Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3829/11.0TBVCT.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: SOCIEDADE COMERCIAL
INQUÉRITO JUDICIAL
DIREITOS DOS SÓCIOS
DIREITO À INFORMAÇÃO
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 10/29/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS - CONTRATO DE SOCIEDADE / OBRIGAÇÕES E DIREITOS DOS SÓCIOS - APRECIAÇÃO ANUAL DA SITUAÇÃO DA SOCIEDADE - SOCIEDADES POR QUOTAS.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / INSTÂNCIA / INCIDENTES DA INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / RECURSOS - PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSOS DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA / EXERCÍCIO DE DIREITOS SOCIAIS / INQUÉRITO JUDICIAL À SOCIEDADE.
Doutrina:
- Luís Brito Correia, Direito Comercial, 2º volume, AAFDL, 1987, 317.
- Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 2001, 230.
- Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, I, 2ª reimpressão da 2ª edição de 1989, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1999, 279 a 306.
- Remédio Marques, O Inquérito Judicial, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, Almedina, 2012, 312 e 313.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DAS SOCIEDADES COMERCIAIS (CSC): - ARTIGOS 21.º, N.º 1, C), 64.º, 65.º, N.ºS 1 E 4, 214º, N.ºS 1 E 2, 215.º, 216.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 302.º, 304.º, 660º, Nº 2, 661º, 664º, 684º, Nº 3, 685º-A, NºS 1 E 2, 726º, 1409.º, N.º1, 1479.º E SEGUINTES.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 21-12-1956, BMJ Nº 62, 492; STJ, DE 11-2-1966, BMJ Nº 154, 353; RT Nº 75º, 114; RT Nº 84º, 205.
Sumário :
I - O direito do sócio requerer inquérito judicial releva, não apenas quanto ao não fornecimento de informações, como, também, em caso de recusa do direito de consulta ou de informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os actos de pessoas ligadas à sociedade, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, lato sensu, isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.

II - Trata-se, porém, de uma faculdade que conhece limites, nomeadamente, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta, salvo se existir disposição diversa, nesse sentido, no contrato de sociedade.

III - É lícito o recurso ao processo especial de inquérito judicial como meio de obter o acesso à informação e a entrega de documentos de que o requerente careça, a fim de apurar a existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo pai, a quem sucedeu na qualidade de sócio, designadamente, com vista à sua utilização no processo de inventário que instaurou, por morte do mesmo, porquanto a finalidade proposta não é susceptível de constituir prejuízo para as rés sociedades, em termos, potencialmente, atentatórios do seu património e da sua credibilidade no mercado.

IV - O pedido de inquérito judicial deve fundar-se em factos, concretamente, alegados pelo requerente sobre a falsidade da informação solicitada ou a sua insuficiência, como factos constitutivos do seu direito, cuja demonstração lhe cabe efectuar, enquanto que o requerido tem, em contraponto, o ónus de demonstrar os factos donde se possa retirar ou inferir a licitude da recusa, que se traduzem em factos impeditivos do direito do requerente.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

AA propôs a presente acção especial de inquérito judicial a sociedade, contra “BB L.da”, “CC, ... L.da”, DD, EE e FF, todos, suficientemente, identificados nos autos, pedindo que, na sua procedência, seja ordenada a prestação das informações e a entrega dos documentos, referidos no artigo 38º, com vista a averiguar a "existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo falecido seu pai BB à empresa «CC, Lda.», data da constituição e do pagamento desses suprimentos e meios de pagamento/destino desses suprimentos (cheque, transferência bancária, etc.).", através da consulta desses documentos, na sede das empresas rés, porquanto suspeita que os elementos contabilísticos dessas sociedades contenham informação que não se coaduna com a realidade dos factos, uma vez que os empréstimos concedidos às empresas terão sido efetuados com capitais próprios da ré “BB, Ldª”, alegando, para o efeito, em síntese, que seu pai, BB, faleceu, a 31 de Março de 2004, no estado de casado com DD, tendo deixado como herdeiros, para além da autora e da viúva, os outros seus filhos, GG e EE.

