Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
446/09.9GAPTL.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: BURLA
BURLA QUALIFICADA
CRIME CONTINUADO
MODO DE VIDA
REINCIDÊNCIA
Data do Acordão: 12/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA O PATRIMÓNIO / BURLA.
Doutrina:
- Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, Verbo, 1989, p. 151 e 152),
- Eduardo Correia , Direito Criminal, II, p. 10, 35, 162 e 201 e ss.;
- Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 46, 55 e 70 e ss.;
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 55, 211, 268, 269 w 278; Direito Penal, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, 1996, p. 56, 84 e 121; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.;
- Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, p. 294; Direito Penal Português, Parte Geral, III, p. 154;
- Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 16.ª Edição, p. 268-269; Código Penal Português Anotado e Comentado, Legislação Complementar, 18.ª Edição, 2007, p. 154 e 155,
- Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, p. 230;
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 139.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 217.º E 218.º, N.º 2, ALÍNEA B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 17-05-2007 PROCESSO N.º 1608/07;
- DE 14-06-2007, PROCESSO N.º 1387/07;
- DE 12-09-2007, PROCESSO N.º 07P2601, IN WWW.DGSI.PT.;
- DE 04-12-2008, PROCESSO N.º 3774/08;
- DE 18-06-2009, PROCESSO N.º 159/08.9PQLSB.S1.
Sumário :

I - Depois da arquitectura matricial do crime de burla do art. 217.º do CP, no art. 218.º surge um modus aedificandi criminis que não se confunde com a técnica dos exemplos padrão, havendo necessidade de valoração diferenciada, das circunstâncias agravativas.
II - Como o crime de burla qualificada é um crime autónomo em relação ao simples crime de burla, há que indagar do âmbito de protecção da norma qualificativa, que não da aplicação automática da sua factualidade.
III -O arguido abordava candidatos a pensionistas, alegava que era médico e titular de um cargo de relevo na Segurança Social com poderes para influenciar favoravelmente os pedidos de concessão de reforma, fazia crer aos lesados que era necessário o desembolso de determinada quantia em dinheiro e, usando este artifício, locupletava-se à custa do património alheio, guardando em proveito próprio as quantias que lhe eram entregues.
IV -Como o arguido praticou estas condutas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e de multiplicidade, resulta evidente que se dedicou à prática de burlas como modo de vida, pelo que procede a qualificativa da al. b) do n.º 2 do art. 218.º do CP.
V - Como é jurisprudência dominante do STJ, a reincidência não opera como mero efeito automático das anteriores condenações, não sendo suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação.
VI -A reiteração criminosa pode resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto.
VII - Como a qualificativa não opera por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, exige-se a enunciação dos factos concretos dos quais se retire a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado.
VIII - O arguido revela tendência criminosa se as anteriores condenações, pelo mesmo tipo de crime de burla, uma delas geradora do cumprimento de pena de prisão e de que beneficiou de liberdade condicional, não serviram de suficiente prevenção da prática de novos crimes.
IX -Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos de crime, a culpa está tão acentuadamente diminuída que só é possível formular um juízo de censura.
X - A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que o arrastam para o crime e não em razões de carácter endógeno.
XI -A conexão espacial e temporal das actividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos actos. Decisivo é, pelo contrário, que as diversas actividades preencham o mesmo tipo legal ou, pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico.
XII - Como inexiste uma situação exterior que diminua sensivelmente a culpa e que tenha motivado o agente para a execução reiterada do propósito criminoso, o arguido não pode ser condenado pela prática de um crime de burla na forma continuada.

Decisão Texto Integral:

           


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

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Nos autos de processo comum com o nº 446/09.9GAPTL, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima, foi submetido a julgamento em Tribunal Colectivo, o arguido AA, nascido ..., filho de ... e de ..., ..., residente na ..., na sequência de acusação que lhe foi movida pelo Ministério Público, imputando-lhe, como reincidente, dois crimes de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, nºs. 1 e 2, b), cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, b), dois crimes de burla qualificada, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 22.º, 23.º, 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, b), e um crime de usurpação de funções, p. e p. pelo art. 358.º, b), todos do Código Penal.

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O assistente BB, id. nos autos, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido, por danos patrimoniais e não patrimoniais, no valor de € 20.000,00, acrescido de juros à taxa legal, desde a notificação do pedido até integral pagamento.

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Realizado o julgamento, foi proferido acórdão em 1 de Abril de 2014, com a seguinte decisão:

“Pelo exposto, os juízes que compõem este tribunal colectivo julgam a acusação parcialmente procedente por provada e, em consequência:

- absolvem o arguido AA da prática do crime de usurpação de funções, de dois crimes de burla qualificada e de um crime de burla qualificada na forma tentada;

- condenam o arguido AA pela prática de cinco crimes de burla qualificada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, b) (e dois deles também pelo art. 218.º, n.º 1), do Código Penal, nas penas de 3 anos e 6 meses de prisão, 3 anos de prisão, 3 anos e 8 meses de prisão, 5 anos de prisão e 4 anos e 3 meses de prisão, e pela prática de um crime de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelos arts. 217.º, n.º 1, e 218.º, n.º 2, b), do Código Penal, na pena de 10 meses de prisão;

- em cúmulo jurídico, condenam o arguido na pena única de 9 (nove) anos de prisão;

- mais condenam o arguido nas custas, com 6 UC de taxa de justiça;

- na parcial procedência do pedido de indemnização civil, condenam AA a pagar a BB a quantia de € 19.000,00 (dezanove mil euros), acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a notificação do pedido sobre € 16.000,00 e desde a presente data sobre o restante, tudo até integral pagamento.

As custas do pedido de indemnização civil ficarão a cargo de demandado e demandante, na proporção do respectivo decaimento e sem prejuízo do decidido em sede de apoio judiciário.

Boletins à Identificação Criminal.

Notifique, deposite e, após trânsito, envie cópia aos serviços da Segurança Social da área de residência do arguido, com a referência de que o mesmo é beneficiário do RSI.”


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Inconformado com o mesmo, dele recorreu o arguido para este Supremo Tribunal, apresentando as seguintes conclusões na motivação do recurso:

1 – A conduta do arguido não integra a circunstância agravante qualificativa constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal.

2 – Com efeito, o facto provado consubstanciado na actuação do arguido “actuou pelo modo supra indicado praticando tais condutas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual”, reconduz-se a afirmação é notoriamente conclusiva, desconhecendo-se de onde foi extraída a conclusão de que as condutas ilícitas demonstram que a sua prática era o seu modo de vida habitual, pois, para além de se entregar à burla de forma habitual era necessário que o mesmo também fizesse da burla a fonte exclusiva dos proventos para a sua sustentação. E,

3 - Não se pode extrair dos factos provados que o arguido fazia face ao seu sustento exclusivamente com os proventos obtidos com a prática dos ilícitos, nem se pode falar o arguido tem uma inclinação ou propensão adquirida e estável que lhe facilita a sua realização.

4 - A prática da burla não se reconduz a uma das características principais do próprio modo de vida do arguido/recorrente. Pois, se assim fosse, com certeza que seria conhecida a prática de outros crimes de burla em data posterior aos dos autos.

5 - Não se encontra demonstrada a conformação interior do agente à prática de actos criminosos do tipo referido, nem resultou demonstrada a conformação psicológica do arguido, necessária à figura da habitualidade.

6 - Não podia, assim, o Tribunal a quo, extrair da matéria de facto provada a conclusão de que o arguido praticou as condutas aí referidas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual.

7 – Ocorrendo, por isso, inequívoca contradição, pois, uma de duas: ou há uma insondável razão para assim ser – o recorrente fazia da burla modo de vida - o que não se encontra devidamente explicado e, nessa perspectiva, a decisão sobre a matéria de facto enferma de nulidade (artigo 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do C.P.P., ou aquela resposta de que o arguido/recorrente fazia da burla modo de vida, resulta em insuprível contradição com os elementos de prova carreados para os autos (artigo 410.º, n.º 2, al. b), bem como erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, al. c) e consequentemente um incorrecto enquadramento jurídico da mesma matéria de facto e violação do artigo 218.º do Código Penal.

8 - O arguido foi indevidamente condenado como reincidente. Com efeito, afigura-se-nos que a acusação não descreve factos concretos dos quais se possa inferir que o arguido desrespeitou a solene advertência contida na sentença anterior, não bastando a simples indicação das condenações e períodos de reclusão sofridos. De facto, na douta acusação pública apenas se refere, no item 7, a condenação anterior sofrida pelo arguido, para concluir, no item 65, que: “de acordo com as circunstâncias descritas são de lhe censurar as condutas em apreço, pois as mesmas são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime”.

9 - O Tribunal a quo conclui também que as condutas em apreço são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime.

10 - Ora, não sendo a prática dos factos pelos quais foi condenado sinónimo da violação da advertência que para ele decorre da anterior condenação, não resulta dos mesmos que o arguido não tenha interiorizado o “aviso” contido em tal condenação, não se verificando, por isso, o requisito da reincidência porque para se concluir que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime não basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa.

11 - Não obstante se verificarem os pressupostos formais da reincidência não se verifica o pressuposto material cuja natureza material e não fáctica significa, por um lado, que integra inequivocamente questão de direito e, por outro, que a respectiva verificação carece da apreciação e prova de factos concretos e específicos de cada situação, necessariamente inscritos em impulso acusatório prévio.

