Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17731/18.1T8PRT.P2.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: DIREITO DE PREFERÊNCIA
ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO
ARRENDATÁRIO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
NORMA EXCECIONAL
INTERPRETAÇÃO DA LEI
COMPRA E VENDA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
SUPRIMENTO JUDICIAL
PROCESSO ESPECIAL
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
REVISTA EXCECIONAL
Data do Acordão: 09/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :
I- O art.º 1091, n.º1, a), do CC, na redação dada pela Lei 6/2006, de 27.02, NRAU, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica do prédio, na venda do imóvel não constituído em propriedade horizontal, onde se situa o locado.
Decisão Texto Integral:

REVISTA n.º 17731/18.1T8PRT.P2.S1


ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I - Relatório


1. AA veio propor ação de suprimento de preferência limitada e determinação do preço contra: 1.ª HERANÇA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE BB, sendo cabeça de casal CC, 2.ª HERANÇA INDIVISA ABERTA POR ÓBITO DE DD, sendo cabeça de casal CC, 3.º CC, 4.ª EE, 5.º FF, pedindo que seja dado suprimento ao exercício parcelar de preferência em relação ao prédio identificado, pelo preço proporcional de 154.952,91€.


2. Alega para tanto que os 3.º a 5.º RR são cabeça de casal e interessados, únicos herdeiros dos prédios referenciados, que são propriedade da 1.ª e 2.ª RR.


Em julho de 2002, por contrato não escrito, tomou de arrendamento o primeiro andar do prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e casa de um pavimento, tendo desde essa data passado aí a exercer a sua atividade profissional de Advogado, despendendo em benfeitorias, não passíveis de ser retiradas, 50.000,00€.


Foi notificado em 10.08.2018 para, querendo, exercer o direito de preferência na alienação desses imóveis, bem como de outro prédio urbano, composto de 16 casas, pelo preço global de 825.000,00€, a concluir-se até ao dia 31 de Agosto de 2018.


Em conformidade declarou por carta de 16.08.2018, que pretendia exercer preferência em relação ao prédio que lhe estava arrendado, pelo preço proporcional que lhe fosse atribuído, dando de imediato entrada a ação de arbitramento para fixação do valor do imóvel que preferia,


Os imóveis apontados são verdadeiramente autónomos, podendo ser vendidos de modo separado sem que haja um prejuízo, muito menos apreciável para os RR, e como tal exercendo o seu direito apenas quanto ao prédio sob o qual é parcialmente inquilino, devendo o preço ter em consideração a realidade desse imóvel e do outro, também para venda.


3. Os 3.º a 5.º RR vieram responder, invocando a ilegitimidade ativa do A. face à existência de dois outros inquilinos, ilegitimidade passiva, por o indicado prédio urbano ter sido vendido em 31.08.2018, à sociedade comercial EURO EMPREENDIMENTOS, S.A., mais alegaram que o Tribunal estava impedido de conhecer a pretensão do A., porque implica a decisão sobre o exercício de direito de preferência, não sendo o meio processual escolhido, o próprio para tanto.


Invocam ainda que não cabe ao Requerente qualquer direito legal de preferência, enquanto (co) arrendatário de parte do dito imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal, quer quanto ao locado, por não ser um bem jurídico autónomo, nem quanto a todo imóvel, em caso de venda ou dação em pagamento, nem convencional, tendo apenas se limitado a informar aquele e os demais inquilinos através da comunicação de 10.08.2018 do projeto de venda da globalidade dos prédios, concedendo a primazia do negócio a qualquer um dos inquilinos, tendo o Requerente comunicado o seu desinteresse quer na aquisição da globalidade dos prédios, quer quanto ao preço a pagar.


Concluem pedindo a absolvição da instância, e caso não sendo esse entendimento, ser fixado o valor de 425.000,00€, relativamente ao imóvel referenciado pelo Requerente.


4. O Requerente veio responder, invocando que foram os RR que lhe atribuíram o direito de preferência, apontando para a carta remetida, com a declaração de vontade dos mesmos, receptícia, e assim eficaz efetuando o que sempre disseram que fariam no caso da venda do imóvel, isto é, atribuindo o direito de preferência.


5. Chamada Euro Empreendimentos, SA. para intervir nos autos, veio responder, reiterando a aquisição dos imóveis, invocando que a venda dos prédios separadamente implicava um prejuízo substancial para os vendedores.


