Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P3804
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALBERTO SOBRINHO
Descritores: ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
ACTO SEXUAL DE RELEVO
Nº do Documento: SJ200603140038045
Data do Acordão: 03/14/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Sumário : I - O art. 172.º do CP tem em vista proteger aquelas pessoas que, sexualmente, não têm discernimento para se comportarem com liberdade: isto é, é a integridade sexual daqueles que, em função da idade, ainda não têm o suficiente discernimento para se autodeterminarem livre e conscientemente que se pretende salvaguardar.
II - Doutrinal e jurisprudencialmente tem-se considerado “acto sexual de relevo” toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo.
III - A conduta, para ser de relevo, terá de ser intensa, objectivamente grave e traduzir intuitos e desígnios sexuais que frontalmente sejam atentatórios da auto-determinação sexual da vítima (Ac. deste Supremo Tribunal de 15-06-00, CJ STJ, VIII, II, p. 226).
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório
No 2º Juízo do Tribunal da Comarca de Bragança, perante o respectivo Tribunal Colectivo, foi o arguido AA, devidamente identificado nos autos, submetido a julgamento, acusado, em autoria material, da prática de um crime de abuso sexual de criança da previsão do art. 172º, nº 1 C.Penal, crime de que veio a ser absolvido.
Inconformado com tal decisão, dela interpôs recurso o Exmº Magistrado do M.P. para o Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que, na procedência do recurso, seja revogado o acórdão recorrido e o arguido condenado na pena de dois anos, ainda que suspensa na sua execução.

II. Âmbito do recurso
A- De acordo com as conclusões, a rematar a respectiva motivação, o inconformismo do recorrente radica no seguinte:
1- a especificidade dos crimes sexuais contra menores, reside como que numa obrigação de especial protecção da sua castidade e virgindade –ac. S.T.J.;
2- o bem jurídico protegido com a incriminação do abuso sexual é o “livre desenvolvimento da personalidade do menor na sua esfera sexual;
3- a lei presume que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor –como afirma Figueiredo Dias;
4- tocar, deliberadamente, em zonas erógenas do corpo de uma criança integra o conceito de acto sexual de relevo;
5- por ser patente que “em sede de abuso sexual de crianças, o «relevo» como que está imanente a qualquer actuação libidinosa, por mais simples que ela seja ou pareça ser” – ac. S.T.J.;
6- por outro lado o tipo não exige dolo específico, bastando-se com o dolo genérico em qualquer das suas modalidades;
7- sendo “irrelevante o motivo da actuação do agente”, “não conferindo relevância à intenção libidinosa” porque “a liberdade [sexual] também pode se posta em causa por actos que da parte do agente não são dominados por uma intenção libidinosa, mas por um sentimento de desprezo, de cinismo, de curiosidade mórbida pela reacção da vítima, etc., e que do lado da vítima não lhe provocam (nem são adequados a provocar-lhe) excitação sexual, mas pelo contrário sentimentos de repugnância, de vergonha, de desespero”;
8- a matéria de facto provada:
- de que destacamos: “o arguido, ao ver a menor passar, cumprimentou-a e chamou-a para junto de si, pedindo-lhe dois beijos na cara, o que a menor fez.
- de seguida, sentou a menor no seu colo e colocou-lhe uma das mãos num dos joelhos, deixando-a escorregar pelas coxas da menor até às cuecas, ao mesmo tempo que com a outra apertava um dos braços da referida menor, altura em que esta, incomodada com a situação, se soltou do colo do arguido.
- porque cometida pelo arguido ‘”deforma deliberada, livre e consciente”,
- não obstante “’ter ficado a séria dúvida se o gesto teve ou não qualquer intenção sexual,
integra todos os elementos –objectivos e subjectivos- do crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo art.° 172° n.° l do Cod. Penal;
9- Por isso que deve o arguido ser condenado pela prática de tal crime;
10- Em pena de prisão que atendendo à medida da culpa deve ser fixada em 2 anos e 6 meses;
11- Cuja execução deve ser suspensa por 4 anos, atendendo à idade do arguido, à sua conduta anterior (delinquente primário) e à sua inserção familiar e social.
Em sua resposta, o arguido pugnou pela confirmação do julgado.
Alegando por escrito, o Ex.mº Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, defende o reenvio do processo para novo julgamento a fim de ser esclarecido se o acto praticado pelo arguido foi deliberado ou casual ou, caso esta dúvida não se coloque, então deverá ser dado provimento ao recurso nos termos constantes da motivação.
O recorrido não alegou.
B- Face às conclusões da motivação e à posição assumida pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto as questões colocadas reconduzem-se:
- ao reenvio do processo para novo julgamento
- se os factos apurados consubstanciam o crime de abuso sexual de crianças
Colhidos os vistos legais, o processo foi à conferência e, agora, cumpre apreciar e decidir.