12 - No caso em apreço, a acusação não ofereceu específicos factos de conexão material entre a reiteração criminosa e o fracasso do efeito admonitório do cumprimento de pena de prisão. Limitando-se a inscrever na acusação segmento praticamente coincidente com a previsão legal e, portanto, mera conclusão, sem conteúdo fáctico. O mesmo sucedendo no douto acórdão recorrido ao reproduzir que as condutas em apreço são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime.

13 - Não tendo sido alegados os elementos fácticos idóneos a suportar a afirmação do pressuposto material da reincidência, consequentemente a mesma tem de ser afastada, sendo certo que o Tribunal a quo não podia concluir, como concluiu, que as condutas do arguido são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime.

14 - Ocorreu, assim, no erro notório na apreciação da prova, e consequente incorrecto enquadramento jurídico da mesma matéria de facto e violação do artigo 75.º do Código Penal.

15 - Os crimes pelos quais o arguido foi condenado integram não a prática de cinco crime de burla qualificada e um crime de burla qualificada na forma tentada, mas antes um único crime continuado.

16 - A actuação do arguido traduz-se numa pluralidade de actos de execução de um mesmo tipo legal, em que se verifica uma homogeneidade do modo de comissão, que conforma como que um dolo continuado, apresentando-se como um fracasso psíquico sempre homogéneo, do agente perante a mesma situação de facto, não revelando o mesmo uma personalidade que se deixe facilmente sucumbir perante situações externas favoráveis, sendo certo que por essa fragilidade supera facilmente o grau de inibição relativamente a comportamentos que preencham um tipo legal de crime, a que acresce o facto de os crime pelos quais foi condenado ocorreram, três em Setembro de 2008, dois em Dezembro de 2008 e o último em Agosto de 2009, não sendo conhecida a prática de qualquer outro crime após as sobreditas datas.

17 - Assim, salvo melhor entendimento, afigura-se-nos que o arguido recorrente praticou apenas um crime. Pois, a conduta do recorrente foi devida a facilidades exteriores, num quadro de solicitação de uma situação exterior que lhe diminui consideravelmente a sua culpa, tratando-se, pois, de crime continuado.

18 - Vem provado que o recorrente na sequência do plano concebido apresentando-se como “doutor da Segurança Social” alegava que tratava de reformas, sendo por uma só vez que o recorrente resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma dos artigos 217.º e 218.º do Código Penal, o de obter enriquecimento ilegítimo através de engano que levou outrem a sofrer prejuízo.

19 - Todos os variados actos por si levados a cabo obedeceram e foram consequência de uma única resolução, quando engendrou abordar os ofendidos alegando ser doutor e tratar de reformas, em cuja execução aqueles actos foram praticados. Ocorrendo, por isso, unidade de resolução e, por conseguinte, unidade de infracção, que é a de burla consumada p. e p. pelos citados artigos 217.º e 218.º, n.º 1, do Código Penal, nela se incluindo os actos que não passaram de tentativa de recebimento de quantias, relativo ao ofendido CC.

20 - O arguido deveria ter sido condenado pela prática de um crime de burla na forma continuada, em pena de prisão suspensa na sua execução.

21 - Sem prescindir, ainda que por mero dever de patrocínio, no que às medidas concretas das penas parcelares respeita, e da pena obtida em cúmulo jurídico, entendemos que as mesmas são manifestamente exageradas, sendo nítida a violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P. pelo menos, em termos de culpa, extraída dos elementos de prova supra referidos, não realizando nenhum dos fins das penas, na medida em que a pena, para além de dever ser a retribuição justa do mal praticado, deve sobretudo contribuir para a reinserção social do agente, por forma a não prejudicar a sua situação senão naquilo que é necessário e deve dar satisfação ao sentido de justiça e servir de elemento dissuasor relativamente aos elementos da comunidade.

22 - Destarte, em nome da justiça e da equidade, a entender-se que o arguido praticou os seis crimes de burla, o que apenas por mero exercício intelectual se concebe, impõe-se a aplicação de uma pena única não superior a 5 (cinco) anos de prisão, a qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade. Tal pena de uma pena única de anos 5 (cinco) anos de prisão, deverá ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.

23 – No entanto, o arguido entende que não praticou os seis crimes de burla pelos quais foi indevidamente condenado, mas um único crime de burla na forma continuada e, assim, em nome da justiça e da equidade, seria sempre adequada a aplicação ao arguido/recorrente de uma pena única inferior a 5 (cinco) anos de prisão pela prática do crime de burla do artigo 218.º,n.º 1, na forma continuada, suspensa na sua execução; a qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade.

            Foram violados os artigos 30.º, 71.º, 75.º, 217.º e 218.º do Código Penal e os artigos 379.º, n.º 1, al. a), 374.º, n.º 2, do C.P.P., artigo 410.º, n.º 2, al. b),e 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.

Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá o presente recurso merecer provimento, com todas as consequências legais.

Com o que farão a justiça que o caso reclama.


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Respondeu o Ministério Público à motivação do recurso, no sentido de que nenhuma violação ocorreu, de qualquer preceito legal, mormente os apontados pelo recorrente, na decisão em causa. Pelo que deve manter-se a condenação nos termos em que ocorreu.

Porém, Vªs Exªs, como sempre, aliás, farão

JUSTIÇA, “


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            Neste Supremo, o Digmo Magistrado do Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:

            “Como resulta da conclusão 7 da motivação do recurso, o recorrente impugna matéria de facto.

Assim, competente para conhecer do recurso é o Tribunal da Relação de Guimarães.”.


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            Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº 2 do CPP,

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            Não tendo sido requerida audiência, seguiram os autos para conferência, após os vistos legais.

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            Consta do acórdão recorrido:

            “ FACTOS PROVADOS (com relevância para a decisão da causa)

O arguido foi funcionário da Segurança Social, no Serviço Sub-regional de Braga, até 26.10.2000, data em que foi demitido em processo disciplinar.

Abordava candidatos a pensionistas, alegando ser médico e titular de um cargo de relevo na Segurança Social com poderes para influenciar favoravelmente os pedidos de concessão de reforma; fazendo uso dessas qualidades, criava nos lesados a convicção de que a obtenção da reforma, pelos meios por ele referidos que abaixo se descrevem, era legal.

Para o efeito, fazia crer aos visados que era necessário o desembolso de determinada quantia em dinheiro que ele depois entregaria à Segurança Social para posteriormente adquirirem o estatuto de pensionistas beneficiários de uma pensão mais elevada que passariam a fruir.

Usando o artifício supra descrito, que aplicava consoante as necessidade de cada caso concreto, locupletava-se à custa do património alheio, pois uma vez na posse das quantias que lhe fossem entregues guardava-as em proveito próprio.

Por factos relacionados com o método descrito, praticados entre Julho e Outubro de 2001, o arguido foi condenado no processo comum singular n.º 43/02.0GCVRM, do Tribunal de Vieira do Minho, pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. no art. 218.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 9 meses de prisão, por sentença de 20.6.2003.

Por factos relacionados com o método descrito, praticados entre finais de 1986 e Novembro de 2001, o arguido foi condenado no processo comum colectivo n.º 176/98.5JABRG, da Vara Mista do Tribunal de Braga, pela prática de 5 crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 2, a) e c), 18 crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 1, 11 crimes de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º, 5 crimes de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º, 6 crimes de burla simples na forma tentada, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1 e n.º 2, 22.º e 23.º, e 5 crimes de falsificação, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, a) e b), na pena de prisão, após recurso, de 8 anos e 6 meses de prisão; em cúmulo jurídico com a pena aplicada em Vieira do Minho, foi o arguido condenado na pena única de 8 anos e 9 meses de prisão, cujo cumprimento iniciou em 22.1.2002, com termo em 14.12.2010.

Em 31 de Julho de 2006, o TEP decidiu conceder-lhe liberdade condicional.

Em hora e data concretamente não apurada de Setembro de 2008, DD conheceu o arguido AA no restaurante “...”, sito em Arcozelo, nesta vila.

O arguido apresentou-se a DD como sendo “doutor da Segurança Social” e disse que lhe trataria da reforma mas que, para isso, teria que antecipar a quantia de € 3.000,00, o que combinaram que poderia ser feito em 3 prestações.

Passado cerca de um mês, em data concretamente não apurada, tendo em vista a concretização do acima referido, DD encontrou-se com o arguido na vila de Ponte de Lima e entregou-lhe € 1.200,00 em dinheiro.

Posteriormente, em datas não concretamente apuradas, DD entregou € 1.000,00 em dinheiro ao arguido e, noutra ocasião, DD encontrou-se com o arguido, nas bombas de gasolina em Arcozelo nesta comarca, tendo-lhe entregado mais € 800,00 em dinheiro.

Só em Julho/Agosto de 2009, como a reforma tardava, é que DD se apercebeu que tinha sido vigarizado e que não iria receber nenhuma reforma.

Em data concretamente não apurada de Setembro de 2008, o assistente BB encontrava-se no restaurante “...”, sito em Arcozelo, Ponte de Lima, e ali conheceu o arguido que, em conversação, se intitulava “doutor da Segurança Social de Braga” e falava de modo a induzir que tinha poderes para legalmente atribuir reformas.

Passados alguns dias, em data concretamente não apurada, o arguido telefonou para BB e disse-lhe que para adquirir a sua reforma teria que pagar € 15.000,00 à Segurança Social, liquidando assim todas as contribuições até aos 62 anos, e passaria a receber de imediato.

BB ficou de pensar no assunto e cerca de 3 dias depois encontrou-se com o arguido, entregando-lhe € 15.000,00 em notas.

