pena de um ano e dez meses de prisão, suspensa na sua execução com regime de prova, pela prática de um crime de subtracção de menor, p. e p. pelo artigo 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal, e ainda no pagamento da importância de 7.500 EUR a título de indemnização por danos não patrimoniais a cada um dos demandantes civis, CC e BB

2. Apresenta motivação, dizendo em conclusão:

«1 - Estava escrito nas estrelas que a recorrida teria de ser castigada por ter a audácia de não cumprir uma decisão infeliz do Tribunal de … que sem qualquer fundamento, decide confiar uma criança de 1 ano e alguns meses ao pai que havia abandonado a habitação e que nunca fora impedido de a visitar em casa da mãe na sua presença e desde que a menor não estivesse a dormir dado ao estilo de vida do pai que passava a noite a frequentar bares pouco recomendáveis, chegando tardiamente a casa, como de resto ficou provado no processo de divórcio mas que pelos vistos não interessou à senhora relatora consultar.

2 - Como também não lhe interessou consultar no processo de regulação das responsabilidades parentais a perícia legal à personalidade do assistente considerando-se manipulador, psicopata, impulsivo, histérico.

3 - Felizmente que tal decisão infeliz foi revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de recurso excepcional, acabando, assim, por dar razão à mãe que receava entregar a filha ao pai tendo em vista a sua protecção e de modo a evitar danos irreversíveis para a menor.

4 - Esse acórdão excepcionalmente admitido pelo Senhor Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa, que faz parte do processo de responsabilidades parentais está documentado mas pelos vistos também não interessou à senhora relatora tomá-lo por perto.

5 - O Tribunal da Relação de Coimbra apenas se refugia no processo criminal de … (subtracção de menor) para reforçar que a arguida já havia cometido um crime de subtração de menor processo esse que envergonha a justiça e sobretudo indigna o povo em nome de quem é administrada a justiça, condenar uma mãe por proteger a filha sendo anulada a decisão do Juiz de … que a mesma contrariava, é no mínimo chocante e ninguém nunca entenderá esta justiça!!!!!!

6 - Aliás é o próprio assistente que pede para se proceder à análise critica da prova documental constante do processo, nomeadamente os documentos que constituem certidões ou cópias de peças de processos 2484/12.5T… A, (não lhe interessou o do divorcio) e 4109/12.0T… julgado pelo já famoso Juiz DD que foi arquivado sem qualquer decisão condenatória transitada em julgado que condene a arguida pela prática de um crime de denúncia caluniosa pelo que como bem refere a douta sentença da primeira instância não podemos extrair daí outras ilações (diabolização) da arguida em termos de formação de convicção, senão aquelas que resultam do arquivamento por inexistência suficiente de indícios para a prática do crime.

7 - “Existe uma (algumas) flagrante inconstitucionalidade quando o julgador é cerceado na apreciação da matéria de facto por outras decisões, e quando é compelido a absorver acriticamente a fundamentação que decorre de decisões proferidas noutros processos, anda que conexos, isto porque a livre convicção do julgador que o legislador consagrou no art.º 127.º CPP não pode ser limitada pela livre convicção de outro julgador” como muito bem refere a M.ª Juiz da primeira instância.

8 - O Tribunal da Relação de Coimbra omitiu, o recurso da Relação de Lisboa que revogou o acordo de responsabilidades parentais e sobre o qual a arguida, ainda, assim veio a ser condenada como omitiu a perícia ao perfil do assistente, e quem sofre com isso tudo é uma menor que certamente ficará com sequelas para toda a vida pela leviandade com que a justiça tratou o seu caso.

9 - Aliás veja-se a tamanha ilegalidade deste acórdão que chega a decidir com base em outros processos que pelos vistos mereceram todo o empenho e escrutínio da Senhora Relatora.

10 - Depois de algumas perturbações na Justiça corremos o perigo de qualquer arguido vir a ser condenado pela prática dos factos que praticou e de que foi acusado mais aqueles que praticou noutros processos crime ou civil.

11 - Ao avocar a matéria de facto do processo de … o Tribunal infringiu o estipulado constitucionalmente art.º 29.º n.º 5 da CRP ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime.

12 - Aliás muito bem andou a Senhora Juiz da primeira instância quando refere “Mais se diga que os documentos que versam sobre factos que extravasam (ainda que apenas temporariamente o objecto deste processo não foram considerados relevantes para efeitos de formação da convicção do Tribunal explicando que a condenação averbada no CRC refere-se a um comportamento substancialmente diferente do que aqui se aprecia, a mãe teria violado, nessa outra sede, a decisão provisória que fixou a guarda da criança de tenra idade ao pai decisão provisória essa que veio a ser revogada posteriormente pelo Tribunal da Relação de Lisboa”.

13 - Ora aqui, como muito bem refere a Senhora Juiz a quo da primeira instância aprecia-se a estrita questão das visitas e a atitude interna que a arguida teve relativamente a tal questão no estrito espaço temporal compreendido na acusação que delimita o objecto do processo.

14 - Por se tratar de situação diversa e em momento temporalmente diferente entendemos que os antecedentes criminais não poderiam servir para fundamentar a convicção do tribunal nem as vicissitudes das visitas posteriores que extravasam o objecto deste processo ocorridos no proc. 2484/12.5… .

15 - De salientar que depois de ser proferido o douto acórdão que revogou excecionalmente o regime provisório fixado pelo Tribunal … em Abril de 2013 só em 26.09.2013, passados oito meses é que o Tribunal do … se dignou a fixar (impor) um regime provisório sendo certo que durante esse lapso de tempo o pai nunca procurou visitar a filha na morada da mãe sendo certo que o Tribunal do … informou o paradeiro da menor face à decisão do Tribunal da Relação de Lisboa.

16 - E mais uma vez a CC foi vítima da justiça que não acautelando os seus direitos e os seus interesses superiores fixou um regime provisório que basicamente se traduziu no seguinte:

Regime Provisório

1. A menor fica a residir com mãe, uma vez que sempre esteve com esta desde que nasceu, existindo conforme resulta de fls. 647, uma forte relação afectiva com a figura materna, cabendo à progenitora o exercício das responsabilidades parentais quanto aos actos de vida corrente da menor.

2. As responsabilidades parentais em questões de particular importância, tais como saúde, educação, actividades de lazer e formação moral e religiosa, serão exercidas em comum por ambos os progenitores, salvo nos casos de manifesta urgência, em que qualquer dos progenitores poderá agir sozinho, devendo prestar informações ao outro logo que possível.

3. A título de visitas, o pai poderá estar com a menor de 15 em 15 dias, permanecendo esta com o progenitor ao sábado e domingo, sem pernoita de sábado para domingo. Durante os primeiros 2 fins-de-semana em que a menor estará com o pai, este irá buscá-la a … a casa da avó materna às 10H30, indo entregá-la nesse mesmo dia em casa da avó às 21H30. No domingo, manter-se-á o mesmo regime, indo, contudo, o pai entregar a menor às 16H00.

4. Decorridos os primeiros dois fins-de-semana, a mãe entregará a menor ao sábado às 10H30 numa pastelaria junto aos bombeiros de …, indo o pai entregá-la a casa da avó materna às 21H30. No domingo, o pai irá buscar a menor a … e entregá-la no mesmo local onde a recebeu no sábado, pelas 16H00.

5. Durante os primeiros 4 fins-de-semana em que o pai terá a menor consigo, as visitas serão acompanhadas por pessoa idónea da confiança da mãe e que o pai aceita expressamente, devendo a progenitora, no prazo de 5 dias, indicar a identificação completa da referida pessoa.

6. As visitas iniciar-se-ão nos dias 12 e 13 de Outubro de 2013.

7. A título de pensão de alimentos a favor da menor, o pai contribuirá com €140,00 mensais, a liquidar através de transferência bancária para conta titulada pela progenitora, cujo NIB esta indicará em 5 dias, até ao dia 8 de cada mês, a partir do próximo mês.

8. O presente regime vigorará pelo prazo de 6 meses, devendo solicitar-se inquérito social relativamente aos progenitores decorridos 5 meses, a fim de se apurar o modo como estão a decorrer as visitas entre pai e filha.

Desde logo realça que a decisão de o Tribunal de … que foi revogada pelo Tribunal da Relação de Lisboa não tinha qualquer fundamento tanto mais que o Tribunal do … decidiu que A menor ficaria a residir com mãe, uma vez que sempre esteve com esta desde que nasceu, existindo conforme resulta de fls. 647, uma forte relação afectiva com a figura materna, cabendo à progenitora o exercício das responsabilidades parentais quanto aos actos de vida corrente da menor.

17 - Como já vimos, anteriormente, o que é certo é que a mãe da CC acabou por ser condenada por um crime de subtracção de menor pelo Tribunal de … por não cumprir um erro grosseiro do Tribunal de … como se veio a verificar.

18 - Aliás, o Tribunal do … impôs que nas quatro primeiras semanas as visitas seriam supervisionadas por pessoa idónea a indicar pela mãe e sem pernoita.

19 - Depois dessas quatro semanas de visitas o Tribunal do … decidiu provisoriamente que a mãe entregaria a menor no sábado as 10 h 30 numa pastelaria junto aos bombeiros de …, indo o pai entregá-la a casa da avó materna a … às 21h 30m e no domingo o pai iria buscar a menor a … e entregaria no mesmo local onde a recebeu no sábado, pelas 16 horas.