Mais invoca que o A. não goza do direito de preferência legal, apenas lhe tendo sido dado conhecimento do projeto de venda da totalidade dos prédios, e não de parte.


6. O Requerente veio responder, pugnando pela atribuição do direito de preferência, como já fizera relativamente à contestação dos RR. mais aludindo ao pressuposto da capacidade construtiva, por as construções não terem relevo, e estando sujeitas a futura demolição.


7. Foi proferida sentença que considerando que o imóvel relativamente ao qual o A. pretendia preferir já tinha sido vendido a terceiros, e interposta ação comum constitutiva de preferência, desaparecera o interesse material na tramitação da presente ação especial, declarando extinta a instância por inutilidade superveniente da lide.


7.1. Inconformado veio o A. interpor recurso de apelação, sendo proferido o Acórdão da Relação do Porto que considerando que a instauração de uma ação de preferência não justificava a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, porque a pretensão não fora alcançada por esse via fora deste processo, revogou a sentença ordenando o prosseguimento dos autos, não sendo admitido o recurso de revista proposto para este Tribunal, pelos RR e Chamada.


8. Foram chamadas aos autos GG e HH, enquanto cônjuges dos RR, fazendo seus os articulados já apresentados pelos mesmos.


9. Afastada a existência de ilegitimidade ativa e passiva, foi proferida Sentença concluindo que o A., enquanto arrendatário não habitacional de parte de prédio indiviso não constituído em propriedade horizontal, não tinha direito de preferência quer sobre a parte sobre o qual incide o arrendamento, quer sobre a totalidade do prédio, e assim improcedente a ação.


9.1. Inconformado, veio o A. interpor recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto proferido Acórdão que confirmou a Decisão recorrida.


10. Novamente inconformado veio o A. interpor recurso de revista, formulando nas suas alegações (na parte que agora releva) as seguintes conclusões: (transcritas)


(…) VI. O presente recurso versa apenas sobre matéria de direito, nos termos infra melhor consignados, incidindo sobre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do processo n.º 17731/18.1T8PRT.P2.


VII. Assim, em primeiro lugar, importa por uma questão de simplicidade e celeridade processual, chamar aqui à colação alguns factos por serem pertinentes e essenciais à análise da questão de direito:


VIII. Inicialmente, numa primeira fase, de forma oral os Recorridos prometeram dar o direito de preferência em caso de venda e, posteriormente, de forma expressa, por escrito, foi conferido o direito de preferência da totalidade do prédio A e do B (cfr. factos assentes sob o n.º 1 e 2 na douta sentença recorrida). Factualidade que foi alegada pelo Recorrente quer na petição inicial (cfr. artigo 5.º), quer na resposta à contestação (cfr. artigos 49.º, a 52.º e 53.º a 63.º), que aqui, por considerar ocioso e inútil, se dão por integralmente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais.


IX. Acresce que, o Recorrente procedeu à junção dos respetivos documentos comprovativos do direito de preferência conferido pelos RR. Recorridos, mais concretamente o documento 3.º junto com a petição inicial e o documento 1 junto com a resposta à contestação que aqui se dão, também eles, por integralmente reproduzidos para todos os devidos efeitos legais. Nesse sentido, como superiormente referido, parte desta factualidade essencial não foi levada na douta decisão recorrida nos factos provados;


X. O Venerado Tribunal da Relação do Porto, não retirou no nosso humilde entendimento, as devidas e legais consequências sobre esta mesma factualidade assente, tendo aplicado a lei de forma errada, porque esquecem e omitem, toda a demais factualidade articulada, onde se integra e concretiza a questão principal a dirimir nos presentes autos, uma vez que os RR, Recorridos, assumiram a obrigação e deram efetivamente preferência ao Autor Recorrente na venda.


XI. Esta declaração escrita, irretratável, não é ilegal, ou contrária aos usos e costumes, nem é afastada pelos normativos identificados na douta Sentença Recorrida, mais especificamente nos artigos 1091.º do CC ou 47.º, n.º 1 do RAU, nem por toda a Jurisprudência identificada.


Mais concretamente,


XII. Os Acórdãos identificados na douta Sentença são referentes a ações de condenação e não processos especiais de determinação, nos termos dos arts. 1004º e 1029º do Cód. Civil e debruçam-se, essencialmente, sobre a questão de saber se quando o senhorio não oferece a preferência, o inquilino de parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, ou autonomizado, tem o direito de preferir na parte correspondente ao objeto locado.