Passados cerca de 6 meses, como a reforma não aparecia, o assistente contactou por telefone o arguido, por diversas vezes, que lhe dizia para aguardar mais algum tempo.

No mês de Maio de 2009, BB encontrou-se com o arguido, nesta vila, e entregou-lhe mais € 1.000,00, pois este disse-lhe que para a reforma ser processada mais rapidamente teria que lhe dar aquele valor.

Posteriormente, o assistente apercebeu-se que tinha sido enganado e que não iria receber a reforma.

Em Setembro/Outubro de 2008, em Labruja, Ponte de Lima, o arguido foi apresentado a EE e FF como sendo um “doutor da Segurança Social” que tratava de reformas.

Nessa sequência, o arguido perguntou a EE e FF se queriam ser reformados mais cedo, pois ele trataria de tudo.

Como aqueles se interessaram pela proposta, em dia e mês concretamente não apurado do ano de 2008, o arguido apareceu na oficina de EE e FF, em Labruja, que lhe forneceram os dados pessoais para que fosse iniciado o alegado processo da reforma.

No dia seguinte o arguido telefonou a EE dizendo que se quisesse iniciar o processo para si e para o seu irmão teria que lhe dar a quantia de € 2.470,00, o que veio a acontecer mediante a entrega de um cheque nesse valor, datado de 23.10.2008, cujo montante foi recebido pelo arguido.

Em data concretamente não apurada de Dezembro de 2008, o arguido foi apresentado a CC como sendo um “doutor da Segurança Social” que tratava de reformas.

O arguido perguntou a CC se queria ser reformado mais cedo, pois ele trataria de tudo, e na ocasião ficaram por aí.

Após, ainda em Dezembro de 2008, o arguido surgiu na oficina de CC, sita em Bárrio, Ponte de Lima, e disse-lhe que caso se quisesse reformar que o conseguiria, ficando a receber € 1.250,00 mensais, mas caso estivesse interessado teria que averiguar quanto teria que despender para iniciar o processo e depois telefonava-lhe.

Passados alguns dias, o arguido telefonou para CC dizendo-lhe que caso quisesse iniciar o processo teria que lhe entregar € 4.250,00, contando a antiguidade de Janeiro de 2007, e para antecipar a sua reforma iria aos computadores da Segurança Social onde faria uma alteração e que ninguém daria por nada.

CC não chegou a entregar qualquer quantia ao arguido, que por esse motivo não conseguiu concretizar o seu intuito de se locupletar com aquele valor.

Em data concretamente não apurada de Dezembro de 2008, em Estorãos, Ponte de Lima, o assistente BB apresentou a GG o arguido como sendo “médico cirurgião”, com clínica no Freixieiro, Perafita.

GG encontrava-se em situação de invalidez, tendo trabalhado em França, e por isso estava à espera de uma pensão.

Como a mulher de GG também se encontrava à beira dos mesmos o arguido perguntou-lhe o que fazia, tendo-lhe ela respondido que nada podia fazer devido à doença na coluna, ao que o arguido respondeu, após lhe ter perguntando a idade, “a senhora pode ser reformada por invalidez”.

Após, o arguido disse à mulher de GG que, para a reformar definitivamente, teria o casal que lhe pagar cerca de € 8.000,00, para custos e para o resto dos descontos que faltavam pagar na Segurança Social, mas para isso teria que fazer as contas e depois falaria novamente para acertarem tudo.

Passados cerca de 2/3 dias o arguido procurou GG na sua residência e disse-lhe que feitas as contas, despesas incluídas, o valor necessário era € 8.000,00.

GG entregou-lhe, então, ao longo de três vezes e em datas não concretamente apuradas, sempre em dinheiro e na casa daquele, um total de € 8.000,00 em notas, e combinaram que o restante seria pago em 2 fracções.

Posteriormente, em data concretamente não apurada de Junho de 2009, GG apercebeu-se que tinham sido enganados, pois a reforma não chegava.

Em data concretamente não apurada, situada no espaço de tempo referido, na residência de GG, o arguido trouxe para o filho deste uns comprimidos, alegadamente para as dores das costas, para que ele os tomasse, não tendo passado receita.

Em data concretamente não apurada de Agosto de 2009, HH, então dona de um estabelecimento de têxteis lar, dirigiu-se, para efeitos de decoração, a uma residência sita em Esposende, e ali encontrou o arguido, que lhe foi anunciado como sendo “Doutor Bento da Segurança Social” e que tratava de reformas.

A determinado momento, HH perguntou ao arguido se a possibilidade de receber reforma antecipada era legal, tendo o mesmo respondido que sim.

Após conversações, HH acabou por entregar pelo menos € 4.000,00 ao arguido, com a promessa de que iria auferir uma reforma antecipada, bem como o marido e a filha, que tinha tido um acidente.

Mais tarde, após buscas na internet, viu notícias que indicavam que o tal “doutor Bento” era um burlão, com processo no Tribunal de Braga, tendo-se apercebido que tinha sido enganada.

Tentou que o arguido lhe devolvesse os € 4.000,00, o que não conseguiu.

Nenhum dos ofendidos recebeu qualquer reforma nem nunca foi propósito do arguido desencadear qualquer processo com tal fim, sendo certo que o seu objectivo foi unicamente locupletar-se à custa do património alheio, o que fez integrando as quantias supra descritas em proveito próprio.

Com as referidas condutas, levadas a cabo de acordo com os diversos planos que astuciosamente elaborou e pôs em prática, o arguido enganou os ofendidos e determinou-os a uma disposição com prejuízo patrimonial, sendo certo que fez com que aqueles acreditassem e confiassem que era pessoa séria e que cumpriria com a sua palavra, o que tudo sabia e quis, bem sabendo que desse modo obtinha um benefício que não lhe era devido.

Em relação a CC, o arguido só não conseguiu alcançar o resultado a que se propunha, de integrar no seu património quantias que aqueles lhe entregassem, devido ao facto de aquele não ter acedido a esse seu intuito.

Actuou pelo modo supra indicado praticando tais condutas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e de multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual.

O arguido não era licenciado em medicina, nem lhe é conhecido qualquer grau académico.

O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que tais condutas não lhe eram legalmente permitidas e que eram contrárias ao direito e puníveis por lei.

As condutas em apreço são indicativas de que a condenação anterior não serviu ao arguido de suficiente advertência contra a prática do crime.

Em consequência da conduta do arguido para consigo, o assistente BB sofreu desgosto, ficou triste e preocupado, passando a alimentar-se mal e a ter perturbações do sono; por ter sido enganado pelo arguido, o assistente sentiu-se vexado e com vergonha de enfrentar os seus conhecidos.

A família de origem do arguido tinha uma situação económica equilibrada, oscilando a educação entre o autoritarismo do pai (funcionário público) e a proteção da mãe. Concluiu o curso geral de comércio com cerca de 18 anos e começou a trabalhar no Centro Regional de Segurança Social de Braga, onde permaneceu até ser demitido. Teve um fraco desempenho laboral e um relacionamento superficial com os colegas de trabalho, revelando para com estes atitudes de superioridade e junto de quem contraía pequenas dívidas, que não pagava; o rendimento de trabalho do arguido contrastava com alguns sinais exteriores de riqueza do seu agregado.

O arguido casou a primeira vez aos 22 anos, relação extinta volvidos 18 meses e da qual resultou uma filha actualmente com 30 anos, que se encontra a trabalhar no estrangeiro; a primeira mulher do arguido faleceu em 2007. Casou novamente em 1985, tendo outra filha, e o divórcio ocorreu em 1998; o arguido não colaborava nas despesas de casa, não conseguia gerir o seu vencimento e passou a frequentar estabelecimentos de diversão nocturna e a ter contactos com alguns indivíduos associados a práticas ilícitas. Em liberdade condicional, reatou o relacionamento com a segunda ex-mulher, passando a coabitar com esta e com a filha mais nova, em Braga, situação que manteve até Maio de 2008. Após nova ruptura, o arguido passou a viver num quarto arrendado próximo da Universidade do Minho, que partilha com dois outros homens e pelo qual paga cerca de € 145,00 por mês. Sem actividade profissional regular, realiza alguns trabalhos enquanto motorista de pessoa idosa, ex-empresário, que integra o seu grupo restrito de amigos e lhe paga habitualmente o almoço; é beneficiário do RSI desde Outubro de 2009, recebendo € 178,00 por mês e aderindo ao respectivo programa de acompanhamento. No âmbito laboral, apresenta projetos utópicos e um discurso de grandiosidade. Mantém relação próxima com a filha mais nova.


