Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2147/16.2T8LRA.C2.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
BANCO PORTUGUÊS DE NEGÓCIOS
OBRIGAÇÕES SLN
DEPÓSITO A PRAZO
CONTRADIÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
OBSCURIDADE DA MATÉRIA DE FACTO
CAPITAL GARANTIDO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/08/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: BAIXA DOS AUTOS À RELAÇÃO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA TESTEMUNHAL / PRODUÇÃO DA PROVA TESTEMUNHAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS / JULGAMENTO DO RECURSO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 410.º, 516.º, 607.º, N.ºS 3, 4 E 5, 640.º, 662.º, N.ºS 2, ALÍNEA C) E 3, 663.º, N.º 2 E 682.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 10-04-2018, PROCESSO N.º 753/16;
- DE 18-09-2018, PROCESSOS N.º 20403/16.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 12-09-2017, PROCESSO N.º 986/16, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:

- DE 10-10-2017, PROCESSO N.º 4042/16, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:

- DE 08-03-2018, PROCESSOS N.º 1820/16, IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I. O acórdão da Relação que aprecia a impugnação da decisão da matéria de facto não pode gerar uma contradição entre o que se considere “provado” e “não provado” que inviabilizem a aplicação do direito.

II. Verifica-se essa contradição quando a Relação, alterando a decisão da matéria de facto, considerou “provado” que “o BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN”, mantendo intacto o segmento no qual se considerava “não provado” que “antes de o A. subscrever a obrigação, o funcionário do BPN disse-lhe que a aplicação tinha capital garantido pelo BPN”.

III. A decisão da matéria de facto deve retratar, de forma clara, a realidade que se considera provada, o que designadamente fica prejudicado com a utilização de expressões polissémicas, geradoras de obscuridade, por falta de contextualização.

IV. Num contexto em que, além do mais, se alegou que o “gerente do Banco R. disse ao A. que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo BPN e com rentabilidade assegurada” e que o que “motivou a autorização, por parte do A., foi o facto de lhe ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco R.”, atuando “convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, por isso, num produto com risco exclusivamente do Banco R.”, é deficiente, por obscuridade decorrente da falta de contextualização, a decisão de facto que, a esse respeito, se limita a considerar provado que “o BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN”.

Decisão Texto Integral:
I - AA e BB intentaram ação declarativa contra BANCO CC, S.A., pedindo:

a) A condenação do R. a pagar-lhes o valor do capital e juros vencidos e garantidos, no montante de e 57.000,00 à data da instauração da ação, com juros vincendos desde a citação até integral pagamento.

Subsidiariamente pediram:

b) A declaração de nulidade de qualquer eventual contrato de adesão que o R. invoque para ter aplicado os € 50.000,00 que os AA. lhe entregaram em obrigações subordinadas SLN 2006;

c) Que seja declarada ineficaz em relação aos AA. a aplicação que o R. tenha feito desses montantes;

d) A condenação do R. a restituir aos AA. € 57.000,00 que ainda não receberam dos montantes que entregaram ao R. e de juros vencidos à taxa contratada, acrescidos de juros legais vincendos, desde a data da citação até integral cumprimento;

Cumulativamente pediram:

e) A condenação do R. a pagar-lhes a quantia de € 3.000,00 a título de dano não patrimonial.  


Alegaram os AA. que eram clientes do R. na sua agência de …, com uma conta à ordem onde movimentavam parte dos dinheiros, realizavam pagamentos e efetuavam poupanças.

Em Abril de 2006 o gerente dessa agência disse ao A. que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo BPN e com rentabilidade assegurada. O dito funcionário sabia que o A. não possuía qualificação ou formação técnica que lhe permitisse à data conhecer os diversos tipos de produtos financeiros e avaliar os riscos de cada um deles, a não ser que lhos explicassem devidamente. E sabia que tinha um perfil conservador no que respeitava ao investimento do seu dinheiro, sendo que até essa data sempre o aplicou em depósitos a prazo.

Sucede que o seu dinheiro – € 50.000,00 – veio a ser colocado em obrigações SLN 2006, sem que o A. soubesse, em concreto, o que era, desconhecendo inclusivamente que a SLN era uma empresa. O que motivou a autorização do A. foi o facto de lhe ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco R., com juros semestrais, e que poderia levantar o capital e respetivos juros quando assim o entendesse, bastando avisar a agência com a antecedência de 3 dias.