XIII. E destas decisões são efetuadas interpretações extensivas e subjetivas que não podem proceder, visto que a jurisprudência em questão, na realidade, não se subsume aos factos em causa nos presentes autos.


XIV. No caso em concreto, o prédio que o aqui Recorrente pretende preferir não está dividido, ou dito de outro modo: ambos os prédios (prédio a preferir pelo aqui Recorrente e prédio em que se pretende a venda conjunta) têm autonomização jurídica.


XV. E o Recorrente pretende exercer o direito de preferência conferido sobre a totalidade do prédio A), autonomizado. Sendo possível o exercício do direito de preferência.


XVI. Assim, a questão central coloca-se saber se o prédio a preferir pelo Recorrente é todo ele uno ou se, pelo contrário, arrendou parte desse prédio. E não estando constituído em propriedade horizontal se vem impedir o exercício do respetivo direito de preferência.


XVII. Esta factualidade, porque controvertida, não poderia deixar de ser discutida em audiência e levada à matéria de facto, como assente ou não provada;


XVIII. Avançando já com a resposta de que o arrendamento é sobre a totalidade do prédio e que, mesmo sem estar constituído em propriedade horizontal, nada belisca no caso concreto o direito de preferência do aqui Recorrente.


Senão vejamos:


XIX. No requerimento de 18/11/2019, com a referência 24258792, em resposta às exceções invocadas pela chamada Euro Empreendimentos, SA, que se passa abreviadamente a identificar por EE, foi alegado no artigo “43º: “A); 3.º ressalvando-se que o artigo matricial 1856.º é uma mera benfeitoria, que se encontra em ruina, inserida no quintal do prédio descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o número 246 /... e assim, descrito apenas sob esta mesma descrição - 246); 4.º (ressalvando-se apenas que nenhum dos prédios se encontram submetidos à propriedade horizontal, nem têm que estar, visto que são anteriores a 7 de Agosto de 1951, pelo que não carecem de licença de utilização, sendo possível a sua venda individual);


XX. Assim, a ideia assente de que o Autor, inquilino, de parte do prédio, pretendia preferir sobre parte do mesmo não automatizável, é falsa. Ou seja, a casa de dois pavimentos, é apenas uma com passagem interna pela escadaria e a casa composta de um pavimento inserida no quintal do prédio mãe é posterior a 1951, não tem licença de utilização e assim não passa de uma benfeitoria, em ruína. Dito de outro modo, o prédio a preferir A) não faz parte do prédio B), sendo completamente distintos.


XXI. Dito de outro modo: nos presentes autos discute-se a venda dos prédios em separado (A e B) que são, no n/ humilde entendimento, verdadeiramente autónomos, não existindo qualquer zona comum.


XXII. Têm viabilidade e índice construtivo autónomo. Assim sendo, os prédios podem ser vendidos separadamente, sem que exista qualquer prejuízo, muito menos apreciável, para os RR. (situação nunca alegada sequer pelos RR.). A única questão controvertida seria saber se a benfeitoria (ruina) existente no quintal faria com que deixa-se de ser assim.


XXIII. Deveria assim ter-se ampliado e alterado a matéria de facto assente conforme peticionado e assim, em consequência, deveria ter sido outra a decisão final a proferir.


Acresce que,


XXIV. Os Senhorios, ora Réus Recorridos, na verdade, efetuaram o que sempre prometeram fazer, ou seja, conferir o direito de preferência no caso da venda do imóvel. Tendo comunicado essa preferência por carta registada, tal como consta dos autos. Tal como o Autor Recorrente sempre disse que pretendia no caso de venda ficar com o prédio que lhe estava arrendado.


XXV. A título meramente exemplificativo Manuel de Andrade, Teoria Geral do Direito Civil, pág. 313, refere … «os termos do negócio; os interesses que nele estão em jogo (e a consideração de qual seja o seu mais razoável tratamento); a finalidade prosseguida pelo declarante; as negociações prévias; as precedentes relações negociais entre as partes; os hábitos do declarante (de linguagem ou outros); os usos da prática em matéria terminológica ou de outra natureza que possa interessar, devendo prevalecer sobre os usos gerais ou especiais (próprios de certos meios ou profissões), etc.».


XXVI. A declaração torna-se eficaz logo que chegue ao conhecimento do destinatário, o aqui Recorrente nos termos do disposto no artigo 224.º do CC e é irrevogável depois de ser depois de ser recebida, nos termos do disposto no artigo 230.º do CC.