*

FACTOS NÃO PROVADOS

- Que o arguido, logo que se viu em liberdade, tenha dado continuidade ao tipo de condutas pelo qual foi condenado;

- que o arguido tenha dito a DD que a reforma demoraria 6 meses, que seria de cerca de € 416,00 e que tenha assinado uns papéis com menções alusivas à Segurança Social;

- que as duas últimas entregas de dinheiro de DD ao arguido tenham sido em Janeiro, em casa daquele, e em Março de 2009;

- que a entrega de dinheiro do assistente ao arguido tenha ocorrido no parque do restaurante “...”;

- que o arguido tenha dito ao assistente que os € 1.000,00 entregues em Maio eram para o homem dos computadores na Segurança Social;

- que o assistente tenha apresentado o arguido a GG como director dos Serviços da Caixa Geral de Aposentações de Braga;

- que o arguido tenha perguntado a GG se estava a receber alguma reforma de Portugal e que aquele lhe tenha dito que estava a receber € 170,00 mensais;

- que o arguido tenha perguntado a GG se estava interessado em aumentar a reforma de Portugal;

- que o arguido se tenha proposto arranjar a GG uma reforma em Portugal;

- que, em Junho de 2009, o arguido tenha deixado de atender o telefone a GG;

- que o arguido tenha entregado a GG cremes para aplicar na pele e champôs;

- que, em 2008, no restaurante “...”, o arguido tenha dito a II, dona do estabelecimento, que a reformava com € 3.000,00 por mês;

- que, em relação a II, o arguido tivesse intenção que esta lhe entregasse qualquer quantia;

- que o arguido tenha dito a HH que na Segurança Social de Braga era o próprio que dava os pareceres favoráveis e que caso tivesse mais uns meses de descontos seria melhor para a antecipação;

- que o arguido tenha dito que a reforma de HH seria de cerca de € 2.500,00 por mês;

- que, em 2009, o arguido tenha pedido emprestado € 3.200,00 a JJ, em Gandra, Esposende, para resolver um assunto urgente, prometendo que lhos devolvia dali a uma semana;

- que o arguido soubesse que estava a praticar actos próprios da profissão de médico;

- que o assistente tenha entregue ao arguido as economias de uma vida.”


-

            O que tudo visto, cumpre apreciar e decidir:

            Convoca o recorrente as seguintes questões, como fundamento de recurso:

            - A conduta do arguido não integra a circunstância agravante qualificativa constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal.

- O arguido foi indevidamente condenado como reincidente.

- Os crimes pelos quais o arguido foi condenado integram não a prática de cinco crime de burla qualificada e um crime de burla qualificada na forma tentada, mas antes um único crime continuado.

- As medidas concretas das penas parcelares, e da pena obtida em cúmulo jurídico, são manifestamente exageradas,

            E, a final, conclui que

            Foram violados os artigos […] 379.º, n.º 1, al. a), 374.º, n.º 2, do C.P.P., artigo 410.º, n.º 2, al. b) ,e 410.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal.

Como questão preliminar às questões suscitadas, cumpre dizer:

É certo que o nº 1 do artº 410º do CPP, refere: “Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, e o artº 434º do CPP determina que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410º nºs 2 e 3.

Certo é também que o artigo 410º:do CPP dispõe no seu nº 2 que:

Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada,

b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;

c) Erro notório na apreciação da prova.

Mas, como vem sendo entendido por este Supremo, os vícios constantes do artigo 410º nº 2 do CPP, apenas podem ser conhecidos oficiosamente e, não quando suscitados pelos recorrentes, pois que sendo o Supremo Tribunal de Justiça um tribunal de revista, só conhece dos vícios aludidos no artigo 410º nº 2, de forma oficiosa, por sua própria iniciativa, quando tais vícios se perfilem, que não a requerimento dos sujeitos processuais.

Mesmo nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo só conhece dos vícios do art. 410º, nº 2, do CPP, por sua própria iniciativa, e nunca a pedido do recorrente, que, para o efeito, sempre terá de se dirigir à Relação.

Esta é a solução que está em sintonia com a filosofia do processo penal emergente da reforma de 1998 que, significativamente, alterou a redacção da al. d) do citado art. 432., fazendo-lhe acrescer a expressão antes inexistente "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito", filosofia que, bem vistas as coisas, visa limitar o acesso ao Supremo Tribunal, sob pena do sistema vigente comprometer irremediavelmente a dignidade deste como tribunal de revista que é.(v Acórdão deste Supremo Tribunal de 09-11-2006 Proc. n. 4056/06 - 5.a Secção)

Com tal inovação, o legislador claramente pretendeu dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores e garantir o desejável duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Esta posição nada tem de contraditório, já que a invocação expressa dos vícios da matéria de facto, se bem que algumas das vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, leva sempre ancorada a pretensão de reavaliação da matéria de facto, que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado.

Como referiu por ex. o Acórdão de 8-11-2006, deste Supremo Tribunal, in Proc. n. 3102/06- desta 3.a Secção: Os vícios elencados no art. 410º, nº 2, do CPP, pertinem à matéria de facto; São anomalias decisórias ao nível da confecção da sentença, circunscritos à matéria de facto, apreensíveis pelo seu simples texto, sem recurso a quaisquer outros elementos a ela estranhos, impeditivos de bem se decidir tanto ao nível da matéria de facto como de direito. Também o apelo ao princípio in dubio pro reo respeita à matéria de facto.

Se o agente intenta ver reapreciada a matéria de facto, esta e a de direito,, recorre para a Relação; se pretende ver reapreciada exclusivamente a matéria de direito recorre para 0 STJ, no condicionalismo restritivo vertido nos arts. 432º e 434º do CPP, pois que este tribunal, salvo nas circunstâncias exceptuadas na lei, não repondera a matéria de facto.

É ao tribunal da relação a quem cabe, em última instância, reexaminar e decidir a matéria de facto. - arts. 427º e 428º do CPP.

Quer a reforma do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 48/2007 de 29 de Agosto, quer a reforma constante da Lei nº 26/2010, de 30 de Agosto, não alteraram, esse entendimento.

Por outro lado, como já salientava o Acórdão deste Supremo de 13 de Fevereiro de 1991, (in AJ, nºs 15/16, 7), se o recorrente alega vícios da decisão recorrida a que se refere o nº 2 do artº 410º do CPP, mas fora das condições previstas nesse normativo, afinal impugna a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos ele adquiriu em julgamento, esquecido da regra da livre apreciação da prova inserta no artº 127º do CPP.

O recorrente alega que:

6 - Não podia, assim, o Tribunal a quo, extrair da matéria de facto provada a conclusão de que o arguido praticou as condutas aí referidas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual.

7 – Ocorrendo, por isso, inequívoca contradição, pois, uma de duas: ou há uma insondável razão para assim ser – o recorrente fazia da burla modo de vida - o que não se encontra devidamente explicado e, nessa perspectiva, a decisão sobre a matéria de facto enferma de nulidade (artigo 379.º, n.º 1, al. a), e 374.º, n.º 2, do C.P.P., ou aquela resposta de que o arguido/recorrente fazia da burla modo de vida, resulta em insuprível contradição com os elementos de prova carreados para os autos (artigo 410.º, n.º 2, al. b), bem como erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º, n.º 2, al. c) e consequentemente um incorrecto enquadramento jurídico da mesma matéria de facto e violação do artigo 218.º do Código Penal”

E, na conclusão 14, a propósito da reincidência o “erro notório na apreciação da prova, e consequente incorrecto enquadramento jurídico da mesma matéria de facto e violação do artigo 75.º do Código Penal.”

Mas é fácil de ver que o recorrente não questiona a matéria de facto nem exerceu o recurso em matéria de facto, caso em que competente para o conhecimento do recurso seria o Tribunal da Relação de Guimarães, O recorrente, outrossim, questiona determinada interpretação de direito resultante da mesma e confunde os vícios de contradição insanável de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto na alínea b), e o erro notório na apreciação da prova, previsto na alínea c) , ambas as alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP, com o erro de julgamento, no apuramento dos factos resultantes da apreciação da prova.

Em termos de vícios constantes das alíneas do nº 2 do artº 410º do CPP, verifica-se que o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se perfila a existência de qualquer dos vícios aludidos no nº 2 do artº 410ºdo CPP, pois que a matéria de facto provada é bastante para a decisão de direito, inexistem contradições insuperáveis de fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, não se afigurando, por ouro lado, que haja situações contrárias à lógica ou à experiência comum, constitutivas de erro patente detectável para qualquer pessoa que ao ler a decisão compreenda a sua exposição factual.

Como se sabe, no sistema processual penal, vigora a regra da livre apreciação da prova, em que conforme artº 127º o CPP, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.

São admissíveis as provas que não forem admitidas por lei.- artº 125º do CPP

E, o citado art. 127.° indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.

Por outro lado, os recursos são remédios jurídicos que se destinam a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, reexaminando decisões proferidas por jurisdição inferior. Ao tribunal superior pede-se que aprecie a decisão à luz dos dados que o juiz recorrido possuía.

Para tanto, aproveita-se a exigência dos códigos modernos, inspirados nos valores democráticos, no sentido de que as decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, sejam fundamentadas.

Desse modo, com tal exigência, consegue-se que as decisões judiciais se imponham não em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. (Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, pág. 230)

Ao mesmo tempo, permite-se, através da fundamentação, a plena observância do princípio do duplo grau de jurisdição, podendo, desse modo, o tribunal superior verificar se, na sentença, se seguiu um processo lógico e racional de apreciação da prova, ou seja, se a decisão recorrida não se mostra ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, pág. 294), sem olvidar que, face aos princípios da oralidade e da imediação, é o tribunal de 1.ª instância aquele que está em condições melhores para fazer um adequado usado do princípio de livre apreciação da prova - ( Ac. do STJ de 17-05-2007 Proc. n.º 1608/07 - 5.ª Secção).

Com efeito, por força do artº 205º nº 1 da Constituição da República: As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.

