Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
269/07.0GAMCD.P1.S.1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ARMÉNIO SOTTOMAYOR
Descritores: COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
COMPETÊNCIA MATERIAL
COMPETÊNCIA HIERÁRQUICA
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
Data do Acordão: 01/14/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 189
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REMETIDO À RELAÇÃO
Sumário :

I - Devem ser conhecidos conjuntamente pelo mesmo tribunal dois recursos interpostos sobre matéria de direito, de decisão do tribunal colectivo, sendo um dirigido ao STJ pelo arguido AP, condenado numa pena única de 8 anos e 6 meses e sendo o outro dirigido ao Tribunal da Relação pelo arguido JR, que foi condenado em pena de 14 meses de prisão suspensa na sua execução.
II - Segundo a actual redacção dos arts. 427.º e 432.º do CPP, os recursos sobre matéria de direito interpostos de acórdão final do tribunal de júri ou do tribunal colectivo serão da competência da Relação ou do Supremo consoante a pena aplicada seja igual ou inferior a 5 anos de prisão, ou superior a esse tempo, não havendo previsão acerca do conhecimento conjunto dos recursos sobre matéria de direito.
III - Tem vindo a ser entendido pela 5.ª Secção que o recurso que tiver como objecto um concurso de crimes punidos com penas de prisão não superiores a 5 anos, mas cuja pena única seja de duração superior, a competência para conhecer do recurso em matéria de direito é da Relação se o recorrente puser em causa as penas parcelares, sem prejuízo de poder vir a ser interposto recurso para o Supremo do acórdão de 2.ª instância se a pena única for superior a 8 anos de prisão, ou a 5 anos e não se verificar situação de dupla conforme.
IV-Em coerência com este entendimento, que afasta da competência do STJ os recursos de decisões que apliquem penas inferiores a 5 anos, no caso presente deverá considerar-se competente a Relação, podendo haver recurso para o Supremo, nos termos gerais.
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

No Tribunal Judicial de Macedo de Cavaleiros foram julgados por tribunal colectivo AA, BB, CC, DD, EE, FF e GG, acusados pelo Ministério Público, o primeiro como autor do crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21º nº 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro e os demais como cúmplices do mesmo crime. Por sentença de 3 de Agosto de 2009, foram condenados pelos crimes por que se encontravam indiciados, tendo sido aplicada a AA, como reincidente, a pena de 8 anos e 6 meses de prisão, a BB a pena de 24 meses de prisão, a CC a pena de 14 meses de prisão, a DD a pena de 19 meses de prisão, a EE a pena de 17 meses de prisão, a FF a pena de 14 meses de prisão e a GG a pena de 2 anos e 6 meses de prisão, tendo sido suspensas na sua execução estas últimas seis penas.

Inconformados, o arguido AA recorreu ao Supremo Tribunal de Justiça suscitando a questão da medida da pena, enquanto o arguido FF, no recurso que dirigiu ao Tribunal da Relação do Porto, sustenta que, face à matéria de facto dada como provada, o tribunal devê-lo-ia ter condenado, não como cúmplice do crime do art. 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, mas pela prática do crime do art. 26º do mesmo diploma legal.
Os recursos foram recebidos por despacho de fls. 1406, no qual foi ordenada a remessa dos autos ao Supremo Tribunal de Justiça.
No visto inicial, o Ministério Público no Supremo Tribunal suscita a questão da determinação do tribunal competente para conhecer dos dois recursos, sabido que ambos têm como objecto o reexame da matéria de direito, sendo, face à medida das penas aplicadas, competente o Supremo Tribunal de Justiça para conhecer do recurso do arguido AA e o Tribunal da Relação para apreciar o recurso do arguido FF. Argumenta que, no caso de ambos os recursos terem por objecto matéria de direito, a competência deve ser do Supremo Tribunal de Justiça.
Cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, os recorrentes nada disseram.

Cumpre conhecer da questão suscitada pelo Ministério Público.