20 - Mas estabeleceu que o regime era provisório e válido por seis meses, sendo certo que nunca foi alterado, caducando o mesmo.

21 - Quem de facto desenhou este regime de visitas não pensou na saúde da menor que todos os sábados se teria de levantar à 5 horas da manhã para apanhar o comboio com a mãe, fazendo 250 Km.

22 - À noite o pai ia levá-la a … percorrendo mais 180 Km.

23 - De manhã percorria mais 180 Km para ir passar o domingo com o pai e às 16 h 30 percorria mais 200 km de comboio para regressar a casa com a mãe.

24 - A mãe apesar de tal decisão desenhada, sendo inadequada, desproporcionada pondo em causa a saúde e o bem estar da CC cumpriu as 2 primeiras visitas neste regime.

25 - Como estava desempregada, deixou de ter condições económicas e financeiras e falta de tempo devido aos horários para fazer essas viagens informando o pai e sensibilizando-o para vir buscar e entregar a filha na casa de morada da mãe em … o que cumpriu uma vez alegando sempre num espírito mesquinho e de pouca sensatez sobretudo para com a filha que a obrigação era da mãe de a levar a … .

26 - Nessa altura a mãe requer a alteração do regime provisório fixado nunca tendo sido apreciado pelo tribunal esse requerimento.

27 - Mas mais, não foram cumpridas as quatro semanas de visitas supervisionadas e sem pernoita sendo apenas três daí que a recorrida não estaria obrigada a cumprir as visitas de quinze em quinze dias deixando-a em … sob pena de desrespeitar o Tribunal, situação essa que ao que parece não foi avaliada pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

28 - Como muito bem refere a Meritíssima Juiz a quo do Tribunal de primeira instância “o principio da subsidiariedade de intervenção do direito penal - que supõe a carência de tutela penal de determinado comportamento que afecte bens e valores com relevo axiológico constitucional - não poderá sem afectar o princípio da proporcionalidade, sustentar a criminalização e sancionamento penal do incumprimento de um regime sobre direitos civis sem que os meios de sancionamento próprios dessa outra sede sejam utilizados. Com efeito estão previstas meios próprios de injunção e coerção ao cumprimento no âmbito do processo de família e menores os quais in casu não foram acionados”.

29 - E continua “por isso a subtracção ou não cumprimento com o sentido da alínea c) só deve e pode ter sentido quando se refira a situações de ultima ratio e os meios normalmente adequados para fazer respeitar o cumprimento das obrigações parentais não se revelam eficazes.

30 - E nesta perspectiva conclui a Mª Juiz “a quo” da primeira instância que os elementos da tipicidade do crime do art.º 249.º n.º alínea c do CP na redação da Lei 61/2008 devem ser interpretados e integrados,

31 - Acresce que o tipo legal não se refere a regimes provisórios pelo que se nos afigura que estes devem ter-se por excluídos da tipicidade legal.

32 - Mas ainda que assim se não entenda, in casu resulta que o plano de aproximação que veio a ser elaborado posteriormente, atenta a falência do regime provisório implementado aqui em apreço que, note-se tinha a duração de seis meses, acabou por ir ao encontro daquilo que era reivindicado pela mãe, qual seja a entrega ao pai na área de residência da criança, na escola e sob supervisão de uma técnica da Segurança Social.

33 - Ora como conclui a M Juiz de primeira instância isto mais não é do que a constatação da inexequibilidade aventada pela mãe do primeiro regime provisório estipulado quer pelo horário que se impunha cumprir que bem se vê representava um cansaço extremo para uma criança de tenra idade, quer pelas despesas incomportáveis para a arguida face ao vencimento auferido.

34 - E não venha o Tribunal da Relação de Coimbra subestimar estas despesas, já ao que parece em relação à menor a preocupação não era nenhuma alegando que a mãe tinha um Qscai perguntando nós se o mesmo anda a àgua se não paga portagens e se há prova de que o veículo era dela e já agora porque deveria ser ela a assumir essas responsabilidades aliviando o pai, que não é nenhum coitadinho embora se faça de indigente para obter o apoio judiciário e assim usar os meios judiciais desenfreadamente à custa dos contribuintes.

35 - Salta à vista do homem médio ou mulher que neste acórdão se quis castigar a arguida, beneficiar o pai e prejudicar a menor.

36 - Aliás está patente tal desiderato quando na decisão se refere que a arguida está impedida de perturbar a vida escolar da filha impondo nos estabelecimentos que ela frequentar atitudes e comportamentos que queira que desenvolvam, contrários ao neles seguidos e/ou contrários aos interesses da filha.

37 - Bastaria este segmento de decisão para se perceber desde logo a contaminação trazida de outros processos sem qualquer prova para se decidir num processo que nada tem a ver com o seu objecto.

38 - Esperamos que já agora os montantes indemnizatórios pedidos 7.500,00 não tenham a ver com o Tal Nissan Qscai sendo caso para se dizer que se mais pedissem mais lhes era atribuído sem qualquer critério ou juízo de equidade.

39 - Recentemente, a recorrente foi notificada de um Relatório Social elaborada pela Técnica que supervisiona as visitas da mãe de 15 em 15 dias e que, pelos vistos incomodou muito o assistente e alertou o Senhor Juiz “a quo” que prova que os interesses superiores da CC não estão a ser respeitados e dá razão à recorrida.

39 - Felizmente que ainda existem tribunais superiores para poderem corrigir estes desvios e injustiças é o que se espera do Supremo Tribunal de Justiça.

40 - Ao decidir como decidiu o Tribunal recorrido violou os art.º 29.º n.º 5 da CRP, o art.º 127.º do CPP , que o legislador consagrou constitucionalmente e que se traduz no facto de o julgador não poder ser cerceado na apreciação da matéria de facto por outras decisões, e quando é compelido a absorver acriticamente a fundamentação que decorre de decisões proferidas noutros processos, ainda que conexos, isto porque a livre convicção do julgador não pode ser limitada pela livre convicção de outro julgador” e ainda o art.º 249.º alínea c) do CP.

Termos em que se requer (…) a revogação da decisão do Tribunal da Relação de Coimbra mantendo a sentença da primeira instância que absolveu a arguida mandando-a em paz.»

3. Responde a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Coimbra, dizendo, em conclusões:

«Questão Prévia:

1 - Os Recursos interpostos para o STJ visam exclusivamente o reexame de matéria de direito.

2 - Versando o recurso apenas a impugnação da matéria de facto, não é admissível o seu conhecimento pelo STJ.

3 - Deve, por isso, ser liminarmente rejeitado

Do Recurso

4 - Caso tal não seja entendido, sempre se dirá que nada nos oferece dizer por não ser admissível o recuso da impugnação da matéria de facto para o STJ.

5 - Já houve recurso da matéria de facto para o Tribunal da Relação, tendo sido confirmada.

6 - O STJ também não conhece dos vícios da sentença, a que alude o art.º 410.º n.º 2 do CPP, a não ser oficiosamente

5.- Deve, assim julgar-se legalmente inadmissível o recurso.»

4. Responde também o assistente, concluindo:

«I - Olhando para a motivação e conclusões do Recurso interposto pela arguida, apesar de constar da última conclusão uma brevíssima referência genérica à violação dos artigos 29.º, n.º 5 da CRP e 127.º do CPP e 249.º, al. a) do CP, todo o Recurso versa sobre impugnação da matéria de facto, que não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça

II - Apesar de o recurso ter sido admitido por douto despacho da Ex.ª Sra. Desembargadora, tal decisão não vincula o Tribunal Superior (art.º 414.º n.º 3 do CPP), devendo o presente recurso ser liminarmente rejeitado.

Sem prescindir, caso assim não seja entendido,

III - Em 26/09/2013, houve lugar, no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais 2484/12.5T…–A, do juízo de família e menores do … – J…, a uma conferência de pais, onde foi proferida a decisão provisória objecto dos presentes Autos, a qual, no seu ponto 4., com especial interesse para os presentes autos, refere: “Decorridos os primeiros dois fins-de-semana, a mãe entregará a menor ao sábado às 10H30 numa pastelaria junto aos bombeiros de …, indo o pai entregá-la a casa da avó materna às 21H30. No domingo, o pai irá buscar a menor a … e entregá-la no mesmo local onde a recebeu no sábado, pelas 16H00.“

IV - A arguida aceitou tal decisão provisória de regulação das responsabilidades parentais proferida em 26/09/2013, conformou-se com a mesma e não interpôs qualquer recurso de tal decisão, mas, como resulta dos autos e de resto foi confirmado pela própria arguida na audiência, tal decisão nunca foi cumprida, uma vez que aquela nunca compareceu com a menor para a visita

V - Da matéria de facto - provada e confirmada pelo Tribunal da Relação de Coimbra – resulta encontrarem-se preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de subtração de menor e, como resulta do douto Acórdão Tribunal da Relação de Coimbra, “O que consta da lei é que para haver crime terão que ocorrer incumprimentos repetidos e injustificados do regime estabelecido na regulação das responsabilidades parentais para a convivência. Tudo visto resulta que a arguida cometeu um crime de subtracção de menor, do art.º 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.”

VI - Não é admissível recurso da impugnação da matéria de facto para o Supremo Tribunal de Justiça.