XXVII. Tendo o Recorrente aceite a proposta, no caso o direito de preferência conferido do prédio A, autónomo (não de parte), como aliás decorre da declaração. E em consequência deu entrada, atempadamente, à presente ação especial para preferir na venda do imóvel que é arrendatário e para que seja determinado o preço proporcional.


XXVIII. Vêm o Tribunal de primeira instância bem como o Venerado Tribunal da Relação do Porto dar um entendimento contrário, isto é, em síntese, de que não existe direito de preferência uma vez que não existe constituição do prédio em propriedade horizontal. Para isso, servem-se de vários Acórdãos que não têm aplicação ao caso em concreto, atendendo às especificidades, como na alegação supra melhor se esclareceu.


XXIX. Ora, o douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra de 23.06.2015, em que foi Relator o Juiz Desembargador Sr. Dr. Carlos Moreira, defende-se, sumariamente, que: “O arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artº 1091º nº1 al. a) do CC, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do prédio.”


XXX. De forma mais desenvolvida, vem o Acórdão Fundamento defender o seguinte: “(…) Com a entrada em vigor do Novo Regime do Arrendamento Urbano, em 2006, quer as designações “prédio urbano ou de sua fração autónoma” do 47º n.º 1 (agora transportado para o artigo 1091º n.º 1, do Código Civil), quer a licitação entre arrendatários, do n.º 2 do artigo 47º, foram eliminados. José Pedro Carneiro Cadete (ob. cit.) considera que a remoção daquelas expressões e deste preceito por parte do legislador significa que este não pretende que os arrendatários de frações de prédio indiviso possam preferir pela totalidade do mesmo, considerando assim que vingou a tese de Oliveira Ascensão: se o local arrendado não for um bem juridicamente autonomizável, não há lugar ao exercício da preferência Para Pinto Furtado (em Manual do Arrendamento Urbano, Vol. II, 2011, 5ª Edição, pág.816 e ss.) quando se aliene ou dê em cumprimento um prédio urbano indiviso que comporte distintas unidades locadas a diferentes pessoas a preferência caberá, indistintamente, a cada um dos arrendatários, não apenas relativamente à sua unidade locada, embora a se reporte expressamente ao local arrendado, mas a todo o prédio. Na verdade, esta solução tem antecedentes históricos no nosso direito positivo. Apresentando-se vários arrendatários concorrentes a preferir abrir-se-á licitação entre ambos entre ambos ou, noutros casos, deverão preferir em conjunto. Se o prédio estiver constituído em propriedade horizontal o problema é muito mais simples: mesmo que a alienação ou dação em cumprimento envolva o inteiro edifício, a preferência terá de se fazer distintamente em relação a cada fração autónoma e só nela e apenas o respetivo arrendatário poderá preferir. (…. ) Ademais, a existência de um direito de preferência na aquisição de todo o prédio não onera mais gravemente a situação do senhorio. O direito de preferência não concede ao preferente qualquer privilégio de redução do preço de venda. Aliás, o vendedor deve comunicar ao comprador preferente o preço por que pretende vender e é na base desse preço que o comprador se determinará. Ao senhorio é-lhe, em princípio, indiferente vender o imóvel a A ou a B. Assim, na esteira do que já era defendido, não estamos perante uma (nova) opção legislativa mas em face de imprecisão de conceitos técnico-jurídicos.»” (itálico, negrito e sublinhado nosso)


XXXI. Face ao exposto a decisão recorrida, objeto do presente recurso, não pode manter-se, pois efetuou uma errada aplicação e interpretação da lei, nomeadamente o disposto no n.º 1 do artigo 224.º, 230.º, 236.º, 414.º, 415.º, 417.º, 410.º e a al. a) do n.ºs 1 e 9 do artigo 1091.º do Cód. Civil, assim como, o disposto nos artigos 6.º, 1004.º, 1029.º, n.º 3, 4 e 5 do artigo, n.º 2 do artigo 608.º, 607.º, al. d) do nº 1 do artigo 615.º, todos do Código de Processo Civil.


XXXII. Por conseguinte, atento os elementos aqui chamados à colação, deve o Venerado Supremo Tribunal de Justiça revogar o douto Acórdão do Venerado Tribunal da Relação do Porto, substituindo-o por um outro que considere que estamos perante a existência do direito de preferência, ou se assim se não concordar, deverá ordenar-se que baixe o processo ao Tribunal da Relação para a reapreciação da matéria de facto invocada, ou se assim se não considerar, deverá determinar-se o prosseguimento dos autos.