III. Fundamentação
A- os factos
Foram dados como assentes na 1a instância os seguintes factos:
1- Em data não concretamente apurada, mas nos inícios de Agosto de 2002, o arguido, AA, encontrava-se sentado nas escadas exteriores da sua residência, sita em……., Bragança.
2- As aludidas escadas dão directamente para uma das ruas da localidade, rua essa onde, por volta das 15h00 da tarde, circulava a menor, BB, àquela data com dez anos de idade.
3- Nessa tarde, a menor, para além do mais, trajava um vestido ou uma saia de verão.
4- A menorBB, que até à idade de quatro anos sempre viveu naquela localidade, altura em que foi viver para França, com a mãe, conhecia o arguido e este conhecia a menor, incluindo a idade desta, tanto mais que esta habitualmente ali passa as férias de verão, normalmente no mês de Agosto.
5- O arguido, ao ver a menor passar, cumprimentou-a e chamou-a para junto de si, pedindo-lhe dois beijos na cara, o que a menor fez.
6- De seguida, sentou a menor no seu colo, e colocou-lhe uma das mãos num dos joelhos, deixando-a escorregar pelas coxas da menor até ás cuecas, ao mesmo tempo que com a outra apertava um dos braços da referida menor, altura em que esta, incomodada com a situação, se soltou do colo do arguido.
7- O arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente.
8- O arguido não tem antecedentes criminais.
9- É reformado, vive com a mulher, também ela reformada, auferindo cada um cerca de 216 euros mês, não dispondo de outros rendimentos, e é analfabeto.
10- É considerado boa pessoa, respeitadora, desloca-se com dificuldade, com a ajuda de uma bengala., treme constantemente, situação que se verifica há pelo menos quatro anos.

FACTOS NÃO PROVADOS
Não se provou, com interesse para a decisão da causa que:
· Os factos supra descritos tenham ocorrido no dia 02/Fev/02;
· Que o arguido tenha dito à menor que ela tinha umas boas pernas;
· Que o arguido pretendia excitar-se sexualmente;
· Que o arguido tenha manifestado um instinto sexual pervertido;
· Que o arguido soubesse que a sua conduta era punida criminalmente.

B- O direito
1- reenvio do processo para novo julgamento
O Exmº Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal, começa por defender, em suas alegações escritas, que não resulta da factualidade apurada se o acto sexual de relevo cometido pelo arguido –o deixar escorregar uma das mãos até às cuecas da menor- foi deliberado ou, se pelo contrário, este movimento da mão foi casual.
Foi dado como provado que o arguido sentou a menor no seu colo, colocou-lhe uma das mãos num dos joelhos, deixando-a escorregar pelas coxas da menor até ás cuecas, ao mesmo tempo que com a outra apertava um dos braços da referida menor, altura em que esta, incomodada com a situação, se soltou do colo do arguido. Mais resultou ainda assente que o arguido agiu de forma deliberada, livre e consciente.
Dos precisos termos em que esta actuação do arguido foi dada como provada, afigura-se-nos claramente que há intencionalidade no movimento da mão até encontrar as cuecas da menor. Na verdade, ele deixa escorregar a mão, ou seja, permite que a mão vá deslizando, se vá encaminhando desde o joelho da menor, percorrendo as coxas até chegar às cuecas. Simultaneamente, o que não deixa de ser significativo, apertava com a outra mão um dos braços da menor. Sabendo-se ainda que o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, então é possível chegar à conclusão que sabia perfeitamente o trajecto que a mão estava a percorrer, num movimento deliberado, consciente e desejado.
É certo que, na fundamentação da matéria de facto, se afirma no acórdão recorrido que não foi possível apurar se tal acção foi apenas um gesto normal de afecto, mal interpretado pela menor, ou se por outro lado houve alguma intenção menos lícita por parte do arguido. Porém, os factos assentes permitem ultrapassar esta dúvida e levam-nos a extrair a conclusão supra mencionada. Aliás, o deixar deslizar a mão para partes íntimas da menor não se pode, de modo algum, interpretar como um gesto normal de afecto.
Não se justifica, por isso, o reenvio para novo julgamento.

