Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
96A821
Nº Convencional: JSTJ00031507
Relator: CARDONA FERREIRA
Descritores: DEPÓSITO BANCÁRIO
PENHORA
NOMEAÇÃO DE BENS À PENHORA
SIGILO BANCÁRIO
APLICAÇÃO DA LEI PROCESSUAL NO TEMPO
Nº do Documento: SJ199701140008211
Data do Acordão: 01/14/1997
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: BMJ N463 ANO1997 PAG472
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1428/95
Data: 12/15/1995
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CONST - DIR FUND / PODER POL. DIR CIV - TEORIA GERAL / DIR OBG.
DIR PROC CIV - PROC EXEC. DIR ECON - DIR BANC.
Legislação Nacional: CONST89 ARTIGO 20 ARTIGO 205 N1 ARTIGO 208 N2.
CCIV66 ARTIGO 9 ARTIGO 817.
CPC67 ARTIGO 1 ARTIGO 2 ARTIGO 5 ARTIGO 519 ARTIGO 821 N1 ARTIGO 837 N1 ARTIGO 856 N2 ARTIGO 861 A.
DL 2/78 DE 1978/01/09 ARTIGO 5.
DL 298/92 DE 1992/12/31 ARTIGO 78 ARTIGO 79 N2 A E.
DL 329-A/95 DE 1995/12/12 ARTIGO 16 ARTIGO 26 N2.
DL 180/96 DE 1996/09/25.
Sumário : I - Aos processos pendentes em 1 de Janeiro de 1997 não se aplica a nova redacção do artigo 837 do Código de Processo Civil.
II - Atento o sigilo bancário, a nomeação à penhora de depósitos bancários pode reduzir-se à designação do estabelecimento de crédito e do depositante.
III - O dever de sigilo bancário é a consequência do direito do depositante à privacidade, uma das facetas do direito à tutela geral da personalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I. Através do 3. Juízo Cível da Comarca de Oeiras,
"Banif-Banco Internacional do Funchal, S.A." propôs acção executiva ordinária contra A, pretendendo o pagamento de 11550211 escudos e sessenta centavos e juros vincendos (fls. 7 e seguintes).
Posteriormente e dizendo que fora notificado de que lhe havia sido devolvido o direito de nomeação de bens à penhora, o exequente pediu a penhora do recheio de uma residência e de "todas as acções, títulos e saldos de contas de depósito à ordem ou a prazo, que se encontram depositadas nas dependências dos Bancos e Caixas, que a seguir se discriminam, em nome da executada."(fls. 9).
O Mmo. Juiz de Direito indeferiu este requerimento da exequente relativamente aos bens ditos existentes em depósitos bancários (fls. 11).
O exequente agravou (fls. 12).
Mas a Relação de Lisboa, através do Acórdão de fls.
24 e seguintes, negou provimento a esse recurso.
Novamente inconformado, o recorrente agravou para este Supremo (fls. 28). E, alegando, concluiu (fls. 31 e seguintes):
1) A nomeação de bens à penhora, no processo executivo, deve identificar, tanto quanto possível, os bens a penhorar (C.P.C., artigo 837, n. 1);
2) E, na nomeação de créditos, declarar-se-à a identidade do devedor, o montante, natureza e origem da dívida, o título de que consta e a data do vencimento, se for possível indicar todos estes pormenores (artigos 837 n. 5 e 863 do C.P.C.);
3) As instituições de crédito estão sujeitas a segredo profissional no que toca aos nomes dos clientes, às suas contas de depósito e respectiva movimentação e a outras operações bancárias, sob pena de responsabilidade criminal e de aplicação de outras sanções (regime aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, artigos 78 ns. 1 e 2, 84 e 210 alínea i));
4) Estas regras, de carácter imperativo, não podem ser derrogadas em quaisquer circunstâncias, não havendo assim, possibilidade de obter informações interbancárias sobre contas e títulos de crédito, contrariamente ao que se diz no Acórdão recorrido, com frontal violação da lei;
5) Portanto, o requerimento de nomeação de bens à penhora, apresentado pelo exequente, no caso "sub judice"; contém todas as indicações que era possível dar ao Tribunal, para efectivação da penhora;
6) Daí que, decidindo em contrário, com o indeferimento da penhora requerida sobre acções, títulos e saldo de contas de depósito, á ordem ou a prazo, as instâncias tenham violado, por erro de interpretação, o artigo 837 ns. 1 e 5 do C.P.C.;
7) Aliás, a decisão recorrida violou, ainda, o artigo
817 do Código Civil e o artigo 821 do C.P.C.; na medida em que, fora de qualquer dos casos previstos nos artigos 822 n. 1 e 823 n. 1 do C.P.C., considerou impenhoráveis acções, títulos e saldos de contas de depósito da executada;
8) Acresce que as normas do artigo 837 ns. 1 e 5 do C.P.C., com a interpretação do Acórdão recorrido, estão feridas de inconstitucionalidade material;
9) Efectivamente, com essa interpretação, ofendem o princípio do Estado de Direito, consignado no artigo
2 da Constituição, e o direito de acesso aos tribunais, consignado no artigo 20 n. 1 do mesmo diploma.