10.1. Os RR vieram apresentar contra-alegações, formulando as seguintes conclusões: (transcritas)


A- In casu, estamos perante uma ação especial intentada pelo Recorrente, inicialmente, contra a “Herança indivisa aberta por óbito de BB, Herança Indivisa aberta por óbito de DD, CC, EE e FF, pretendendo: “Preferir na venda do imóvel de que é arrendatário, mais requerendo que seja determinado o preço que deve ser proporcionalmente atribuído ao referido imóvel”.


B- Pretende ainda com a presente ação, que seja determinado o preço que deve ser proporcionalmente atribuído ao aludido imóvel. Alegando para tanto, que é arrendatário não habitacional de parte do imóvel e que o senhorio, pretende vender, juntamente com outros.


C- Mais, concretamente referiu o recorrente que é arrendatário do primeiro andar da casa de dois pavimentos sita no prédio urbano descrito na conservatória de registo predial do porto, sob o n.º 246, situado na Rua ..., da União de Freguesias de ..., Concelho ....


D- Não tendo sido constituída a propriedade horizontal relativamente a tal imóvel.


E- Contestaram os RR, defendendo, além do mais, que sendo o A. arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, não beneficia de direito de preferência legal na aquisição do locado.


F-Subsequentemente, foi admitida a intervenção principal passiva da Euro Empreendimentos, S.A, ora recorrida e adquirente do imóvel em causa. Os recorridos, apresentaram a sua contestação, alegando que o recorrente não beneficia de direito de preferência na aquisição do imóvel.


G- Concluída a tramitação de que se deu conta, foi, finalmente, proferida decisão de mérito sobre a pretensão do A., tendo doutamente, o Tribunal de 1.ªInstância absolvido os recorridos do pedido formulado pelo recorrente.


H- A única preferência que se discutia, era a eventual preferência legal.


I-Definidos, pois, de forma clara e acertada, os factos essências para a decisão da causa, o que fica apenas em causa, é saber se o arrendatário não habitacional de uma parte de um prédio urbano, não constituído em propriedade horizontal goza, (ou não) do direito legal de preferência na aquisição da totalidade desse prédio.


J- Diga-se, que a resposta a esta questão, só poderá ser um rotundo não.


K-Primeiramente, importa verificar qual a legislação aplicável ao caso em concreto.


L-Relativamente a este especial aspeto, ao contrário do que é referido pelo recorrente, vem sendo unanimemente afirmado pela Jurisprudência – que a lei reguladora do direito de preferência do arrendatário será a vigente na data em que se concretizou o ato de transmissão.


M- Para este efeito, veja-se designadamente o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, disponível in www.dgsi.pt, em que foi decidido o seguinte: “O direito legal de preferência configura uma factualidade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que apenas se transforma em direito potestativo quando o senhorio não lhe ofereceu a preferência”.


N- Ora, existe uma panóplia de decisões de instâncias superiores, designadamente, Tribunal da Relação, Supremo Tribunal de Justiça e Tribunal Constitucional, que vão ao encontro do entendimento dos Recorridos bem como do Tribunal que proferiu a sentença, no âmbito do presente processo.


O- As mais recentes decisões jurisprudenciais, designadamente, o decidido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-3-2021, disponível in “www.dgsi.pt”, onde os Venerandos Conselheiros decidiram, com especial relevo para o caso em apreço, que “O art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”.


P- Dito de outro modo, nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11- 07-2019, também referido naquele primeiro aresto que:


Tendo o legislador de 2006, por um lado, centrado a previsão do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, “na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, sendo que tais negócios só podem ser validamente realizados sobre esse local quando o mesmo seja dotado da necessária individuação jurídica” e tendo, por outro lado, eliminado o mecanismo de licitação entre vários arrendatários preferentes do mesmo prédio, que se encontrava previsto no n.º 2 do artigo 47.º do RAU, tudo isto “parece só poder significar a não extensão da preferência aos casos em que existam vários arrendatários sobre partes do mesmo prédio indiviso”, não tendo sido sua vontademanter a orientação até então maioritária de atribuir aos arrendatários urbanos um direito de preferência que extravasasse o objeto locado, como ocorre nos casos de arrendamento de parte de um prédio indiviso””.