2. enquadramento jurídico-penal dos factos provados
Segundo o nº 1 do art. 172º C.Penal, quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de l a 8 anos.
Com este preceito tem-se em vista proteger aquelas pessoas que, sexualmente, não têm discernimento para se comportarem com liberdade. É a integridade sexual daqueles que, em função da sua idade, ainda não têm o suficiente discernimento para se autodeterminarem livre e conscientemente, que esta norma visa salvaguardar.
Não fornece a lei a definição de acto sexual de relevo. Mas doutrinal e jurisprudencialmente tem-se considerado acto sexual de relevo toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo.
No que às crianças menores de 14 respeita, a sua frágil defesa de repulsa a condutas sexuais em que são visadas como que torna relevante os actos sobre si praticados.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques in Código Penal, II, pág. 368, não é qualquer acto de natureza, conteúdo ou significado sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles actos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade sexual do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objectivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano.
Também o Prof. Figueiredo Dias in Comentário, I, pág. 449 acentua que é de excluir do acto sexual de relevo não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas também aqueles que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. actos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.
A conduta, para ser de relevo terá de ser intensa, objectivamente grave e traduzir intuitos e desígnios sexuais que frontalmente sejam atentórios da auto-determinação sexual da vítima cfr., neste sentido, ac. S.T.J., de 00/06/15, in C.J.,VIII-2º-226(acs. S.T.J.).
Na situação vertente, temos que o arguido, após sentar a menor, então com dez anos, no seu colo, coloca-lhe uma das mãos nos joelhos e deixa-a depois escorregar pelas coxas até às cuecas.
Esta conduta configura, sem dúvida, um acto impudico que objectivamente afecta a intimidade sexual da menor visada, o que lhe causou uma situação incomodativa, levando-a a soltar-se do colo do arguido.
Mas este foi um acto isolado e instantâneo, levando a que a menor saísse do colo do arguido ao contacto da mão com as cuecas, acto ao qual não se provou que tivesse presidido qualquer desígnio de excitação sexual por parte deste.
Considerando que se está perante um só acto, impudico, é certo, sem reiteração na sua prática, e de simples contacto da mão com as cuecas da menor, não ficando sequer provado que o arguido soubesse que esta sua conduta era punida criminalmente, pensamos que o mesmo não ofendeu com gravidade o sentimento de vergonha da menor, não atentou contra a liberdade de determinação sexual da vítima.
Pode-se, pois, concluir que o facto do arguido colocar uma das mãos num dos joelhos da menor e, depois, deixá-la escorregar pelas coxas até às cuecas, situação para ela incomodativa, não se provando que a esta actuação presidisse qualquer desígnio de excitação sexual por parte do arguido, por constituir um acto isolado e instantâneo não é um acto relevante que ofenda gravemente a determinação sexual da menor.
Tanto basta para se concluir que a conduta do arguido não preenche o ilícito de abuso sexual de crianças da previsão do nº 1 do art. 172º C.Penal.
Justificava-se a absolvição do arguido do crime de que vinha acusado, tal como se decidiu no acórdão recorrido.

IV. Decisão
Perante tudo quanto exposto fica, acorda-se em negar provimento ao recurso e confirmar o acórdão recorrido.
Sem custas.


Lisboa, 14 de Março de 2006

Alberto Sobrinho
Carmona da Mota
Pereira Madeira