Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | NUNO CAMEIRA | ||
| Descritores: | PRINCÍPIO DISPOSITIVO CAUSA DE PEDIR CONTA BANCÁRIA DESCOBERTO BANCÁRIO FACTO CONCLUDENTE | ||
| Nº do Documento: | SJ200611140032901 | ||
| Data do Acordão: | 11/14/2006 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
| Sumário : | I - O princípio dispositivo obriga a que haja total coincidência entre causa de pedir e causa de julgar. Embora podendo qualificar diversamente os factos alegados e provados, o tribunal está legalmente impedido de julgar o litígio com base numa causa de pedir não invocada (arts. 342.º, n.º 1, do CC e 664.º do CPC). II - O descoberto em conta traduz-se numa forma de concessão de crédito que tanto pode surgir no âmbito duma relação contratual específica concluída entre o banco e o cliente (normalmente uma abertura de crédito), como no quadro da hoje vulgarizada abertura de conta. III - O descoberto não pode nunca, como quer que seja, deixar de assentar no mútuo consenso das partes, uma vezes expresso (há contratos bancários com cláusulas que previnem certas situações desta natureza, como acontece com certas contas-ordenado), outras vezes tácito, dedutível de factos concludentes, os factos que com toda a probabilidade o revelam (art. 217.º, n.º 1, do CC). IV - O saldo devedor duma conta de depósitos à ordem, quando se desconheçam inteiramente a origem, a natureza e o conteúdo das operações (movimentos) que o determinaram, não pode ser reputado como um facto concludente em ordem à exteriorização da vontade negocial inerente à operação bancária designada por descoberto em conta. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório Alegando que os réus se recusam a pagar-lhe o saldo devedor, no montante de € 19.941,42, de uma conta de depósitos à ordem que movimentavam a crédito e a débito, o Banco ..., SA, propôs uma acção ordinária contra AA e sua mulher BB, pedindo a condenação dos réus no pagamento daquela quantia, acrescida de € 1.103,43 de juros vencidos, à taxa legal de 12%, e dos vincendos, à mesma taxa, até integral pagamento. Na contestação, em resumo, os réus impugnaram o saldo, afirmando que o autor, indevidamente, não creditou na conta o financiamento que lhes concedeu para operações de bolsa realizadas, apesar da garantia dada de que isso aconteceria. Discutida a causa, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção, absolvendo os réus dos pedidos, decisão esta que a Relação de Coimbra, sob apelação do autor, confirmou. Mantendo-se inconformado, o autor recorreu de revista para o STJ, pedindo que se declare “nula a sentença” (sic) e que, na procedência da acção, os réus sejam condenados a pagar-lhe a importância indicada na petição inicial, acrescida dos juros. Indica como disposições legais violadas os arts. 659º-2 e 668º-1-a CPC; 1025º, 1026º, 1142, 1145º, 234º, 804º, 805º e 806º-1 CC; 102º CCom; Portaria nº 262/99 de 12/04; Aviso DGT 10097, DR II 30/10 e o Desp. DGT 310/05, DR II, 14/01. Os réus contra alegaram, limitando-se a defender a manutenção do julgado. Tudo visto, cumpre decidir. II. Fundamentos A) As questões suscitadas na revista coincidem com as já postas na apelação. São duas: 1ª - Nulidade da sentença por falta de especificação dos fundamentos de direito que a justificam; 2ª - Erro de julgamento do acórdão recorrido por não ter decidido que se está perante um descoberto em conta que confere ao banco o direito à restituição da quantia adiantada aos réus - expressa no saldo devedor de 19.941,42 € - e para estes a correspondente obrigação. B) Factos a considerar: 1) Os réus são titulares da conta de Depósitos à Ordem nº ... junto do autor, Sucursal N... R..., em Castelo Branco. 2) A conta era movimentada a débito e a crédito pelos réus. 3) No documento de fls. 44 consta que em 30.6.03 a conta referida contava um saldo devedor de € 19.941,42. C) Quanto à primeira questão posta, a Relação decidiu que a sentença, contrariamente ao alegado pelo autor na apelação, não era nula por falta de especificação dos fundamentos de direito que a justificam; e isto porque o“silogismo está completo”: o Banco deveria ter provado os factos alegados (premissa maior); não os provou (premissa menor); logo, a acção improcede (conclusão). Para a 2ª instância, esta fundamentação do julgado por parte da comarca bastou para rejeitar a arguição de nulidade assente no art.