O A. atuou convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, por isso, num produto com risco exclusivamente do Banco R. Se o A. tivesse percebido que poderia estar a dar ordem de compra de obrigações SLN 2006, produto de risco e que o capital não era garantido pelo BPN, não o autorizaria.

Em Maio de 2015 o Banco R. deixou de pagar os juros respetivos, passando a atribuir a responsabilidade pelo pagamento à SLN, entidade que os AA. nem sabiam existir. Os AA. não foram informados sobre a compra das obrigações subordinadas SLN 2006 e nunca o gerente ou funcionários do R. nem ninguém lhes leu ou explicou o que eram obrigações e, em concreto, o que eram obrigações SLN 2006.

O R. colheu a assinatura do A. num subscrito que terá sido preenchido pelo gerente da agência sem que lhe tenha sido lido nem explicado, nem entregue cópia que contivesse cláusulas sobre obrigações subordinadas SLN. Nunca conheceram qualquer título demonstrativo de que possuíam obrigações SLN, não lhes tendo sido entregue documento correspondente. Tais eventuais documentos, a existirem, só podem ser contratos de cláusulas gerais, cujas assinaturas feitas, nas condições descritas, não têm validade, por os contratos serem nulos.


O R. contestou, alegando a prescrição do direito invocado pelos AA., argumentando que qualquer direito sobre o intermediário financeiro por eventual responsabilidade em transação em que haja intervindo prescreve no prazo de 2 anos a contar do conhecimento da conclusão da operação.

Alegou ainda que o negócio descrito na petição inicial constituiu um ato de intermediação financeira pelo qual cumpriu ordens dadas pelos seus clientes, no sentido de subscrição de obrigações SLN 2006. Que as informações prestadas foram verdadeiras e nunca o R. agiu perante os AA. com intenção de os enganar ou prejudicar ou sequer de omitir informação relevante de forma consciente, e que qualquer tipo de deficiência de informação prestada, a ter existido, sempre existiu apenas a título de mera negligência ou culpa leve.

Os AA. eram titulares de conta bancária junto do R. e desde sempre mostraram apetência por investimentos em aplicações financeiras, ainda que de baixo risco, nomeadamente em valores mobiliários. Mesmo não tendo formação específica em área financeira, os AA. tinham conhecimentos e experiência suficientes para um tal tipo de investimento, com conhecimento da respetiva natureza, riscos e maior rentabilidade relativamente a um vulgar depósito a prazo.

O produto dado à subscrição dos AA. era seguro, acabando o seu incumprimento por ser determinado por circunstâncias completamente imprevisíveis e anormais, como uma nacionalização e a forma como essa nacionalização foi determinada, separando o Banco do restante grupo de empresas.

Os AA. foram contactados pelo seu gestor para oferta da possibilidade de subscrever o produto aqui em causa, constituindo esse produto valores mobiliários em representação de dívida da sociedade emitente, tendo explicado de que se tratava da sociedade-mãe do Banco, pelo que se tratava de um produto seguro. O gestor apresentou as condições do produto, concretamente a remuneração vantajosa relativamente aos depósitos a prazo, prazo, condições de reembolso e obtenção de liquidez ao longo do prazo de 10 anos, que apenas seria possível por via de endosso. Os AA. foram total e exaustivamente esclarecidos sobre as condições do produto de forma acompanhada com a respetiva nota técnica. E sabiam que não tinham um depósito a prazo ou sequer algo parecido com um depósito a prazo. Nunca o R. disse aos AA. que garantiria fosse o que fosse quanto ao cumprimento ou incumprimento das obrigações da SLN.

Os AA. estavam habituados a subscrever produtos financeiros diferentes de meros depósitos a prazo. O R. sempre explicou todos os formulários dados a assinar aos AA. A subscrição de obrigações SLN não foi sujeita a qualquer tipo de contrato de adesão ou qualquer tipo de formulário de cláusulas contratuais gerais. Sendo um contrato entre os AA. e a SLN (não o Banco), não se corporizou num qualquer escrito, mas apenas numa proposta da SLN, veiculada pelo Banco R., e numa aceitação dos AA., corporizada numa ordem de subscrição de títulos. Não existiu qualquer contrato de adesão ou quaisquer cláusulas contratuais gerais, além das condições gerais da emissão de valores mobiliários.