VII - Nos termos do artigo 434.º do Código de Processo Penal, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito; a arguida recorrente, que foi condenada em pena de prisão suspensa na sua execução, não contesta, no seu recurso, a matéria de direito, limitando-se a pôr em causa matéria de facto, pelo que o seu Recurso deve ser julgado legalmente inadmissível.

Sem prescindir,

VIII - A arguida Recorrente interpôs o presente Recurso do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, invocando, a final, como fundamento a violação dos artigos 29.º, n.º 5 da CRP e 127.º do CPP e 249.º, al. a) do CP, alegando, em síntese, que a arguida foi julgada mais do que uma vez pela prática do mesmo crime, o que não corresponde à verdade.

IX - A arguida recorrente, que foi condenada em pena de prisão suspensa na sua execução, não contesta, no seu recurso, a matéria de direito; limita-se a insurgir-se com o facto de as sentenças anteriores, proferidas noutros processos, nomeadamente no processo 61/12.0G…, em que a mesma foi anteriormente condenada também por um crime de subtração de menor, terem sido valoradas no douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, em termos de valoração da conduta anterior e posterior da arguida, alegando que, com isso, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 29.º, n.º 5 da CRP, pois “ ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo crime”

X - Nos presentes Autos, a arguida foi, julgada e condenada por um crime de subtração de menor, decorrente de factos praticados entre 09 de novembro de 2013 e 28 de fevereiro de 2015; como consta do certificado de registo criminal da arguida, a mesma já havia sido condenada, no âmbito do processo 61/12.0G…, por um outro crime de subtração de menor, mas decorrente, este, de factos praticados em 26/03/2012, que nada têm que ver com os factos jugados no presente processo.

XI - O facto de a arguida ser reincidente, cometendo várias vezes o mesmo tipo de crime, não implica que a mesma seja julgada 2 vezes pelo mesmo crime, mas sim tantas vezes quantas forem necessárias por cada um dos crimes autónomos que cometeu, ainda que repetidamente esteja em causa o crime de subtração de menores, desde que os factos em causa e o momento da sua prática sejam distintos entre si.

XII - Não existe qualquer identidade de objecto entre o crime julgado nos presentes autos e o crime em que a arguida foi anteriormente condenada no âmbito do processo 61/12.0G…, nem sequer em moldes de se poder considerar a existência de um crime continuado.

XIII - Se a arguida, já anteriormente condenada – por decisão transitada em julgado - por um crime de subtração de menores, não corrigiu a sua conduta e praticou, novamente, factos que consubstanciam outro crime de subtração de menores, deve ser julgada por esse segundo crime, autónomo do anterior.

XIV - Averiguar os antecedentes criminais da arguida, averiguar o seu comportamento delituoso - anterior, contemporâneo e posterior - e averiguar a intensidade do dolo com que agiu, não significa julgar uma segunda vez a arguida pelo mesmo crime.

XV - Para proferir uma decisão justa e adequada ao caso concreto, o Tribunal deve analisar todos os meios de prova relacionados com os factos em causa, incluindo outras decisões judiciais que permitam averiguar o comportamento delituoso da arguida, anterior e posterior e averiguar a intensidade do dolo com que agiu.

XVI - Na escolha da medida concreta da pena, incumbe ao Tribunal averiguar, além do mais, os antecedentes criminais da arguida e, analisar criticamente e valorar tais decisões judiciais não significa absorver acriticamente a fundamentação que decorre de outras decisões conexas, não significa julgar uma segunda vez a arguida pelo mesmo crime e não consubstancia uma violação do artigo 29.º, n.º 5 da CRP.

XVII - Como resulta do douto acórdão proferido, o Tribunal “a quo” fez uma exaustiva, correcta, completa critica, objectiva e cabal apreciação da prova, mormente da prova documental, constante dos autos, tendo considerado preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de subtração de menor, e a determinação da medida concreta da pena obedeceu a todos os critérios legais, não tendo sido de resto, tal matéria, alvo de recurso.

XVIII - O douto acórdão encontra-se clara e perfeitamente fundamentado e foi proferido com total respeito pelos preceitos legais aplicáveis, tendo resultado de uma exaustiva e cuidadosa análise e apreciação de toda a prova produzida, não merecendo qualquer censura ou reparo; consequentemente, correta foi a decisão alcançada, devendo manter-se, na íntegra, o douto Acórdão proferido, improcedendo o recurso na sua totalidade.

Termos em que, deverá o recurso interposto ser liminarmente rejeitado, uma vez que versa sobre impugnação da matéria de facto, que não é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça; sem prescindir, deverá o recurso interposto ser considerado legalmente inadmissível; sem prescindir, negando-se provimento ao recurso interposto, e confirmando-se o douto Acórdão recorrido, deve o mesmo manter-se, na íntegra (…).»

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do CPP, tendo a Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste Tribunal emitido parecer em que suscita a questão prévia da admissibilidade do recurso, nos seguintes termos:

«Questão prévia - inadmissibilidade do recurso

1. Em sede de tribunal de 1ª instância, a arguida AA foi absolvida da prática do crime de subtracção de menor pp pelo art. 249.º n.º 1- c) do CP.

2. Interposto recurso pelo MºPº e pelo assistente, por acórdão de 20-02-2019 do Tribunal da Relação de Coimbra foi decidido:

- alterar a matéria de facto, nos termos definidos a fls. 1456/1460 do acórdão;

- condenar a arguida AA na pena de 1 ano e 10 meses de prisão pela prática do crime de subtracção de menor, do art. 249.º n.º 1-c) do CP, suspendendo-se a execução de tal penas pelo mesmo período, sujeita às regras de conduta e regime de prova definidos a fls. 1466 verso do acórdão.

Ou seja, inovatoriamente, o tribunal da Relação alterou a decisão de absolvição de 1.ª instância para decisão condenatória, aplicando pena de prisão de 1 ano e 10 meses, suspensa na sua execução .

3. De tal acórdão do TRC interpõe a arguida recurso para o STJ, em 01.04.2019, pagando a respectiva multa.

4. Cumpre, antes de mais, aferir da recorribilidade do acórdão proferido em recurso pela Relação que inovatoriamente alterou a decisão de absolvição de 1ª instância para decisão condenatória, aplicando à arguida pena de prisão de 1 ano e 10 meses, suspensa na sua execução, para efeito das disposições conjugadas nos arts. 400.º n.º 1-e) e 432.º n.º1-c), do CPP e apreciação do juízo de inconstitucionalidade decidido com força obrigatória geral, no acórdão do TC n.º  595/2018 (DR n.º 238/2018, Série I, de 2018-12-11).

No acórdão de fixação de jurisprudência nº 14/2013 (DR 219, série I de 12.11.2013), foi fixada a seguinte jurisprudência:  

“Da conjugação das normas do artigo 400.º alíneas e) e f) e artigo 432.º n.º 1 alínea c), ambos do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão“.

Porém, o recente acórdão do TC n.º 595/2018 (DR n.º 238/2018, Série I, de 2018-12-11) “declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efetiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro.”

Ora, na situação dos presentes autos, conquanto tenha ocorrido inovatoriamente alteração da decisão de absolvição da 1.ª instância, para decisão condenatória, por parte do tribunal da Relação, não foi aplicada à arguida pena efectiva de prisão, mas apenas pena de substituição consubstanciada em pena suspensa na sua execução pelo período de 1 ano e 10 meses, com sujeição a regime de prova.

Sendo distinta a situação dos presentes autos daquela que foi objecto de decisão no acórdão proferido pelo TC nº 595/2018, o juízo de inconstitucionalidade ali decidido não é aplicável à situação dos presentes autos.

Nessa medida, nos termos das disposições conjugadas dos citados arts. 400.º nº1-e) e 432.º n.º1-c), do CPP, pronunciamo-nos pela inadmissibilidade do recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça, devendo o mesmo ser rejeitado.»

6. Notificada para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, a recorrente nada disse.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

8. A arguida foi absolvida, em 1.ª instância, da prática do crime de subtracção de menores da previsão do artigo 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal.

9. Chamado a conhecer da alegada verificação de vícios da sentença (artigo 410.º, n.º 2, do CPP) e do alegado erro de julgamento, com impugnação da decisão em matéria de facto (artigo 412.º, n.º 3, do CPP), o tribunal da Relação, concluindo que a sentença da 1.ª instância «padece de contradição e de erro de julgamento», alterou a decisão em matéria de facto. Foram aditados 37 novos pontos à matéria de facto dada como provada em 1.ª instância e introduzidas alterações parciais em alguns dos 20 pontos desta.

