Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B3713
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
COLIGAÇÃO DE CONTRATOS
CONTRA-ORDENAÇÃO
PRESUNÇÕES JUDICIAIS
INCUMPRIMENTO CONTRATUAL
CLÁUSULA PENAL
Nº do Documento: SJ200710250037137
Data do Acordão: 10/25/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1. O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar no recurso de revista o juízo das instâncias extraído por presunção judicial de que o levantamento do auto de contra-ordenação necessariamente impediu a continuação da escavação e a remoção da areia de determinado lote de terreno.
2. É qualificável de coligação de contratos de compra e venda e de prestação de serviço a convenção das partes por via da qual elas declaram, uma delas alienar à outra, mediante determinado preço, a areia integrante de um lote de terreno, e a última dever extraí-la e preencher o desaterro com outros materiais arenosos e proceder ao respectivo nivelamento.
3. Não tendo a vendedora obtido a licença de extracção da areia, originando com a sua omissão a autuação por contra-ordenação, implicando a impossibilidade de a compradora finalizar aquela extracção, justificado está o comportamento da última de não proceder ao referido nivelamento, e verificado o incumprimento contratual da primeira, justificativo do funcionamento da cláusula penal indemnizatória convencionada.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Empresa-A – Sociedade de Porcelanas, Ldª instaurou, no dia 13 de Janeiro de 2003, contra Transportes Empresa-B, Ldª, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a sua condenação a preencher com areia idêntica à do lote em causa a cratera na caldeira que nele abriu, a compactar a areia e a nivelar o mesmo lote à cota de 30 centímetros acima do nível do arruamento confinante e a indemnizá-la no montante a liquidar em execução de sentença por invocados prejuízos.
Fundamentou a sua pretensão no incumprimento pela ré de um contrato de prestação de serviços de terraplanagem e de nivelamento de um lote de terreno destinado à construção urbana.
Na contestação, a ré invocou que a autora lhe vendeu a areia do lote de terreno até três metros de profundidade, que se comprometeu a removê-la, que a última não tinha licença para o efeito e, em reconvenção, pediu a sua condenação a indemnizá-la, por não poder continuar a extrair a areia em razão da falta de licença, no que se liquidar em execução de sentença, e € 9 975, 96 a título de indemnização convencionada entre ambas pelo incumprimento contratual.
A autora replicou no sentido de negar o direito da ré a qualquer indemnização e, realizado o julgamento, foi proferida sentença no dia 13 de Setembro de 2006, por via da qual a ré foi condenada a nivelar parte do lote de terreno da autora até à cota da estrada e esta última a pagar àquela € 9 975,76.
Apelaram a autora e a ré, e a Relação, por acórdão proferido no dia 9 de Maio de 2007, negou provimento a ambos os recursos.

Interpôs a autora recurso de revista, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- convencionaram que à recorrida estava vedada a abertura de crateras e que só lhe era permitida a remoção dos materiais excedentes;
- ao julgar-se poder a recorrida, ao abrigo do contrato, escavar de modo a abrir a cratera que abriu, interpretou-se e aplicou-se erradamente o artigo 236º do Código Civil;
- ao abrir a cratera, impedindo a recorrente de iniciar a construção do edifício industrial a que o terreno se destinava, incumpriu a ré o contrato e é obrigada a indemnizá-la;
- foram erradamente interpretadas e aplicadas as normas dos artigos 562º a 566º 798º e 799º do Código Civil;
- a recorrente não incumpriu o contrato, pelo que não deve ser condenada no pagamento de indemnização à recorrida.