Os AA. responderam ao invocado pelo R., defendendo que a prescrição deve ser julgada improcedente, uma vez que a informação fornecida pelo R. dava conta de que estava assegurado o reembolso por parte do R. do capital investido, tendo o R. violado os ditames da boa fé.

O R. atuou como intermediário financeiro, o que afasta a aplicabilidade do prazo de 2 anos de prescrição em caso de dolo ou culpa grave, sendo o prazo prescricional de 20 anos. Ademais, para o início do cômputo do prazo, é necessário que o lesado tenha conhecimento das características dos produtos subscritos, o que não acontecia com os AA.

Ainda que se considere aplicável o art. 324º, nº 2, do CVM, a atuação dos funcionários do R. atinge o patamar da culpa grave, posto que a omissão das características diferenciadoras das obrigações face aos depósitos a prazos constitui violação grave dos deveres que sobre aqueles impendem no sentido do esclarecimento responsável do tipo de produtos que comercializam, em razão da específica formação técnica de que aqueles dispõem. Como há violação do direito à informação por parte do Banco R., ocorre culpa grave deste, a qual se presume.

Atento o disposto no art. 325º, nº 1, do CC, a prescrição é interrompida pelo reconhecimento do direito, o que resulta do facto de o R. ter pago os juros aos AA. até ao ano de 2015. Além disso, os funcionários do R., até ao ano de 2015, reconheciam que o R. iria restituir à 1ª A. o valor reclamado, assegurando o reembolso. Tal reconhecimento interrompeu a prescrição, assim se inutilizando todo o tempo decorrido entre 2009 e 2015, começando a correr novo prazo no dia seguinte a essa data.

Por fim, só em finais do ano de 2015 é que os AA. tiveram conhecimento dos exatos termos e condições do produto adquirido através da R. À data da propositura da presente ação, o direito dos autores não está prescrito.  


Foi proferida sentença que julgou improcedente a ação e absolveu o R. do pedido.


Os AA. apelaram e a Relação revogou a sentença e condenou o R. no pagamento da quantia de € 50.000,00 e juros vencidos e garantidos, a liquidar em sentença (até ao máximo de € 7.000,00) até à data da instauração da ação, e juros vincendos desde a citação até integral pagamento.

Conheceu ainda em primeira mão da exceção de prescrição, considerando-a a improcedente.


O R. interpôs recurso de revista suscitando no essencial:

- A falta de demonstração da ilicitude do comportamento dos funcionários que intervieram na intermediação financeira;

- A ausência de nexo de causalidade entre a atuação dos referidos funcionários e o dano que se manifestou apenas quando, depois de 10 anos de pagamento dos cupões da obrigação, a SLN entrou em insolvência e deixou de pagar o capital;

- Ausência de fundamento para concluir que uma eventual presunção de culpa sustentada no art. 799º do CC corresponde a uma presunção de causalidade entre a atuação e o dano;

- Inadequação de qualquer presunção de causalidade quando se trate de incumprimento de deveres acessórios;

- A falta de restituição do capital corresponde ao incumprimento do contrato de emissão obrigacionista celebrado entre o A. e a SLN e não ao contrato de execução de intermediação financeira;

- Falta de prova de que sem a violação do dever de informação o A. não celebraria o contrato ou celebraria um contrato diverso do que outorgou.


Houve contra-alegações.

Cumpre decidir.


II – Factos que a 1ª instância considerou provados:

1. Os AA. eram clientes do BPN, na sua agência de …, com a conta nº 21…01, onde movimentavam parte dos dinheiros, realizavam pagamentos e efetuavam poupanças.

2. Em 19-4-06, na agência do BPN das …, o A. subscreveu uma obrigação subordinada SLN 2006, no valor de € 50.000,00, cujo boletim tem o seguinte conteúdo:

BPN Banco Português de Negócios                  SLN 2006

BOLETIM DE SUBSCRIÇÃO

Emissão de obrigações subordinadas

NATUREZA DA EMISSÃO: emissão de até 1.000 obrigações subordinadas, ao portador e sob a forma escritural, com o valor nominal de € 50.000,00 cada uma, oferecidas diretamente ao público, ao preço unitário igual ao valor nominal.

A emissão será efetuada por uma ou mais séries de acordo com as necessidades do emitente e a procura dos investidores.