Nessa conformidade, o Tribunal da Relação considera provados os seguintes factos:

«1 – a arguida AA e o assistente BB têm uma filha de nome CC, nascida em …-9-2009;

2 – na conferência de pais para a regulação das responsabilidades parentais, realizada em 26-9-2013 no âmbito do processo 2484/12.5T…-A, do 1.º juízo de Família e Menores do Tribunal de Família e Menores e de Comarca do …, foi decidido atribuir a guarda da menor à mãe e fixar regime de visitas ao pai, a realizar de quinze em quinze dias, determinando-se que «… a mãe entregará a menor ao sábado às 10h30 numa pastelaria junto aos bombeiros de …, indo o pai entregá-la a casa da avó materna às 21h30 …»;

3 – também foi decidido que as visitas se iniciavam nos dias 12 e 13-10-2013 e que o regime vigoraria pelo prazo de 6 meses;

4 – o local de entrega para visitas foi fixado em … porque, na conferência de pais, a demandada referiu que, apesar de residir na zona de Lisboa, costumava passar os fins-de-semana em …, em casa da sua mãe, pretendendo que o demandante ali se deslocasse quinzenalmente para ver a filha;

5 – uma vez que para ir de … a … a demandada tinha que passar pela zona de residência do assistente, sita em …, foi sugerida a entrega na zona de …, perto da saída da auto-estrada, mas como a demandada disse que não queria ir a …, foi sugerido …, porque ficava perto da residência do pai e da auto-estrada;

6 – na conferência a arguida não forneceu número de telefone ou de telemóvel para contacto e foi notificada para, em 5 dias, indicar o seu número de telefone ou telemóvel e indicar, também, o número do telefone fixo da casa da sua mãe, em …, onde o pai iria levar e buscar a menor;

7 – a arguida conformou-se com a decisão de 26-9-2013;

8 – no relatório social de 19-2-2013, que teve por base, nomeadamente, uma entrevista feita ao assistente, consta que a subscritora do mesmo, EE, entendia que BB possuía «as necessárias competências para exercer as responsabilidades parentais de forma adequada e responsável» - fls. 375 a 377 -, repetindo a mesma conclusão no relatório datado de 15-5-2014 (fls. 401/402);

9 – no relatório social de 28-3-2013 subscrito por FF, que teve por base, nomeadamente, uma entrevista feita à arguida, consta que a arguida declarou que não exercia actividade profissional, que residia em casa de um amigo da família, que vivia dos rendimentos provenientes da renda de uma habitação que a família tinha em …, que pendia um processo crime contra o assistente por abusos sexuais por parte do pai à menor, que por isso se ausentou com a filha, que sabia estar a contrariar uma decisão judicial mas que o seu papel era salvaguardar o bem estar físico e emocional da filha (fls. 380/384);

10 – no relatório social que elaborou em 17-4-2014 (fls. 389 a 392), que teve por base, nomeadamente, uma entrevista feita à arguida em 19 de Março, consta que a arguida declarou que iniciou actividade profissional em Outubro de 2013 em empresa de trabalho temporário, que em Janeiro de 2014 tinha começado a trabalhar num restaurante e que o rendimento mensal do agregado familiar era de 600 €, provenientes do seu vencimento, referindo a técnica que a arguida mantinha uma postura pouco adequada no que respeitava à capacidade de promover contactos tão regulares quanto possível entre a CC e o pai, que mantinha postura de desvalorização da necessidade de promover tais contactos e que o pai não era uma referência afectiva essencial na vida da filha;

11 – deste relatório também consta que «foram efectuadas inúmeras tentativas de contacto telefónico com AA, no sentido de proceder à marcação de visita domiciliária … contudo não foi possível estabelecer contacto telefónico, uma vez que o número (9…) facultado pela requerida» estava «sempre desligado, não sendo possível deixar qualquer mensagem»;

12 – no relatório social de avaliação, também de …-4-2014 (fls. 396 a 398) FF consta que a arguida declarou que o primeiro contacto entre a filha e o pai foi em ..., em 13 de Outubro de 2013, entre as 10h30 e as 19h, que nos dias 26 e 27 de Outubro não se realizaram visitas porque não teve possibilidade de ir a ..., que houve visitas em 7 e 8 de Dezembro, em Lisboa, no sábado no Jardim … e no domingo na …, que a menor chorou antes de sair de casa, assumindo uma postura de rejeição, referindo a técnica que a arguida mantinha postura pouco colaborante relativamente à reaproximação da CC com o pai;

13 – até 3-6-2015, data da dedução da acusação pelo Ministério Público, a arguida cumpriu o primeiro fim-de-semana, de 12 e 13-10-2013;

14 – a arguida não entregou a menor ao pai, no local judicialmente determinado, pelo menos nos dias 9-11-2013, 23-11-2013, 21-12-2013, 4-1-2014, 18-1-2014, 1-2-2014, 15-2-2014, 1-3-2014, 15-3-2014, 29-3-2014, 1-4-2014, 12-04-2014, 26-4-2015, 10-5-2014, 24-5-2014, 21-6-2014, 5-7-2014, 19-7-2014, 2-8-2014, 13-9-2014, 27-9-2014, 9-11-2013, 22-11-2014, 6-12-2014, 20-12-2014, 3-1-2015, 17-1-2015, 31-1-2015 e 28-2-2015;

15 – em 12-11-2013, na GNR de …, procedeu-se à leitura do cartão do telemóvel do assistente, nº 9…, e feito auto de recolha das mensagens trocadas com a arguida, telemóvel nº 9…, no dia 8-11-2013:

- mensagem enviada pelo assistente para a arguida às 16h56: «Conforme decisão do tribunal deve vir entregar a minha filha amanhã de manhã em … para a visita deste fim de semana. Estarei às 10h30 junto aos bombeiros de …»;

- mensagem da arguida para o assistente às 20h37: «Foi requerida uma alteração de regime provisório atendendo a alteração de circunstâncias que espero seja aceite por si para bem da CC. Ficando sem efeito as visitas em …»;

- mensagem do assistente para a arguida: «Não fui notificado pelo tribunal de nenhum pedido de alteração. De qualquer forma, se requereu alguma coisa, a decisão do juiz, de 27 de Setembro, mantém-se em vigor enquanto não houver decisão judicial que a altere. Assim conforme a decisão entregar-me a CC amanhã às 10h30 em …, sob pena de mais um incumprimento …»;

- mensagem enviada pela arguida para o assistente: «Pode vir ver a CC amanhã às 10h30 em frente ao macdonalds de … que sera acompanhada pelo GG. Agradeco confirmação»;

- mensagem enviada pelo assistente para a arguida: «Posso ir busca-la amanha às 10h30 a …, mas nesse caso deverá vir busca-la no domingo às 16h a …, já que como é óbvio, a viagem é demasiado longa para ela fazer ida e volta no mesmo dia. Informo ainda que, já que continua a não cumprir a decisão em vigor, eu próprio vou pedir alteração da regulação. Assim, diga-me onde prefere que eu vá buscar a minha filha amanhã»;

- mensagem enviada pela arguida para o assistente: «Como esta fora de hipótese a pernoita, a visita fica sem efeito»;

- mensagem enviada pelo assistente: «na falta de consenso razoável, as suas mensagens não tem mais valor que a decisão judicial em vigor. Pelo bem de CC, deve facilitar o contacto e não dificulta-lo em motivo. Estarei amanhã às 10h30 em …»;

16 – em 22-11-2013 o assistente e a arguida trocaram as seguintes mensagens, referentes às visitas do fim-de-semana de 23 e 24-11-2013:

- do assistente para a arguida, às 18h31: «Conforme a decisão do tribunal deve vir entregar a minha filha amanha de manha em … para a visita deste fim de semana. Estarei às 10h30 junto aos bombeiros de …»;

- da arguida para o assistente, às 19h39: «Agradecia que me dissesse se vem a visita amanha. 10h30 em frente ao mac de … e entrega no mesmo sitio as 21h30»;

- do assistente para a arguida: «Vou sim senhor a … frente ao mc donald´s e entregarei a bebe em … as 21h30 em casa do avô. Agradeço confirmação»;

- da arguida para o assistente: «A entrega tem que ser feita no mesmo sitio. Eu não estou em ..., estou em lisboa. Agradeço confirmação»;

- do assistente para a arguida: «Eu não lhe pedi para voce estar em ... amanha à noite. Eu entrego a CC à avo amanhã à noite e volto a ir busca-la domingo de manha. A CC volta para lisboa no domingo à tarde»;

- da arguida para o assistente: «Neste caso fica a visita sem efeito. Aguardando decisão do tribunal. esta em falta com a pensao de alimentos da CC d 2 meses, agradeco que envie o val na proxima quarta 27 de nov ou vou apresentar queixa»;

- do assistente para a arguida: «qual é a desculpa desta vez? Também já não confia na sua mae? Não tem qualquer autoridade para cancelar uma visita fixada pelo tribunal. a decisão do tribunal ainda esta em vigor. Já que nao aceita a minha sugestão, amanha as 10h30 vou buscar a minha filha a … frente aos bombeiros. Em relação a pensão ainda estou a aguardar o seu número de conta conforme esta na acta do tribunal»;

17 – em 4-1-2014 o assistente e a arguida trocaram as seguintes mensagens, referentes às visitas do fim-de-semana de 5 e 6-1-2014:

- do assistente para a arguida: «boa tarde para a visita da CC este fim de semana agradecia que me confirmasse se vem a … e entrego-lhe ao domingo em …? ou contrário»;

- da arguida para o assistente: «komo combinado ao telefone, a visita iem… durante o dia não há pernoita. Agradeço ke me confirme se vem amanhã ás 10h30»;

- do assistente para a arguida: «eu não combinei nada e não vou estar um dia inreito com a minha filha na rua»;

- da arguida para o assistente: «não precisa de estar um dia inteiro. se se importa kom ela e kerve la, pode ve la, levá-la a almoçar, passera um pko e dps d lanchar, entrega-la isso a pensar no ke e melhor para ela, ate porke estamos no inverno. sempre a pensar no melhor para ela e não em si. agradecoke me confirme se vem ou não»;

