Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2599/08.4PTAVR-A.C1-A.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 09/18/2013
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR, I SÉRIE, 201, 17.10.2013, P.6130
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Decisão: FIXADA JURISPRUDÊNCIA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / PENA DE MULTA / PRESTAÇÃO DE TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - EXECUÇÃO DAS PENAS NÃO PRIVATIVAS DE LIBERDADE.
Doutrina:
- Batista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 196.
- Código Penal, Atas e Projeto da Comissão de Revisão, 1993, pp. 25-26.
- Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 139-143, 370-371; Direito Penal, I, 2ª ed., p. 192, 193.
- Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, vol. III, 2ª ed., p. 95.
- J. Miranda/R. Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 1ª ed., p. 121.
- Maia Gonçalves, Código Penal Português, 15ª ed., p. 192; Código Penal Português, 18ª ed., p. 210.
- Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, pp. 68-69.
- Paulo Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2ª ed., p. 223.
- Simas Santos e Leal Henriques, O Código Penal de 1982, I vol., pp. 285-286;
- Vítor Sá Pereira/Alexandre Lafayette, Código Penal, anotado e comentado, p. 174.
Recursos em Processo Penal, 3ª ed.; Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 185.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO N.ºS 1 E 2.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 490.º, N.ºS 1 E 3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 1.º, N.º3, 48.º, 49.º, 58.º, 59.º, 71.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 13.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-N.º 232/2003; N.º 166/2010 E N.º 255/2012.
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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
- DE 6.5.1992, BMJ, 417, 113; DE 20.5.1992, PROC. Nº 42367; DE 12.2.1998, PROC. Nº 46546; DE 17.2.2000, PROC. Nº 344/99.
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ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA Nº 1/2003, DE 16.1.2003, PUBLICADO NO DR, I-A, DE 27.2.2003, PP. 1409 SS..
Sumário :
A correspondência entre a multa e a prestação de trabalho a favor da comunidade que resulte da substituição da pena de multa, nos termos do art. 48º, nº 2, do Código Penal, é a estabelecida no art. 58º, nº 3, do mesmo diploma, ou seja, um dia de multa corresponde a uma hora de trabalho.
Decisão Texto Integral:             

               

Acordam no Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório

            O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Coimbra interpôs recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, ao abrigo dos arts. 437º, nºs 2, 3 e 5, e 438º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Penal (CPP), do acórdão do mesmo Tribunal de 28.11.2012, proferido no processo principal, certificado a fls. 12-20, por se encontrar em oposição sobre a mesma questão de direito com o acórdão da mesma Relação de 16.5.2012, proferido no proc. nº 317/09.9GAETR-A.C1, cuja cópia se encontra a fls. 22-29.

            Por acórdão de 10.4.2013, proferido em conferência, foi declarada a oposição de julgados, ordenando-se o prosseguimento do recurso para fixação de jurisprudência.

            Notificadas as partes nos termos do art. 442º do CPP, só o Ministério Público produziu alegações, cujas conclusões se transcrevem de seguida:

            I. Na versão originária do Código Penal, a sanção de dias de trabalho a favor da comunidade, prevista no artigo 47.º, n.º 2 (substituição da pena de multa não paga), não era uma verdadeira pena alternativa.

                II. Era categorizada como sucedâneo da multa, visando afastar, até ao limite possível, a aplicação de uma pena de prisão em lugar da multa não paga ou não cobrada.

III. Entendia-se, então, que a “correspondência” entre os dias de multa e os dias de trabalho a favor da comunidade deveria ser encontrada na regulamentação da pena de PTFC, que constituía uma espécie de direito subsidiário, ao qual se deve dar primazia na integração das inúmeras lacunas que a regulamentação daquela apresenta.

IV. Considerando-se que, embora diferentes do ponto de vista dogmático, comungam do mesmo sentido político-criminal - evitar a aplicação de uma pena privativa da liberdade -, a generalidade das questões relativas à aplicação e execução da sanção de dias de trabalho era resolvida segundo o regime estabelecido para a pena de PTFC.

V. A revisão de 95 (DL n.º 48/95, de 15.03) trouxe uma alteração relevante no que concerne à substituição da multa por trabalho, que passa agora a ser encarada como uma alternativa à própria multa, optando o legislador por consagrar uma remissão expressa para o regime da pena de PTFC, previsto no artigo 58.º do Código Penal.

VI. Porém, neste artigo 58.º (anterior artigo 60.º), não ocorre aqui uma perfeita equivalência entre o tempo de prisão e de prestação de trabalho. O juiz é reenviado para esta moldura penal (…) sem um pré-juízo determinado.

VII. Vale por dizer que, mais uma vez, o legislador fez a opção por uma correspondência normativa, a partir dos critérios do artigo 71.º do Código Penal, estabelecendo uma moldura dentro da qual o juiz fixa a duração da prestação do trabalho a favor da comunidade.

VIII. O legislador em 95 estabeleceu um regime idêntico entre a prestação de trabalho a favor da comunidade aplicado em substituição da multa e a PTFC em substituição da prisão, designadamente, e de forma expressa, o cálculo da correspondência entre os dias de multa e os dias de trabalho a prestar em substituição da multa.

IX. Em 2007 (DL n.º 59/2007, de 4.09), e como grande inovação (artigo 58.º - Prestação de trabalho a favor da comunidade), surge a adopção de um critério aritmético na conversão da pena de prisão em pena de prestação de trabalho.

X. Contudo, no que respeita à substituição da multa por dias de trabalho, manteve-se intacta a redacção do artigo 48.º, nomeadamente, a remissão feita para o n.º 3 e 4 do artigo 58º.

XI. Em síntese, há que concluir que a evolução legislativa foi/tem vindo a ser no sentido de que a forma de substituição da multa por dias de trabalho a favor da comunidade, quer em termos de aplicação, quer em termos de execução, seja “solucionada da mesmo forma e no mesmo sentido” que a substituição de prisão por dias de trabalho a favor da comunidade.

XII. E assim, se cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho a favor da comunidade, como determina o artigo 58.º, n.º 3, e sendo este preceito correspondentemente aplicável à prestação de dias de trabalho em substituição da pena multa (por força do n.º 2, do artigo 48.º), a única conclusão verdadeira que se pode retirar é a de que cada dia de multa é substituído por uma hora de trabalho a favor da comunidade, entendimento que, de resto, é acolhido, sem divergências, pela doutrina.

XIII. Também a interpretação sistemática conduz-nos exactamente à mesma conclusão, contrariamente ao que sustenta o acórdão recorrido: enquanto que o artigo 48.º regula a aplicação e forma de execução da prestação de dias de trabalho a favor da comunidade, o artigo 49.º regula as consequências do incumprimento e a forma de execução da prisão subsidiária.

XIV. Vale por dizer que, enquanto o primeiro regula uma situação prévia ao incumprimento da pena de multa, possibilitando a aplicação de uma pena de substituição, o segundo regula situações em que, perante o incumprimento da multa, quando não houve substituição desta por trabalho, há lugar ao cumprimento da prisão subsidiária (n.º s 1 a 3).

XV. Já para os casos em que o condenado, em substituição da multa, requereu a prestação de trabalho a favor da comunidade e não a cumpriu aplicam-se correspondentemente os n.º s 1 e 2 do artigo 49.º, ou seja, por força desta remissão, o condenado cumpre prisão subsidiária, também reduzida a 2/3 (n.º 4, do artigo 49.º, do CP).

XVI. Em suma:

 Não podendo ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, se o nº 1 do artigo 49.º prevê expressamente que se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços (…), não é legítimo concluir que ali também cabem os casos em que a multa foi substituída por trabalho, sob pena de se esvaziar o conteúdo do n.º 4 do artigo 49.º

            Propõe-se, pois, que o Conflito de Jurisprudência existente entre os acórdãos da Relação de Coimbra de 28 de Janeiro de 2013 (recorrido) e de 16 de Maio de 2012 (fundamento), seja resolvido nos seguintes termos:

A correspondência entre os dias de multa e os dias de trabalho a favor da comunidade que resultem da substituição da pena de multa efectuada nos termos do artigo 48.º, n.º 2, do Código Penal, é a estabelecida no artigo 58.º, n.º 3, do mesmo diploma, ou seja, um dia de multa/uma hora de trabalho, não havendo lugar à aplicação do artigo 49.º, n.º 1 do CP, com redução prévia dos dias de multa a 2/3.

            Colhidos os vistos e reunido o Pleno das secções criminais, cumpre decidir.

II. Fundamentação

A) Oposição de julgados

Coloca-se preliminarmente a questão de saber se o Pleno tem competência para reapreciar a oposição de julgados.

Recorde-se que o art. 766º, nº 3, do Código de Processo Civil (CPC), na versão anterior ao DL nº 329-A/95, de 12-12, norma integrada na secção relativa ao recurso para o Tribunal Pleno, dispunha que o acórdão que reconhecesse a oposição não impedia que o Pleno, ao apreciar o recurso, decidisse em sentido contrário.

Não era unânime o entendimento sobre a aplicabilidade do preceito ao processo penal[1], mas acabou por prevalecer essa posição, tendo em conta a diferente composição dos órgãos que intervêm na questão prévia (conferência composta pelo Presidente da Secção, relator e um Juiz-Adjunto – art. 419º, nº 1, para o qual remete o art. 441º, nº 3, ambos do CPP) e no julgamento (Pleno das Secções Criminais, composto por todos os Juízes das secções e presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça).

Na verdade, englobando este último órgão o primeiro, nunca poderia ficar vinculado pela decisão da conferência.[2]

O novo Código de Processo Civil, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26-6, vai no mesmo sentido, determinando que o pleno das secções cíveis pode decidir em sentido contrário ao da conferência quanto aos pressupostos da verificação do recurso para uniformização da jurisprudência, incluindo a contradição invocada como fundamento do recurso (art. 692º, nºs 3 e 4).

Importa, pois, reapreciar a questão da oposição de julgados.

Pronunciou-se desta forma a conferência da secção:

Refere o recorrente que os acórdãos citados decidiram diferentemente como interpretar os arts. 48º, nº 2, e 58º, nº 3, do Código Penal (CP), ou seja, a questão de saber se o número de horas de trabalho a favor da comunidade, em substituição da multa, deve corresponder ao número de dias de multa, ou se apenas a dois terços do tempo de multa fixado na sentença, tendo o acórdão recorrido seguido esta última orientação, ao passo que o acórdão-fundamento se pronunciou favoravelmente à primeira.

Analisemos sinteticamente os acórdãos em confronto.

Na situação analisada no acórdão recorrido, a arguida fora condenada em 110 dias de multa e requerera a substituição dessa pena por trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do art. 48º do CP, pedido que foi deferido, sendo a pena de multa substituída por 73 horas de trabalho, por se entender que a expressão “correspondentemente aplicável” constante do nº 2 do art. 48º do CP deve ser entendida com o “subsídio” do art. 49º, nº 1, do CP, ou seja, reduzindo-se a pena a dois terços. A Relação confirmou essa decisão.

Por sua vez, o acórdão-fundamento considerou que a pena de 160 dias de multa devia ser substituída pela de 160 horas de trabalho, por aplicação do nº 3 do art. 58º do CP, que impõe, no entendimento seguido nessa decisão, a correspondência entre um dia de multa e uma hora de trabalho.

Ou seja, enquanto o acórdão recorrido decidiu que, para estabelecer a correspondência entre os dias de multa e as horas de trabalho a favor da comunidade, deverá previamente proceder-se à redução dos dias de multa a dois terços, por aplicação do art. 49º, nº 1, do CP, o acórdão-fundamento pronunciou-se no sentido de que não há que proceder a tal redução, correspondendo consequentemente uma hora de trabalho a cada dia de multa.

Estamos portanto perante uma divergência frontal entre os dois acórdãos da Relação de Coimbra sobre uma questão de direito, no domínio da mesma legislação (os arts. 48º, nº 2, 49º, nº 1, e 58º, nº 3, do CP, na versão atualmente vigente), sendo essa divergência expressa e inerente à própria decisão, e perante situações de facto idênticas.

            Ratifica-se este entendimento, considerando-se assim verificada a oposição de julgados, de forma que se passa à análise da questão de direito controvertida, com vista à fixação de jurisprudência.

     

B) As posições em confronto

            1. O acórdão recorrido

            Como se disse, a questão em causa é a de saber qual a correspondência entre a pena de multa (principal) e o tempo de trabalho a favor da comunidade cumprido em sua substituição, nos termos do art. 48º, nº 1, do Código Penal (CP).

            Vejamos sinteticamente os argumentos do acórdão recorrido.       

            Transcrevem-se as seguintes passagens, que constituem a fundamentação do acórdão, e que reproduzem, aliás, a fundamentação do acórdão a Relação de Coimbra de 19.1.2011, proferido no proc. nº 2249/08.9PTAVR.C1, subscrito pelos mesmos juízes-desembargadores:

            Está em causa interpretação do conteúdo do artigo 48°, nº 2 do Código Penal, no segmento do seu n° 2 que preceitua “é correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 3 e 4 do artigo 58º, regulando este preceito a substituição da pena de multa por prestação de trabalho a favor da comunidade a requerimento do arguido. Por seu turno o artigo 58°, n° 3 preceitua que “… cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho”.

Será, pois, pertinente transcrever em primeiro lugar o artigo 9° do Código Civil que versa sobre a interpretação da lei: (…)

Como resulta do preceito qualquer esforço interpretativo da lei tem como ponto de partida o seu texto com o significado gramatical das palavras que emprega, o que se designa de elemento literal da interpretação.

A interpretação literal conduz-nos geralmente a um sentido possível da lei, mas nem sempre garante que esse seja o significado definitivo. Esse há-de ser dado pela conjugação do elemento literal com o elemento lógico que se desdobra nos elementos racional, histórico e sistemático que muitas vezes na análise de interpretação se entrecruzam.

A única reticência legal ao crivo da interpretação lógica é que não pode ser acolhida aquela que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal ainda que imperfeitamente expressa.

A interpretação literal no caso conduz-nos a acolher em primeira linha a tese do recorrente no sentido de que cada dia de multa corresponde a uma hora de trabalho.

Mas será que essa interpretação corresponde de facto a razão de ser do preceito, será que assim o quis o legislador, será que o sistema de normas em que se integra não aparece assim desvirtuado?

Foram estas questões que, afinal, se equacionaram no despacho recorrido.

A lei em princípio deve ser entendida da maneira que melhor corresponda à consecução do resultado que o legislador teve em vista. Se, portanto, o legislador quis atingir certo resultado, quis naturalmente, salvo casos anómalos, o meio que a esse resultado conduz. Mas um preceito legal não é uma ilha isolada enquadra-se num conjunto com principio, meio e fim. Por isso, especialmente num código, a relacionação do preceito a interpretar com o conjunto é elemento essencial para esclarecer o seu sentido, assim o expressa Inocêncio Galvão Teles, em Introdução ao Estudo do Direito, vol. I, pp. 248 a 250.

A disposição em causa integra-se no capítulo das penas e, entre as penas previstas, avultam as de prisão e multa que evidentemente têm diferente natureza.

Mesmo quando a lei prevê que a pena de multa possa ser convertida em prisão não estabelece a sua equiparação em termos de tempo, estipulando a redução da multa em um terço no artigo 49º, n° l.

Cabe, pois, perguntar se existe alguma razão sustentável para equiparar em termos de tempo a prisão á multa quando se trata de a substituir por prestação de trabalho a favor da comunidade. 

Quando o artigo 48°, n° 2 do Código Penal preceitua que é correspondentemente aplicável o artigo 58°, n° 3 do Código Penal não esclarece a questão porque o artigo 58°, n° 3 apenas preceitua que a cada dia de prisão corresponde um dia de trabalho continuando a não regular directamente a situação.

Existirá alguma razão juridicamente sustentável para que num caso a pena de prisão apenas possa corresponder a dois terços da pena de prisão e noutro possa corresponder à sua totalidade?

Cremos ser manifesto que não existe nenhuma razão para distinguir as situações e trata-se precisamente de um caso em que a interpretação sistemática dita, sem margem para dúvidas, que a expressão “correspondentemente aplicável” deva ser entendida com o subsídio do artigo 49°, n° 1 do Código Penal que expressa a ratio legis no que respeita à correspondência a estabelecer entre a pena de prisão e a de multa, no pressuposto de que, sendo a pena de multa de menor gravidade, nunca pode corresponder a igual tempo de prisão, logo igual tempo de multa e prisão não poderão corresponder a igual tempo de prestação de trabalho.

E acrescenta, por fim:

Continuamos, porém, apesar da esmagadora oposição, a defender a tese do despacho recorrido, apenas acrescentando que, em nosso entender, o recurso ao princípio constitucional da igualdade que em matéria de penas impõe também o tratamento igual do que é igual e diferente do que é diferente, com o derivado princípio da proporcionalidade, são mais um subsídio de ordem sistemática que nos apoiará.

            Assim, segundo o acórdão recorrido, a expressão “correspondentemente aplicável” constante do nº 2 do mesmo artigo do CP deve ser entendida com o “subsídio” do art. 49º, nº 1, do mesmo diploma, por imposição de uma interpretação teleológica e sistemática, não meramente literal, da lei, porque, “sendo a pena de multa de menor gravidade, nunca pode corresponder a igual tempo de prisão, logo igual tempo de multa e prisão não poderão corresponder a igual tempo de prestação de trabalho a favor da comunidade”.

            E mais: só o recurso ao citado art. 49º, nº 1, do CP permite salvaguardar o princípio constitucional da igualdade, e também o da proporcionalidade, que impõem tratamento igual para o que é igual e tratamento diferente para o que é diferente.

            Para além do acórdão recorrido e do citado acórdão de 19.1.2011, dos mesmos juízes-desembargadores, não se encontrou nenhuma outra decisão dos tribunais superiores aderindo a esta posição.

            Também não se detetou na doutrina qualquer defesa explícita da mesma posição.

            2. O acórdão-fundamento

            Por sua vez, o acórdão-fundamento seguiu o entendimento de que a remessa feita no nº 2 do art. 48º para o art. 58º, nºs 3 e 4, ambos do CP, revela a clara intenção do legislador de equiparar os regimes da prestação de trabalho a favor da comunidade, quando intervém como forma de cumprimento da pena principal de multa ou como sua pena substitutiva (art. 48º do CP), e quando constitui pena substitutiva da pena de prisão (art. 58º do CP).

            Para tanto, fundou-se no ensinamento de diversos autores e na jurisprudência seguida maioritariamente na Relação de Coimbra, citando parcialmente o acórdão de 28.5.2008, proferido no proc. nº 49/07.2PTCBR-A.C1, citação que se transcreve:

            Emerge, com nitidez, sobretudo com auxílio da evolução do instituto, a consagração de uma forma de cumprimento da pena de multa e ainda a vontade de equiparação de regimes com a pena de substituição de trabalho a favor da comunidade, o que encontrou expressão no segmento “correspondentemente aplicável”. Trata-se de aplicar as mesmas regras, em tudo o que não contrariar c natureza distinta dos institutos (…). Porém, ausente do ordenamento penal qualquer regra que fornecesse critério normativo preciso, político – criminalmente fundado para a definição da duração do trabalho a prestar, via-se o juiz reenviado, em incidente posterior à sentença, para nova tarefa de determinação das consequências jurídicas do crime (…). Ora, neste panorama legislativo e judicial, a opção do legislador aquando da revisão de 2007 foi seguramente a de contribuir para a clarificação deste ponto do regime e, assim, remover obstáculos à sua aplicação. Escolheu a via da correspondência aritmética, através da estatuição no art.° 58°, n.° 3, do CP, de que cada dia de prisão corresponde a uma hora de trabalho. Correspondentemente, e perante a identidade de regimes iniciada em 1995, o mesmo deve acontecer quando a pena substituída for a de multa.

            Portanto, segundo o acórdão-fundamento, a um dia de multa corresponde uma hora de prestação de trabalho a favor da comunidade.

            Esta posição foi a geralmente acolhida na jurisprudência das Relações (ver a extensa lista indicada nas alegações do sr. Procurador-Geral Adjunto a fls. 63v.-64, para qual se remete por economia de meios)

E recolheu também o apoio da maioria da doutrina, nomeadamente de Germano Marques da Silva[3], Paulo Albuquerque[4], e Maria João Antunes[5].

Já Vítor Sá Pereira/Alexandre Lafayette[6], e Maia Gonçalves[7] divergem, defendendo que a um dia de multa corresponde um dia de prestação de trabalho, mas com o máximo de 2 horas de trabalho por dia.

Não há qualquer pronúncia deste Supremo Tribunal sobre a matéria.

      

C) A evolução legislativa

            Para prosseguir a análise é necessário ter presente a legislação em vigor e a que a antecedeu.

            A prestação de trabalho a favor da comunidade enquanto medida penal foi introduzida no direito português com o Código Penal de 1982, inserida num amplo programa político-criminal de reação à pena de prisão e de consagração de um leque alargado de penas alternativas, programa esse inserido também num movimento internacional que visava reduzir a aplicação da pena de prisão, sobretudo quando de curta duração, devido aos seus efeitos criminógenos.[8]

            Ela consiste na prestação pelo condenado de serviços gratuitos ao Estado, ou a outras pessoas coletivas de direito público, ou ainda a entidades privadas cujos fins sejam considerados pelo tribunal de interesse para a comunidade (art. 58º, nº 2, do CP).

            A prestação de trabalho não constitui, porém, no nosso sistema penal, uma pena principal. Ela não recebeu, sequer, um tratamento unitário no Código Penal. Na verdade, ela funciona em duas vertentes diferentes: umas vezes como pena autónoma, outras como forma de execução de outra pena, concretamente a de multa.

            Enquanto pena autónoma, constitui pena substitutiva da pena de prisão, com o regime descrito nos arts. 58º e 59º do CP, cominada na própria sentença condenatória.

            Mas também funciona como forma de execução da pena (principal) de multa, nos termos do art. 48º do CP, a utilizar se não houver pagamento voluntário da multa e for requerida pelo condenado, sendo então objeto de decisão em sede de execução da pena (art. 490º, nºs 1 e 3, do CPP).

            Esta distinção, essencialmente dogmática e procedimental, não obsta a uma substancial similitude entre as duas medidas, quer pelo conteúdo (prestação de serviços gratuitos à comunidade), quer pelo seu sentido político-criminal (evitamento de cumprimento de prisão pelo condenado), em termos de a regulamentação da pena poder servir de “direito subsidiário” da execução da multa, como já se preconizava face à versão originária do CP.[9]

            É desta vertente da prestação de trabalho a favor da comunidade (como meio de execução da pena de multa) que importa tratar. A dúvida está na forma de correspondência entre a pena de multa, estabelecida em dias, e a duração da prestação do trabalho. A um dia de multa, independentemente da taxa diária, sabido que esta depende da condição económica do condenado, quanto tempo de trabalho deverá corresponder?

Inicialmente, isto é, na versão originária de 1982, o art. 47º, nº 2, do CP previa:

2. Se, porém, a multa não for paga voluntária ou coercivamente, mas o condenado estiver em condições de trabalhar, será total ou parcialmente substituída pelo número correspondente de dias de trabalho em obras ou oficinas do Estado ou de outras pessoas coletivas de direito público.

Esta normativa, levada à letra, ou seja, como correspondendo a um dia de multa um dia normal de trabalho (8 horas), conduziria a consequências de tal forma desproporcionadas e inaceitáveis que foi logo defendida uma interpretação restritiva, no sentido de cada dia de trabalho não poder exceder o regime legal de horas extraordinárias - duas horas diárias -, sem prejuízo de ser preconizada uma equivalência de tipo normativo.[10]

A reforma penal de 1995 (DL nº 48/95, de 15-3) veio introduzir nova solução, no nº 2 do art. 48º do CP, que substituiu o anterior art. 47º, com a seguinte redação:

2. É correspondentemente aplicável o disposto nos nºs 3 e 4 do art. 58º, e no nº 1 do art. 59º.

Os preceitos citados eram referentes ao regime da prestação de trabalho a favor da comunidade enquanto pena substitutiva da de prisão, e tinham a seguinte redação (não importa para aqui o art. 59º, nº 1, do CP):

3. A prestação de trabalho é fixada entre 36 e 380 horas, podendo aquele ser cumprido em dias úteis, aos sábados, domingos e feriados.

4. A duração dos períodos de trabalho não pode prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável.

Vinha a lei consagrar, assim, um critério normativo, não aritmético, de correspondência entre a multa e a prestação de trabalho. Cabia ao julgador, na moldura abstrata estabelecida pelo legislador, graduar a duração concreta da prestação de trabalho de acordo com os critérios de determinação da pena inscritos no art. 71º do CP, com a limitação imposta pelas restrições do nº 4, que visavam salvaguardar a situação do condenado empregado.

Mas o que importa acentuar é a opção do legislador de fazer coincidir o regime da prestação de trabalho como forma de cumprimento da multa com o da prestação de trabalho como pena autónoma, por meio da remessa estabelecida no art. 48º, nº 2, para o art. 58º, nºs 3 e 4, ambos do CP. Foi uma opção inequívoca e coerente com a similitude das duas medidas, já salientada por Figueiredo Dias, como vimos, e reforçada na discussão do anteprojeto do CP.[11] No fundo, e como já se vincou atrás, são duas vertentes da mesma medida penal, sendo um pouco especiosa a distinção dogmática entre elas.

A reforma penal de 2007 (Lei nº 59/2007, de 4-9) veio trazer nova alteração ao regime do trabalho a favor da comunidade, agora apenas através da modificação do texto dos nºs 3 e 4 do art. 58º, para os quais se mantém a remissão do art. 48º, ambos do CP. É esta a redação atual:

3. Para efeitos do disposto no nº 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo 480 horas.

4. O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como os dias úteis, mas este caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável.

Ressalta logo à vista a alteração de fundo introduzida: é abandonado o critério normativo de correspondência e, em sua substituição, consagra-se um critério aritmético: a cada dia de prisão, e por consequência da remessa do art. 48º, nº 2, do CP, a cada dia de multa, corresponde uma hora de trabalho. Sendo, porém, estabelecido um limite máximo: 480 horas de trabalho.

Privilegiou, pois, o legislador a simplicidade, certeza e transparência na determinação da correspondência.

Contudo, manteve-se a coincidência de regimes aplicáveis à prestação de trabalho a favor da comunidade.

Mas a questão que agora importa tratar é saber se será de aplicar previamente à regra de correspondência estabelecida no art. 58º, nº 3, o disposto no art. 49º, nº 1, ambos do CP.

É este o texto da disposição:

1. Se a multa, que não tenha sido substituída por trabalho, não for paga voluntária ou coercivamente, é cumprida prisão subsidiária pelo tempo correspondente reduzido a dois terços, ainda que o crime não fosse punível com prisão, não se aplicando, para o efeito, o limite mínimo dos dias de prisão constante do nº 1 do artigo 41º.

A pena de multa pode, pois, ser cumprida através de várias formas: por pagamento, voluntário ou coercivo; por prestação de trabalho, quando a substituição seja requerida pelo condenado; ou ainda, em último recurso, por conversão da multa em prisão subsidiária, estabelecendo o citado art. 49º, nº 1, do CP uma regra específica para essa conversão: a duração da prisão subsidiária corresponde ao tempo da multa reduzido a dois terços.

D) Discussão das posições em confronto

1. Conhecido o quadro legislativo, na sua amplitude evolutiva, importa agora analisar de perto as posições em confronto.

A tese do acórdão-fundamento mostra-se logo à partida a mais convincente, pois resulta inequivocamente da letra da lei, já que o art. 48º, nº 2, remete exclusivamente para o art. 58º, nºs 3 e 4, não fazendo qualquer menção ao art. 49º, nº 1, todos do CP.

Não bastará evidentemente o argumento literal para garantir a bondade da interpretação, pois, o nº 1 do art. 9º do Código Civil (CC) dispõe que a interpretação não deve cingir-se à letra da lei.

Mas o nº 2 do mesmo artigo estabelece que a interpretação deve ter um mínimo de correspondência verbal na letra da lei, ainda que incorretamente expresso.

E é precisamente isso que falta à tese do acórdão recorrido: um mínimo de expressão no texto da lei, já que, como vimos, a letra do art. 48º, nº 2, é completamente omissa quanto à aplicação do art. 49º, nº 1, ambos do CP, à correspondência entre a multa e a prestação de trabalho.

E, por sua vez, este art. 49º, nº 1, prevê a sua aplicação somente às situações em que a multa não foi paga, voluntária ou coercivamente, nem substituída por trabalho.

Sendo assim, faltando de todo o apoio literal, a interpretação proposta pelo acórdão recorrido é de rejeitar liminarmente, por força do citado nº 2 do art. 9º do CC, sendo absolutamente despiciendo analisar, no plano da interpretação da lei, os argumentos de ordem sistemática e teleológica invocados no acórdão recorrido.

Em resumo, situando-nos no plano da interpretação do art. 48º, nº 2, do CP, nenhuma dúvida pode haver de que só a tese subscrita no acórdão-fundamento merece acolhimento, porque só ela tem apoio na letra da lei.

Diga-se ainda que é manifestamente de rejeitar a posição defendida por Maia Gonçalves e Sá Pereira/Alexandre Lafayette no sentido de estabelecer a correspondência entre um dia de multa e 2 horas de trabalho, porque ignora e escamoteia a remissão feita pelo art. 48º, nº 2, do CP para o nº 3 (e não apenas para o nº 4) do art. 58º do mesmo diploma.

2. Mas o problema não está ainda decidido. É que a questão suscitada pelo acórdão recorrido não será tanto de interpretação da lei, como de integração de uma lacuna. É isso que resulta, implícita mas claramente, do texto do acórdão recorrido, nomeadamente dos seguintes parágrafos:

Quando o art. 48º, nº 2, do CP preceitua que é correspondentemente aplicável o art. 58º, nº 3 do CP não esclarece a questão porque o art. 58º, nº 3 apenas preceitua que a cada dia de prisão corresponde um dia de trabalho continuando a não regular diretamente a situação.

Existirá alguma razão juridicamente sustentável para que num caso a pena de prisão apenas possa corresponder a dois terços da pena de prisão e noutro possa corresponder à sua totalidade?

Cremos ser manifesto que não existe nenhuma razão para distinguir as situações e trata-se precisamente de um caso em que a interpretação sistemática dita, sem margem para dúvidas, que a expressão “correspondentemente aplicável” deva ser entendida com o subsídio do art. 49º, nº 1 do CP que expressa a ratio legis no que respeita à correspondência a estabelecer entre a pena de prisão e a de multa, no pressuposto de que, sendo a pena de multa de menor gravidade, nunca pode corresponder a igual tempo de prisão, logo igual tempo de multa e prisão não poderão corresponder a igual tempo de prestação de trabalho. (sublinhados nossos)

O que o acórdão recorrido afinal diz é que o art. 48º, nº 2, do CP contém uma previsão incompleta para a questão da correspondência entre a multa e a prestação de trabalho, e que essa incompletude deve ser suprida através (“com o subsídio”) do art. 49º, nº 1, do CP, por razões de ordem sistemática e teleológica.

É uma lacuna da lei que o acórdão recorrido inequivocamente identifica e supre, uma “lacuna teleológica”, na lição de Batista Machado, que as define assim:

A mais importante das categorias das “lacunas da lei” são as “lacunas teleológicas”. São lacunas de segundo nível, a determinar em face do escopo visado pelo legislador, ou seja, em face da ratio legis de uma norma ou da teleologia imanente a um complexo normativo. Estamos no domínio de eleição da analogia: a analogia serve aqui tanto para determinar a existência de uma lacuna como para o preenchimento da mesma.[12]

Foi efetivamente recorrendo à analogia com a situação regulada no art. 49º, nº 1 (que estabelece a correspondência entre a multa e a prisão subsidiária), que o acórdão recorrido identificou uma lacuna (falta de remissão do art. 48º, nº 2, para esse preceito) e simultaneamente a preencheu precisamente com a integração (o “subsídio”) desse preceito na previsão do mesmo nº 2 do art. 48º.

É, pois, incontestável que o acórdão recorrido procedeu a uma operação de integração da lei com recurso à analogia.

Sabido é que vigora em direito penal o princípio da proibição da analogia, princípio expresso no art. 1º, nº 3, do CP, ao estabelecer:

3. Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes corresponde.

Porém, a proibição, como resulta imediatamente do texto da lei, não é absoluta, pois incide apenas sobre os elementos que “sirvam para fundamentar a responsabilidade ou para a agravar; a proibição vale pois contra reum ou in malam partem, não favore reum ou in bonam partem”.[13]

A proibição da analogia in malam partem, com o reverso de admissão in bonam partem, vale em termos de tipicidade, mas também para as consequências jurídicas do crime.[14] De forma que é admitida a analogia na determinação da pena, sempre que ela envolva uma solução mais favorável ao agente.

Donde se conclui que, pressupondo que existe analogia na situação que vimos analisando, ela seria admissível, por favorecer inequivocamente o condenado.

Ponto está em saber se estamos perante uma lacuna da lei.

É o que passamos a analisar.

3. O acórdão recorrido identificou a lacuna a partir de argumentos de ordem teleológica e sistemática.

Partiu do pressuposto de que o art. 49º, nº 1, do CP estabelece a regra-base da correspondência entre a pena de prisão e a de multa: redução da duração desta em dois terços. Esta regra seria de aplicar sempre que estiver em causa qualquer forma de correspondência entre prisão e multa, constituindo o reconhecimento da maior gravidade da pena de prisão e da correlativa proporção a estabelecer entre as duas.

Seria aplicável ainda à correspondência entre a multa e a prestação de trabalho, na medida em que, não se fazendo intervir aquela regra, haveria uma equivalência entre a pena de multa e a de prisão, já que quer a multa, quer a prisão seriam ambas substituídas, por força do art. 58º, nº 3, do CP, à razão de um dia (de prisão ou de multa) por uma hora de trabalho. Ou seja, um dia de multa valeria o mesmo que um dia de prisão, para efeitos de substituição por prestação de trabalho…

É nessa equivalência que o acórdão recorrido vê uma violação da teleologia da lei refletida no art. 49º, nº 1, do CP, e ainda uma violação do princípio constitucional da igualdade. É para repor a intenção legislativa de tratar diversamente a prisão e a multa, bem como para salvaguardar o referido princípio constitucional, que o acórdão recorrido entende necessário recorrer ao “subsídio” do referido art. 49º, nº 1.

Contudo, o acórdão recorrido labora manifestamente em equívoco. Na verdade, o mesmo art. 49º, nº 1, não constitui uma norma geral de equivalência entre a multa e a prisão, antes uma regra específica para efeitos de aplicação da prisão subsidiária.

Este preceito regula uma situação subsequente à prevista no art. 48º do CP. Na verdade, enquanto este último trata da possibilidade de cumprimento da pena de multa através da prestação de trabalho, não estando portanto ainda a multa dada como incumprida, a aplicação da prisão subsidiária prevista no art. 49º do CP pressupõe precisamente que a multa não foi paga nem cumprida através de trabalho.

A prisão subsidiária é uma forma residual de cumprimento da pena de multa, com um regime específico. A redução da multa a dois terços da prisão assenta evidentemente na maior penosidade da pena de prisão relativamente à de multa.

Mas essas razões não são válidas para a matéria que nos ocupa, pois a prestação de trabalho a favor da comunidade não constitui uma pena privativa da liberdade.

A remessa para o art. 58º, nº 3, por parte do art. 48º, nº 2, ambos do CP, revela uma opção coerente do legislador de 2007 com a evolução legislativa: a aproximação entre os regimes aplicáveis à prestação de trabalho a favor da comunidade, quer enquanto pena de substituição autónoma, quer como forma de cumprimento da multa. A “teleologia” da lei coaduna-se pois com aquela remissão estrita. A aplicação do art. 49º, nº 1, do CP é que contrariaria a intenção legislativa.

Ora, se o legislador, desde a reforma penal de 1995, quer um regime único para a prestação de trabalho a favor da comunidade, não existe afinal nenhuma lacuna da lei.

4. Uma última questão haverá a tratar: a da alegada violação do princípio da igualdade.

Consistiria ela afinal no facto de da aplicação do art. 58º, nº 3, à multa, sem o “subsídio” do art. 49º, nº 1, resultar que tanto um dia de prisão como um dia de multa equivaleriam a uma hora de prestação de trabalho, o que redundaria numa equivalência entre um dia de multa e um dia de prisão, equivalência insustentável dada a evidente maior gravidade da pena de prisão.

O princípio constitucional da igualdade (art. 13º da Constituição) consiste na proibição de privilégios ou discriminações impondo o tratamento igual de situações iguais e desigual de situações desiguais, traduzindo-se numa ideia geral de proibição do arbítrio.[15]

No plano do direito penal, o princípio dirige-se antes de mais ao legislador, mas vincula igualmente os tribunais, obrigando-os a recusarem a aplicação de normas que o violem. Assinale-se, porém, que o legislador detém uma larga margem de liberdade na conformação dos crimes e das penas, e no desenvolvimento do seu regime jurídico, de acordo com o programa político-criminal adotado.

Só quando a solução legislativa se apresenta em absoluto intolerável ou inadmissível, de uma perspetiva jurídico-constitucional, por não se basear em qualquer fundamento razoável e compreensível poderá relevar como inconstitucionalidade.[16]

Se analisarmos a “desigualdade” invocada no acórdão recorrido, torna-se logo evidente o equívoco em que assenta esse raciocínio. Não há, desde logo, qualquer equivalência entre a prisão e a multa, pois as normas aplicadas (arts. 48º, nº 2, e 58º, nº 3, do CP) estabelecem um sistema de correspondência entre a prisão e a multa, por um lado, com a prestação de trabalho a favor da comunidade, por outro, não entre elas, prisão e multa.

Esse critério de correspondência, situado no domínio das consequências jurídicas do crime, está compreendido amplamente na margem de disposição do legislador ordinário, pois não envolve nem traduz nenhuma solução arbitrária ou discriminatória.

Assim, é de todo insustentável a imputação de inconstitucionalidade às normas referidas.

5. Em conclusão, improcedem inteiramente os argumentos do acórdão recorrido, adotando-se resolutamente a posição seguida no acórdão-fundamento, pelo que importa fixar jurisprudência nesse sentido.

III. Decisão

Com base no exposto, o Pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça decide:

a) Fixar a seguinte jurisprudência:

A correspondência entre a multa e a prestação de trabalho a favor da comunidade que resulte da substituição da pena de multa, nos termos do art. 48º, nº 2, do Código Penal, é a estabelecida no art. 58º, nº 3, do mesmo diploma, ou seja, um dia de multa corresponde a uma hora de trabalho;

b) Revogar o acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro que aplique a jurisprudência fixada.

Cumpra-se oportunamente o disposto no art. 444º, nº 1, do CPP.

Sem custas.

                                   Lisboa, 18 de setembro de 2013

Maia Costa

Pires da Graça

Raul Borges

Isabel Pais Martins

Manuel Braz

Isabel São Marcos

Pereira Madeira

Santos Carvalho

Rodrigues da Costa

Armindo Monteiro

Arménio Sottomayor

Santos Cabral

Oliveira Mendes

Souto de Moura

Henriques Gaspar (Presidente)

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[1] Ver, em sentido negativo, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 3ª ed. e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.5.1992, proc. nº 42367.
[2] Ver, a título exemplificativo, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6.5.1992, BMJ, 417, 113, de 12.2.1998, proc. nº 46546, e de 17.2.2000, proc. nº 344/99, e Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003, de 16.1.2003, publicado no DR, I-A, de 27.2.2003, pp. 1409 ss.; alterando a posição anterior, Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 185.
[3] Direito Penal Português, vol. III, 2ª ed., p. 95.
[4] Comentário do Código Penal, 2ª ed., p. 223.
[5] Consequências Jurídicas do Crime, pp. 68-69.
[6] Código Penal, anotado e comentado, p. 174.
[7] Código Penal Português, 18ª ed., p. 210.
[8] Sobre esta matéria, por todos, ver Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, pp. 370-371.
[9] Assim, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 139-140.
[10] Assim, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 141-143; e Simas Santos-Leal Henriques, O Código Penal de 1982, I vol., pp. 285-286.
[11] Nota 8. Ver também, Código Penal, Atas e Projeto da Comissão de Revisão, 1993, pp. 25-26; e Maia Gonçalves, Código Penal Português, 15ª ed., p. 192.
[12] Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, p. 196.
[13] Figueiredo Dias, Direito Penal, I, 2ª ed., p. 192.
[14] Figueiredo Dias, ob. cit., p. 193.
[15] Para maior desenvolvimento, J. Miranda/R. Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 1ª ed., p. 121. Ver ainda, por todos, o ac. nº 232/2003 do Tribunal Constitucional.
[16] Ver, por último, os acórdãos nº 166/2010 e 255/2012 do Tribunal Constitucional.