Não sendo totalmente subscrita, a presente emissão de obrigações ficará limitada às subscrições recolhidas

MÍNIMO DE SUBSCRIÇÃO: € 50.000,00 (1 obrigação)

PERÍODO DE SUBSCRIÇÃO: de 10 de abril a 5 de maio de 2006.

O período de subscrição terminará antes de 5 de maio de 2006, caso as ordens de subscrição recebidas perfaçam o montante total da emissão.

DATA DE LIQUIDAÇÃO FINANCEIRA: 8 de maio de 2006

PRAZO E REEMBOLSO: o prazo da emissão é de 10 anos, sendo o reembolso do capital efetuado em 9 de maio de 2016.

O reembolso antecipado da emissão só é possível por iniciativa da SLN – Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, SA, a partir do 5º ano e sujeito a acordo prévio do Banco de Portugal.

REMUNERAÇÃO: Juros pagos semestral e postecipadamente, às seguintes taxas:

Cupões                            Taxa anual nominal bruta

1º semestre                      4,5 %*

9 cupões seguintes          Euribor a 6 meses + 1,15%

Restantes semestres         Euribor a 6 meses + 1,50%

* Taxa Anual Efetiva Líquida: 3,632%

IDENTIFICAÇÃO DO SUBSCRITOR (…)

[em parte manuscrito]

….

ORDEM DE SUBSCRIÇÃO (…)

€ 50.000,00 (…)

ORDEM DE DÉBITO (…)

O BANCO  (…)       O SUBSCRITOR/O REPRESENTANTE DO SUBSCRITOR

(…)

3. O A. deslocou-se ao BPN para subscrever a obrigação referida em 2. na sequência de um telefonema de um funcionário do Banco que lhe disse ter disponível um produto com boa rentabilidade.

4. Antes de subscrever a obrigação referida em 2., o funcionário do Banco disse ao A. que a obrigação era semelhante a um depósito a prazo, mas com uma taxa de juro mais alta e um prazo mais alargado, ainda que pudesse recuperar o capital no prazo de uma semana.

5. No momento da subscrição da obrigação referida em 2., para os funcionários da Agência do BPN das …, o BPN e a SLN eram a mesma coisa por a SLN ser a dona do BPN, sendo a obrigação subordinada SLN-2006 um produto seguro, sem risco, com capital tão garantido como um depósito a prazo.

6. O capital que os AA. utilizaram para subscrever a obrigação referida em 2. não lhes foi devolvido.

7. O A., antes da subscrição da obrigação referida em 2., era tido pelos funcionários do BPN como um investidor conservador e cauteloso.

8. O que motivou a autorização do A. foi o facto de lhe ter sido dito pelo funcionário do Banco que o capital era garantido, com juros semestrais, e que poderia levantar o capital e respetivos juros quando assim o entendesse, bastando avisar a agência com a antecedência de não mais de uma semana.

9. O A. atuou convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação com as características de um depósito a prazo.

10. Em data não apurada, os juros da obrigação referida em 2. deixaram de ser pagos.


Factos que a Relação considerou provados, na sequência da apreciação da impugnação da decisão da matéria de facto (fls. 211 a 213, vº):

11. Os AA. não sabiam o que são obrigações;

12. O BPN não explicou aos AA. o que eram obrigações.

13. Os AA. não possuíam conhecimentos nem experiência suficientes para compreenderem o tipo de investimento que fizeram e ninguém lho explicou corretamente.

14. Ninguém explicou aos AA. que BPN e SLN eram duas entidades distintas e que investir em SLN era diferente de aplicar dinheiro no BPN.

15. O BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN.


Factos que a 1ª instância considerou “não provados e que a Relação manteve, por considerar que à impugnação de tal segmento da sentença, os AA. não cumpriram os ónus do art. 640º do CPC (fls. 211):

a) Antes de o A. subscrever a obrigação referida em 2. o funcionário do BPN disse-lhe que a aplicação tinha capital garantido pelo BPN;

b) O dito funcionário do R. sabia que o A. não possuía qualificação ou formação técnica que lhe permitisse à data conhecer os diversos tipos de produtos financeiros e avaliar os riscos de cada um deles, a não ser que lhos explicassem devidamente;

c) Quando subscreveu a obrigação referida em 2. o A. desconhecia a SLN e não sabia que se tratava de uma empresa,

d) Se o A. se tivesse apercebido que poderia estar a dar uma ordem de compra de obrigações SLN 2006, produto de risco e que o capital não era garantido pelo BPN, não a autorizaria;

e) Nunca foi intenção dos AA. investir em produtos de risco, como era do conhecimento do gerente e funcionários do R.;

f) Os AA. sempre estiveram convencidos que o R. lhes restituiria o capital e os juros quando os solicitasse.

g) …” (sobre os danos morais).