º 668º, nº 1, b), do CPC. Ora, verifica-se que no presente recurso, verdadeiramente, o Banco não põe em causa a decisão do acórdão recorrido sobre o assunto: continuando a insistir na nulidade da sentença, não ataca o julgamento do tribunal ora recorrido, seja porque ele mesmo sofra, no aspecto considerado, de nulidade, seja porque padeça de erro substancial, passível de conduzir à sua revogação. Consequentemente, o acórdão impugnado, nesta parte, passou em julgado, tornando-se imodificável. Relativamente à segunda questão a tese do recorrente, em suma, é a de que se extrai dos factos provados a conclusão de que estamos face a um descoberto em conta que lhe confere o direito de reaver a quantia adiantada aos recorridos e a estes o correspondente dever de lha restituir. Mas não tem razão. Vejamos porquê. O descoberto em conta traduz-se numa forma de concessão de crédito, que tanto pode surgir no âmbito duma relação contratual específica concluída entre o banco e o cliente (normalmente, uma abertura de crédito), como no quadro da hoje vulgarizada e massificada abertura de conta; o descoberto não pode nunca, como quer que seja, deixar de assentar no mútuo consenso das partes, uma vezes expresso (há contratos bancários com cláusulas que previnem situações desta natureza: vejam-se, por exemplo, certas contas-ordenado), outras vezes tácito, dedutível de factos concludentes – os factos que, no dizer da lei, “com toda a probabilidade” o revelam (art.º 217º, nº 1, do CC). Ora, no caso presente, e em primeiro lugar, o autor alegou apenas - mas não provou (resposta negativa ao quesito 2º) - ter dado o seu acordo para que os réus movimentassem a conta a débito para além do seu saldo, por várias vezes, com a obrigação de repor as quantias que lhes fossem disponibilizadas. Sendo assim, mesmo admitindo, teoricamente, que semelhante alegação não teria sempre que ser desconsiderada em sede de julgamento de facto dada a sua natureza conclusiva, não há dúvida de que ela integrava o núcleo irredutível da causa de pedir, ou seja, o facto jurídico concreto em que assentou o pedido formulado. Portanto, na ausência da sua demonstração, segue-se que a acção tinha que improceder, como improcedeu, pois o tribunal, podendo embora qualificar diversamente os factos alegados e provados, está legalmente impedido de julgar o litígio com base numa causa de pedir não invocada (art.º 342º, nº 1, do CC; art.º 664º do CPC): o princípio dispositivo obriga a que haja total coincidência (identificação) entre a causa de pedir e a causa de julgar, ponto este perfeitamente assente desde há muito, quer na doutrina, quer na jurisprudência. Depois, e em segundo lugar, afigura-se manifesto que a matéria de facto apurada de modo algum permite extrair a ilação de que, para usarmos as palavras do recorrente, os recorridos foram autorizados a levantar quantias superiores às depositadas independentemente de qualquer escrito ou formalidade e que tais situações de adiantamento de dinheiro por parte do banco se traduziram na concessão de crédito bancário sujeito ao regime do contrato de mútuo. Com efeito, ficou tão somente a saber-se que os réus eram titulares duma conta de depósitos à ordem junto do autor e que essa conta, sendo movimentada a crédito e a débito, apresentava em determinado momento um determinado saldo devedor. Por si só, contudo, isto não evidencia a existência do alegado descoberto em conta, designadamente, e em especial, do falado mútuo consenso em que tal situação de modo necessário tem que repousar; em si mesmo considerado, na verdade, o saldo devedor duma conta de depósitos à ordem, quando se desconheçam inteiramente, como é o caso, a origem, a natureza e o conteúdo das operações (movimentos) que o determinaram, não pode ser reputado como um facto concludente em ordem à exteriorização da vontade negocial inerente à operação bancária designada por descoberto em conta. III. Decisão Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista. Custas pelo recorrente. Supremo Tribunal de Justiça, 14 de Novembro de 2006 Nuno Cameira (relator) Sousa Leite Salreta Pereira |