- do assistente para a arguida: «quem não está a pensar no bem da filha é a mãe! a minha filha não cometeu nenhum crime para estrar na rua o dia inteiro ela tem uma casa e família para estar e se não é capaz no bem dela então é para cumprir a decisão do tribunal. Amanhã estarei ás 10h30, em … frente ais bombeiros para visita daa CC»;

18 – a arguida não facultou, de forma repetida ao longo de todo o tempo, a entrega da menor para passar os períodos com o pai da forma acima referida;

19 – a arguida não cumpriu sem ter qualquer justificação para tal conduta;

20 – a arguida sabia que devia respeitar o estabelecido na regulação das responsabilidades parentais, no que dizia respeito à convivência da menor com o pai;

21 – a arguida agiu livre, voluntária e conscientemente;

22 – a arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei;

23 – em 23-12-2014 foi realizada conferência de pais no processo nº 2484/12.5T…-A para fixação de regime provisório quanto a férias de Natal, Carnaval e Páscoa e foi decidido não o fazer porque:

- desde o início do  processo e até à data, a arguida incumpriu «sistematicamente todas as decisões judiciais»

- porque a entrega da menor através de mandados não se afigurava ser, naquele momento, praticável, porque a criança, de 5 anos à data, «no último ano apenas esteve com o pai e avós paternos em duas ocasiões, nunca tendo pernoitado com eles, nem sequer os tendo acompanhado à sua residência»

- porque era por demais evidente os esforços da mãe para afastar a criança do pai, «obstando sistematicamente o contacto entre ambos»

24 – em 31-12-2014 o veículo Nissan, modelo J11, de matrícula ...-PI-..., foi registado em nome da arguida, sem encargos, e em 16-3-2016 foi registado em nome de HH, mãe da arguida;

25 – na conferência de pais realizada em 26-3-2012 no âmbito do processo de regulação das responsabilidades parentais 203/12.5T…, do tribunal de …, a guarda da CC foi atribuída ao pai;

26 – nesse dia a arguida dirigiu-se à instituição Associação II, valência de creche, sita em …, onde se encontrava a menor CC, e levou-a para local desconhecido;

27 – foi instaurado processo crime contra a arguida pelo crime de subtracção de menor, que teve o número 61/12.0G…, do tribunal de …, e em 5-12-2013 foi proferida sentença, transitada em 13-7-2015, condenando a arguida na pena de 1 ano de prisão, suspensa por igual período, com regime de prova, pela prática de um crime de subtracção de menor, do art. 249º, nº 1, al. a), do Código Penal, e a pagar ao demandante BB a quantia de 7.500 € de indemnização por danos não patrimoniais e à sua filha CC a quantia de 3.000 € também a título de danos não patrimoniais;

28 – em 11-12-2012 a arguida apresentou queixa contra o assistente, imputando-lhe a prática de um crime de abuso sexual na pessoa da filha, que deu origem ao processo nº 4109/12.0T… ;

29 – por despacho de 5-5-2015 foi determinado o arquivamento da queixa;

30 – a arguida requereu a abertura de instrução e em 1-2-2016 foi proferido despacho de não pronúncia;

31 – a arguida recorreu e em 7-12-2016 o Tribunal da Relação do Porto proferiu o seguinte acórdão, onde refere ser perceptível que o processo de alienação parental e «que a denúncia foi mais um passo no processo de diabolização do arguido» e que negou, a final, provimento ao recurso;

32 – por despacho proferido no processo de RRP em 31-1-2014, foi decidido solicitar ao ISS a realização de inquérito social aos progenitores e avaliação de cada um sobre as competências para o exercício das responsabilidades parentais, foi determinada a notificação de ambos para que apresentassem propostas para atenuar os desentendimentos, nomeadamente um novo regime de visitas e notificação da progenitora para juntar ao processo certidão do despacho proferido no primeiro interrogatório do progenitor, no âmbito do processo de abuso sexual;

33 – a demandada manteve a sua atitude de domínio e desrespeito pela decisão;

34 – face à impotência de fazer cumprir a decisão e porque era a única forma de estar com a filha, o demandante deslocou-se a Lisboa em 7-6-2014 e passou a dia com a filha;

35 – nestas visitas determinadas pela demandada o demandante ou ia buscar a filha às 10h a …, regressava a casa, em …, e ia entregar a filha em …, às 21h30, ou, como sucedeu em ambas as ocasiões, ambos permaneciam na rua entre as 10h e as 21h30, o que não era saudável, era extenuante e não permitia o contacto da menina com a família paterna;

36 – na sequência de pedido feito nesse sentido, foi fixado que a menor passaria dois períodos de férias de uma semana, com início em 4 e 18-8-2014;

37 – o demandante deslocou-se nos dias 4 e 18-8-2014 a … para ir buscar a filha, mas a demandada não compareceu para entregar a menor;

38 – foram fixados outros regimes provisórios de visitas relativamente a férias de verão, Natal e aniversários, que a demandada nunca cumpriu;

39 – a demandada nunca teve intenção de permitir o contacto do demandante com a filha e usou de todas as manobras para os separar, por vingança pessoal contra o ex-marido;

40 – os factos constantes da queixa apresentada pela demandada contra o demandante por abuso sexual deste na pessoa da filha foram inventados pela demandada e visavam manter pai e filha definitivamente afastados;

41 – o demandante e a filha sempre tiveram uma relação de cumplicidade, amor, carinho, atenção, ternura e dedicação, mantendo profundos laços de afectividade, que não foi abalada mesmo depois de um ano e meio separados;

42 – a separação derivada dos incumprimentos da demandada causaram na menina grande sofrimento e angústia;

43 – a demandada actuou como se fosse proprietária da filha, indiferente aos danos emocionais que a sua conduta causou na filha;

44 – o ódio e sentimento de vingança da demandada era tão grande que ela não só impedia o contacto físico entre o demandante e a filha, como também qualquer contacto telefónico;

45 – a demandada afirmou que era o pai que não cumpria o regime de visitas, porque se recusava a ir a Lisboa ver a filha;

46 – nem a pena aplicada no processo nº 61/12.0G… dissuadiu a demandada de continuar a violar as decisões judiciais;

47 – a demandada sempre manteve a sua conduta e em 28-12-2014 até tentou obter um passaporte para a filha;

48 – a demandada causou ao demandante grande sofrimento por ter sido impedido, durante anos, de conviver com a filha, de a ver crescer e de nem sequer poder estar com ela nas festas;

49 – a CC não esteve com o pai nos aniversários nem no Natal, nem com os amigos e colegas da escola;

50 – a demandada causou no demandante sofrimento ao ver, no dia-a-dia, pais a conviveram serenamente com os filhos e a CC também sentia tristeza por não poder estar com o pai;

51 – a demandada causou na sua filha sofrimento, porque ela não podia estar com ele nos aniversários, no Natal, porque não podia, tal como os seus amigos e colegas de escola, entregar-lhe o presente do dia do pai, feito por si própria no infantário;

52 – a CC foi manipulada pela demandada, que lhe incutiu na menina a imagem de um pai mau, ameaçador, violento e perigoso, o que causou na criança grande angústia, aflição e conflito interior;

53 – a CC passou por momentos de grande ansiedade decorrentes da angústia de separação, porque não tem capacidade de compreender porque é que, quando tinha 2 anos e meio, saiu do infantário depois de um dia normal e nunca mais viu o seu pai e porque é que, depois de o ter reencontrado, voltou a estar tanto tempo sem o ver;

54 – quinzenalmente o demandado via-se confrontado com a esperança de ver a filha e, depois, com a frustração de, mais uma vez, a demandada não cumprir a decisão;

55 – a pedido deste processo crime, por determinação do sr. juiz titular do processo 2484/12.5T…-A foi informado, por ofício junto em 18-6-2014, que continuava em vigor o regime provisório fixado na conferência de pais de 26-9-2013;

56 – na sequência do pedido feito por este processo 455/13.3G… ao processo 2484/12.5T…-A, por determinação de 11-10-2016 foram prestadas as seguintes informações:  

- o regime provisório fixado em 26-9-2013 não estava a ser cumprido e que também não foram cumpridos regimes provisórios de férias e/ou contactos;

- que a fls. 1074 foi consignado incumprimento relativamente a uma situação, não havendo outras decisões sobre incumprimentos;

- que o regime provisório de férias, de 31-7-2014, não foi cumprido;

- que a decisão de 9-9-2015, que determinou que a menor passaria o dia do seu aniversário com o pai, não foi cumprida;

- que os mandados, determinados em 14-9-2015, para condução da menor às instalações da Segurança Social de … para fazer cumprir decisão anterior não foram cumpridos;

- que a decisão de 23-12-2015, que determinou que a menor passaria com o pai o período entre as 10h do dia 26-12-2015 e as 17h do dia seguinte não foi cumprida;

- que a decisão de 16-2-2016, que determinou que a menor passaria com o pai o período de 18 a 23-3-3016, não foi cumprida;

- que a decisão de 16-5-2016, que determinou que a menor passaria com o pai os dias 21/5, 4/6 e 18/6 não foi cumprida - doc. fls. 669 e 675 a 677;

57 – em 24-10-2016 foram enviadas a este processo 455/13.3G… as seguintes informações, originárias do processo 2484/12.5T…-A:

- não existem decisões de incumprimento do regime de RRP fixado;

- não ocorreu alteração ao regime provisório fixado em 26-9-2013;

- existem requerimentos a solicitar alteração do regime provisório fixado, que não foram deferidos.»