Da herança de BB faz parte uma quota, na ré “BB L.da”, com o valor nominal de €232888,74, correspondente a 66% do respectivo capital social, sendo esta sociedade, por sua vez, detentora de 50% do capital social da ré “CC ... L.da”, com uma quota, no valor nominal de €24 939,89.

Após a morte de BB, a gerência da ré “BB L.da” foi assumida pelos réus DD e EE, enquanto que a gerência da ré “CC ... L.da” ficou a pertencer aos réus EE e FF.

Mais alega que só com a consulta dos documentos existentes nas rés “BB L.da” e “CC ... L.da”, se poderá averiguar a existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo pai a esta última, documentação essa a que lhe não foi dado acesso.

Acrescenta a autora que, não havendo acordo entre os herdeiros do falecido BB, nem quanto aos bens a partilhar, nem quanto à sua divisão e partilha, nomeadamente, quanto ao valor das quotas societárias, prestações suplementares e suprimentos existentes, instaurou um processo de inventário, por óbito daquele.

Na contestação, os réus “BB L.da”, “CC ... L.da”, DD, EE e FF afirmam que "a requerente AA, não tem legitimidade, por si só, para requerer, directamente, informação societária, tão pouco para exercer a faculdade processual tendente à realização de um inquérito judicial", na medida em que, não só não é sócia da ré “CC … L.da”, como, também, existe um representante comum da quota deixada por seu pai, que é a ré DD, acrescentando que o réu FF acordou com a autora um dia e hora para que esta pudesse consultar a documentação pedida, na sede da empresa, mas esta não compareceu, no dia acordado, e não mais solicitou, o que quer que fosse, sendo certo que os réus sempre prestaram toda a informação societária pedida pela mesma, de forma verdadeira, fiável e completa, bem como permitiram o acesso a toda a documentação a ela inerente, assim, impugnando os fundamentos substantivos da procedência da acção.

O Tribunal de 1ª instância julgou improcedente a excepção da ilegitimidade da autora e, também, a acção improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido.

Desta decisão, a autora interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente a apelação e, em consequência, revogou a decisão impugnada.

Do acórdão da Relação de Guimarães, os réus interpõem agora recurso de revista, terminando as alegações com o pedido da sua revogação, confirmando-se a decisão proferida, em primeira instancia, ou proferindo-se outra que julgue improcedente o pedido de inquérito judicial formulado pela autora, apresentando as seguintes conclusões, que se transcrevem, na sua totalidade:

1ª – Contrariamente ao que o douto acórdão recorrido acolheu, resulta inequívoco, o que é do integral conhecimento da Autora, ora recorrida, como esta confessa, nos artigos 49° a 52° da sua petição inicial, que de facto, o que existem são suprimentos realizados por BB, Lda. a favor de CC, Lda., e que as suas contabilidades reflectem;

2a Sendo que a Autora, recorrida, suspeita que o montante pecuniário desses suprimentos realizados por BB, Lda. a favor de CC, Lda., terão sido realizados com recurso a capitais próprios de seu pai, BB, do seu património pessoal;

3a Por outro, não existe, de facto, qualquer contrato de suprimento firmado entre a recorrida CC, Lda, e o Senhor BB;

4a Além do mais, porquanto o Senhor BB nunca foi sócio de CC, Lda;

5a Quem é associado é a BB, Lda.;

6a De todo este circunstancialismo, de facto, a Autora, ora recorrida, tem conhecimento, informação, o que o douto acórdão recorrido obnibula, confundindo ainda aqueles supostos "actos pessoais" de gestão do património pessoal por parte do Senhor BB, como se de contratos de suprimentos se tratassem a favor de CC, Lda., o que a ser verdade, e não é, nunca por nunca podiam, sem mais, serem considerados contratos de suprimentos;