Em matéria de recursos, a regra, segundo o Código de Processo Penal, é a de que são interpostos para a Relação (art. 427º), tribunal que conhece de facto e de direito (art. 428º). Como excepção, a lei prevê recursos directos para o Supremo, elencados nas alíneas c) e d) do nº 1 do art. 432º: – de acórdãos finais proferidos pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame de matéria de direito e de decisões interlocutórias que devam subir com esses recursos.
Tendo sido aplicada a um dos recorrentes pena de 8 anos e 6 meses de prisão e a outro pena de 14 meses de prisão, suspensa por igual período, teremos que o segundo recurso cai na regra geral do art. 427º, enquanto o primeiro integra a excepção prevista no art. 432º.

Por razões de economia processual e para evitar contradição de julgados, vigora em processo penal o princípio segundo o qual, havendo vários recursos interpostos da mesma decisão, deverão todos ser julgados conjuntamente.
Perante a existência de uma lacuna de regulamentação quando, acerca da mesma decisão, fossem interpostos diversos recursos, uns tendo por objecto matéria de facto e outros a matéria de direito, aqueles dirigidos à Relação e estes ao Supremo, a jurisprudência entendia que a competência para conhecer de todos eles era do tribunal da relação, por este último tribunal deter competência para conhecer de facto e de direito. Tal entendimento veio a obter consagração legal na reforma do processo penal levada a efeito pela Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, que acrescentou ao art. 414º um nº 7 – actualmente nº 8 – que prescreve que “havendo vários recursos da mesma decisão, dos quais alguns versem sobre matéria de facto e outros exclusivamente sobre matéria de direito, são todos julgados conjuntamente pelo tribunal competente para conhecer da matéria de facto”.
Com a revisão de 2007, o Código de Processo Penal reservou para a competência do Supremo, em recurso directo, as decisões do tribunal do júri ou do tribunal colectivo quando aplicarem penas de prisão superiores a 5 anos, sendo da competência das relações o conhecimento dos recursos de decisões desses tribunais que apliquem penas até 5 anos. Segundo a actual redacção, os recursos sobre matéria de direito interpostos de acórdão final do tribunal de júri ou do tribunal colectivo, serão, assim, da competência da Relação ou do Supremo, consoante a pena aplicada seja igual ou inferior a 5 anos de prisão, ou superior a esse tempo. Todavia, o princípio processual do conhecimento conjunto dos recursos obriga a que seja o mesmo tribunal a conhecer de todos os recursos interpostos da mesma decisão. Criou-se, assim, uma nova questão de competência conjunta, para a qual o legislador não estabeleceu qualquer previsão.