III – Decidindo:

1. No precedente recurso de apelação os AA. impugnaram a decisão da matéria de facto no sentido de serem eliminados os factos que a 1ª instância considerou “não provados” e que na sentença surgem sob as als. a) a g) (fls. 210, vº).

Relativamente a este segmento da impugnação, a Relação considerou que, “face ao incumprimento dos requisitos legais da impugnação factual, terá necessariamente tal impugnação, nesta parte, de ser rejeitada”.

Daqui resultou que se manteve intacto o segmento da sentença que integrava os factos que a 1ª instância considerou “não provados”.

Porém, os AA. pretenderam ainda que se considerassem “provados” os seguintes factos que foram por eles alegados:

- Os AA. não sabiam o que são obrigações;

- O Banco R. não explicou aos AA. o que eram obrigações.

- Os AA. não possuíam conhecimentos nem experiência suficientes para compreenderem o tipo de investimento que fizeram e ninguém lho explicou corretamente.

- Ninguém explicou aos AA. que BPN e SLN eram duas entidades distintas e que investir em SLN era diferente de aplicar dinheiro no BPN.

- O BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN.

Tal pretensão foi julgada procedente pela Relação que determinou que tais factos fossem aditados aos factos considerados “provados”.


2. O confronto entre o que as instâncias consideram “provado” e “não provado revela uma contradição que urge resolver.

A decisão da matéria de facto deve ser coerente. Assim acontece na sentença, por força do art. 607º, nº 4, do CPC, na parte em que se determina que deve ser “compatibilizada toda a matéria de facto adquirida”, norma que é aplicável ao acórdão da Relação, por via do art. 663º, nº 2.

Essa compatibilização e, mais do que isso, a superação de eventuais contradições constitui um dever que deve ser cumprido pela 1ª instância e também pela Relação quando proceda à alteração da decisão da matéria de facto, como o revela o disposto no art. 662º, nº 2, al. c).

Na verdade, sendo motivo de anulação oficiosa da sentença, por parte da Relação, a verificação de contradição intrínseca entre determinados pontos da matéria de facto, o próprio acórdão da Relação não poderá incorrer nesse vício que interfira na delimitação da realidade que deve ser juridicamente integrada.

Dever de congruência que emerge também do art. 662º, nº 3, al. b), nos termos do qual, em casos de ampliação da decisão da matéria de facto, o tribunal deve apreciar outros pontos de facto, a fim de evitar contradições.

A perceção deste regime resulta ainda mais evidente quando nos deparamos com o art. 682º, nº 3, CPC, que confronta o Supremo com a necessidade de determinar a baixa do processo à Relação quando “ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito”.

Assim acontece no caso concreto.


3. Posto em confronto o que as duas instâncias consideraram “provado” e “não provado”, verifica-se que foi considerado provado (pela Relação) que “o BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN”.

Todavia, em simultâneo, manteve-se intacto o segmento vindo da 1ª instância no qual se considerou não provado que “antes de o A. subscrever a obrigação referida em 2. o funcionário do BPN disse-lhe que a aplicação tinha capital garantido pelo BPN” e que “os AA. sempre estiveram convencidos que o R. lhes restituiria o capital e os juros quando os solicitasse”.

Esta contradição intrínseca do acórdão coloca em causa o acerto da integração jurídica, o qual também é afetado quando, por um lado, se considera não provado que “se o A. se tivesse apercebido que poderia estar a dar uma ordem de compra de obrigações SLN 2006, produto de risco e que o capital não era garantido pelo BPN, não a autorizaria” (al. d), dos factos não provados), para depois se afirmar, na parte da integração jurídica, que “resulta com clareza que, caso os deveres de informação tivessem sido devidamente cumpridos, os AA. não teriam realizado tal aplicação de capital e, assim, não teriam sofrido os riscos e prejuízos subsequentes” (fls. 219).


4. Mas existe ainda um outro vício que deve ser sanado e que respeita à delimitação do que possa significar a expressão de que “O BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN”.