E, determina o artº 374º nº 2 do Código de Processo Penal sobre os requisitos da sentença que: Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

O dever constitucional de fundamentação da sentença basta-se assim, com a exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, bem como o exame crítico das provas que serviram para fundar a decisão, sendo que tal exame exige não só a indicação dos meios de prova que serviram para formar a convicção do tribunal, mas, também, os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. (v. Ac. do STJ de 14-06-2007, Proc. n.º 1387/07 - 5.ª Secção)
O exame crítico das provas imposto pela Lei nº 59/98 de 25 de Agosto tem como finalidade impor que o julgador esclareça "quais foram os elementos probatórios que, em maior ou menor grau, o elucidaram e porque o elucidaram, de forma a que se possibilite a compreensão de ter sido proferida uma dada decisão e não outra.( v. Ac. do S.T.J. de 01.03.00, BMJ 495, 209)

Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo. (Ac do STJ de 12 de Abril de 2000, proc. nº 141/2000-3ª; SASTJ, nº 40. 48.)

Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respectivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.

Como decidiu este Supremo, e, Secção, no  Ac. de 3-10-07, proc 07P1779), a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção.

A integração das noções de “exame crítico” e de “fundamentação” de facto envolve a implicação, ponderação e aplicação de critérios de natureza prudencial que permitam avaliar e decidir se as razões de uma decisão sobre os factos e o processo cognitivo de que se socorreu são compatíveis com as regras da experiência da vida e das coisas, e com a razoabilidade das congruências dos factos e dos comportamentos.

Em termos processuais, a estrutura da decisão recorrida mostra-se fundamentada de harmonia com o disposto no artº 374º, mormente o seu nº 2, do CPP, pelo que não ocorre qualquer nulidade de que cumpra conhecer nos termos do nº 3 do mesmo preceito.


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Conhecendo das questões postas:

           

I - Sobre a conduta do arguido quanto à circunstância agravante qualificativa constante da alínea b) do n.º 2 do artigo 218.º do Código Penal.

Alega o recorrente que “o facto provado consubstanciado na actuação do arguido “actuou pelo modo supra indicado praticando tais condutas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual”, reconduz-se a afirmação notoriamente conclusiva, desconhecendo-se de onde foi extraída a conclusão de que as condutas ilícitas demonstram que a sua prática era o seu modo de vida habitual, pois, para além de se entregar à burla de forma habitual era necessário que o mesmo também fizesse da burla a fonte exclusiva dos proventos para a sua sustentação. E, não se pode extrair dos factos provados que o arguido fazia face ao seu sustento exclusivamente com os proventos obtidos com a prática dos ilícitos, nem se pode falar o arguido tem uma inclinação ou propensão adquirida e estável que lhe facilita a sua realização.

Aduz que a prática da burla não se reconduz a uma das características principais do próprio modo de vida do arguido/recorrente. Pois, se assim fosse, com certeza que seria conhecida a prática de outros crimes de burla em data posterior aos dos autos. Não se encontra demonstrada a conformação interior do agente à prática de actos criminosos do tipo referido, nem resultou demonstrada a conformação psicológica do arguido, necessária à figura da habitualidade.

Não podia, assim, o Tribunal a quo, extrair da matéria de facto provada a conclusão de que o arguido praticou as condutas aí referidas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual.

            Analisando:

Conforme artigo 217º, do Código Penal: Quem, com a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrem à pratica de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial, é punido com prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

            Por sua vez, o artigo 218º do C.P. consagra o crime de burla na forma qualificada, distinguindo dois tipos de ilícito qualificado: o do nº 1, punido pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias, e o nº 2 a que corresponde a pena de prisão de 2 a 8 anos.

            Uma das qualificativas do crime é da alínea b) deste nº 2, que é integrada pela factualidade de “O agente fizer da burla modo de vida”

            Depois da arquitectura matricial do crime de burla p. e  p. no artº 217º do C.Penal, no artº 218º surge um modus aedificandi criminis que não se confunde com a técnica dos exemplos padrão, havendo necessidade de valoração diferenciada, das circunstâncias agravativas.

Assim, enquanto o crime de burla qualificada, é um crime autónomo em relação ao simples crime de burla, há que indagar do âmbito da protecção da norma qualificativa, que não da aplicação automática da sua factualidade.

Na verdade bem se percebe que não seja a mera factualidade constitutiva da agravação, de per se, que responsabiliza automaticamente o agente pelo resultado produzido, mas o desvalor da acção e do resultado, na imputação objectiva ao agente.

Mas para que se verifique o crime, aquela intenção, tal como os demais elementos constitutivos do mesmo, terá de surpreender-se nos factos provados, pois que constitui matéria de facto.

           

No domínio da acção do agente, na produção do resultado típico há que apurar pois, a amplitude da sua vontade na representação desse facto agravativo, de forma a poder definir-se a modalidade da sua responsabilidade criminal (dolo directo, necessário, eventual?)

            A análise valorativa jurídico-criminal do telos da norma, perante a acção desenvolvida pelo arguido, reclama averiguação factual sobre o conhecimento do agente sobre essa factualidade agravativa, sob pena de a norma agravanda deixar de ter qualquer significado jurídico-penal, sendo que na sociedade de hoje  o modo de vida pode assumir-se de forma multifacetada, Em que as pessoas tendem a fazer várias coisas ao mesmo tempo, tendem a trabalhar em diferentes domínios ao mesmo tempo, e isso é o seu modo de vida. (Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, pág. 70 e segs)

Assim, a responsabilidade criminal do agente pelo ilícito agravado, necessariamente pressupõe a admissibilidade de “um dolus generalis, enquanto instrumentum capaz de dar uma cobertura mínima à continuidade de uma defesa por um direito penal que jamais se estribe na responsabilidade objectiva” (Faria Costa, ibidem, p.55 e sgs, maxime § 46, p.72 e 73, e Almeida Costa. 4 3 e 5, respectivamente pág, 311 e 312.

            In casu, como consta da decisão recorrida: “a acusação invoca ainda outra qualificativa, e esta mais grave, já que implica a pena de 2 a 8 anos de prisão: o agente fazer da burla modo de vida (alínea b) do art. 218.º, n.º 2). Ora, perante a matéria provada, é evidente a verificação dos requisitos desta alínea para todos os crimes, mesmo o na forma tentada, já que o arguido praticava estes factos de modo especializado e em circunstâncias de multiplicidade, demonstrativas de ser a sua prática o modo de vida habitual. Deve, por isso, aplicar-se esta circunstância qualificativa aos seis crimes de burla praticados pelo arguido. “

            Aliás explicou-se na motivação da convicção do tribunal:

            “O modus operandi do arguido, em tudo semelhante ao descrito nas condenações anteriores (conforme certidões de fls. 108 a 123, 125 a 127 e 132 a 285), o curto período em que se deram os factos e a falta de ocupação profissional do arguido permitiram a conclusão de que tal era a sua actividade regular e geradora de proventos.”

Na verdade, como vem provado, o arguido abordava candidatos a pensionistas, alegando ser médico e titular de um cargo de relevo na Segurança Social com poderes para influenciar favoravelmente os pedidos de concessão de reforma; fazendo uso dessas qualidades, criava nos lesados a convicção de que a obtenção da reforma, pelos meios por ele referidos que abaixo se descrevem, era legal. Para o efeito, fazia crer aos visados que era necessário o desembolso de determinada quantia em dinheiro que ele depois entregaria à Segurança Social para posteriormente adquirirem o estatuto de pensionistas beneficiários de uma pensão mais elevada que passariam a fruir. Usando o artifício supra descrito, que aplicava consoante as necessidade de cada caso concreto, locupletava-se à custa do património alheio, pois uma vez na posse das quantias que lhe fossem entregues guardava-as em proveito próprio.

Sendo que por factos relacionados com o método descrito, praticados entre Julho e Outubro de 2001, o arguido foi condenado no processo comum singular n.º 43/02.0GCVRM, do Tribunal de Vieira do Minho, pela prática de um crime de burla qualificada, por sentença de 20.6.2003. e, por factos praticados entre finais de 1986 e Novembro de 2001, o arguido foi condenado no processo comum colectivo n.º 176/98.5JABRG, da Vara Mista do Tribunal de Braga, pela prática de 5 crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 2, a) e c), 18 crimes de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 1, 11 crimes de burla simples, p. e p. pelo art. 217.º, 5 crimes de burla qualificada na forma tentada, p. e p. pelo art. 218.º, n.º 1, 22.º e 23.º, 6 crimes de burla simples na forma tentada, p. e p. pelo art. 217.º, n.º 1 e n.º 2, 22.º e 23.º, e 5 crimes de falsificação, p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, a) e b), na pena de prisão, após recurso, de 8 anos e 6 meses de prisão; em cúmulo jurídico com a pena aplicada em Vieira do Minho, foi o arguido condenado na pena única de 8 anos e 9 meses de prisão, cujo cumprimento iniciou em 22.1.2002, com termo em 14.12.2010.

E, apesar de lhe ter sido concedida a liberdade condicional pelo TEP, em 31 de Julho de 2006 continuou a burlar pessoas como vinha anteriormente fazendo.

Com as referidas condutas, levadas a cabo de acordo com os diversos planos que astuciosamente elaborou e pôs em prática, o arguido enganou os ofendidos e determinou-os a uma disposição com prejuízo patrimonial, sendo certo que fez com que aqueles acreditassem e confiassem que era pessoa séria e que cumpriria com a sua palavra, o que tudo sabia e quis, bem sabendo que desse modo obtinha um benefício que não lhe era devido.

Em relação a CC, o arguido só não conseguiu alcançar o resultado a que se propunha, de integrar no seu património quantias que aqueles lhe entregassem, devido ao facto de aquele não ter acedido a esse seu intuito.