Finalizando, o agravante pede a revogação das "decisões das instâncias, para que seja ordenada a penhora de todos os bens indicados pelo Banco exequente".
Não constam contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais (fls. 53).
II. O Acórdão recorrido, sobre o circunstancialismo em que assentou, reportou-se ao relatório que efectuara acerca da tramitação processual, acrescentando que o exequente, ao indicar bens à penhora, referiu "33 instituições bancárias, com os endereços das sedes respectivas, ou sucursais, no caso de serem estrangeiras" (fls.24 v.).
III. Da essência da questão:
O problema colocado neste recurso, sendo de recorte simples, não é de solução linear e apresenta indesmentível interesse prático.
O que está em causa, embora no campo restrito da penhora é, pura e simplesmente, o dever do Estado em garantir a realização dos direitos - mormente substantivos - dos cidadãos, conforme o alcance lógico do artigo 20 da Constituição e o artigo 2 do C.P.C..
IV. Do segredo bancário:
Em princípio, num Estado de Direito democrático, como
é o caso português, tudo deve ser transparente.
Mas, para que o Direito se não desligue das realidades vivenciais, devem ser estabelecidos limites em certos âmbitos sócio-jurídicos, designadamente naqueles que mais podem contender com direitos fundamentais, como
é, por exemplo, o direito à tutela geral da personalidade, na qual, hodiernamente, se não pode deixar de encontrar, como corolário, a não devassa da privacidade, nas suas variadas vertentes.
Se, a isto, juntarmos a conjuntura em que foi publicado o Decreto-Lei 2/78, de 9 de Janeiro, não será muito difícil encontrar o acerto mas, também, a relatividade do segredo bancário.
Com efeito, mesmo quem não viveu, ou já se esqueceu, da vida portuguesa nos meados dos anos 70, basta ler o preâmbulo do Decreto-Lei 2/78 para constatar que foi a necessidade de imprimir confiança na Banca, por parte de possíveis depositantes, que justificou esse diploma, aliás na linha de preocupações de legislação anterior e posterior.
Mas, como não podia deixar de ser, esse direito ao sigilo bancário, em si próprio inquestionável, como dissemos, à luz do moderno âmbito do direito de personalidade, não pode considerar-se absoluto de tal forma que fizesse esquecer outros direitos fundamentais, como o direito do acesso à Justiça (a menos que, contra "o civilizado" artigo 1 do C.P.C., se privilegiasse a "justiça" privada) ou, por exemplo, o dever de cooperação, tradicional no processo civil português (veja-se, designadamente, o artigo 519 do C.P.C., quer antes, quer depois da recente reforma).
Tudo tem de ser compaginado em ordem a encontrar-se um sentido unívoco na ordem jurídica, conforme, alías, o explícito comando do artigo 9 do Código Civil.
Para além de disposições legais avulsas, mormente no campo penal, tenhamos em atenção que o citado Decreto- -Lei 2/78, depois de explicitar a regra geral do segredo bancário, não deixou de admitir formas de excepção, designadamente, embora não só, através do seu abrangente artigo 5.
"O disposto no presente diploma em nada prejudica os deveres de informação, estatística ou outro que, nos termos da legislação actual, impendem sobre as instituições de crédito".
Decreto não suscitará controvérsia que, onde se fala em "legislação actual", se deve entender a legislação que for vigorando; e, onde se fala em "impendem sobre as instituições de crédito" cabe tudo aquilo que, legislativamente, no casuismo de cada situação, pode reflectir-se sobre as instituições de crédito.
Nestes particulares, trata-se, apenas, de privilegiar a lógica do preceito de forma que temos por insusceptível da dúvida.
V. Onde tudo isto se reflecte no caso vertente:
V.1. O que, casuísticamente, se discute, directamente,
é a requerida penhora do conteúdo de depósitos bancários.