7a A um outro lado, contrariamente, ao expendido no douto acórdão, não se vê, nem se alcança, suposto que fosse verdade a alegação da Autora, ora recorrente, e não é – os factos são os factos - qual é a projecção que haverá para a vida societária de CC, Lda. e para os seus associados, saberem se o dinheiro representado pelos suprimentos de BB, Lda foram ou não realizados com recurso ao património pessoal do Senhor BB;

8a Tão pouco para a Autora, ora recorrida, na qualidade societária por ela invocada;

9a Mais acresce que é bem sabido que, genericamente, os associados têm direito a obter informação relativa aos negócios sociais e às relações entre as sociedades e os seus sócios;

10a Todavia, não se afigura, que este amplo direito à informação possa compreender a gestão que individualmente um associado ou um terceiro façam do seu património pessoal, como no caso em apreço;

11a Com todo respeito por opinião diversa, é nossa convicção, contrariamente ao acolhido pela Relação, que o meio processual utilizado pela Autora - o inquérito judicial - não parece ser o meio processual idóneo para afirmar ou infirmar a suspeita da Autora;

12a. Esta terá de sindicar a bondade da sua suspeita, na herança do Senhor BB.

13a. Tudo somado: parecerá que o direito à informação consignado nos artigos 21° e 214° do CSC não compreende a informação que a autora pretende;

14a Reiteramos o meio processual escolhido pela requerente não parecerá ser o meio idóneo para que a Autora, ora recorrida, possa sindicar e avaliar da bondade de um suposto acto de gestão individual de seu pai, com respeito ao seu património pessoal.

15a Tão pouco se afigura razoável, por desproporcionado, sujeitar as recorridas sociedades a inquérito judicial com esta motivação da recorrida;

16a O direito à informação é estritamente societário e o inquérito judicial que o salvaguarda tem que se conter no seu estrito exercício.

17a Ora, não é isso o que a recorrida, autora, pretende, tão pouco o que o douto acórdão da Relação acolheu;

18a Ao decidir, como decidiu, revogando a decisão proferida em primeira instância, o douto acórdão da Relação realizou, com todo o respeito, uma errada omissão e subsunção dos factos relevantes ao direito aplicável, bem ainda uma errada interpretação e aplicação do disposto nos artigos 21°, 214° e 216° do CSC.

Nas suas contra-alegações, a autora sustenta que deve ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelos réus, mantendo-se o acórdão recorrido, de modo a permitir à autora impulsionar um inquérito judicial às empresas.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 722º, nº 2 e 729º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. A requerente GG e EE são filhos de BB.

2. BB faleceu, a … de … de 20…, no estado de casado com DD.

3. Da herança de BB faz parte uma quota, na sociedade “BB L.da”, com o valor nominal de €232888,74, correspondente a 66% do capital social.

4. Esta sociedade é detentora de 50% do capital social da “CC ... L.da”, com uma quota, no valor nominal de €24 939,89.

5. DD e EE são gerentes de “BB L.da”.

6. EE e FF são gerentes da “CC ... L.da”.

                                                          *

A única questão a decidir, na presente revista, em função da qual se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3, 685º-A, nºs 1 e 2 e 726º, todos do CPC, consiste em saber se é admissível um inquérito judicial requerido por um sócio sobre a natureza dos suprimentos efectuados pelo anterior sócio, a quem sucedeu.

DA ADMISSIBILIDADE DO INQUÉRITO JUDICIAL REQUERIDO POR SÓCIO EM RELAÇÃO A SUPRIMENTOS EFECTUADOS PELO PAI, A QUEM SUCEDEU, NESSA QUALIDAEDE

1. O artigo 21º, nº 1, c), do Código das Sociedades Comerciais (CSC), enquadrado no conjunto dos direitos gerais dos sócios, consagra que “todo o sócio tem direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato”.

Com efeito, no caso de transmissão de quotas para uma pluralidade de herdeiros, os contitulares de quota social indivisa, como sucede com a autora, adquirem a qualidade de sócios[2].