Quer na sentença de 1ª instância, quer no acórdão da Relação, a enunciação dos factos que se consideram provados deve ser feita de modo que a realidade que os mesmos pretendem retratar não suscite dúvidas, as quais podem emergir designadamente de afirmações que, no contexto em que são produzidas, se mostrem deficientes, ambíguas ou obscuras. Tais vícios podem ainda emergir da utilização de expressões polissémicas ou que, apresentando natureza mista, ou seja, constituindo simultaneamente matéria de facto e matéria de direito, criem dúvidas quanto ao seu alcance objetivo.

Assim acontece com o referido segmento.

Afirmar-se, sem mais e de forma desgarrada (por aditamento aos factos considerados provados na sentença), que “O BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN” constitui uma afirmação de pendor conclusivo, atenta a polissemia dessa expressão ou a falta de contextualização do modo como surgiu ou como foi prestada a referida “garantia”.

A alusão a tal “garantia” surge a par de outro facto considerado provado de que a obrigação subordinada SLN 2006 era “um produto seguro, sem risco, com capital tão garantido como um depósito a prazo” (ponto 5 dos factos provados) e que foi dito ao A. “pelo funcionário do Banco que o capital era garantido …”, de modo que aquele segmento não pode deixar de ser contextualizado, pois só assim se percecionará o seu conteúdo para efeitos de posterior integração jurídica.

Note-se que, de modo muito acentuado, a circunscrição da realidade é uma competência das instâncias e que ao Supremo Tribunal de Justiça cabe fundamentalmente a aplicação do direito aos factos que se apurarem, os quais não devem suscitar dúvidas quanto ao seu real significado.

No caso concreto, o sentido daquela expressão torna-se ainda mais dúbio quando se verifica que na alegação feita nos articulados (e também nos factos provados) se alude ao facto de a SLN ser afinal a “dona” do BPN, podendo ser entendida a referida “garantia” como decorrência de uma situação de domínio ou de integração do BPN numa sociedade dominante.


5. Na circunscrição dos factos provados as instâncias não têm necessariamente que se limitar ao que foi formalmente alegado. Ante expressões de pendor conclusivo ou polissémicas, nada obsta a que se dê uma resposta explicativa, dentro do quadro dos factos alegados.

Assim era quando o sistema previa a existência do questionário, já que a par da resposta “provado” ou “não provado”, se admitia que o tribunal desse uma resposta restritiva ou explicativa cujo teor poderia traduzir-se na concretização de expressões de pendor conclusivo.

O facto de o questionário ter dado lugar a “temas de prova” mais acentua essa necessidade, pois que estando a audiência de julgamento circunscrita aos factos envolvidos nos temas de prova (cf. o art. 410º do CPC sobre a instrução em geral e o art. 516º, sobre a inquirição de testemunhas), se pede que o tribunal, na sentença, discrimine e, se necessário, concretize os factos que, dentro desses temas de prova, melhor retratem a realidade (art. 607º, nºs 3 a 5).

No caso, em face dos temas de prova que foram enunciados a fls. 99, foi levada a julgamento a matéria que resultava controvertida dos articulados, sendo da exclusiva competência das instâncias estabelecer a maior aproximação possível entre a convicção acerca dos contornos do litígio formada a partir dos meios de prova produzidos e a decisão da matéria de facto provada.

No caso concreto, a afirmação de que “o BPN garantia o pagamento destas obrigações da SLN” apresenta-se com um pendor essencialmente jurídico e que, além disso, suscita dúvidas quanto ao que verdadeiramente se pretendeu com a assunção de tal expressão no leque de “factos provados”.

Justifica-se, pois, que, ao abrigo do art. 682º, nº 3, se amplie a decisão de facto “em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito”.


6. Na petição inicial, acerca do modo como terá surgido a referida “garantia”, surgem mais factos que as instâncias não inscreveram nem nos factos provados, nem nos factos não provados.

Alegaram os AA., além do mais, que, “em 19 de Abril de 2006, o gerente do Banco R. da agência de … disse ao A. marido que tinha uma aplicação em tudo igual a um depósito a prazo e com capital garantido pelo BPN e com rentabilidade assegurada” (art. 2º).