II
É a seguinte a factualidade considerada assente no acórdão recorrido:
1. Representantes da autora e da ré, designadas por primeira e segunda outorgantes, declararam por escrito, no dia 27 de Outubro de 2001:
- comprometer-se a segunda outorgante a proceder ”num lote de terreno para construção na Zona Industrial da Mota, “à remoção do material excedente e, quando possível, ao aproveitamento do material existente no terreno, colocando em seu lugar materiais de origem arenosa, realizando posteriormente o nivelamento de toda a área delimitada pelas extremas do referido lote de terreno, sendo que para tal utilizará as suas máquinas para terraplanagem, escavação e remoção de terras”;
- após a retirada dos materiais excedentários” a segunda outorgante “obriga-se especificamente a deixar o terreno nivelado e com as quedas necessárias para o bom escoamento das águas”;
- a primeira outorgante declara que todos os materiais que para o fim referido nas cláusulas anteriores venham a ser retirados do lote de terreno, passarão, no acto da sua remoção, a ser propriedade da segunda outorgante, que será livre de lhe dar o destino que entender, sem de tal dar conta ou pagar quaisquer quantias...”;
- os trabalhos de terraplanagem terão início no prazo de 5 dias após a comunicação feita pela primeira outorgante à segunda outorgante de que podem ter início os trabalhos, e terminarão 120 dias após”;
- a segunda outorgante, como forma de pagamento, entrega à primeira outorgante cheques no valor total de 4 000 000$;
- no caso de se verificar incumprimento ou desistência por parte de qualquer das outorgantes, a outra parte terá direito a receber...indemnização que antecipadamente se fixa em 2 000 000$.

2. Por virtude do declarado mencionado sob 1, a segunda outorgante devia proceder à terraplanagem do terreno e o nivelamento seria efectuado com areias sujas, que aquela compraria e colocaria no final da escavação, visando a primeira outorgante preparar o mesmo lote de terreno para a construção de um edifício industrial, e poder a ré quando tal fosse possível, remover e fazer seu o material excedente, designadamente pinheiros e areia, e, do declarado não consta
3. Do declarado sob 1 não consta autorização concretizada da extensão e profundidade da remoção de areias.
4. A autora vendeu à ré areia existente no lote de terreno em causa, sem concretização da sua profundidade ou extensão e a última comprometeu-se a proceder ao nivelamento do mesmo, e a ré pagou à autora a quantia de € 19 951,91, que foi o preço acordado.
5. Para além da terraplanagem e do nivelamento referidos, a ré escavou e removeu areias de tal lote de terreno, para venda, abrindo, assim, no centro do mesmo, uma cratera com cerca de 3 metros de profundidade em alguns pontos e com 70 vezes 60 metros de lado.
6. Foram levantados autos de contra-ordenação por via da escavação e remoção de areia do lote de terreno mencionado, em virtude do que, em meados de 2002, a ré não pôde continuar a extrair e remover a areia referida, que pretendia revender.
7. A autora, perante os factos referidos sob 5, remeteu à ré a carta constante a folhas 73 e 74, datada de 7 de Junho de 2002, de cujo teor consta, designadamente, o seguinte: “…o acordo…não se encontra a ser cumprido pela vossa parte. A vossa atitude de extracção de areias até ao nível freático levou a que a empresa Empresa-A fosse autuada para prestar declarações junto das entidades competentes, com pagamento de uma coima e a possibilidade de perda do terreno. Ora, como não foi esse o nível estabelecido para a terraplanagem e a remoção de materiais excedente, a empresa Empresa-A reconhece toda a responsabilidade desta situação à negligente e inadmissível forma de tratamento de terrenos do subsolo pela vossa parte. A empresa Empresa-A, aquando do acordo, frisou a intenção de não baixar o nível de areia abaixo da cota da estrada, já que a empresa iria colocar maquinaria que produz vibração, necessitando para isso da estabilidade dos solos, bem como para a própria estabilidade dos edifícios. O nível estabelecido por ambas as partes para a remoção dos materiais excedentes foi a cota da estrada, com posterior aterro e nivelamento do mesmo até uma cota de cerca de 30 cm acima da cota da estrada. Perante esta situação, agradecíamos que procedessem urgentemente à regularização do terreno conforme combinado”.

8. A ré não procedeu ao nivelamento, pelo menos da totalidade do lote de terreno, mas procedeu ao nivelamento parcial da cratera em percentagem da sua área concretamente não apurada.
9. Em virtude dos factos referidos sob 5, a autora não pode iniciar no lote de terreno mencionado qualquer construção no estado em que o mesmo actualmente se encontra, sem que seja preenchida a cratera em causa com areia suja ou terra, o que lhe causa um atraso no início da construção respectiva.