E todos os sócios têm direito a obter informações sobre a vida da sociedade, nos termos da lei e do contrato, competindo aos membros da administração, quer sejam gerentes, administradores ou directores de uma sociedade, elaborar o relatório de gestão e as contas de cada exercício social, em conformidade com o disposto pelos artigos 21º, nº 1, c), 64º e 65º, nºs 1 e 4, do CSC.

O direito à informação ocorre, em três níveis distintos, ou seja, a informação permanente, que é prestada, a cada momento, a informação intercalar, que é prestada como preparatória de cada reunião da assembleia, e a informação em assembleia, que é prestada, na própria reunião, como elemento instrutório do debate[3].

No âmbito das sociedades por quotas, rege o artigo 214º, do CSC, que, no seu nº 1, estipula que “os gerentes devem prestar a qualquer sócio que o requeira informação verdadeira, completa e elucidativa sobre a gestão da sociedade e bem assim facultar-lhe na sede social a consulta da respectiva escrituração, livros e documentos. A informação será dada por escrito, se assim for solicitado”.

Com efeito, os sócios carecem de estar informados sobre a vida da sociedade, de modo a poderem influir nela, disso podendo depender, em boa parte, a realização do seu interesse em participar nos lucros, razão pela qual o direito à informação é um direito social autónomo, mais que um direito instrumental em relação a outros direitos, designadamente, o direito aos lucros, o direito de voto, o direito de impugnação das deliberações sociais e o direito de acção de responsabilidade contra os administradores[4].

Preceitua, por outro lado, o nº 2, do artigo 214º, do CSC, que “o direito à informação pode ser regulamentado no contrato de sociedade, contanto que não seja impedido o seu exercício efectivo ou injustificadamente limitado o seu âmbito; designadamente, não pode ser excluído esse direito quando, para o seu exercício, for invocada suspeita de práticas susceptíveis de fazerem incorrer o seu autor em responsabilidade, nos termos da lei, ou quando a consulta tiver por fim julgar da exactidão dos documentos de prestação de contas ou habilitar o sócio a votar em assembleia geral já convocada”.

A isto acresce que o direito à informação sobre a vida da sociedade manifesta-se, em quatro vertentes, isto é, como direito à informação «stricto sensu», que permite ao sócio formular questões sobre a vida da sociedade e desta exigir resposta verdadeira, completa e elucidativa, como direito de consulta de livros e documentos em poder da sociedade, por cujo exercício o sócio pode solicitar que a sociedade exiba, para exame, os livros de escrituração e outros documentos descritivos da actividade social, como direito de inspeção, de modo a que o sócio possa vistoriar os bens da sociedade e, finalmente, como direito de requerer inquérito judicial[5].

E, quando a recusa do direito à informação seja ilícita, ou o requerente tiver recebido informação, presumivelmente, falsa, incompleta ou não elucidativa, o sócio pode solicitar a realização de um inquérito judicial à sociedade por quotas, nos termos do disposto pelos artigos 216º, do CSC, e 1479º a 1483º, do CPC.

Efectivamente, o direito de requerer inquérito judicial releva, não apenas para o não fornecimento de informações, como, também, para a recusa do direito de consulta ou de informação, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, «lato sensu», isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.

Porém, esta faculdade jurídico-processual conhece limites, nomeadamente, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta[6].

Por outro lado, o sócio pode requerer a realização de inquérito judicial quando lhe tenha sido recusada a informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os actos de pessoas ligadas à sociedade, no sentido de obter informação sobre um acto específico da vida social[7].

2. Retornando à factualidade, sumariamente, indiciada nos autos, importa registar que a autora invoca, no essencial, a necessidade de obter informações e a entrega de documentos, com vista a averiguar a "existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo falecido seu pai BB à empresa «CC, Lda.», data da constituição e do pagamento desses suprimentos e meios de pagamento/destino desses suprimentos (cheque, transferência bancária, etc.)", porque suspeita que os elementos contabilísticos das sociedades contenham informação que não se coaduna com a realidade dos factos, uma vez que os empréstimos concedidos às empresas terão sido efetuados com capitais próprios da ora ré “BB, Ldª”, e que só com a consulta desses documentos se poderá averiguar da existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo pai a esta última, sendo certo que a essa documentação não lhe foi dado acesso, tendo instaurado um processo de inventário, por óbito do pai, por não haver acordo entre os herdeiros do falecido, nem quanto aos bens a partilhar, nem quanto à sua divisão e partilha, nomeadamente, quanto ao valor das quotas societárias, prestações suplementares e suprimentos existentes.