10. Em consequência, concluiu o Tribunal da Relação que «resulta que a arguida cometeu um crime de subtracção de menor, do art. 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal», pelo que decidiu nos seguintes termos:

«1 – altera-se a decisão da matéria de facto, nos termos acima decididos;

2 – condena-se a arguida AA na pena de um ano e dez meses de prisão pela prática de um crime de subtracção de menor, do art. 249.º, n.º 1, al. c), do Código Penal:

3 – condena-se a arguida/demandada AA a pagar à CC a quantia de 7.500 € a título de danos não patrimoniais;

4 – condena-se a arguida/demandada AA a pagar ao demandante BB a quantia de 7.500 € a título de danos não patrimoniais;

5 – a execução da pena de prisão aplicada à arguida é suspensa por um ano e dez meses, subordinada a regras de conduta e regime de prova, nos seguintes termos:

- pagar a indemnização atribuída a cada um dos lesados – menor e assistente -, no prazo de 6 meses contados desde o trânsito em julgado deste acórdão;

- cumprir as decisões proferidas no âmbito da regulação das responsabilidades parentais;

- não perturbar a vida escolar da filha, impondo nos estabelecimentos que ela frequentar atitudes e comportamentos que queira que desenvolvam, contrários ao neles seguidos e/ou contrários aos interesses da filha;

- o regime de prova assentará também num plano elaborado pelos serviços competentes, nos termos que estes tiverem por adequados face às circunstâncias do caso;

- a arguida deve acatar todas as determinações feitas pelos serviços competentes para a elaboração do plano de acompanhamento, com vista à elaboração do plano, mas também com vista ao desenvolvimento e ao controlo do seu cumprimento; (…)».

11. Por razões de precedência lógica (artigo 608.º do CPC e 368.º, n.º 1, ex vi artigo 4.º do CPP), requer a metodologia da decisão que esta se inicie pela apreciação das questões (prévias) suscitadas pelos sujeitos processuais ou que o tribunal deva conhecer oficiosamente, susceptíveis de obstar ao conhecimento de mérito.

Em seu parecer, suscita a Senhora Procuradora-Geral Adjunta neste tribunal a questão da admissibilidade do recurso do acórdão do Tribunal da Relação, tendo em conta o disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. e), e 432.º, n.º 1, al. c), do CPP, o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013, deste Tribunal, e o acórdão n.º 595/2018 do Tribunal Constitucional.

Por sua vez, defende a assistente, na resposta ao recurso, que este deve ser rejeitado, em virtude de a decisão ser irrecorrível, por versar sobre a matéria de facto.

Há, pois, que apreciar da admissibilidade de recurso.

Da admissibilidade do recurso

12. Nos termos do disposto no artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.

Dispõe o artigo 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, sobre «princípios gerais» dos «recursos ordinários», que «não é admissível recurso» «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a 5 anos».

A redacção actual da al. e) é a que resulta da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, a qual, na redacção anterior, introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto (rectificação 105/2007, DR 1.ª série, 9.11.2007) apenas se referia aos recursos «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade». Visou a Lei 20/2013 «eliminar dificuldades de interpretação e assintonias que conduzam a um tratamento desigual em matéria de direito ao recurso», pelo que «é clarificado que são irrecorríveis os acórdãos que apliquem pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos» (como se lê na Proposta de Lei n.º 77/XII, que lhe esteve na origem).

13. O regime de recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, tem-se sublinhado em jurisprudência reiterada, efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos humanos (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). «O direito de defesa pressupõe a existência de um duplo grau de jurisdição, na medida em que o direito ao recurso integra o núcleo essencial das garantias de defesa processualmente asseguradas» (Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª edição revista, 2007, Vol. I, p. 516),

Como tem sido repetido pelo Tribunal Constitucional, em jurisprudência firme, o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição «não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição» ou de «um duplo grau de recurso», «em relação a quaisquer decisões condenatórias» (por todos, os acórdãos 64/2006, 659/2011 e 290/2014) – assim, os acórdãos de 14.03.2018, ECLI:PT:STJ:2018:22.08.3 JALRA.E1.S1.48 e de 12.12.2018, Proc. 211/13.9GBASL.E1.S1, www.stj.pt/wpcontent/uploads/2019/06/ criminal_ sumarios _ 2018.pdf, bem como o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 14/2013 (infra), 14. Tratando-se de «conceitos autónomos e não confundíveis», diz o Tribunal Constitucional em jurisprudência recente, importa estabelecer distinção entre a garantia do direito ao recurso, como «faculdade conferida à parte vencida de suscitar o reexame de uma decisão que lhe foi desfavorável e da qual discorda com o intuito de corrigir erros e de ver proferida uma decisão que vá ao encontro das suas expectativas», e garantia de um duplo grau de jurisdição, entendida como «a possibilidade de reexame efectuado por um órgão jurisdicional distinto e hierarquicamente superior ao que apreciou a causa pela primeira vez, com prevalência sobre este» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 429/2016, n.º 16), com as consequências daí decorrentes no que diz respeito à admissível restrição do direito de defesa (infra).

A conexão entre o direito ao recurso e o direito a um processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, parte final, da Constituição) «postulam um sistema que assegure a protecção dos interessados contra os próprios actos jurisdicionais, incluindo um direito de recurso», que, podendo sofrer limitações, se mostra constitucionalmente garantido relativamente a decisões condenatórias do arguido que afectem o direito à liberdade, por força dos artigos 27.º, 28.º e 322.º, n.º 1 (assim, referindo-se à jurisprudência do Tribunal Constitucional, Jorge Miranda / Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 200).

14. Pelo acórdão n.º 14/2013, de 09.10.2013 (DR 1.ª série, de 12.11.2013), em que estava em causa a interpretação da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP na redacção resultante da Lei n.º 48/2007 (que se limitava a estabelecer que não era admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade») este Tribunal fixou a seguinte jurisprudência: «Da conjugação das normas do artigo 400.º alíneas e) e f) e artigo 432.º n.º 1 alínea c), ambos do CPP, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da Relação que, revogando a suspensão da execução da pena decidida em 1.ª instância, aplica ao arguido pena não superior a 5 anos de prisão».

Este acórdão levou em conta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente o acórdão n.º 324/2013, de 30.07.2013, que conheceu do recurso interposto pelo Ministério Público do acórdão n.º 591/2012, de 05.12.2012, por este ter julgado a questão de inconstitucionalidade em sentido divergente do decidido no acórdão n.º 424/2009, de 14.08.2009, e decidiu «julgar inconstitucional a interpretação normativa resultante da conjugação das normas da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º e da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, segundo a qual é irrecorrível o acórdão proferido pelas relações, em recurso, que aplique pena privativa da liberdade inferior a cinco anos, quando o tribunal de primeira instância tenha aplicado pena não privativa da liberdade, por violação do princípio da legalidade em matéria criminal (artigos 29.º, n.º 1, e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa)».

15. Posteriormente, após a entrada em vigor da alteração introduzida pela Lei n.º 20/2013, assistiu-se a uma evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional em sentidos distintos, consoante tenha sido ou não aplicada pena privativa da liberdade.

É assim que, na sequência dos acórdãos n.º 412/2015 e 429/2016, entre outros, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 595/2018, de 13.11.2018, veio declarar, «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma que estabelece a irrecorribilidade do acórdão da Relação que, inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância, condena os arguidos em pena de prisão efectiva não superior a cinco anos, constante do artigo 400.º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, por violação do artigo 32.º, n.º 1, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 da Constituição» (DR, 1.ª série, de 11.12.2018).

Este acórdão excluiu da apreciação «outras dimensões normativas extraídas do mesmo preceito legal», objecto de apreciação «autónoma e distinta» pelo Tribunal Constitucional, indicando, a título exemplificativo, as «normas que estabelecem a irrecorribilidade, respectivamente, do (i) «acórdão proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação que aplique pena privativa da liberdade não superior a cinco anos, revogando a suspensão da execução da pena de prisão decretada pelo tribunal de 1.ª instância» (Acórdão n.º 101/2018); (ii) do «acórdão da Relação que, perante a absolvição ocorrida em 1.ª instância, condene o arguido em pena de multa alternativa, atentando, no âmbito do estabelecimento das consequências jurídicas do crime subjacente a tal condenação, apenas nos factos tidos por demonstrados na sentença absolutória» (Acórdão n.º 672/2017); e, finalmente, (iii) dos «acórdãos proferidos, em recurso pelas Relações que, após decisão absolutória de 1.ª instância, condenem e apliquem pena de multa a arguida pessoa colectiva» (Acórdão n.º 128/2018)».

16. É, porém, diversa a situação em exame nos presentes autos, pois que a arguida, «inovadoramente face à absolvição ocorrida em 1.ª instância», não foi condenada em pena de prisão efectiva, mas sim numa pena de prisão suspensa na sua execução, que, no sistema de penas do Código Penal, constitui uma pena aplicada em vez da pena da prisão, ou seja, numa pena de substituição. O que, desde logo, afasta a aplicação do juízo de inconstitucionalidade contido no acórdão n.º 595/2018 e, consequentemente, a não aplicação da norma da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º com fundamento na inconstitucionalidade declarada nesse acórdão.