III
As questões essenciais decidendas são as de saber se a recorrente está ou não vinculada a indemnizar a recorrida no montante de € 9 975,76 e se tem ou não direito a exigir da última indemnização por virtude de não ter podido iniciar a construção do edifício industrial.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e as conclusões de alegação da recorrente, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- delimitação negativa do objecto do recurso e factos residuais considerados nas instâncias;
- sentido das declarações negociais das partes em causa;
- natureza e efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida;
- tem ou não a recorrente direito a exigir da recorrida indemnização por incumprimento do referido contrato?
- tem ou não a recorrida direito a exigir da recorrente a indemnização que lhe foi fixada?
- síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas subquestões.

1.
Comecemos pela delimitação negativa do objecto do recurso e pela análise dos de factos inferidos de outros considerados com relevo nas instâncias.
O tribunal da primeira instância condenou a recorrida a nivelar parte do lote de terreno em causa da titularidade da recorrente até à cota da estrada com a utilização de materiais arenosos – areia suja e terra – independentemente de continuação da remoção da areia convencionada.
A Relação manteve o mencionado segmento condenatório e a recorrida não interpôs recurso do respectivo acórdão, pelo que ele transitou em julgado e os seus efeitos não podem ser afectados pelo recurso de revista em análise (artigos 677º e 684º, nº 4, do Código de Processo Civil).
Resulta de II 6 terem sido levantados autos de contra-ordenação por causa da escavação e remoção de areia no lote de terreno mencionado, em virtude do que, em meados de 2002, a ré não pôde continuar a extrair e a remover a areia referida, que pretendia revender.
O tribunal da primeira instância considerou que o levantamento dos referidos autos impediu a continuação da realização dos trabalhos objecto de contra-ordenação, designadamente a escavação e a remoção da areia, e que tal contra-ordenação e paragem dos trabalhos não teria lugar se houvesse licença para a escavação e remoção da areia do lote de terreno, e a Relação manteve esse juízo de facto.
Nesse juízo de facto, as instâncias utilizaram o mecanismo legal das presunções judiciais a que se reportam os artigos 349º e 351º do Código Civil, determinando factos desconhecidos a partir de factos conhecidos.
Este Tribunal não pode sindicar esta factualidade, dados os limites da sua competência funcional nesta matéria, apenas lhe cabendo aplicar o regime legal pertinente (artigos 729º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 26º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais).

2.
Prossigamos com a determinação do sentido prevalente das declarações negociais dos representantes da recorrente e da recorrida que a primeira põe em causa no recurso.
A recorrente interpreta o clausulado do contrato no sentido de que os materiais a remover pela recorrida eram os que ficavam acima do nível ou cota da estrada, depois de removidos e escavados, de modo a que o terreno ficasse terraplanado, por forma a permitir a construção de uma unidade industrial.
As instâncias interpretaram o mencionado clausulado no sentido de que a recorrida podia efectuar escavações abaixo da cota da estrada e aproveitar o material escavado e inserir no seu lugar areia suja ou terra e, posteriormente, proceder ao seu nivelamento.
Na motivação dessa interpretação, consideraram, por um lado, não fazer sentido a prestação do serviço em causa pela recorrida sem contrapartida e ainda devendo pagar à recorrente a quantia equivalente a € 19 951,91, e, por outro, que se assim não fosse, não era compreensível o convencionado entre as partes no sentido de a recorrida poder utilizar máquinas de escavação.
As declarações negociais são expressas quando feitas por palavras, escrito, ou qualquer outro meio directo de manifestação da vontade, e tácitas quando se deduzem de factos que, com toda a probabilidade a revelam (artigo 217º, nº 1, do Código Civil).
A declaração negocial tácita ocorre, pois, quando as partes exteriorizam certo comportamento tendente a determinado fim principal, mas que, pela sua estrutura, permite a conclusão no sentido de lhe inerir determinada vontade negocial.
A declaração negocial presumida ocorre quando a lei liga determinado comportamento de uma pessoa a expressão de uma declaração negocial.
Ora, o que ocorreu no caso espécie, foi que a Relação interpretou as declarações expressas dos representantes da recorrente e da recorrida no sentido em que o fez, pelo que inexiste fundamento para considerar que recorreu a declarações negociais tácitas ou presumidas.
O que releva no caso vertente, porque estamos perante um contrato reduzido a escrito, é a interpretação das respectivas cláusulas à luz das normas substantivas que regem sobre a matéria.
Este Tribunal, não obstante a limitação legal de sindicância da matéria de facto fixada pela Relação, pode operá-la, por estar em causa a determinação do sentido juridicamente relevante de declarações negociais segundo o critério estabelecido no artigo 236º, n.º 1, e 238º, n.º 1, do Código Civil (artigos 722º, n.º 2, e 729º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
A regra nos negócios jurídicos em geral é a de que a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante.
A excepção ocorre nos casos em que não seja razoável imputar ao declarante aquele sentido declarativo ou o declaratário conheça a vontade real do declarante (artigo 236º do Código Civil).
O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente e capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações negociais em causa foram produzidas.
No que concerne aos negócios jurídicos formais, como ocorre no caso vertente, há, porém, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 238º, nº 1, do Código Civil).
Assim, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação, como corolário da solenidade do negócio, tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que o envolve.
Estamos no caso vertente perante um negócio jurídico oneroso e formal, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real declaratário está limitado por um mínimo literal constante do texto do contrato em causa.
Na interpretação da vontade dos outorgantes podem relevar várias circunstâncias, designadamente os termos do contrato, a qualidade profissional das partes, a terminologia técnico-jurídica utilizada no sector e a conduta de execução do contrato.
Resulta das mencionadas declarações negociais, por um lado, dever a recorrida, com a utilização de máquinas de terraplanagem, escavação e remoção de terras, remover o material excedente, aproveitar o existente no terreno, substituindo-o por outro, arenoso, e, no fim, nivelar o lote pelas suas extremas.
E, por outro, que os materiais retirados do referido lote passariam, no acto da sua remoção a integrar o direito de propriedade da recorrida, e que esta pagaria à recorrente o equivalente a € 19 951,91.
Finalmente, importa considerar que não consta das mencionadas declarações negociais a extensão nem a profundidade da remoção dos mencionados materiais arenosos.
Perante o conteúdo das mencionadas declarações negociais e a realidade envolvente – retirada de material arenoso com maquinas de escavar – um declaratário normal, colocado na posição da recorrente e da recorrida, interpretaria o mencionado clausulado no sentido em que o fizeram as instâncias.
Assim, ao invés do que a recorrente alegou, a Relação, ao interpretar as cláusulas do contrato em causa no sentido em que fez, não infringiu o disposto nos artigos 236º ou 238º do Código Civil.