O Ministério Público, no parecer emitido no visto a que se refere o art. 416º, pronuncia-se pela competência do Supremo, indicando dois argumentos: um retirado do princípio do conhecimento amplo dos recursos e da regra geral de hermenêutica lógica de quem pode o mais pode o menos, sendo referida, a propósito, a fundamentação do acórdão de fixação de jurisprudência de 14-03-2007; outro, segundo o qual, sendo o Supremo o tribunal vocacionado para dizer o direito, se houver dúvidas quanto à sua competência em matéria de direito, estas deverão ser resolvidas no sentido da sua competência, com invocação do ac. de 07-10-2009 – proc. 611/07.3GFLLE que versou sobre questão conexa.
O primeiro argumento é, salvo o devido respeito, reversível. O princípio do conhecimento amplo do recurso tanto pode ser invocado para atribuir competência para conhecimento conjunto dos vários recursos ao Supremo, como à relação. Quanto à regra de hermenêutica lógica, ela não deve conduzir a soluções em que venha a ser aplicada a excepção a situações que estão previstas no regime-regra.
O acórdão de fixação de jurisprudência nº 8/2007, de 14 de Março de 2007, invocado pelo Ministério Público, estabeleceu que “do disposto nos artigos 427º e 432º alínea d) do Código de Processo Penal, este último na redacção da Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, decorre que os recursos dos acórdãos finais do tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito, devem ser interpostos directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.” A doutrina em que se sustenta a decisão não é de aplicar, porém, no caso em análise, por serem diferentes os pressupostos: no caso do acórdão uniformizador estava em causa a interpretação do texto legal, no presente colmatar uma lacuna de regulamentação. Com efeito, a questão subjacente ao acórdão nº 8/2007 era a de saber se o recorrente de acórdão final do tribunal colectivo que pretenda o reexame deste apenas em termos do direito aplicado ou a aplicar tem, ou não, a faculdade de escolher o tribunal de recurso. A norma do art. 432º, na redacção então vigente, estabelecia que “recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça … d) de acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito”. Ora, como se afirmou no referido acórdão, a própria lei impunha que o recurso fosse conhecido pelo Supremo, pois o termo “recorre-se”, contém “uma ideia de imperatividade que não se compadece com uma mera faculdade” pressuposta por aqueles que defendiam que era de livre opção dos recorrentes interpor recurso para a relação ou para o Supremo. Dentro de tal condicionalismo, justifica-se, por isso, que no acórdão se tenha afirmado que “é ilegítimo - e contra legem - retirar daí a conclusão de que as relações poderão julgar os recursos oriundos do tribunal colectivo visando exclusivamente o reexame da matéria de direito quando esta competência se acha atribuída ao Supremo Tribunal de Justiça.”
Ao segundo argumento deve opor-se o entendimento que vem sendo seguido nesta secção de que a intenção do legislador na reforma de 2007 foi a restringir a competência do Supremo à média e grande criminalidade, aferidas pelo quantum de pena aplicada. Por isso, diferentemente do decidido no acórdão de 07-10-2009 – proc. 611/07.3GFLLE, da 3ª Secção, tem vindo a ser entendido pela 5ª secção que, tendo o recurso como objecto um concurso de crimes punidos com penas de prisão não superiores a 5 anos, mas cuja pena única seja de duração superior, se o recorrente puser em causa as penas parcelares a competência para conhecer do recurso em matéria de direito é da relação, podendo vir a ser interposto recurso para o Supremo do acórdão de 2ª instância se a pena única for superior a 8 anos de prisão, ou a 5 anos e não se verificar situação de dupla conforme.
Em coerência com este entendimento que afasta da competência do Supremo Tribunal de Justiça as decisões que apliquem penas inferiores a 5 anos, deverá, no caso presente, considerar-se competente a Relação, podendo haver recurso para o Supremo, nos termos gerais, se for mantida a pena aplicada ao arguido AA, ou, caso venha a ser atenuada, se for mantida com duração superior a 8 anos de prisão.
Opta-se, assim, por solução paralela àquela que a jurisprudência estabeleceu para as situações em que da mesma decisão tenham sido interpostos recursos da matéria de facto e recursos sobre a matéria de direito e que obteve consagração legislativa. É certo que de modo nenhum vale para a solução para que propendemos a argumentação que serviu de base aqueloutro entendimento. Mas as duas soluções aproximam-se muito, pois, em ambos os casos, será por via da interposição de um outro recurso que é atribuída à Relação competência para apreciar a decisão em matéria de direito, verificando-se, por outro lado, que, em nome do conhecimento conjunto, são subtraídos à competência do Supremo recursos, cuja apreciação a lei processual lhe atribuía expressamente.

Termos em que, no conhecimento da questão prévia suscitada pelo Ministério Público, decidem em conferência no Supremo Tribunal de Justiça julgar o Tribunal da Relação do Porto competente para, conjuntamente com o recurso interposto pelo arguido FF sobre matéria de direito, conhecer o que foi interposto, com similar objecto, pelo arguido AA.
Sem tributação.

Lisboa, 14 de Janeiro de 2010

Arménio Sottomayor (Relator)
Souto Moura