Restando, por conseguinte, averiguar se idêntico juízo de inconstitucionalidade se deverá formular neste caso, afastando a aplicação desta norma processual na dimensão normativa em questão, não declarada inconstitucional.

17. A este propósito, importa, desde logo, lembrar as normas relevantes do sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais vigentes na ordem interna [Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (PIDCP), Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) e Protocolo n.º 7 a esta Convenção].

18. O artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP estabelece que «Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença em conformidade com a lei». Esta disposição foi considerada no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018 (supra, 18), apenas para «enquadramento» da análise do direito ao recurso (ponto 11).

De acordo com a interpretação do Comité dos Direitos Humanos, a expressão «em conformidade com a lei» não visa «deixar a própria existência do direito ao exame à discrição dos Estados-Partes, uma vez que este direito é reconhecido pelo Pacto», devendo a referência à conformidade com a lei ser interpretada no sentido de que esta diz respeito às «modalidades do reexame, bem como ao tribunal competente para o efectuar, de acordo com o Pacto». Nesta interpretação, o artigo 14.º, n.º 5, é violado não só quando o condenado não tem direito ao recurso de uma condenação imposta «por um tribunal de 1.ª instância, mas também quando a condenação imposta por um tribunal de recurso ou por um tribunal de última instância, após absolvição por um tribunal de categoria hierárquica inferior, de acordo com o direito nacional, não pode ser revista por um tribunal de categoria superior», independentemente da gravidade da infracção (do «Comentário Geral n.º 32» do Comité ao artigo 14.º do PIDCP, de 23.08.2007, 45 e 47, citando as comunicações 1095/2002, Gomaríz Valera c. Espanha, 64/1979, Salgar de Montejo c. Colômbia, e 1073/2002, Terrón c. Espanha, acessíveis em https://tbinternet.ohchr.org).

A formulação do n.º 5 do artigo 14.º, de inspiração anglo-saxónica, levou alguns Estados europeus a apresentar reservas a esta disposição (casos da Alemanha, França, Bélgica, Luxemburgo e Noruega, em https://treaties.un.org/Pages/Treaties. aspx?id=4&subid=A&clang=_en). Não tendo Portugal apresentado reserva susceptível de modificar o sentido e alcance deste preceito, suscitar-se-ão necessariamente questões relacionadas com as obrigações decorrentes da vinculação a este instrumento de direito internacional, pois que, embora não possuam a natureza vinculativa de uma decisão de um tribunal, as comunicações do Comité dos Direitos Humanos, pelas funções que lhe estão atribuídas, possuem determinante valor na interpretação do Pacto, que deve ser feita de boa fé, à luz do seu objecto e finalidade e tomando em consideração o acordo das partes sobre a aplicação das suas disposições (cfr. artigos 14.º, 21.º e 31.º da Convenção de Viena sobre o Direitos dos Tratados, de 23.05.1969 – RAR n.º 67/2003 e DPR n.º 46/2003, de 7 de Agosto).

Importa, todavia, notar que, embora o Pacto vigore na ordem interna, por via da ratificação (artigo 8.º, n.º 2, da Constituição, que contém uma regra de recepção geral plena do direito internacional – assim, Jorge Miranda / Rui Medeiros, ob. cit., p. 89), impondo a obrigação de respeitar e garantir os direitos nele reconhecidos (artigo 2.º, n.º 1), o artigo 14.º, n.º 5, requer expressamente a adopção de medidas legislativas de regulamentação do direito ao recurso, em conformidade com a obrigação resultante do n.º 2 do artigo 2.º, segundo o qual «cada Estado-Signatário» se «compromete» a «adoptar, de acordo com os seus procedimentos constitucionais e as disposições do presente Pacto, as medidas oportunas para implementar as disposições legislativas ou de outro género que sejam necessárias para tornar efectivos os direitos reconhecidos no presente Pacto e que não estejam ainda garantidos por disposições legislativas ou de outro género». Donde decorre que, não se impondo que seja directamente aplicável pelos tribunais, havendo inconsistências entre a lei interna e as disposições do Pacto, estas devam ser resolvidas por via das medidas legislativas necessárias para garantir o direito ao recurso tal como é garantido pelo artigo 14.º, n.º 5 (como se esclarece no «Comentário Geral n.º 31», de 29.03.2004, do Comité dos Direitos Humanos, onde se lê, no original: «13. Article 2, paragraph 2, requires that States Parties take the necessary steps to give effect to the Covenant rights in the domestic order. It follows that, unless Covenant rights are already protected by their domestic laws or practices, States Parties are required on ratification to make such changes to domestic laws and practices as are necessary to ensure their conformity with the Covenant. Where there are inconsistencies between domestic law and the Covenant, article 2 requires that the domestic law or practice be changed to meet the standards imposed by the Covenant’s substantive guarantees. Article 2 allows a State Party to pursue this in accordance with its own domestic constitutional structure and accordingly does not require that the Covenant be directly applicable in the courts». Para maiores desenvolvimentos, ver Anja Seiber-Fohr, «Domestic Implementation of the International Covenant on Civil and Political Rights Pursuant to its article 2 para.2», Max Planck Yearbook of United Nations Law, Vol. 5, 2001, J.A. Frowein and Wolfrum (eds.), 2001, Kluver Law International, Netherlands, pp. 399-472).

Nesta conformidade, se deve, assim, concluir que, apesar da desconformidade que se verifica entre a al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP com o artigo 14.º, n.º 5, do Pacto, por não admitir o direito ao recurso da decisão condenatória da Relação proferida em recurso de decisão de absolvição da 1.ª instância, não se encontra base legal nesta disposição de direito internacional para admissão do presente recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

19. A CEDH não contém norma expressa sobre o direito ao recurso, mas o artigo 53.º dispõe que nenhuma das suas disposições pode ser interpretada no sentido de limitar ou prejudicar os direitos que tiverem sido reconhecidos de acordo com as leis dos Estados-Partes ou de qualquer convenção em que estes sejam partes, como seria o caso do PIDCP, se aplicável nas condições anteriormente referidas.

20. O artigo 2.º do Protocolo n.º 7 da CEDH (1984), veio reconhecer o «direito a um duplo grau de jurisdição em matéria penal», consagrando no n.º 1 o direito de acesso de «qualquer pessoa declarada culpada de uma infracção penal por um tribunal» a «uma jurisdição superior» que reexamine «a declaração de culpabilidade ou a condenação».

Este direito pode, porém, ser limitado pelas excepções previstas no n.º 2, relevantes para o caso em análise, em que se incluem as «infracções menores, definidas nos termos da lei» e as situações em que «o interessado [tenha sido] declarado culpado e condenado no seguimento de recurso contra a sua absolvição».

Pelo que, incluindo-se o presente caso nestas excepções, nenhuma questão se suscita a propósito da conformidade da lei interna com esta disposição, que, apesar da sua aplicabilidade, não oferece fundamento para admissão do recurso.

21. O direito ao recurso consagrado no artigo 32.º n.º 1, da Constituição constitui uma garantia do direito de defesa, objecto de larga elaboração jurisprudencial, relativamente à qual o legislador dispõe de uma margem de conformação na lei ordinária, desde que as soluções desta não limitem «de forma desrazoável, arbitrária ou desproporcionada» as possibilidades de recorrer, nem atinjam o «conteúdo essencial das garantias de defesa» do arguido, como tem sido reafirmado e se lê no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 595/2018 (cit., n.º 17).

A Constituição, de acordo com a jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, não oferece, pois, garantia de recorribilidade da decisão condenatória em qualquer pena que, em recurso, se apresente como inovatória face à absolvição em 1.ª instância. Neste acórdão, sublinha o Tribunal a existência de uma «diferença qualitativa entre a pena de prisão e todas as outras penas que deve ser relevada na verificação do direito ao recurso, enquanto garantia de defesa do arguido», pois que «quanto mais grave for a pena aplicada (ie, quanto mais intensa for a potencial violação dos direitos do arguido), maior necessidade existe de garantir o direito ao recurso».

É, por conseguinte, a consideração da gravidade da pena que fundamenta o juízo de inconstitucionalidade vertido no acórdão n.º 595/2018, na consideração de que a pena de prisão constitui «a mais intensa restrição» do direito fundamental à liberdade. O que não sucede, como se nota no mesmo acórdão (pontos 22 a 24), com a aplicação de uma pena de multa, cujo regime pode, em caso de incumprimento, levar à execução de uma pena de prisão (artigo 43.º, n.º 2, que prevê o cumprimento da pena de prisão em caso de não pagamento da multa de substituição, e artigo 49.º, n.º 1, que prevê o cumprimento da prisão subsidiária da pena de multa).

22. Estas considerações relativas à menor gravidade da pena de multa mostram-se perfeitamente transponíveis para o caso em que esteja em causa a aplicação de uma pena de prisão suspensa na sua execução, a qual não tem por consequência directa uma privação do direito à liberdade, que só será afectado em caso de revogação da suspensão, por violação grosseira ou repetida dos deveres ou regras de conduta impostos ou do plano de reinserção social, ou ainda por virtude da prática de crime, nos termos previstos no artigo 56.º do Código Penal.

Tanto num caso como no outro, a privação da liberdade só poderá ocorrer por razão imputável ao condenado, mas não directamente por virtude da condenação.