3.
Continuemos com a análise da natureza e dos efeitos do contrato celebrado entre a recorrente e a recorrida.
Enquanto a recorrente parece considerar ter celebrado com a recorrida um contrato de prestação de serviços de terraplanagem, as instâncias consideraram tratar-se de um contrato de compra e venda de inertes, naturalmente de natureza comercial.
O princípio da liberdade contratual faculta às partes a livre fixação do conteúdo dos contratos e a celebração de contratos diferentes dos legalmente tipificados, e a reunião no mesmo contrato de regras próprias de diversos contratos (artigo 405º do Código Civil).
No quadro dessas relações contratuais complexas, distingue-se, além do mais, conforme os casos, entre contratos mistos e união ou coligação de contratos.
São considerados contratos mistos os que reúnem, em termos de fusão, elementos próprios de uma pluralidade de contratos, mas assumindo-se como contrato único.
São, por seu turno, considerados contratos coligados ou em união os que conservam a sua individualidade, mas estão entre si ligados de forma mais ou menos intensa.
No segundo caso são pensados pelas partes como um conjunto económico envolvente de um nexo funcional, do que resulta depender a validade e a vigência de um dos contratos da validade e vigência do outro (INOCÊNCIO GALVÃO TELLES, “Direito das Obrigações”, Coimbra, 1997, páginas 86 a 88).
Mas essa consequência não é absoluta, porque, ao abrigo do princípio da liberdade negocial, as partes podem afastar o referido efeito (artigo 405º do Código Civil).
A lei civil caracteriza o contrato de prestação de serviço como aquele por via do qual uma das partes e obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição (artigo 1154º do Código Civil).
Por seu turno, caracteriza o contrato de compra e venda como sendo aquele pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço (artigo 874º do Código Civil).
Resultam deste último contrato, como efeitos essenciais, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, e as obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço (artigo 879º do Código Civil).
Independentemente da interpretação do contexto do documento por via da prova testemunhal, nos termos do nº 3 do artigo 393º, nº 3, do Código Civil, resulta das declarações negociais nele materializadas, por um lado, ser arenosa a estrutura do lote de terreno da recorrente e este estar localizado numa zona industrial.
E, por outro, que a recorrente e recorrida convencionaram a primeira alienar à última a areia integrante do lote, a extrair pela última, mediante determinado preço, com a cláusula de a recorrida preencher o espaço deixado pela remoção dos inertes com outros materiais arenosos e proceder ao nivelamento final com a cota da estrada circundante.
Perante este quadro de relações jurídicas complexas, a conclusão é no sentido de que a recorrente e a recorrida celebraram um contrato misto de compra e venda de inertes e de prestação de serviço, de natureza comercial dado o disposto nos artigos 2º, 3º, 13º, nº 2 e 463º, nº 1º, do Código Comercial.
Dele decorre a transmissão do direito de propriedade sobre a areia da titularidade da recorrente para a recorrida e a obrigação de permitir a esta a sua extracção, e para a última a obrigação de pagar o preço, preencher o vazio de tal extracção com outros materiais arenosos e operar o necessário nivelamento final do lote de terreno em causa.