E que “o que motivou a autorização, por parte do A. marido, foi o facto de lhe ter sido dito pelo gerente que o capital era garantido pelo Banco R. …” (art. 6º), atuando o A. “convicto de que estava a colocar o seu dinheiro numa aplicação segura e com as características de um depósito a prazo, por isso, num produto com risco exclusivamente do Banco R.” (art. 7º).

Alegações que vieram a par da alegação do facto que foi considerado “não provado” de que “se o A. tivesse percebido que poderia estar a dar ordem de compra de obrigações SLN 2006, produto de risco e que o capital não era garantido pelo BPN, não o autorizaria” (art. 8º).

Verifica-se, aliás, noutros processos congéneres deste (em que existe identidade do sujeito passivo) que a matéria de facto que as instâncias circunscreveram se mostra bastante mais extensa e precisa e sem as contradições ou ambiguidades que o presente caso revela quanto ao que terá ocorrido aquando da contratação inicial.

Assim o revela, por exemplo, a leitura dos Acs. do STJ 10-4-18, 753/16, de 18-9-18, 20403/16, através do qual se nota que a própria Relação procedeu ao aditamento de outros factos, ou de 18-9-18, STJ 18-9-18, 20329/16 ou do Ac. da Rel. de Coimbra de 12-9-17, 986/16, do Ac. da Rel. de Lisboa, de 10-10-17, 4042/16 e do Ac. da Rel. de Évora, de 8-3-18, 1820/16 (todos em www.dgsi.pt).


7. Neste contexto, para além da necessidade de superação da mencionada contradição entre que as instâncias em globo consideraram “provado” e “não provado”, é mister que a este Supremo Tribunal de Justiça seja submetida uma decisão sobre a matéria de facto (tanto a “provada” como a “não provada”) que se mostre escorreita, clara e contextualizada, dentro dos limites materiais do que foi alegado.

Pedindo-se a este Supremo Tribunal que aplique definitivamente o direito, é incumbência das instâncias a fixação dos factos provados e não provados de modo que não se suscitem dúvidas quanto ao que realmente terá ocorrido aquando da subscrição da obrigação SLN 2006 que está em causa, não devendo correr-se o risco de, por via de uma errada ou deficiente delimitação dos factos, acabar por se declarar uma solução jurídica que desvirtue a realidade verificada e que possa ser recolhida através dos meios de prova que foram produzidos.

Na verdade, para além da sustentação da pretensão indemnizatória no incumprimento por parte do anterior BPN dos deveres de informação e da qualificação destes deveres como deveres acessórios, com eventuais reflexos na definição dos termos da responsabilidade, a pretensão dos AA. decorre ainda de um outro fundamento que pode ganhar relevo no eventual contexto de uma atuação do anterior BPN traduzida na assunção de uma garantia do reembolso do capital.

Para lá do que pode ser apreendido através da informação oficial acerca do teor do contrato de vendas das ações do BPN ao Banco BIC Português, SA, no que se refere designadamente à “transferência para o Estado dos custos ligados a riscos de litígio” (que, por exemplo, é referida na DECISÃO DA COMISSÃO de 27.03.2012 RELATIVA ÀS MEDIDAS SA. 26909 (2011/C) executadas por Portugal no contexto da reestruturação do Banco Português de Negócios (BPN), acessível através de http://ec.europa.eu/competition/state_aid/cases/24...98/24...98_13...25_237_2.pdf) importa que na resolução de litígios como o presente não se corra o risco de decisões precipitadas devido a uma insuficiente desempenho dos deveres das instâncias no que concerne à delimitação dos factos provados e não provados relativamente a cada concreto litígio.

Posto que possa existir alguma similitude nas circunstâncias que rodearam os casos que se precipitaram nos tribunais em torno das obrigações SLN cuja venda foi intermediada pelo anterior BPN, não pode correr-se o risco de a petições de natureza massificada se sucederem decisões igualmente massificadas ou “por arrasto”, sem ponderação das circunstâncias específicas que tenham porventura rodeado as concretas negociações que subjazem a cada litígio.


IV – Face ao exposto, acorda-se em determinar a remessa dos autos à Relação para que:

a) Sejam superadas as contradições reveladas no confronto entre a matéria que considerada “provada” e “não provada”;

b) Se amplie ou contextualize a matéria de facto conexa com a afirmada “garantia” do pagamento das obrigações SLN por parte do BPN.

Custas desta revista pela parte vencida a final.

Notifique.

Lisboa, 8-11-18


Abrantes Geraldes (Relator)

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo