Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
457/14.2TTLSB.L2.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE
CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
Data do Acordão: 01/15/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO – FONTES E APLICAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO / CONTRATO DE TRABALHO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA.
DIREITO CIVIL – LEIS, INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO / APLICAÇÃO DE LEIS / RELAÇÕES JURÍDICAS / PROVAS / ÓNUS DA PROVA.
Doutrina:
- BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Coimbra, Almedina, 1968, p. 36, 37, 69, 70 e 71;
- FERNADO PINTO BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, p. 860 e 861.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGOS 7.º, N.º 1 E 12.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 665.º, N.º 2 E 679.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º 2 E 342.º, N.º 1.
DECRETO-LEI N.º 49.408 DE 24 DE NOVEMBRO DE 1969.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 04-07-2018, PROCESSO N.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1;
- DE 27-11-2018, PROCESSO N.º 14910/17.2T8SNT.L1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I - Estando em causa uma relação jurídica estabelecida em 1 de abril de 2003 e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado os seus termos essenciais, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aplicação as presunções previstas no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA, BB, CC e DD instauraram a presente ação declarativa de condenação, com processo comum, contra EE, S.A., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 90.042,15, a título de subsídios de férias e Natal e compensação por violação do direito a férias, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento de cada uma das importâncias que a integram, até integral e efectivo pagamento e, ainda, como litigante de má-fé.

Invocaram como fundamento das suas pretensões, em síntese, que foram admitidos ao serviço da Ré para, sob a sua autoridade, direção e fiscalização, exercerem as funções, o 1.º e o 2.º Autor, de professor de natação e PT, a 3.ª Autora, de professora de postura, hidroterapia, hidroginástica sénior e treino personalizado, e a 4.ª Autora, de hidro, hidrobike, spinning, strectching, PT, pré e pós parto, nas instalações do ginásio sito em Lisboa, mediante o pagamento à hora, no final de cada mês, e em horários de trabalho que aquela lhes atribuía.

Mais alegaram que a Ré lhes disciplinava o trabalho a realizar e ministrava ações de formação; tinham que lhe comunicar o período de férias e arranjar outra pessoa para os substituir e, ainda, utilizavam os instrumentos pertença daquela.

Por fim, invocaram que a Ré lhes propôs o abaixamento do valor hora, circunstância que os levou, em agosto de 2013, a pôr termo ao contrato de trabalho que com ela celebraram, por carta registada com aviso de receção que lhes remeteram, pese embora tenham assinado um escrito intitulado “contrato de prestação de serviços”.

A Ré contestou a ação, defendendo-se por exceção e por impugnação.

Por exceção, arguiu a ininteligibilidade da petição inicial e a prescrição dos créditos de que o 2.º Autor se arroga alegando que o contrato firmado entre ambos foi por ele denunciado em agosto de 2007.

Por impugnação, alegou que os Autores sempre estiveram vinculados a si por contratos de prestação de serviços e não por qualquer vínculo laboral, nada lhes sendo devido.

Os Autores responderam às exceções invocadas, pugnando pela respetiva improcedência, e concluíram como na petição inicial.

No despacho saneador indeferiu-se a exceção de ininteligibilidade arguida pela Ré.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento, tendo a ação sido decidida por sentença proferida em 22 de junho de 2015, que integra o seguinte dispositivo:

«Pelo exposto, o Tribunal julga a ação improcedente e, em consequência, decide:

1. Absolver «EE,, SA..» dos pedidos formulados por «AA», «BB», «CC» e «DD.

2. Condenar «AA», «BB», «CC» e «DD» a pagarem as custas processuais.»

Inconformados com esta decisão, dela recorreram os Autores para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, por acórdão proferido em 12 de outubro de 2016, deliberou nos seguintes termos:

«Face ao exposto, julga-se procedente o recurso interposto, reconhece-se a existência de contratos de trabalho entre Autores/recorrentes e a Ré /recorrida. Em consequência revoga-‑se a sentença recorrida, devolvendo os autos ao tribunal recorrido a fim de apreciar os créditos laborais em dívida decorrentes dos contratos de trabalho que vigoraram entre Autores e Ré.»

Deste acórdão foi interposto recurso de revista pela Ré.

Neste Supremo Tribunal de Justiça, por despacho do Relator de 8 de março de 2017, só foi admitido o recurso relativamente à 4.ª autora DD e, apreciado este, foi proferido acórdão em 21 de setembro de 2017 a determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação para suprir a insuficiência da matéria de facto e julgar novamente a causa.

Descidos os autos, a apontada insuficiência da matéria de facto foi suprida pelo Tribunal de 1.ª Instância nos termos constantes de fls. 1295-1299 e, remetidos os autos, de novo, ao Tribunal da Relação de Lisboa, foi a causa novamente julgada por acórdão de 11 de julho de 2018, nestes termos:

«Face ao exposto, reconhece-se a existência de contrato de trabalho entre a Autora DD e a Ré / recorrida, a partir de 1 de abril de 2003, devendo os créditos laborais em dívida decorrentes do referido contrato de trabalho serem apurados em incidente de liquidação.»

Não se conformando com esta decisão, veio a Ré interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido a fls.  dos autos, o qual, revogou a sentença proferida pela 1.ª instância, considerando que existia um Contrato de Trabalho celebrado entre a Recorrente e a Recorrida.

2. O referido acórdão, salvo o devido, respeito, é ilegal e o presente recurso merece franco provimento, como se demonstrará.

3. O Acórdão de que ora se recorre justi[fica] a sua decisão pela aplicação aos presentes autos da presunção de laboralidade constante do artigo 12° do Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro, conforme está transcrito no corpo das presentes Alegações de Recurso.

4. Com interesse para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

• Por escrito datado de 02/01/20008, intitulado "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS", a Ré admitiu o 1º Autor para desempenhar funções de Instrutor de …, …, …, mediante o pagamento de € 8,50 à hora, a efetuar no final de cada mês depois de apurado o número de horas prestadas.

• Por escrito datado de 01/02/2002, intitulado "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS", a Ré admitiu o 2.º Autor para desempenhar funções de Instrutor de …, Lisboa, mediante o pagamento de € 9,50 por aula enquanto Instrutor de Natação e € 6,50 por hora enquanto Nadador Salvador, a efetuar no final de cada mês depois de apurado o número de horas prestadas.

• Por escrito datado de 01/07/200, intitulado "CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS", a Ré admitiu o 3º Autor para desempenhar funções de Instrutor de …, Lisboa, mediante o pagamento de € 9,50 por cada aula de Hidroterapia e de € 14,90 por cada aula de Postura, sendo o pagamento efetuado no final de cada mês depois de apurado o número de horas prestadas.

• A Ré admitiu a 4.ª Autora para ministrar aula na ..., Lisboa, a partir de 1 de abril de 2003, pelo prazo de um ano, automaticamente renovável, mediante o pagamento de € 17,50 por cada aula ministrada, tendo ambos para o efeito o escrito de fls. 1276-1278, cujo teor se dá por reproduzido a íntegra.

• Os Autores utilizavam equipamentos e instrumentos da Ré.

• Os Autores ministravam as aulas em horários definidos pela Ré.

•Aos Autores foi ministrada formação.

•Os Autores comunicaram o período de férias à Ré.

• O 2.° Autor, por carta datada de 29/07/2013, comunicou à Ré o que consta da missiva de fls. 45 dos autos, cujo teor se reproduz na íntegra.

• Em consequência do supra descrito em 1), os Autores emitiram à Ré os recibos verdes juntos aos Autos.

• A Ré não pagava subsídios de férias e Natal aos Autores.

• Nas ausências dos Autores, a Ré providenciava, se necessário, pela sua substituição.

5. Ainda foi referido que os Autores estavam sujeitos a orientações gerais e sugestões dadas por instrutores ou coordenadores.

6. O acórdão de que se recorre, para aplicar a presunção de laboralidade constante do artigo 12.º do Código do trabalho de 2009, refere que não foi sequer posta em causa a aplicação da presunção estabelecida no artigo 12.° do CT/2009, pelo que a questão essencial em apreciação é assim a de saber se pode presumir que, através da prova efetuada pelos Autores dos factos integradores da aludida presunção, existem contratos de trabalho.

7. Não descortina a Recorrente o que será, nos termos do Acórdão de que ora se recorre, "pôr em causa", até porque na sentença proferida pela primeira instância, foi entendido que a legislação aplicável seria o Código do Trabalho de 2003 e a ora Recorrente discordou, quer no corpo das suas contra-alegações ao recurso de apelação interposto pelos ora recorridos, que em sede conclusões do mesmo articulado, da aplicação do regime do Código do Trabalho de 2009, aprovado pela Lei 7/20009, de 12 de fevereiro.

8. Salvo o devido respeito, a presunção contante do artigo 12.° do Código do trabalho, na versão aprovada pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro é, precisamente, a legislação que não pode ser aplicada.

9. De acordo com o disposto no n.° 1 do artigo 7.° da Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro (que aprovou aquele que se convencionou designar por Código do trabalho revisto), ficavam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.° 7/2009, os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ou adotados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.

10. O regime constante desta norma acolhe o regime comum de aplicação da lei do tempo constante do n.° 2 do artigo 12.º do Código Civil, que estatui que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrande as próprias relações já constituídas que subsistiram à data da sua entrada em vigor.

11. Sobre esta norma, [cfr.] Oliveira Ascensão (in O Direito, Introdução e Teoria Geral, Uma Perspetiva Luso-Brasileira, 10.a edição revista, Almedina, Coimbra, 1997, p.489) pronuncia-se nos seguintes termos: «A lei pode regular efeitos como expressão duma valoração dos factos que lhe deram origem: nesse caso aplica-se só aos novos factos. Assim, a lei que delimita a obrigação de indemnizar exprime uma valoração sobre o facto gerador da responsabilidade civil; a lei que estabelece poderes e vinculações dos que casam com menos de 18 anos exprime uma valoração sobre o casamento nessas condições; pelo contrário, pode a lei atender diretamente à situação, seja qual for o facto que tiver originado. Se a lei estabelece os poderes vinculações do proprietário, pouco lhe interessa que a propriedade tenha sido adquirida por contrato, ocupação ou usucapião: pretende abranger todas as propriedades que subsistam, aplica-se, então, imediatamente a lei nova.»

12. Nessa mesma linha, afirma Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Editora, 1967, anotação ao artigo 12°, pp. 18-19): «previnem-se no n.° 2, em primeiro lugar, os princípios legais relativos às condições de validade substancial ou formal de quais factos, ou referentes aos seus efeitos. Assim, por exemplo, quanto a impedimentos matrimoniais, quanto à capacidade, quanto à legalidade do próprio negócio, quanto à forma, não pode aplicar-se a lei nova a situações anteriores, e o mesmo é dizer quanto às obrigações do vendedor ou do comprador, quanto aos direitos e obrigações do locatário ou senhorio, quanto à obrigação do mutuário, etc».

13. Ora o artigo 12.° do Código do Trabalho - na versão aprovada pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro - estabelece a presunção que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento de alguns dos seus requisitos, o que traduz uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção e, por conseguinte, só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas iniciadas após o início da sua vigência, que ocorreu em 17 de fevereiro de 2009.

14. Este, aliás, tem sido o entendimento unânime da jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, indicando-se diversos acórdãos que o demonstram:

a) Processo n.° 329/08.0TTFAR.E1.S1 (Revista) - 4.ª Secção, de 15/09/2016;

b) Processo n° 424/13.3TTVFR.P1.S1 – 4.ª Secção, de 9 de Março de 2017 (Relator Ana Luísa Geraldes);

c) Processo n.° 2501/09.6TTLSB.L2.S1 (Revista) - 4.ª Secção, de 28/01/2016;

d) Recurso n.° 3292/13.1 TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 09/09/2015;

e) Recurso n.° 329/08.0TTCSC.L1.S1 - 4.ª Secção, de 15/04/2015;

f) Recurso n.° 437/11.0TTOAZ.P1.S1 - 4.ª Secção, de 04/02/2015;

g) Recurso n.° 577/08.2TTVNG.P1.S1 - 4.ª Secção, de 04/06/2014;

h) Recurso n.° 460/11.4TTBCLP1.S1 - 4.ª Secção, de 02/12/2013;

i) Recurso n.° 56/12.3T4AVR.C1.S1 - 4.ª Secção, de 06/06/29013;

j) Recurso n.° 3247/06.2TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 05/03/2013;

k) Recurso n.° 176/10.9TTGRD.C1.S1 - 4.ª Secção, de 08/01/2013

l) Recurso n.° 247/10.1TTTMR.C1.S1 -4.ª Secção, de 15/11/2012;

m) Recurso n.° 270/10.6TTOAZ.P1.S1-4.ª Secção, de30/05/2012;

n) Recurso n.° 30/08.4TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 19/04/2012;

o) Recurso n.° 558/07.3TTPRT.P1.S1 - 4.ª Secção, de 21/03/2012;

p) Recurso n.° 2178/07.3TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 09/02/2012;

q) Recurso n.° 805/07.1TTBCL.P1.S1 - 4.ª Secção, de 25/01/2012;

r) Recurso n.° 2852/06.1TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 12/10/2011;

s) Recurso n.° 192/07.8TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 22/09/2011;

t) Recurso n.° 996/07.1TTMTS.P1.S1- 4.ª Secção, de 16/12/2010;

u) Recurso n.°4401/04.7TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, de 22/09/2010;

v) Recurso n.° 1348/05.3TTLSB.S1 - 4.ª Secção, de 14/04/2010;

15. Ou seja: mais de duas dezenas de Acórdãos deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, todos disponíveis in www.dgsi.pt, proferidos nos últimos sete anos sobre a temática da aplicação da lei no tempo, o que demonstra um sentido jurisprudencial unânime e isento de dúvidas.

16. Mas o próprio Tribunal da Relação de Lisboa segue, usualmente, a mesma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, como se pode aferir pelo Acórdão proferido em 04.05.2011, cujo sumário se encontra nas págs. 21 e 22 das presentes Alegações.

17. Pelo que, demonstrado fica, sem margem para segundas interpretações, e de acordo com a jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal de Justiça, que a legislação aplicável às relações jurídicas contratuais constituídas na vigência de um determinado regime jurídico/Código do Trabalho, embora se tenha mantido na vigência de posterior regime jurídico/Código do Trabalho, se nenhum facto determinante de qualquer mudança ocorreu na sua configuração ou natureza, deve aplicar-se o regime jurídico/Código vigente à data do seu início, no tocante à sua qualificação.

18. Da matéria de facto dada como provada supra referida, nenhuma prova foi produzida no sentido de ter ocorrido facto determinante de qualquer mudança na configuração ou natureza dos Contratos.

19. Deste modo, face a este entendimento, por um lado, e face à matéria dada como provada, o regime jurídico aplicável a esta relação jurídica é o regime jurídico do contrato individual de trabalho anexo ao Decreto-Lei n.° 49.408, de 24 de Novembro (LCT), não tendo aplicação a presunção estipulada no artigo 12.° do Código do Trabalho de 2003, bem como a presunção estipulada no artigo 12.° do Código do Trabalho 2009.

20. Nos termos do artigo 1152.° do Código Civil e do artigo 1.º da LCT, "Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta."

21. Já nos termos do artigo 1154.° do Código Civil, um contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.

22. Estas figuras são, na verdade, de difícil distinção, sendo que antes das presunções de laboralidade, que apenas surgiram com o Código do Trabalho de 2003, as nossas doutrina e jurisprudência baseiam-se, essencialmente, na existência ou não de subordinação jurídica entre os referidos sujeitos.

23. Por um lado, o Contrato de Trabalho caracteriza-se essencialmente pelo estado de dependência em que o trabalhador se coloca face à entidade empregadora, que se traduz em subordinação jurídica, cuja demonstração resulta da circunstância do trabalhador se encontrar submetido à autoridade e direção do empregador.

24. Nestes casos, o empregador dá ordens e exerce o poder de direção que a lei confere à entidade empregadora, a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador.

25. Já na prestação de serviço não se verifica essa subordinação, considerando-se apenas o resultado da atividade.

26. Neste sentido, veja-se Luís Brito Correia, "Direito do Trabalho", I - Relações Individuais, Universidade Católica, Lisboa, 1981, págs. 88, Galvão Teles, Contratos Civis, em BMJ n.° 83, página 166 ou Cruz de Carvalho, Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, Legislação anotada, Petrony, 1983, págs. 10 e seguintes.

27. Não existindo a presunção de laboralidade, incumbia aos Autores, nos termos do artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil, a alegação e prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque são constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.

28. Ou seja, demonstrando que presta uma atividade remunerada para outrem, sob a autoridade e direção do beneficiário (artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil).

29. Ora, dos factos dados como provados, melhor referidos em 4., terá de se concluir que a Autora não logrou provar que estivesse sob as ordens, direção e fiscalização da Recorrente, assim como também não provou que estivesse sujeita ao seu poder disciplinar.

30. Na verdade, apenas resulta da matéria de facto dada como provada que exercia a sua atividade nas instalações da Ré, com equipamentos e meios por aquela fornecidos, que teve formação, que ministrava aulas em horários definidos pela Ré e que comunicava àquela que ia gozar férias e que recebia à hora (com o valor a ser variável, sendo apenas apurado no final de cada mês).

31. E mesmo que se entenda que os autores estavam sujeitos a orientações gerais e sugestões dadas por instrutores ou coordenadores, tal é manifestamente diferente de ordens, instruções e diretivas, como é reconhecido jurisprudencialmente pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se poderá aferir pelos Acórdãos proferidos, um no âmbito do Proc. n.° 67/13.1TTBCL.P1.S1 (Revista) - 4.ª Secção, de 10/12/2015 (Contrato de trabalho / Prestação de serviço - Professor de educação física - A circunstância de o A. dever obediência ao regulamento interno da destinatária da atividade prosseguida e de essa atividade ser enquadrada por esta, não significa, só por si, que existe subordinação jurídica, pois na prestação de serviços quem contrata pode também organizar, vigiar e acompanhar a sua prestação com vista ao controlo do resultado, e o beneficiário da atividade não está inibido de dar orientações quanto ao resultado que pretende obter do prestador) ou ainda do processo n.° 2867/04.4TTLSB.S1 - 4.ª Secção, de 24 de Fevereiro de 2011 ("(...)"- o elemento típico distintivo do vínculo juslaboral é a subordinação jurídica do trabalhador, traduzida no poder do empregador de conformar, mediante ordens, diretivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou).

32. Nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica:

a) Os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a atividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da atividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da atividade, existência de controlo externo do modo de prestação da atividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa);

b) Os chamados indícios negociais externos (situação fiscal do prestador da atividade, a inscrição do prestador da atividade na Segurança Social, etc).

33. No caso, perante a matéria de facto dada como provada, e quanto a indícios externos, verifica-se a sujeição do Autor aos regimes fiscal e de segurança social atribuídos, por Lei, aos trabalhadores por conta de outrem.

34. Já quanto aos indícios internos, temos que:

a) A A. desempenhava as funções nas instalações da Ré - Ora, a atividade desenvolvida por um professor de educação física é, habitualmente, realizada nas instalações do beneficiário da atividade;

b) A A. utilizava equipamentos e instrumentos da Ré - Também aqui, atividade desenvolvida por um professor de educação física é, habitualmente, realizada com equipamento específico fornecido pelo destinatário da atividade;

e) A A. ministrava aulas em horários definidos pela R - Face á multiplicidade de professores e alunos, a existência de um horário de aulas é essencial para que a atividade prosseguida funcione com o mínimo de organização;

f) A A. recebia à hora e quando faltava, não recebia honorários;

g) Quando a A. faltava, não estava sujeito a poder disciplinar da Ré;

h) A A. não recebia férias, subsídio de férias e subsídio de Natal;

i) Ao contrato foi dada a designação de "Contrato de Prestação de Serviços";

35. Ponderando todos estes indícios na sua globalidade e adaptando os mesmos à atividade em concreto, será aqui essencial aferir do modo como a relação contratual se desenvolveu entre as partes e verificar se a Ré teria, ou não, o poder conformativo da prestação.

36. E verifica-se que não, uma vez que não existe qualquer manifestação do poder de direção, de poder disciplinar ou de poder de conformar a prestação do Autor.

37. E verifica-se que não, uma vez que não existe qualquer manifestação do poder de direção, de poder disciplinar ou de poder de conformar a prestação do Autor[1].

38. Ou seja, será a subordinação económica e a subordinação jurídica que constituem a pedra angular, a essência, em que se estriba o critério diferenciador entre um contrato de trabalho e um contrato de prestação de serviço.

39. Reitera-se: no contrato de trabalho, esse fator de subordinação jurídica do trabalhador traduz-se no poder de autoridade e direção do empregador de conformar, através de ordens, directivas e instruções, a prestação a que o trabalhador se obrigou, à existência do poder de conformar a actividade.

40. Por sua vez, a outra parte obriga-se a prestar a sua actividade intelectual ou manual - trata-se aqui de uma obrigação de meios.

41. Já no contrato de prestação de serviço, o prestador do serviço (.) obriga-se à prestação de um resultado da sua atividade, que efetuará por si, com autonomia e da forma que considerar mais adequada.

42. Porém, tal não impede que, nos Contratos de Prestação de Serviço, exista a possibilidade do beneficiário poder dar sugestões e orientações gerais, dirigidas à obtenção do resultado do serviço a prestar e cuja qualidade se pretende assegurar.

43. Acresce à questão da subordinação o "nomen iurís" atribuído ao Contrato celebrado entre o A. e a R., que também é um elemento a ter em conta na qualificação do referido Contrato.

44. Nas páginas 30 e 31 do corpo das Alegações, é também citada vasta jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça neste sentido, como por exemplo o processo n.° 67/13.1TTBCL.P1.S1 (Revista) - 4.ª Secção, de 10/12/2015: Contrato de trabalho / Prestação de serviço - Professor de educação física - I - A atividade desenvolvida pelos professores de educação física (musculação e cardiofitness) é habitualmente prosseguida em instalações do destinatário da atividade prestada, com equipamento específico por este fornecido, não tendo esses elementos, bem como a existência de horário para ministrar as aulas, que é essencial para que a atividade prosseguida funcione com o mínimo de organização, dada a multiplicidade de professores e de alunos, particular relevo na caracterização do vínculo que ligue as partes envolvidas. II- A circunstância de o A. dever obediência ao regulamento interno da destinatária da atividade prosseguida e de essa atividade ser enquadrada por esta, não significa, só por si, que existe subordinação jurídica, pois na prestação de serviços quem contrata pode também organizar, vigiar e acompanhar a sua prestação com vista ao controlo do resultado, e o beneficiário da atividade não está inibido de dar orientações quanto ao resultado que pretende obter do prestador. Ill- Tendo-se provado que o Autor auferia uma remuneração variável e que era pago à hora, que a falta de comparência às aulas apenas poderia implicar perda da retribuição correspondente, não sofrendo outras consequências e tendo recebido, nos mais de dez anos em que colaborou com a R., uma retribuição paga apenas em onze meses, sem pagamento das férias, subsídio de férias e de subsídio de Natal e sem nunca ter havido descontos para contribuições para a Segurança Social, como trabalhador dependente, pois apresentava-se como titular de rendimentos de trabalho independente, sendo pago através de recibos verde que emitia, não se pode concluir, com segurança, pela existência dum contrato de trabalho.

45. E o Parecer do Digníssimo Procurador Geral Adjunto, junto do Supremo Tribunal de Justiça, elaborado no âmbito do presente processo, também conclui, de forma clara que "(...) a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é no sentido de que a para qualificar a relação jurídica em causa, deverá ter-se em consideração o regime jurídico em vigor, a quando da contratação." e que "In casu, a facticidade dada como provada, apreciada globalmente, impõe que se conclua não terem sido apurados factos bastantes para caracterizar tal relação como contrato de trabalho."

46. Ao decidir da forma que decidiu, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa violou as seguintes normas:

a) Artigo 7.º/1 da Lei n.° 7/2009 - De acordo com o disposto no n.°1 do artigo 7.° da Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro (que aprovou aquele que se convencionou designar por Código de Trabalho revisto), ficavam sujeitos ao regime do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.° 7/2009, os contratos de trabalho e os instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho celebrados ou adotados antes da entrada em vigor da referida lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento.

b) Artigo 12.° do Código do Trabalho de 2009 (aprovado pela Lei n.° 7/2009, de 12 de fevereiro) - Ao aplicar a presunção constante nesta norma ao caso concreto deste processo, o Acórdão viola a mesma, pelos factos já acima aduzidos (designadamente este regime não ser aplicável à situação constante dos presentes autos);

c) Artigo 8.º da Lei n.° 99/ 2003, de 27 de agosto;

d) Artigo 12.° do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto;

e) Artigo 12.º/ 2 do Código Civil - n.° 2 do artigo 12.° do Código Civil, que estatui que quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser diretamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem, entender-se-á que a lei abrande as próprias relações já constituídas que subsistiram à data da sua entrada em vigor.

f) Artigo 10.° do Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n.° 99/2003, de 27 de agosto, que define o conceito de Contrato de Trabalho;

g) Artigo 1152.° do Código Civil;

h) Artigo 1154.° do Código Civil, que define o conceito de Contrato de Prestação de Serviços;

i) Artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.°49.408 de 24 de novembro de 1969, que define o conceito de contrato de trabalho.»

Termina pedindo que seja dado provimento à revista e que, em consequência, seja «(…) o acórdão recorrido (…) revogado e substituído por outro que absolva a Recorrente do pedido formulado pela A. DD e demais legais consequências».

A Autora não respondeu ao recurso interposto.

O Exm.º Magistrado do Ministério Público, neste Supremo Tribunal de Justiça, proferiu parecer, nos termos do n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho, pronunciando-se no sentido da concessão da revista, referindo, em síntese, que no caso dos autos não é aplicável para a qualificação da relação jurídica a presunção de laboralidade ínsita no art.º 12.º, do Código do Trabalho em vigor, antes devendo ser a mesma analisada à luz do Decreto-‑Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, e que entre as partes não vigorou um contrato de trabalho.

Notificado às partes, apenas a autora apresentou resposta, defendendo que, quer com base na presunção legal prevista no art.º 12.º do Código do Trabalho em vigor, quer recorrendo ao método indiciário decorrente do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.°49.408 de 24 de novembro de 1969, a relação contratual que estabeleceu com a Ré consubstancia um contrato de trabalho.

Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber:

a) se à relação existente entre a Autora DD e a Ré não é aplicável o disposto no artigo 12.º do Código de Trabalho de 2009; e

b) se essa relação não deve ser considerada como de trabalho subordinado.


II

É a seguinte a matéria de facto fixada:

«1. Por escrito datado de 02/01/2008, intitulado “CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS”, a Ré admitiu o 1.º Autor para desempenhar funções de Instrutor …, Lisboa, mediante o pagamento de € 8,50 à hora, a efetuar no final de cada mês depois de apurado o número de horas prestadas.

2. Por escrito datado de 01/02/2002, intitulado “CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS”, a Ré admitiu o 2.º Autor para desempenhar funções de Instrutor …, Lisboa, mediante o pagamento de € 9,50 por aula enquanto Instrutor de Natação e € 6,50 por hora enquanto …, a efetuar no final de cada mês depois de apurado o número de aulas e horas prestadas.

3. Por escrito datado de 01/07/2002, intitulado “CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS”, a Ré admitiu a 3.ª Autora para desempenhar funções de …, Lisboa, mediante o pagamento de € 9,50 por cada aula de Hidroterapia e de € 14,90 por cada aula de Postura, sendo o pagamento efetuado no final de cada mês depois de apurado o número de aulas prestadas.

4. A Ré admitiu a 4ª Autora para ministrar aulas na ..., Lisboa, a partir de 1 de abril de 2003, pelo prazo de um ano, automaticamente renovável, mediante o pagamento de € 17,50 por cada aula ministrada, tendo ambos para o efeito assinado o escrito de fls. 1276 -1278, cujo teor se dá por reproduzido a íntegra. (facto objeto de ampliação - fls. 1294)

5. Os Autores utilizavam equipamentos e instrumentos da Ré.

6. Os Autores ministravam as aulas em horários definidos pela Ré.

7. Aos Autores foi ministrada formação.

8. Os Autores comunicaram o período de férias à Ré.

9. O 2.º Autor, por carta datada de 29/07/2013, comunicou à Ré o que consta da missiva de fls. 45 dos autos, cujo teor se reproduz na íntegra.

10. Em consequência do supra descrito em 1), os Autores emitiram à Ré os recibos verdes juntos aos autos.

11. A Ré não pagava subsídios de férias e Natal aos Autores.

12. Nas ausências dos Autores, a Ré providenciava, se necessário, pela sua substituição.

13 – Os autores estavam sujeitos a orientações gerais e sugestões dadas por outros instrutores ou coordenadores[2]


III

1 – A decisão recorrida, pese embora tivesse constatado que a relação contratual estabelecida entre as partes teve o seu início em 1 de abril de 2003, julgou aplicável ao caso dos autos o disposto no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009, com fundamento no facto de as partes não terem posto em causa a aplicação da presunção de laboralidade que dali resulta.

Com efeito, lê-se no acórdão recorrido o seguinte:

«Os Autores/Recorrentes alegam que, como vem sendo entendimento jurisprudencial, a título de exemplo, citam Acórdão do STJ de 2.07.2015, Proc. 182/14.4TTGRD.C1.S.1, uma vez provada a existência de duas ou mais das circunstâncias previstas nas várias alíneas do nº 1 do art.12º do Código do Trabalho, presume-se a existência de contrato de trabalho. No caso dos autos, provadas três dessas características, deverá funcionar tal presunção, devendo ser reconhecido que entre Recorrentes e Recorrida existiu uma relação laboral - contratos de trabalho.

No caso, não tendo sido sequer posta em causa a aplicação da presunção estabelecida no art.º12 do CT/2009, a questão essencial em apreciação é assim a de saber se pode presumir que, através da prova efetuada pelos Autores dos factos integradores da aludida presunção, existem contratos de trabalho.(…)»

Este entendimento não merece a nossa adesão.

Por um lado, importa ter presente que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), pelo que a circunstância de “não tendo sido sequer posta em causa a aplicação da presunção estabelecida no art.º12 do CT/2009” pelas partes é inócua quando está em causa a aplicação das regras de direito pelo julgador.

Por outro lado, o entendimento seguido pelo acórdão recorrido contraria a linha de orientação da jurisprudência desta Secção há muito estabilizada no sentido de que, estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu aquela relação jurídica.

Veja-se, a título meramente exemplificativo, os recentes acórdãos desta Secção de 4 de julho de 2018 e de 27 de novembro de 2018, proferidos nos processos n.º 1272/16.4T8SNT.L1.S1 n.º 14910/17.2T8SNT.L1.S1[3], respetivamente, extraindo-se do primeiro aresto o seguinte sumário:

«I. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.

II. A presunção de laboralidade é um meio facilitador da prova a favor de uma das partes, pelo que a solução de aplicar a lei vigente ao tempo em que se realiza a atividade probatória pode conduzir a um desequilíbrio no plano processual provocado pela impossibilidade de se ter previsto no momento em que a relação se estabeleceu quais as precauções ou diligências que deviam ter sido tomadas para assegurar os meios de prova, o que poderia conduzir à violação do direito a um processo equitativo e causar uma instabilidade indesejável em relações desde há muito constituídas.

III. Estando em causa uma relação jurídica estabelecida entre as partes em 2 de novembro de 1995, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado os seus termos essenciais, à qualificação dessa relação aplica-se o regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aplicação as presunções previstas no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2003 e de 2009.

(…)»

2 - No caso dos autos, discute-se a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes em 1 de abril de 2003 (cfr. facto provado n.º 4), na vigência, portanto, do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969.

Outrossim, analisada a matéria de facto, dela não se extrai que as partes tivessem alterado, a partir de 1 de dezembro de 2003 - data da entrada em vigor do Código do Trabalho aprovado pela Lei n.º 99/2003, de 27 de agosto de 2003 -, ou a partir de 17 de fevereiro de 2009 - data da entrada em vigor do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro -, os termos essenciais da relação jurídica entre eles estabelecida.

Nestes termos, à qualificação dessa relação aplica-se o Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969, não tendo aqui aplicação as presunções previstas nos artigos 12.º do Código do Trabalho de 2003 e do Código do Trabalho de 2009.

Na verdade, as presunções de laboralidade estabelecidas no artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor – preceito legal aplicado pelo acórdão recorrido - prendem-se intimamente com a demonstração do facto de que emerge a relação jurídica a que se referem.

Ou seja, nada têm a ver com o complexo de direitos e obrigações que são inerentes à situação jurídica em que ocorrem, estando antes ligadas à caracterização do facto que dá origem àquela situação jurídica.

No fundo, visam a demonstração do título jurídico de que emerge a situação jurídica em causa e que a caracteriza e, nessa medida, só podem ser aplicadas a situações jurídicas já iniciadas na vigência da norma que as consagrou.

Assim, relativamente a relações iniciadas na vigência do artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor, o legislador presume, juris tantum, que às mesmas está subjacente um contrato de trabalho, quando se mostrem preenchidos os pressupostos estabelecidos naquele normativo.

Estamos no âmbito da segunda parte n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 7/2009, quando exceciona do âmbito de aplicação do novo código as «condições de validade e (.) efeitos de factos ou situações totalmente passados anteriormente àquele momento».

Lida esta norma no contexto do artigo 12.º, n.º 2, 1.ª parte, do Código Civil, pode concluir-se, pois, que o que está em causa no âmbito das presunções de laboralidade são ainda «condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos».

Como ensina BAPTISTA MACHADO[4], a propósito do carácter disjuntivo da distinção que é feita no art.º 12.º, n.º 2, do Código Civil, entre “validade” e “conteúdo”, «… para fins de direito de conflitos de leis (no tempo ou no espaço), se faz passar por entre as normas que regulam uma relação ou situação jurídica uma divisória fundamental: de um lado, ficam aquelas normas que estabelecem o regime de validade (de constituição) da relação, do outro aquelas que fixam o regime do seu conteúdo (dos seus efeitos). Eis porque tão frequentemente deparamos, nos textos doutrinais sobre conflitos de leis, com as seguintes expressões, usadas em contraposição uma à outra: «lei (reguladora) da validade» e «lei (reguladora) dos efeitos». Pois também no texto do nosso art. 12.º «conteúdo» se contrapõe a «validade» (constituição). Como abrangidos pela noção de «conteúdo» hão-de entender-‑se, pois, os poderes deveres dos sujeitos da relação jurídica, os efeitos (consequências de direito) que essa relação jurídica produz ou ainda aqueles que ela é suscetível de produzir com a verificação de certos factos posteriores ou de repercutir sobre relações jurídicas complexas. Só que, se esses efeitos de direito se devem entender como definitivamente fixados no momento da constituição da relação jurídica, por serem correlativos ou «proporcionais» ao facto constitutivo, a «lei da validade» é também a lei reguladora desses efeitos (1.ª parte do n.º 2 do art. 12.º). Fora desta hipótese, os efeitos ainda não produzidos (ainda não «atualizados» por se não ter verificado ainda o pressuposto legal da sua produção) no momento da entrada em vigor da lei nova, e bem assim, de futuro, os direitos e deveres das partes e as consequências das respetivas violações, passam a ser regulados por esta lei.»

Ora, a norma que criou as presunções de laboralidade e que impõe que verificada a ocorrência de determinados factos se presuma que a relação em que esses factos ocorrem é uma relação de trabalho subordinado, é uma norma que se refere à “constituição” (ou validade) de uma situação jurídica e não ao seu “conteúdo” ou aos efeitos de uma situação jurídica.

Na verdade, embora tenham o seu fundamento em aspetos caracterizadores da forma como a relação evolui e, por esta via, se pudessem associar ao conteúdo da situação jurídica em causa, a verdade é que a eficácia das presunções de laboralidade se projeta sobre a caracterização do título constitutivo da situação jurídica, ou seja sobre o facto de que a mesma emerge.

Por outras palavras, o efeito das presunções projeta-se de forma imediata não no complexo de direitos e deveres que caracteriza e compõem uma situação jurídica, mas sobre o facto que a constitui.

Como refere BAPTISTA MACHADO[5], «as leis que regulam a constituição (ou processo formativo) duma SJ não podem afetar as SJ anteriormente constituídas

E continua, mais à frente[6]:

«Quando (…) a constituição da situação jurídica se processa através de um ato ou negócio jurídico (que não por força simplesmente de um facto material), a regra de conflitos em causa significa que a lei nova não se aplica às condições de validade do ato ou negócio jurídico que deu vida a uma situação jurídica antes da sua entrada em vigor. Donde se conclui que é em face da lei antiga que devem ser decididas as questões de saber se uma situação jurídica concreta se constituiu ou não, se ela se constituiu regularmente ou padece de quaisquer vícios na sua formação – isto é, todas as questões relativas à validade ou invalidade dos respetivos atos constitutivos.»

Deste modo, visando as presunções de laboralidade caracterizar substancialmente um facto que dá origem a uma relação como contrato de trabalho, as mesmas só poderão aplicar-se aos factos novos, ou seja às relações constituídas na vigência da norma que as passou a prever, respeitando desta forma os corolários fundamentais em que assenta a solução consagrado no artigo 12.º do Código Civil.

Se assim não fosse, a aplicação a uma situação jurídica preexistente de um sistema de presunções criado em momento ulterior, e que modela as relações entre as partes de forma diversa, iria alterar o quadro emergente do facto constitutivo dessa situação jurídica, colocando-se, por esta via, no terreno da problemática de sucessão de leis no tempo.

As presunções não podem, pois, aplicar-se retroativamente para caracterizarem situações jurídicas existentes na data em que as mesmas entraram no sistema jurídico, aplicando-se deste modo e apenas relativamente às situações jurídicas constituídas na vigência destas normas.

Importa, aliás, que também se tenha presente que por detrás da problemática de sucessão de leis no tempo estão princípios fundamentais do direito como o princípio da confiança, a exigir a estabilidade de situações jurídicas, como base da vida social e o princípio da autonomia da vontade, com reflexo direto no respeito pela vontade das partes na modelação das suas relações, especialmente aquelas que têm base contratual.

Na síntese de FERNADO PINTO BRONZE[7], «arriscando uma articulação dos mencionados princípios estruturantes da problemática da concorrência de normas no tempo, no horizonte de um verdadeiro Estado de Direito com os por eles tendencialmente circunscritos campos privilegiados de preponderante afirmação da lei antiga e da lei nova (e prescindindo, portanto, com os perigos decorrentes – e ao contrário do que fizemos nas considerações precedentes – de uma suficientemente atenta ponderação prudencial, da perspetiva do direito intertemporal, de cada situação decidenda), diremos: os facta praeterita (as situações jurídicas definitivamente estabilizadas antes de uma alteração legislativa, e os seus efeitos) são regulados pela lei antiga. É também o direito anterior a uma hipotética alteração legislativa que determina os efeitos de quaisquer relações jurídicas constituídas durante a respetiva vigência, - o que conjuntamente significa: A) se uma concreta relação jurídica se tiver constituído, modificado ou extinguido sob a égide do direito anteriormente em vigor, não pode a lei nova vir considerá-la como não constituída, não modificada ou não extinta; B) O conteúdo conformador de uma dada relação jurídica é modelado, até ao momento, até ao momento em que se opere uma alteração legislativa que se lhe refira, pelo direito anterior; e C) se o direito em vigor no momento em que ocorre um certo facto lhe não reconhecer um determinado efeito jurídico – se ele não gerar então v.g. qualquer responsabilidade – não pode a lei nova vir imputar-lhe esse efeito relativamente ao período anterior à sua entrada em vigor.»

Em suma, a aplicação das presunções de laboralidade a uma situação jurídica constituída antes da entrada em vigor da lei que as estabelece implicaria a aplicação retroativa dos efeitos jurídicos dessas presunções à caracterização do facto de que emerge a situação jurídica em causa, o que contraria o direito do facto, a lei em vigor no momento em que se constitui, e, por tal motivo, violaria frontalmente o disposto no artigo 12.º, n.º 2 do Código Civil, bem como o princípio da autonomia da vontade das partes na modelação das suas relações jurídicas.

E assim sendo, assente que as presunções de laboralidade nada têm a ver com o conteúdo da situação jurídica a cuja demonstração se dirigem, mas com a caracterização ex novo de factos que dão origem a situações jurídicas, torna-se evidente que as mesmas não podem ser aplicadas a relações iniciadas antes da sua entrada em vigor, como é o caso da relação jurídica estabelecida entre as partes.

Impõe-se, pois, a concessão da revista nesta parte.

3 – Nas conclusões 19.º e ss. das alegações apresentadas a recorrente insurge-se contra a decisão recorrida referindo que a matéria de facto dada como provada jamais permitiria, mesmo com recurso ao método indiciário, dar como provada a existência de uma relação de trabalho subordinado entre as partes.

Trata-se de questão sobre a qual a decisão recorrida não se pronunciou podendo considerar-se a mesma implicitamente prejudicada, face à declaração da existência de um contrato de trabalho com base na presunção decorrente do artigo 12.º do Código do Trabalho em vigor.

Essa questão fazia parte do objeto de recurso de apelação interposto pelos Autores, conforme resulta das alegações pelos mesmos apresentadas nesse recurso, e esteve presente na decisão proferida pela 1.ª instância, em que se considerou que a matéria de facto globalmente considerada não permitia que se desse como provada a existência de um contrato de trabalho entre as partes.

Torna-se, assim, necessário apreciar se a relação existente entre a Autora e a Ré não era uma relação de trabalho subordinado, à luz do regime jurídico do contrato individual de trabalho, anexo ao Decreto-Lei n.º 49.408 de 24 de novembro de 1969.

Ou seja, há que apurar se a atividade de professora de educação física que a Autora prestava à Ré deve ser qualificada como contrato de prestação de serviços, conforme pugna a recorrente, ou como contrato de trabalho, como se decidiu no acórdão recorrido.

Para tal, haverá que se aferir da caracterização do contrato estabelecido entre as partes pela interpretação dos elementos fácticos disponíveis resultantes do modo como elas se relacionavam no desenvolvimento e na execução do contrato, com recurso, se necessário, ao chamado método indiciário ou de aproximação tipológico, sem deixar de ter presente que, segundo as regras do ónus da prova, incumbia à Autora, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, fazer prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.

Não tendo a decisão recorrida ponderado essa questão por ter considerado aplicável a presunção de laboralidade estabelecida no art.º 12.º do Código do Trabalho, não pode este Supremo Tribunal de Justiça dela conhecer, nem substituir-se ao Tribunal recorrido, conforme decorre dos artigos 665.º, n.º 2 e 679.º do Código de Processo Civil.

Impõe-se, pois, a remessa do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa para que se proceda à análise e interpretação dos factos apurados, com recurso, se necessário, ao método indiciário, com vista à caracterização do contrato que vigorou entre as partes.


V

 

Em face do exposto, acorda-se em conceder parcialmente a revista e em revogar o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para os efeitos supra determinados.

 Custas da revista em conformidade com o que vier a ser decidido a final.

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 15 de janeiro de 2019

António Leones Dantas (relator)

Júlio Gomes

Ribeiro Cardoso

______________
[1] Repete a conclusão anterior.
[2] Aditado pela decisão recorrida.
[3] Disponíveis em www.dgsi.pt.
[4] Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Coimbra, Almedina, 1968, págs. 36-37.
[5] Ob. Citada, pág. 69.
[6] Ob. Citada, págs. 70-71.
[7] Lições de Introdução ao Direito, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 2010, págs. 860-861.