4.
Vejamos, ora, a subquestão de saber se recorrente tem ou não direito a exigir da recorrida indemnização por incumprimento do contrato.
A recorrente alegou, por um lado, terem convencionado ficar vedado à recorrida a abertura de crateras e que só lhe era permitida a remoção dos materiais excedentes.
E, por outro, que com o julgamento de a recorrida poder, ao abrigo do contrato, escavar de modo a abrir a cratera que abriu, ter a Relação interpretado e aplicado erradamente o disposto no artigo 236º do Código Civil.
E, finalmente, que ao abrir a cratera, impedindo a recorrente de iniciar a construção do edifício industrial a que o terreno se destinava, ter a recorrida incumprido o contrato em causa.
Já acima se referiu que a Relação, ao interpretar as declarações negociais dos representantes da recorrente e da recorrida, no sentido contrário ao pretendido pela recorrente, não infringiu, antes cumpriu o disposto nos artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do Código Civil.
Certo é, por um lado, que o referido contrato devia ser pontualmente cumprido pela recorrente e pela recorrida (artigo 406º, n.º 1, do Código Civil).
E, por outro, que as partes cumprem as obrigações decorrentes dos contratos que celebram quando realizam as prestações respectivas, e que não as cumprem no caso inverso (artigo 762º, n.º 1, do Código Civil).
É ao credor que incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento ou do cumprimento defeituoso da obrigação pelo devedor, e a este a alegação e a prova dos factos reveladores de que tal não depende de culpa sua (artigo 799º, n.º 1, do Código Civil).
Ora, a recorrida escavou o lote de terreno até à profundidade de três metros, abrindo uma cratera com setenta metros de comprimento e sessenta metros de lado, e dele extraiu areia.
Por outro lado, cumpriu a recorrida a sua obrigação de pagamento do preço contrapartida da aquisição do direito de propriedade sobre a areia removida do lote de terreno da recorrente.
Não foi convencionado entre a recorrente e a recorrida qualquer limite vertical ou horizontal de extracção da areia, e a designada cratera constituiu a consequência natural da escavação do solo e da remoção dos inertes.
Em consequência, nesta parte, a recorrida agiu ao abrigo do direito adveniente do contrato celebrado com a primeira, e, consequentemente, ao invés do que a recorrente alegou, não ocorreu, por parte da primeira, o incumprimento contratual pela última invocado.
Sabe-se, porém, que a recorrida ainda não procedeu ao nivelamento do lote de terreno com o nível da estrada na sequência do depósito de material, designadamente areia suja e terra.
A este propósito está assente, por um lado, que a recorrida não procedeu ao nivelamento, pelo menos da totalidade do lote de terreno, mas que realizou o nivelamento parcial da cratera.
E, por outro, que foram levantados autos de contra-ordenação por via da escavação e remoção de areia do aludido lote de terreno, em virtude do que, em meados de 2002, a recorrida não pôde continuar a extrair e remover a areia referida, que pretendia revender.
Assim, a causa objectiva de a recorrida não terminar a remoção da areia e de, na sequência, proceder ao nivelamento do lote de terreno em causa, deriva de omissão da recorrente e não recorrida.
Em consequência, por um lado, justificada está a omissão da recorrida de cumprir o segmento da obrigação relativo ao nivelamento da estrutura térrea do lote em causa, e, por outro, importa concluir que a recorrida, através do seus agentes ou representantes, não cometeu qualquer ilícito contratual.
A circunstância de a recorrente não poder iniciar, no estado actual do lote de terreno, qualquer construção, independentemente da questão de saber se na espécie se trata de privação de uso ou se a mera privação de uso de uma coisa sem prejuízo específico gera ou não obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, é insusceptível de implicar para a recorrida a obrigação de indemnizar a primeira no quadro da responsabilidade civil contratual.
Queda, pois, prejudicada a análise da problemática da culpa, do prejuízo sofrido pela recorrente e do nexo de causalidade adequada entre este e aquele (artigo 660º, nº 2, primeira parte, do Código de Processo Civil).
Em conclusão, dir-se-á não ter a recorrente direito a exigir no confronto da recorrida a pretendida indemnização.