Actuou pelo modo supra indicado praticando tais condutas de modo especializado e em circunstâncias de repetição e de multiplicidade, demonstrativas que a sua prática era o seu modo de vida habitual.

Resulta assim evidente que o arguido se vinha dedicando à prática de burlas como o seu modo de vida., procedendo a qualificativa dada como provada.


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II - Sobre a questão da reincidência

Afigura-se ao recorrente que a acusação não descreve factos concretos dos quais se possa inferir que o arguido desrespeitou a solene advertência contida na sentença anterior, não bastando a simples indicação das condenações e períodos de reclusão sofridos.

Alega:

 De facto, na douta acusação pública apenas se refere, no item 7, a condenação anterior sofrida pelo arguido, para concluir, no item 65, que: “de acordo com as circunstâncias descritas são de lhe censurar as condutas em apreço, pois as mesmas são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime”. O Tribunal a quo conclui também que as condutas em apreço são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime.

Ora, não sendo a prática dos factos pelos quais foi condenado sinónimo da violação da advertência que para ele decorre da anterior condenação, não resulta dos mesmos que o arguido não tenha interiorizado o “aviso” contido em tal condenação, não se verificando, por isso, o requisito da reincidência porque para se concluir que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime não basta a demonstração de factualismo concreto que estabeleça uma relação entre a falta de efeito de condenação anterior e o novo crime, designadamente que o arguido se vem dedicando à prática de crimes contra o património, sem ter dado provas de pretender abandonar essa actividade delituosa. Não obstante se verificarem os pressupostos formais da reincidência não se verifica o pressuposto material cuja natureza material e não fáctica significa, por um lado, que integra inequivocamente questão de direito e, por outro, que a respectiva verificação carece da apreciação e prova de factos concretos e específicos de cada situação, necessariamente inscritos em impulso acusatório prévio.

Analisando:

Explana-se pormenorizadamente  no Acórdão: deste Supremo, e desta Secção, de 12-09-2007, Processo: 07P2601, in www.dgsi.pt o que consta do respectivo sumário que se transcreve:

  “ I - Como resulta do n.º 4 do art. 339.º do CPP, a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os arts. 368.º e 369.º do referido diploma legal.

II - A exigência constante da parte inicial do n.º 2 do art. 374.º do CPP visa garantir que o tribunal contemplou, ou considerou especificadamente, todos os factos que foram submetidos à sua consideração.

III - Como é jurisprudência dominante, a reincidência não opera como mero efeito automático das anteriores condenações, não sendo suficiente erigir a história delitual do arguido em pressuposto automático da agravação (Acs. do STJ de 20-09-1995, Proc. n.º 48167, de 12-03-1998, BMJ 474.º/492, de 15-12-1998, CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 241, de 27-09-2000, BMJ 499.º/132, de 15-03-2006, Proc. n.º 119/06 - 3.ª, de 12-07-2006, Proc. n.º 1933/06 - 3.ª, e de 24-01-2007, Proc. n.º 4455/06 - 3.ª).

IV - De acordo com o art. 75.º do CP, com a redacção que lhe foi conferida pelo DL 48/95, de 15-03, são pressupostos formais desta agravante:

- a prática, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, de crime doloso;

- a punição com pena de prisão efectiva superior a 6 meses;

- a condenação anterior transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso;

- um lapso de tempo não superior a 5 anos entre a prática do crime anterior e a do seguinte.

V - Para além dos citados pressupostos formais, acresce um pressuposto substantivo ou material, conforme prescreve a parte final do n.º 1 do citado preceito: a punição na forma agravada só terá lugar «se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime».

VI - Segundo Maia Gonçalves (Código Penal Anotado, 16.ª edição, págs. 268-269), exige-se expressamente, para que a reincidência funcione, a verificação de que a condenação ou condenações anteriores não constituíram suficiente advertência contra o crime, tratando-se manifestamente de uma prevenção especial. Faz-se assim a exigência da concreta verificação do funcionamento desta qualificativa, o que implica indagação da correspondente matéria de facto.

VII - Para Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal, Parte Geral, II, Verbo, 1989, págs. 151-152), a fundamentação da agravação está na falta de eficácia da pena aplicada pelo primeiro crime, sendo a nova condenação o indício relevante da falta de efectiva adesão do delinquente às injunções da lei.

VIII - Retomando esta ideia, Germano Marques da Silva (Direito Penal Português, Parte Geral, III, pág. 154) adianta que tal indício não vale por si só, sendo necessário que, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente seja de censurar por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente motivação para não praticar novos crimes.

IX - Ainda segundo Cavaleiro Ferreira, ibidem, a alteração da pena aplicável não é imposta por lei, mas terá lugar se as circunstâncias do caso concreto revelarem, na apreciação do tribunal, que a condenação anterior não constituiu suficiente prevenção contra o crime. Acrescenta que a reincidência denuncia a insuficiência da prevenção contra o crime da condenação anterior.

X - Como expendia Eduardo Correia (Direito Criminal, II, pág. 162), para além ou em vez da propensão criminosa, a que a declaração de habitualidade também atende, há sempre, assim, que considerar o desrespeito pela advertência contida na condenação.

XI - A este propósito, Figueiredo Dias (Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pág. 268) afirma: «É no desrespeito ou desatenção do agente por esta advertência que o legislador vê fundamento para uma maior censura e portanto para uma culpa agravada relativa ao facto cometido pelo reincidente. É nele, por conseguinte, que reside o lídimo pressuposto material – no sentido de «substancial», mas também no sentido de pressuposto de funcionamento “não automático” – da reincidência».

XII - Impõe-se, por isso, para demonstração desta qualificativa, uma específica comprovação factual, uma enunciação de factos concretos dos quais se possa retirar a ilação de que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime, veiculada pela anterior condenação e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor.

XIII - A agravação da pena assenta, essencialmente, numa maior disposição para o crime, num maior grau de culpa, decorrente da circunstância de, apesar de ter sido condenado em prisão efectiva, insistir em delinquir, donde resulta um maior grau de censura, por a condenação não ter constituído suficiente advertência, não se ter revelado eficaz na prevenção da reincidência. E só através da análise do caso concreto, do seu específico enquadramento, de uma avaliação judicial concreta das circunstâncias, se poderá concluir estarmos perante um caso de culpa agravada, devendo o arguido ser censurado por a condenação anterior não lhe ter servido de suficiente advertência contra o crime, ou, antes, uma situação em que inexiste fundamento para a agravação da pena, por se tratar de simples pluriocasionalidade.

XIV - No condicionalismo da parte final do n.º 1 do art. 75.º do CP encontra-se espelhada a essência da reincidência, sendo, precisamente, face à necessária análise casuística que se distinguirá o reincidente do multiocasional. A pluriocasionalidade verifica-se quando a reiteração na prática do crime seja devida a causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas, que não se radicam na personalidade do agente, em que não se está perante a formação paulatina do hábito enraizada na personalidade, tratando-se antes de repetição, de renovação da actividade criminosa, meramente ocasional, acidental, esporádica, em que as circunstâncias do novo crime não são susceptíveis de revelar maior culpabilidade, em que desaparece a indiciação de especial perigosidade, normalmente resultante da reiteração dum crime.

XV - Assim, o acórdão que, na apreciação da verificação da qualificativa reincidência, omite por completo qualquer abordagem sobre a configuração de substracto fáctico susceptível de corporizar a qualificativa da reincidência é nulo, por violação do comando do n.º 2 do art. 374.º do CPP, e por omissão de pronúncia sobre questão que devia apreciar, nos termos do art. 379.º, n.º 1, als. a) e c), do CPP, nulidades que são de conhecimento oficioso. “

            Na verdade, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto –, e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 28-02-2007, Proc. n.º 9/07 - 3.ª, de 16-01-2008, Proc. n.º 4638/07 - 3.ª, de 26-03-2008, Procs. n.ºs 306/08 - 3.ª e 4833/07 - 3.ª,, de 04-06-2008, Proc. n.º 1668/08 - 3.ª, e de 04-12-2008, Proc. n.º 3774/08 - 3.ª.

“Tem sido sufragada, sem dissidências, pelo STJ a doutrina segundo a qual «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa. Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores. Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível. Desta maneira é a distinção criminológica entre o verdadeiro reincidente e o simples multiocasional que continua aqui a jogar o seu papel» (v.. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 268. e Acórdão deste Supremo e desta Secção, de 18-06-2009, proc 159/08.9PQLSB.S1)

           

            A decisão recorrida fundamenta da seguinte forma: “à excepção do crime de burla na forma tentada, relativo a CC – punível com pena especialmente atenuada, nos termos dos arts. 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, a) e b), ou seja, entre o mínimo de 1 mês e o máximo de 5 anos e 4 meses –, aos demais é aplicável uma pena abstracta de 2 a 8 anos.

Porém, há que considerar a questão da reincidência. Prevê o art. 75.º, n.º 1, que “é punido como reincidente quem, por si só ou sob qualquer forma de comparticipação, cometer um crime doloso que deva ser punido com pena de prisão efectiva superior a 6 meses, depois de ter sido condenado por sentença transitada em julgado em pena de prisão efectiva superior a 6 meses por outro crime doloso, se, de acordo com as circunstâncias do caso, o agente for de censurar por a condenação ou as condenações anteriores não lhe terem servido de suficiente advertência contra o crime”. Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo exige que, entre a prática dos dois crimes, não tenham decorrido mais de 5 anos, excluído o tempo em que o agente tenha estado privado de liberdade.