23. Embora numa perspectiva diferente, em que se suscitava também a questão de respeito pelo artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à CEDH, pronunciou-se o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 682/2006, no sentido da não inconstitucionalidade da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP em caso de aplicação pela Relação, em recurso de decisão de absolvição da 1.ª instância, de pena de prisão suspensa na sua execução, dizendo: «Não se pode (…) considerar infringido o nº 1 do artigo 32.º da Constituição (…) já que a apreciação do caso por dois tribunais de grau distinto tutela de forma suficiente as garantias de defesa constitucionalmente consagradas». E reiterando o consignado no acórdão n.º 352/98: «se a Convenção Europeia dos Direitos do Homem deve ser perspectivada num sentido de aplicação directa no ordenamento jurídico nacional, é necessário não olvidar que, se dos preceitos constitucionais relativos aos direitos fundamentais já se retirarem, em todas as suas vertentes (…), os alcance e sentido que porventura se encontrem naquela Convenção, nada lhe sendo, pois, acrescentado por esta, o recurso à mesma é, de todo e na realidade das coisas, destituído de sentido (…)»; «como se viu, as exigências tutelares assinaladas ao mencionado preceito da Convenção Europeia dos Direitos do Homem em nada se diferenciam, quanto às garantias de defesa dos arguidos, principaliter no que tange com o direito a um duplo grau de jurisdição, das que se encontram concretizadas no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição».

24. Chamado a pronunciar-se sobre esta questão, este Supremo Tribunal tem-decidido uniformemente no sentido da inadmissibilidade do recurso, restringindo a excepção do direito ao recurso da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º unicamente em conformidade com a declaração de inconstitucionalidade do acórdão n.º 595/2018. Como se vê nos sumários dos seguintes acórdãos:

Acórdão de 19.09.2019, Proc. n.º 8083/15.2TDLSB (Nuno A. Gonçalves): «A declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória do TC (…) prende-se com uma situação em que o arguido foi condenado numa pena de prisão efectiva pelo Tribunal da Relação após uma absolvição em primeira instância. (…) a pena de prisão suspensa não é uma pena privativa da liberdade, mas sim uma pena de substituição não detentiva, autónoma da pena de prisão, enquadrando-se na primeira parte do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP. Sopesando a necessidade de equilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e a racionalidade do sistema judiciário a inconstitucionalidade apenas abarca os casos em que o Tribunal da Relação condena em pena privativa da liberdade, revertendo uma absolvição, pela especial gravidade para a liberdade do arguido que consubstancia uma pena de prisão, juízo de inconstitucionalidade que já não se verifica quando, como é o caso dos autos, se reverte uma decisão absolutória para pena não detentiva da liberdade» (ainda não publicado);

Acórdão de 05.09.2019, Proc. n.º 8/12.3GAMDL.G3.S1 (Júlio Pereira): «Não é recorrível um acórdão do Tribunal da Relação que condena a arguida numa pena de prisão suspensa de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, revogando a decisão da 1.ª instância que a absolvera. Esta interpretação do art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP não padece de qualquer inconstitucionalidade pelo facto da decisão inovatória no Tribunal da Relação não ter condenado a arguida a uma pena privativa da liberdade. Só nestes casos se justifica permitir o recurso para o STJ pela relevância constitucional e legal da liberdade. Caso se equiparassem as situações, permitindo um terceiro grau de jurisdição na aplicação de penas de substituição, tal seria incongruente com o facto da lei, no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, não se admitir o recurso de condenações em penas até 8 anos de prisão»;

Acórdão de 16.05.2019, Proc. n.º 407/14.6TAVRL.C1.S1 (Nuno Gomes da Silva): «A situação agora em apreço (…) difere de modo essencial daquela outra que deu origem à declaração de inconstitucionalidade lavrada inicialmente do acórdão do TC 429/2016 e que, com força obrigatória geral, veio a ser sufragada no acórdão 595/2018. (…) a diferença é de relevo, já que, no que se apresenta, o arguido foi absolvido na 1.ª instância (…) tendo sido condenado em pena de 1 ano de prisão suspensa na sua execução por igual período. O acórdão da relação incidiu, pois, sobre a matéria de facto, alterando-a, daí decorrendo uma subsequente tomada de posição sobre a matéria de direito em dois passos: questão da culpabilidade e questão da determinação da sanção. A discussão sobre a constitucionalidade da norma acima referida cinge-se somente àquela situação de reversão de uma decisão absolutória numa inovatória decisão condenatória em pena de prisão, e por causa dessa específica sanção. Não é o que se passa no presente caso em que ao arguido foi imposta uma pena de substituição de suspensão de execução da pena de prisão, ou seja, uma pena não privativa da liberdade. Por conseguinte, a declaração de inconstitucionalidade não é aplicável na situação em apreço» (em www.dgsi.pt). O acórdão tem voto de vencido (Helena Moniz).

Na jurisprudência anterior ao acórdão n.º 595/2018 do Tribunal Constitucional, em idêntico sentido, pode ver-se o acórdão de 13.07.2017, Proc. 67/13.1GATVD.L1.S (Oliveira Mendes), não publicado: «A não admissibilidade de recurso daquelas decisões [a que se refere a al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP], enquanto limitação do direito ao recurso, não atinge o núcleo essencial daquele direito de defesa do arguido, visto que o arguido no recurso interposto da decisão de 1.ª instância que o absolve do crime ou crimes de que se encontra acusado ou pronunciado participa directa e efectivamente na criação da decisão a proferir, através do seu direito de audiência e ao contraditório, exercido na resposta ao recurso (art. 413.º do CPP), acto processual em que pode exercer, sem qualquer limitação, o seu direito de defesa, através da apresentação das suas razões de facto e de direito. Sendo irrecorrível para o STJ o acórdão do Tribunal da Relação que, inovatoriamente face à absolvição em 1.ª instância condena o arguido em pena de prisão suspensa na sua execução (…) impõe-se a rejeição do recurso, nos termos da al. b) do n.º 1 do art. 420.º do CPP».

25. No voto de vencido do acórdão 16.05.2019, Proc. 407/14.6TAVRL.C1.S1 (supra, 24) que convocou a «declaração de voto» do Presidente do Tribunal Constitucional no acórdão n.º 595/2018, considerou-se, designadamente, que «ocorreu uma alteração da matéria de facto e, em consequência desta alteração, houve uma alteração de um juízo inicial de absolvição, sem análise da culpabilidade do arguido e sem determinação da medida da pena, tendo-se passado para uma apreciação da culpabilidade e para a aplicação inovatória de uma pena, ainda que não se trate de uma pena de prisão efectiva», pelo que «o direito ao recurso do arguido só neste segundo momento pode ser exercido»; não estando «assegurado» «o direito a uma dupla jurisdição, ou a uma via de recurso, imposta pelo disposto no art. 32.º, da CRP», é imposta ao arguido «uma restrição de um direito fundamental».

Na referida «declaração de voto» considerou o Presidente, que concordou com o decidido, que, «do lado da fundamentação, se adscreve um peso porventura excessivo ao problema de determinação da sanção», «à custa de uma relativa subvalorização do direito fundamental ao recurso, consignado no n.º 1 do artigo 32.º da Lei Fundamental»; pelo que não parecendo «que haja uma diferença decisiva ditada pela natureza da pena, em definitivo aplicada» e havendo, «do ponto de vista teleológico e político-criminal», «uma grande comunicabilidade entre a condenação em prisão efectiva e, por exemplo, a condenação em multa», isto «leva a acreditar — e esperar — que em ulteriores pronunciamentos, o Tribunal Constitucional reequacione o alargamento do alcance do seu exame e dos seus juízos na direcção que fica sugerida», «pelo menos, na direcção da multa aplicada a pessoa singular».

Ora, atentos os fundamentos da decisão no acórdão n.º 595/2018, que reconhecem a restrição do direito ao recurso, mas que a aceita como razoável e proporcional, não parece que, no estado actual da legislação e da jurisprudência, solida e consequentemente se possa fundar um juízo de inconstitucionalidade conducente à não aplicação da al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP na dimensão normativa que agora releva, de modo a admitir-se o presente recurso.

26. Em conformidade com tudo o que vem de se expor, impõe-se, em consequência, concluir que pela não admissibilidade do recurso, de acordo com o disposto na primeira parte da alínea e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação que apliquem pena não privativa da liberdade.

Nos termos do artigo 423.º, n.º 1, alínea b), do mesmo diploma, recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º.

27. Dispõe o artigo 420.º, n.º 1, al. c), do CPP que o recurso é rejeitado sempre que se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º, que estabelece que o recurso não é admitido quando a decisão for irrecorrível.

Apesar de admitido, a decisão de admissão não vincula o tribunal superior (artigo 414.º, n.º 3, do CPP).

Assim sendo, deve o recurso ser rejeitado, por inadmissibilidade legal.

O que, obstando ao conhecimento, impede este tribunal de conhecer do seu objecto.

28. Nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 400.º do CPP, se o recurso for rejeitado, o tribunal condena o recorrente, se não for o Ministério Público, ao pagamento de uma quantia entre 3 UC e 10 UC.

III. Decisão

29. Pelo exposto, acordam os juízes na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) Rejeitar, por inadmissibilidade, o recurso interposto pela arguida AA.

b) Condenar a recorrente no pagamento da importância de 3 UC, nos termos do disposto no artigo 420.º, n.º 3, do CPP.


Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Outubro de 2019.


José Luís Lopes da Mota (Relator)

Maria da Conceição Simão Gomes