5.
Atentemos, agora, na subquestão de saber se a recorrida tem ou não direito a exigir da recorrente a pretendida indemnização por incumprimento do contrato.
Remetemos, neste ponto, para o que acima se referiu sob 3 acerca da dinâmica contratual em causa relativa às areias inseridas no lote, à sua extracção, comercialização e nivelamento final do terreno.
Conforme acima se referiu, a causa objectiva de a recorrida não terminar a remoção da areia e, consequentemente, de a negociar, é objectivamente imputável à recorrente, porque, situando-se os inertes no seu prédio, devia obter a licença administrativa tendente à extracção dos que alienou à recorrida.
Está, assim, verificado o ilícito contratual imputável a omissão da recorrente, e a própria culpa, referenciada à diligência dos seus representantes, porque não ilidiu a presunção a que se reporta o artigo 799º, nº 1, do Código Civil.
O prejuízo da recorrida decorrente do mencionado facto contratual ilícito e culposo traduziu-se na impossibilidade de extrair do lote de terreno em causa parte da areia que o integrava e que ela pretendia vender.
Como a recorrente faltou culposamente ao cumprimento da mencionada obrigação, tornou-se responsável pelo prejuízo causado à recorrida (artigo 798.º do Código Civil).
Ignora-se, porém, o valor do prejuízo sofrido pela recorrida, porque não está quantificado o volume da areia que aquela deixou de poder extrair do lote de terreno em causa nem o nível de lucro que ela obteria se a alienasse.
Todavia, a recorrente e a recorrida convencionaram que no caso de se verificar o incumprimento ou a desistência do contrato por parte de qualquer dos outorgantes, teria direito a receber indemnização antecipadamente fixada no montante correspondente a € 9 975,95.
Assim, por via de convenção, a recorrente e a recorrida fixaram o montante da indemnização a satisfazer em caso de eventual incumprimento do contrato, ou seja, estimaram a expressão monetária dos danos naquela eventualidade, o mesmo é dizer que estabeleceram uma cláusula penal de natureza indemnizatória (artigo 810º, nº 1, do Código Civil).
Porque tal não foi convencionado entre a recorrente e a recorrida, o estabelecimento da referida cláusula penal obsta a que a última exija, no confronto da primeira, a indemnização pelo dano excedente, ou seja, não pode cumular-se essa dupla vertente (artigo 811º, nº 2, do Código Penal).
Em consequência, tem a recorrida direito a exigir da recorrente o pagamento da quantia de € 9 975,95 a título de cláusula penal.

6.
Finalmente, atentemos na síntese da solução para o caso espécie decorrente dos factos provados e da lei.
A Relação, ao interpretar as cláusulas do contrato em causa no sentido em que fez, não infringiu, antes cumpriu, o disposto nos artigos 236º ou 238º do Código Civil.
A recorrente e a recorrida, através dos seus representantes, celebraram um contrato comercial misto de compra e venda e de prestação de serviço.
A recorrida não incumpriu o referido contrato, pelo que a recorrente não tem direito a exigir-lhe a pretendida indemnização.
A recorrente incumpriu o mencionado contrato, pelo que tem a recorrida o direito de lhe exigir o montante correspondente à cláusula penal estabelecida com o escopo de fixar a forfait a indemnização por incumprimento contratual.

Improcede, por isso, o recurso.

Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).

IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e condena-se a recorrente no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 25 de Outubro de 2007.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luís