No caso, o arguido praticou vários crimes de burla, datando o mais recente de Novembro de 2001, pelos quais foi condenado em pena de prisão efectiva a 7 de Fevereiro de 2003, pena que cumpriu de 22 de Janeiro de 2002 até 31 de Julho de 2006, data em que saiu em liberdade condicional. Sendo os primeiros factos destes autos de Setembro/Outubro de 2008 – ou seja, 2 anos e 2 meses depois da libertação do arguido – e só tendo decorrido 2 meses entre a prática do último crime e o início do cumprimento da pena de prisão, é evidente que, descontado o tempo de privação da liberdade, não decorreram mais de 5 anos entre a prática dos dois crimes.

Estando demonstrado, no caso, que as condenações anteriores não serviram para o dissuadir de voltar à senda do crime – usando, até, os mesmos estratagemas… –, tem de se concluir que o arguido deve agora ser punido como reincidente.

Ora, nos termos do art. 76.º, n.º 1, “em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado”, sendo que a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Tal significa que as penas abstractas aplicáveis a cada um dos cinco crimes de burla qualificada passam a ser de 2 anos e 4 meses a 8 anos de prisão, e para o crime de burla na forma tentada, 1 mês e 10 dias a 5 anos e 4 meses de prisão. “

Como refere Figueiredo Dias, (ibidem, pág. 269):

 “Decisiva será em todas as situações, a resposta que o juiz encontre para a questão e saber se ao agente deve censurar-se o não se ter deixado motivar pela advertência contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores”

E, na verdade, atenta as condenações havidas, pelo mesmo tipo de crime, uma delas geradora de cumprimento de pena de prisão, e apesar de ter beneficiado da liberdade condicional, continuou a praticar idênticos ilícitos criminais, e procedendo os demais pressupostos legais da reincidência, nos termos do artº 75º nºs 1 e 2 do CP, verifica-se que o arguido revela tendência criminosa para a prática do crime de burla, não constituindo as condenações anteriores, mormente a condenação em pena de prisão, suficiente prevenção da prática dos crimes agora em apreço.

O objecto do processo submetido a pretório, ficou definido com o despacho que designou dia para audiência de discussão e julgamento.

            Vêm provados “factos de conexão material entre a reiteração criminosa e o fracasso do efeito admonitório do cumprimento de pena de prisão”.

            A factualidade apurada fornece conteúdo fáctico justificativo da existência da agravante especial da reincidência, pois os elementos fácticos provados são “idóneos a suportar a afirmação do pressuposto material da reincidência”  

Não tem suporte legal “que o Tribunal a quo não podia concluir, como concluiu, que as condutas do arguido são indicativas de que a condenação anterior não lhe serviu de suficiente advertência contra a prática do crime.”.

Pelo contrário era-lhe legalmente possibilitado que o fizesse, como efectivamente fez.


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III - Relativamente à questão do crime continuado

Pretende o recorrente que os crimes pelos quais foi condenado integram não a prática de cinco crimes de burla qualificada e um crime de burla qualificada na forma tentada, mas antes um único crime continuado.

            Alega que “a actuação do arguido traduz-se numa pluralidade de actos de execução de um mesmo tipo legal, em que se verifica uma homogeneidade do modo de comissão, que conforma como que um dolo continuado, apresentando-se como um fracasso psíquico sempre homogéneo, do agente perante a mesma situação de facto, não revelando o mesmo uma personalidade que se deixe facilmente sucumbir perante situações externas favoráveis, sendo certo que por essa fragilidade supera facilmente o grau de inibição relativamente a comportamentos que preencham um tipo legal de crime, a que acresce o facto de os crime pelos quais foi condenado ocorreram, três em Setembro de 2008, dois em Dezembro de 2008 e o último em Agosto de 2009, não sendo conhecida a prática de qualquer outro crime após as sobreditas datas.

Assim, salvo melhor entendimento, afigura-se-lhe que o arguido recorrente praticou apenas um crime. Pois, a conduta do recorrente foi devida a facilidades exteriores, num quadro de solicitação de uma situação exterior que lhe diminui consideravelmente a sua culpa, tratando-se, pois, de crime continuado.

Analisando:

            Conforme artº 30º do CP:

1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, o pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

            2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

Perfilha-se o chamado critério teleológico para distinguir entre unidade e pluralidade de infracções, sendo certo que o nº 1 sofre duas importantes ordens de restrições: os casos de concurso aparente de infracções e de crime continuado.

Nos casos de concurso aparente, são formalmente violados vários preceitos incriminadores, ou é várias vezes violado o mesmo preceito. Mas esta plúrima violação é tão-só aparente; não é efectiva, porque resulta da interpretação da lei que só uma das normas tem cabimento, ou que a mesma norma deve funcionar uma só vez. Apontam-se diversas regras, das quais as mais indiscutidas são as da especialidade e da consunção, para delimitar estes casos.(…)

Nos casos de crime continuado existe um só crime porque, verificando-se embora a violação repetida do mesmo tipo legal ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime, a culpa está tão acentuadamente que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular.

A diminuição considerável da culpa do agente deve radicar em solicitações de uma mesma situação exterior que o arrastam para o crime, e não em razões de carácter endógeno.” – Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado – Legislação Complementar, 18ª edição, 2007, p. 154 e 155, notas 2 e 3.

Refere Eduardo Correia, Direito Criminal II, Reimpressão,Livraria Almedina, Coimbra – 1971, § 10.°, 35, p. 201 e seg.: “O problema é evidentemente, o da determinação da ilicitude material. (…) para que uma conduta se possa considerar como constituindo uma infracção não basta, como sabemos, que seja antijurídica; é ainda necessário que seja culposa, que possa ser reprovada ao agente. Ora pode acontecer que o juízo concreto de reprovação tenha de ser formulado várias vezes em relação a actividades subsumíveis a um mesmo tipo legal de crime, a actividades, portanto, que encarnam a violação do mesmo bem jurídico. E encontramos, assim, a culpa como elemento limite da unidade de infracção; a unidade de tipo legal preenchido não importa definitivamente a unidade da conduta que o preenche; pois sendo vários os juízos de censura, outras tantas vezes esse mesmo tipo legal se torna aplicável e deverá, por conseguinte, considerar-se existente uma pluralidade de crimes.

Como, porém, determinar a existência de uma unidade ou pluralidade de juízos de censura?”

O critério será “o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de que para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.”

E acrescenta (36, p. 203 e segs)  “(…) a unidade ou pluralidade de tipos legais a que pode subsumir-se uma certa relação da vida constitui o critério decisivo para fixar a unidade ou pluralidade de infracções. Mas, assim como da violação de uma só norma ou de um só artigo da lei penal não é lícito, sem mais, concluir pela realização de um só tipo e portanto de um só crime, do mesmo modo a violação de várias disposições pode só aparentemente indicar o preenchimento de vários tipos e a correspondente existência de uma pluralidade de infracções. E por aqui somos conduzidos ao estudo do chamado concurso aparente de infracções. “

            A temática do crime continuado, como se sabe, desenvolve-se a partir da influência de Birnbaum e Honig sobre a teoria do bem jurídico, com que se relaciona.

Em termos comparados com o concurso aparente de infracções, poderá questionar-se  no caso de haver pluralidade de resoluções criminosas, se esta, em certas situações e mediante determinados pressupostos não será meramente aparente, em que a justiça e a economia processual aconselhem a verificação de um só crime.

Segundo ensina Eduardo Correia (Ibidem, p, 203 e segs), a solução da questão passa por duas vias fundamentais: uma ligada à teoria do crime nos seus princípios gerais, em que se procura “deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado – e teremos então uma construção lógico-jurídica do conceito”, sendo que nesta perspectiva distinguem-se as teorias subjectivas - em que “o elemento aglutinador das diversas condutas que forma o crime continuado seria a “unidade de determinação da vontade “ (Schroeder) ou a “unidade de resolução” (Mittermaier)” – e, as teorias objectivas, em que o elemento aglutinador residiria “na homogeneidade das condutas (Woeringen), na indivisibilidade (Scwartz) ou na unidade de objecto (Merkel)  “

A outra via encontra-se ligada a uma construção teleológica do conceito e, atende antes a uma diminuição da gravidade revelada pela situação concreta, perante o concurso real de infracções, tentando encontrar a resposta no menor grau de culpa do agente.

A perspectiva teleológica é considerada, metodologicamente a melhor para resolver o problema, sendo que “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”, desde que “se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.”

O mesmo Insigne Autor elenca como situações exteriores típicas da unidade criminosa da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e sendo sempre a “diminuição considerável da culpa”, como ideia fundamental, as seguintes:

“a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;

b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;

            c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;

            d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar  que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.”

            A conexão espacial e temporal das actividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos actos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros)

“Decisivo é, pelo contrário, que as diversas actividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico: este será o limite de toda a construção.”

            Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 139, nota 29: “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.”

É certo que como refere o recorrente “Vem provado que o recorrente na sequência do plano concebido apresentando-se como “doutor da Segurança Social” alegava que tratava de reformas”, mas já não corresponde à verdade que fosse “por uma só vez que o recorrente resolveu agir por modo contrário ao imperativo da norma dos artigos 217.º e 218.º do Código Penal, o de obter enriquecimento ilegítimo através de engano que levou outrem a sofrer prejuízo.”