Efectivamente, a autora socorre-se do processo especial de inquérito judicial como meio de obter o acesso à informação e a entrega de documentos de que alega carecer, a fim de apurar a "existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo pai, nomeadamente, com vista à sua utilização no processo de inventário que instaurou por morte daquele”.

Na verdade, esta faculdade jurídico-processual não pode ser usada, designadamente, como já se disse, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta, salvo se existir disposição diversa nesse sentido do contrato de sociedade, lícita nos termos do disposto pelo artigo 214º, nº 2, atento o preceituado pelo artigo 215º, nº 1, ambos do CSC.

Ora, face à matéria factual, sumariamente, indiciada, podendo admitir-se, razoavelmente, que a autora venha a utilizar a informação que pretende obter, através da via do inquérito judicial, para a instrução do inventário que instaurou, em consequência da morte de seu pai e ex-sócio da ré “BB L.da” e, portanto, para um fim estranho às sociedades-rés, entende-se inexistir qualquer impedimento ao exercício desse direito, porquanto a aludida finalidade proposta não é susceptível de constituir um prejuízo para estas, em termos, potencialmente, atentatórios dos seus patrimónios e da sua credibilidade no mercado, cabendo, assim, no âmbito do direito à informação suscitado pela autora.

É que, por outro lado, não pode ser recusada à autora a informação necessária sobre a vida da sociedade, negando-se-lhe o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade e à vida social, em que se traduz a realidade da “existência, titularidade e valores envolvidos nos suprimentos efectuados pelo seu falecido pai à ré «CC»”.

Deste modo e, indiciariamente, a verificarem-se os fundamentos materiais invocados pela autora, importará deferir a sua pretensão, no sentido da realização do inquérito judicial solicitado, que os artigos 214º, nº 1, 215º e 216, do CSC, consentem e o contrato de sociedade não exclui.

3. Preceitua o artigo 1479º, nº 1, do CPC, que “o interessado que pretenda a realização de inquérito judicial à sociedade, nos casos em que a lei o permita, alegará os fundamentos do pedido de inquérito, indicará os pontos de facto que interesse averiguar e requererá as providências que repute convenientes”, sendo certo que, continua o respectivo artigo 1480º, nº 1, “haja ou não resposta dos requeridos, o juiz decidirá se há motivos para proceder ao inquérito, podendo determinar logo que a informação pretendida pelo requerente seja prestada, ou fixará prazo para apresentação das contas da sociedade”.

Os réus, como já se referiu, impugnaram, especificadamente, a factualidade que contende com o mérito da providência, concluindo a contestação com a alegação de que sempre prestaram toda a informação societária pedida pela autora, de forma verdadeira, fiável e completa, bem como permitiram o acesso a toda a informação a ela inerente.

Ora, se o pedido de inquérito judicial deve fundar-se em factos, concretamente, alegados pelo autor sobre a falsidade da informação solicitada ou a sua insuficiência, como factos constitutivos do seu direito, cuja demonstração lhe cabe efectuar, a sociedade requerida tem, em contraponto, o ónus de demonstrar os factos donde se possa retirar ou inferir a licitude da recusa, que se traduzem em factos impeditivos do direito do requerente, atento o preceituado pelo artigo 342º, nºs 1 e 2, do CC, respectivamente.

A factualidade que subsiste controvertida não consente, por ora, que o juiz decida se existem fundamentos para proceder ao inquérito judicial, mas, a verificar-se a sua demonstração, de acordo com a materialidade invocada pela autora, importará que o mesmo seja decretado, fixando, então, o juiz, o que agora ainda não acontece, os pontos que a diligência deve abranger, nomeando o perito ou peritos que deverão realizar a investigação, com aplicação do disposto pelo artigo 1480º, nº 2, do CPC.

Na verdade, ainda que, nesta espécie processual, não haja lugar a despacho saneador, nem a sentença final, a matéria de facto controvertida não permite, sem mais, decidir pela realização do inquérito judicial, devendo ter lugar, imediatamente, um incidente de produção de prova, aliás, já indicada por ambas as partes, nos seus articulados, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 302º, 304º, 1409º, nº 1 e 1479º e seguintes, todos do CPC.

Improcedem, assim, na sua essência, pese embora a decisão final para que se caminha, as conclusões constantes das alegações da revista dos réus.

CONCLUSÕES:

I - O direito do sócio requerer inquérito judicial releva, não apenas quanto ao não fornecimento de informações, como, também, em caso de recusa do direito de consulta ou de informação sobre a vida da sociedade, nomeadamente, quando lhe é negado o direito de obter informação sobre um específico assunto respeitante à gestão da sociedade, como sejam, os actos de pessoas ligadas à sociedade, porquanto se trata, de igual modo, de uma faculdade jurídica instrumental do direito à informação, «lato sensu», isto é, do direito do sócio a ser informado da vida e do giro da sociedade.

 II - Trata-se, porém, de uma faculdade que conhece limites, nomeadamente, quando for de recear que o sócio utilize a informação para fins estranhos à sociedade e com prejuízo desta, salvo se existir disposição diversa, nesse sentido, no contrato de sociedade.

III -  É lícito o recurso ao processo especial de inquérito judicial como meio de obter o acesso à informação e a entrega de documentos de que o requerente careça, a fim de apurar a existência, titularidade e valores dos suprimentos efectuados pelo pai, a quem sucedeu na qualidade de sócio, designadamente, com vista à sua utilização no processo de inventário que instaurou, por morte do mesmo, porquanto a finalidade proposta não é susceptível de constituir prejuízo para as rés-sociedades, em termos, potencialmente,  atentatórios do seu património e da sua credibilidade no mercado.

IV - O pedido de inquérito judicial deve fundar-se em factos, concretamente, alegados pelo requerente sobre a falsidade da informação solicitada ou a sua insuficiência, como factos constitutivos do seu direito, cuja demonstração lhe cabe efectuar, enquanto que o requerido tem, em contraponto, o ónus de demonstrar os factos donde se possa retirar ou inferir a licitude da recusa, que se traduzem em factos impeditivos do direito do requerente.

DECISÃO[8]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista e, em consequência, embora com diversa fundamentação, confirmam o acórdão recorrido, devendo ter lugar, imediatamente, um incidente de produção de prova, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 302º, 304º, 1409º, nº 1 e 1479º e seguintes, todos do CPC.

                                                               *

Custas, a cargo dos requeridos.

 

                                                              *

Notifique.

Lisboa, 29 de Outubro de 2013

Helder Roque (Relator)

Gregório da Silva Jesus

Martins de Sousa

_______________________

[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.

[2] STJ, de 21-12-1956, BMJ nº 62, 492; STJ, de 11-2-1966, BMJ nº 154, 353; RT nº 75º, 114; RT nº 84º, 205.

[3] Pinto Furtado, Curso de Direito das Sociedades, 4ª edição, 2001,230.

[4] Luís Brito Correia, Direito Comercial, 2º volume, AAFDL, 1987, 317.

[5] Remédio Marques, O Inquérito Judicial, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, Almedina, 2012, 312 e 313.

[6] Remédio Marques, O Inquérito Judicial, Código das Sociedades Comerciais em Comentário, volume III, Almedina, 2012, 313.

[7] Raúl Ventura, Sociedades por Quotas, I, 2ª reimpressão da 2ª edição de 1989, Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, Almedina, 1999, 279 a 306.

[8] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Gregório Silva Jesus; 2º Adjunto: Conselheiro Martins de Sousa.