Só por absurdo se poderia admitir que o pensamento legislativo seria no sentido de paralizar a acção dos Tribunais na realização de direitos subjectivos, quando é certo que, ao invés, a ordem jurídica existe, juntamente, como um conjunto de meios que deve conduzir à efectiva realização dos fins da actividade judicial previstos, basicamente, pelo artigo
205 da Constituição. E isto vem, directamente, ao caso.
V.2. Em verdade, e atendendo à normatividade que seria directamente aplicável ao caso vertente, ou seja, a redacção do artigo 837 do C.P.C., antes da reforma decorrente dos Decretos-Lei 329-A/95 e 180/96 (com efeito, o n. 2 do artigo 26 do Decreto-Lei 329-A/95 não inclui o artigo 837 no conjunto dos artigos aplicáveis aos processos pendentes em 1 de Janeiro de 1997 - cfr. artigo 16 do Decreto-Lei 329-A/95; sendo, aliás, certo que a nova redacção do n. 1 daquele artigo 837 não atrasa, nem adianta, para o julgamento deste recurso); íamos nós dizendo, o artigo
837 n. 1 do C.P.C., mandava e manda que, pretendendo que se efectue penhora:
"1. A nomeação deve identificar tanto quanto possível, os bens a penhorar...".
O ponto determinante desta situação está na expressão tanto quanto possível.
É certo que o n. 5 desse artigo 837, reportando-se a créditos, pretende referência a "identidade do devedor, o montante, natureza e origem da dívida, o título de que consta e a data do vencimento".
Mas isto é o ideal, o desejável; nem sempre, o possível.
V.3. Concerteza, quem nomeia bens à penhora, para viabilizar a execução do acto, não pode deixar de referir aquilo que seja identificador. Mas se, em concreto, esse algo deve abranger tudo o que a lei deseja, isso depende da possibilidade, pelo menos presumível, do nomeante.
Nem de outra forma poderia ser, sob pena, conforme já aludido, de um certo tipo de denegação da Justiça,
à luz das normas já citadas e, ainda, directamente, do artigo 817 do C. Civil.
Aliás, a exigência formal do n. 5 do artigo 837 do C.P.C., para além de ser de interpretar e aplicar base do "tanto quanto possível", tem de levar em conta o ordenamento temporal das leis; sendo, aqui, que releva o subsequente regime do Decreto-Lei 2/78 e a natural impossibilidade de o exequente conhecer os exactos pormenores das situações bancárias do executado.
E, se esta situação legal é, ou não, sobrecarregadora da actividade dos Tribunais, isso é algo que estes têm de assumir, como Órgão de Soberania, logo existente para servir os direitos dos cidadãos.
Bom seria que as leis não dificultassem esse serviço.
Mas os cidadãos não devem ser prejudicados: aqui, também, tanto quanto possível.
V.4. Tudo isto significa que só é exigível, na indicação de bens à penhora, o que, comprovada ou presumivelmente, for possível ao nomeante, desde que seja suficiente para a execução do acto - e, no caso vertente, indicados os estabelecimentos bancários, as suas sedes ou sucursais, e o títular de contas, não é crível que algum estabelecimento bancário não disponha dos elementos suficientes para devido esclarecimento, inclusive face ao artigo 856 n. 2 do C.P.C..
V.5. Acresce, hoje, a qualquer penhora ordenada após a entrada em vigor do artigo 26 n. 2 do Decreto- -Lei 329-A/95, na redacção do Decreto-Lei 180/96, o disposto no artigo 861-A do C.P.C., explicitamente acerca da penhora de depósitos bancários.
Aliás, temos por certo que, sem prejuízo dos pormenores desse tipo de penhora, só consideráveis a partir da vigência daqueles normativos, propriamente a penhora de depósitos bancários já anteriormente não podia deixar de ser lícita, com as indicações que fossem possíveis, pelas razões indicadas e tendo, ainda, em atenção o regime geral das instituições de crédito e sociedades financeiras, aprovadas pelo Decreto-Lei 298/92, de 31 de Dezembro, bem como, coerente e consequentemente, a relevância das decisões judiciais, como meio de resolução de diferendos e de realização dos direitos subjectivos (artigos 205 n. 2 e 208 n. 2 da Constituição).
V.6. Daquele regulamento aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, retira-se, especialmente, a inviabilidade de o exequente obter mais concretos elementos informativos (artigo 78); mas, também, a existência de excepções ao segredo bancário, entre as quais não pode deixar de ser considerada a realização dos direitos dos credores dos titulares de depósitos bancários, através de decisões dos Tribunais sob pena de, contra os mais elementares princípios constitucionais e legais, conforme já exposto, estar encontrada a via para incumprimento de obrigações "ao abrigo" da lei (cfr., entre o mais já dito, o artigo 79 n. 2 alínea e) do regulamento citado, numa perspectiva de interpretação lógica); veja-se, ainda o artigo 821 n. 1 do C.P.C., agora aplicável na sua nova, redacção, "ex vi" do artigo 26 n. 2 do Decreto-Lei 329-A/95, na redacção do Decreto-Lei 180/96, ainda que, à data da decisão da
1. instância, neste caso, vigorasse a redacção anterior do 821 do C.P.C. que, de todo o modo tinha a mesma essência e, portanto, conduziria ao mesmo resultado.
V.I. Pelo que fica dito, o recurso não pode deixar de ser provido.
Contudo, há que ter em atenção que o "Thema decidendum" consiste, apenas, na legalidade de decisão judicial incidente sobre os valores em depósitos bancários tal como indicados pelo agravante, quer antes, quer depois de 1 de Janeiro de 1997.
É que pode haver outra questão que não está em discussão, agora e aqui, e que só poderá pôr-se perante as penhoras que forem efectuadas: trata-se da quantificação das penhoras.
6. Portanto, o n. 5 do artigo 837 do C.P.C. indica o que é desejável que o nomeante esclareça, mas que ele cumprirá na medida do possível.
7. O regime do segredo bancário impede, por princípio, que o exequente conheça a identificação concreta de depósitos bancários do executado; como assim, é deferível o pedido de penhora do conteúdo de depósitos bancários, através da designação do titular e do estabelecimento bancário, competindo a este o subsequente esclarecimento complementar, ao Tribunal.
8. Aliás, o artigo 861-A do C.P.C., "ex vi" da reforma decorrente do Decreto-Lei 329-A/95 e do Decreto-Lei 180/96, acerca da penhora de depósitos bancários, será aplicável a penhoras mesmo em processos pendentes (artigo 26 n. 2 do Decreto-Lei 329-A/95, na redacção do Decreto-Lei 180/96), na linha lógica de tudo o mais dito neste acórdão e do alcance do regulamento aprovado pelo Decreto-Lei 298/92, designadamente artigo
79 n. 2 alínea a) (cfr., ainda artigo 821 n. 1 do C.P.C., agora aplicável na nova redacção, nos termos daquele artigo 26 n. 2, ainda que a anterior redacção levasse ao mesmo resultado); e sem deixar de ser certo que a decisão inicial tinha de basear-se no Direito, então, aplicável.
VIII. Donde, concluindo:
Com efeito, estando em causa a realização de determinados direitos, a penhora deve ser, apenas a necessária e suficiente, na medida do possível. Mas isto fica anotado apenas como clarificação do que ora se decide: a licitude da penhora requerida e indeferida; mas deve ser entendido que isto não colide com eventual questão quantificativa.
VII. Resumindo, para concluir:
1. A problemática do segredo bancário está subjacente e é determinante na análise do caso vertente.
2. A necessidade de imprimir confiança a eventuais depositantes explica o Decreto-Lei 2/78, acerca do segredo bancário. Aliás, o acerto deste não significa que seja absoluto.
3. Os direitos e deveres jurídicos têm de ser conjugados, de forma a encontrar-se um sentido unívoco na ordem jurídica, inclusive, mas não só, face ao dever do Estado em dirimir litígios e realizar direitos, através dos Tribunais.
4. A nova redacção do artigo 837 do C.P.C. é excluída da aplicação a processos pendentes, "a contrario sensu", pelo artigo 26 n. 2 do Decreto-Lei 329-A/95, na redacção do Decreto-Lei 180/96, em sintonia com o princípio do artigo 16 daquele Decreto- -Lei.
5. De todo o modo, na nomeação de bens à penhora, o ponto nuclear estava, e está, no que seja possível ao nomeante, logo, no que lhe seja exigível para tornar exequível uma decisão de penhora.
Ressalvando o devido respeito pela opinião em contrário, acorda-se em conceder provimento a este agravo, revogando-se o Acórdão recorrido e, com ele, a antecedente decisão da 1. instância, para que, nesta, seja determinada a requerida penhorada de depósitos bancários.
Custas pelo agravado.
Lisboa, 14 de Janeiro de 1997.
Cardona Ferreira.
Aragão Seia.
Herculano Lima.