O arguido executou todas as suas actividades após ter de renovar o respectivo processo de motivação, ou seja, todos os variados actos por si levados a cabo obedeceram e foram consequência de várias resoluções, quando engendrou abordar os ofendidos alegando ser doutor e tratar de reformas, em cuja execução aqueles actos foram praticados, resultando cada acto praticado de renovação da reiteração para a sua execução, e, por conseguinte, ocorreu pluralidade de infracções.

Por outro lado, nunca poderia in casu proceder o crime de burla na forma continuada pela simples razão da inexistência de situação exterior que diminuísse sensivelmente a culpa do arguido e que o motivasse na execução reiterada do propósito criminoso,

Donde, não podia o arguido ter sido condenado pela prática de um crime de burla na forma continuada

IV - Por último e sobre a medida questionada das penas.

O recorrente questiona as medidas concretas das penas parcelares, e da pena obtida em cúmulo jurídico, que considera manifestamente exageradas, alegando ser nítida a violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P. pelo menos, em termos de culpa, extraída dos elementos de prova supra referidos, não realizando nenhum dos fins das penas; a entender-se que o arguido praticou os seis crimes de burla, impõe-se a aplicação de uma pena única não superior a 5 (cinco) anos de prisão, a qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade. Tal pena de uma pena única de anos 5 (cinco) anos de prisão, deverá ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova.

            Analisando:

            A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º nº 1 do C.Penal.

            O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Na lição de Figueiredo Dias ( Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime- Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

           As penas como instrumentos de prevenção geral são “instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução”, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar (idem, ibidem, p. 84)

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – in ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.- v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.

Por outro lado, como salienta o mesmo Distinto Professor, a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais. Porém, “não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma de pena apenas podendo” surgir como um efeito lateral (porventura desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos.” (ibidem, p. 118)

            Mas, em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.

A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, ibidem, p. 117)

O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa  relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

Segundo o mesmo Ilustre Professor  –As Consequências Jurídicas do Crime, §55  “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.

Como resulta, v. g. do Ac. deste Supremo e Secção, de  15-11-2006, Proc. n.º 3135/06,  o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, estabelece, que:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

            Consta da decisão recorrida:

            “Face às penas aplicáveis, unicamente de prisão, não cabe chamar à colação o disposto no art. 70.º.

Para fixação da pena concreta, e nos termos do art. 71.º, n.º 2, concorrem contra o arguido o dolo directo, a gravidade das consequências dos crimes (a perda patrimonial dos ofendidos), os fins que determinaram a prática dos crimes (obtenção de lucro fácil), a conduta anterior aos factos (em tudo semelhante, e já censurada com a aplicação ao arguido de uma pena de prisão efectiva, o que reforça as necessidades de prevenção especial) e a posterior àqueles (face à manifesta irrelevância prática da sua confissão).

A favor do arguido, apenas a sua débil condição económica.

Assim, entende-se que as penas a aplicar devem reflectir a gravidade das condutas do arguido, sendo maiores quando também o foi o prejuízo causado aos ofendidos; por isso, mostram-se adequadas as seguintes penas:

- para o crime relativo a DD, 3 anos e 6 meses de prisão;

- para o relativo a BB, 5 anos de prisão;

- para o relativo a GG, 4 anos e 3 meses de prisão;

- para o respeitante aos irmãos ..., 3 anos de prisão;

- para o relativo a HH, 3 anos e 8 meses de prisão;

- para a burla na forma tentada, 10 meses de prisão.

Nos termos do art. 77.º, n.º 1, e importando proceder ao cúmulo jurídico destas penas, tendo em conta o que fica dito e os limites do n.º 2 do mesmo artigo – o mínimo de 5 anos de prisão e o máximo de 20 anos e 3 meses de prisão –, julga-se adequada a pena única de 9 anos de prisão. “

            Valem as razões assinaladas na decisão recorrida.

           

Tem-se ainda em conta que:

A família de origem do arguido tinha uma situação económica equilibrada, oscilando a educação entre o autoritarismo do pai (funcionário público) e a proteção da mãe. Concluiu o curso geral de comércio com cerca de 18 anos e começou a trabalhar no Centro Regional de Segurança Social de Braga, onde permaneceu até ser demitido. Teve um fraco desempenho laboral e um relacionamento superficial com os colegas de trabalho, revelando para com estes atitudes de superioridade e junto de quem contraía pequenas dívidas, que não pagava; o rendimento de trabalho do arguido contrastava com alguns sinais exteriores de riqueza do seu agregado.

O arguido casou a primeira vez aos 22 anos, relação extinta volvidos 18 meses e da qual resultou uma filha actualmente com 30 anos, que se encontra a trabalhar no estrangeiro; a primeira mulher do arguido faleceu em 2007. Casou novamente em 1985, tendo outra filha, e o divórcio ocorreu em 1998; o arguido não colaborava nas despesas de casa, não conseguia gerir o seu vencimento e passou a frequentar estabelecimentos de diversão nocturna e a ter contactos com alguns indivíduos associados a práticas ilícitas. Em liberdade condicional, reatou o relacionamento com a segunda ex-mulher, passando a coabitar com esta e com a filha mais nova, em Braga, situação que manteve até Maio de 2008. Após nova ruptura, o arguido passou a viver num quarto arrendado próximo da Universidade do Minho, que partilha com dois outros homens e pelo qual paga cerca de € 145,00 por mês. Sem actividade profissional regular, realiza alguns trabalhos enquanto motorista de pessoa idosa, ex-empresário, que integra o seu grupo restrito de amigos e lhe paga habitualmente o almoço; é beneficiário do RSI desde Outubro de 2009, recebendo € 178,00 por mês e aderindo ao respectivo programa de acompanhamento. No âmbito laboral, apresenta projetos utópicos e um discurso de grandiosidade. Mantém relação próxima com a filha mais nova

As exigências de prevenção geral são fortes, atenta a dissuasão da prática de crimes de burla, visando sobretudo pessoas idosas.

            As exigências de prevenção especial são intensas, atenta a reincidência do arguido e a necessidade de socialização.

            Bastante intensa é a culpa limite da pena.

            Como a decisão já tinha assinalado a propósito da reincidência, à excepção do crime de burla na forma tentada, relativo a CC – punível com pena especialmente atenuada, nos termos dos arts. 23.º, n.º 2, e 73.º, n.º 1, a) e b), ou seja, entre o mínimo de 1 mês e o máximo de 5 anos e 4 meses –, aos demais é aplicável uma pena abstracta de 2 a 8 anos.

[…]

Ora, nos termos do art. 76.º, n.º 1, “em caso de reincidência, o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterado”, sendo que a agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores. Tal significa que as penas abstractas aplicáveis a cada um dos cinco crimes de burla qualificada passam a ser de 2 anos e 4 meses a 8 anos de prisão, e para o crime de burla na forma tentada, 1 mês e 10 dias a 5 anos e 4 meses de prisão. “

 

Todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Não falta, todavia, quem sustente que a valoração judicial das questões de justiça ou de oportunidade estariam subtraídas ao controlo do tribunal de revista, enquanto outros distinguem: a questão do limite ou da moldura da culpa estaria plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, para controlo do qual o recurso de revista seria inadequado. Só não será assim, e aquela medida será controlável mesmo em revista, se, v.g., tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada. ( Figueiredo Dias in Direito Penal Português -As consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, § 278, p. 211, e Ac. de 15-11-2006 deste Supremo, , Proc. n.º 2555/06- 3ª)

            Tendo em conta o exposto, conclui-se que as penas parcelares aplicadas não se revelam desajustadas ou excessivas.

            V- Sobre a pena do cúmulo

            Como se sabe, o artigo 77º nº 1 do Código Penal, estabelece as regras da punição do concurso, dispondo: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

Na verdade, não tendo o legislador nacional optado pelo sistema da acumulação material, é forçoso concluir que com a fixação da pena unitária pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda que se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente. (v. artºs 77º nº 1 e, 78º nº1, ambos do CP)

O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

Afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.

Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

As qualidades da personalidade do agente manifestada no facto devem ser comparadas com as supostas pela ordem jurídica e a partir daí se emitam juízos, mais fortes ou mais acentuados, de valor ou desvalor.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)» -Figueiredo Dias, ibidem; e v.g. Acs de 11-10-2006 e de 15-11-2006 deste Supremo e Secção, Proc. n.º 1795/06, e Proc. n.º 3268/04.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado. (v.Ac. deste Supremo e desta 3ª Secção, de 09-01-2008 in Proc. n.º 3177/07 )

            Valorando o ilícito global perpetrado, na ponderação conjunta dos factos e personalidade do arguido, tendo em conta a natureza e gravidade dos crimes praticados, pelo modo de execução e pela selecção das vítimas, as penas aplicadas, a personalidade do arguido projectada nos factos e manifestada por eles, que fazem concluir que a prática dos crimes provêm de tendência criminosa do arguido, o efeito previsível da pena no comportamento futuro do arguido, face às fortes exigências de socialização e tendo ainda em conta  os limites da pena concretamente aplicável, sendo o mínimo de 5 anos de prisão e o máximo de 20 anos e 3 meses de prisão, não se revela desproporcional a pena única aplicada de 9 anos de prisão.

            O recurso não merece provimento.


-

            Termos em que, decidindo.

           

            Acordam os juízes deste Supremo – 3ª Secção – em negar provimento ao recurso, e confirmam a decisão recorrida.

            Tributam o recorrente em 6 UC de taxa de justiça

           

            Supremo Tribunal de Justiça, 3 de Dezembro de 2014

          Elaborado e revisto pelo relator

                                                          
Pires da Graça (relator)
Raul Borges