Q- Com efeito, tal como decidido no mencionado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-7-2019, disponível in www.dgsi.pt, a preferência só pode ser validamente realizada sobre local dotado “da necessária individualização jurídica” – ou seja, sobre a totalidade do prédio ou sobre fração autónoma resultante da instituição da propriedade horizontal.


R- Com o mesmo entendimento, é o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-7- 2019, onde consta que “O artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos, como o dos autos, em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”.


S- Ainda nesse mesmo sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-3-2019, disponível in www.dgsi.pt., onde postula que: “Em face do art.º 1091º do CC, na versão introduzida pela Lei nº 6/2006 de 27-02, aplicável ao caso dos autos, o arrendatário comercial de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, direito apenas reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do mesmo prédio objeto de venda”.


T- Importa realçar ainda que, a interpretação acima referida tem suporte constitucional.


U- Tanto assim é, que o já mencionado Acórdão do Tribunal Constitucional nº 583/2016, proferido, em 3-11-2016, no processo nº 170/2016, disponível em “www.tribunalconstitucional, pt”, decidiu não julgar inconstitucional a norma extraída da alínea a) do nº1 do artigo 1091º do Código Civil, na redação introduzida pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio”.


V- Note-se que a Lei nº 64/2018, de 29/10, ao alterar o mencionado art.º 1091º do CC, veio atribuir ao arrendatário habitacional (sendo que no caso em apreço está em causa, recorde-se, um arrendamento não habitacional) de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência legal na transmissão do prédio (cfr. nº 8 do referido preceito).


W- Porém, tal preferência reporta-se não à totalidade do prédio, mas tão-somente à proporção do valor da parte arrendada em relação ao valor total da transmissão, ficando afetado ao preferente o uso exclusivo dessa parte (cfr. als. a) e b) deste nº 8).


X-Não obstante, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 299/2020, proferido, em 16-6-2020, no processo nº 984/2018, disponível em www.tribunalconstitucional.pt, veio declarar com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do nº 8 do art. 1091º do Código Civil, na redação dada pela referida Lei nº 64/2018, por violação do nº1 do artigo 62º, em conjugação com o nº 2 do artigo 18º da Constituição.


Y- Por outro lado, apenas no caso de existirem vários arrendatários do prédio não constituído em propriedade horizontal é que se permite, no n.º 9 do art.º 1091º - também introduzido pela Lei nº 64/2018 -, que aqueles exerçam em conjunto os seus direitos de preferência sobre a totalidade do prédio.


Z- Assim, ainda que o referido nº 9 se aplicasse aos presentes autos – o que não sucede, ao contrário do que erradamente o recorrente quer fazer crer, dada o aplicar-se o art.º 1091º na sua versão anterior, conforme acima já referido -, a verdade é que no caso, o recorrente pretende preferir sozinho na totalidade do prédio.


AA- Esta possibilidade não está prevista no referido nº 9, que apenas prevê, conforme referido, a aquisição em conjunto pelos vários arrendatários da totalidade do prédio.


BB- Finalmente, note-se que, tal como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12- 4-2021, in “www.dgsi.pt”, “A circunstância de o local arrendado em parte do prédio não constituído em propriedade horizontal ser passível de autonomização material ou mostrar-se inscrito na matriz como realidade fiscal autónoma é irrelevante para o exercício do direito de preferência, porque, enquanto não se proceder à constituição da propriedade horizontal, a autonomia material dos espaços arrendados não têm qualquer significado jurídico, não podendo estes, nessas circunstâncias, ser objeto de negócio jurídico”.


CC- Concretizando, inexistem dúvidas que o A., enquanto arrendatário não habitacional de parte de prédio indiviso não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência, quer sobre essa parte sobre a qual incide o arrendamento, quer sobre a totalidade do prédio.


DD- Nestes termos - e tal como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto proferido nestes autos, na senda do decidido no Acórdão da mesma Relação de 19-3-2002, in www.dgsi.pt -, “concluindo-se que o A. não tem direito de preferência na aquisição do prédio acima descrito em A), importa julgar a presente ação, desde já, improcedente, não se justificando, porque inútil, a realização de qualquer diligência com vista à determinação do preço a pagar por essa aquisição. Com efeito, tal como se lê neste último aresto, dúvidas inexistem que, na presente ação especial, “há que averiguar [primeiramente] se o exercício do direito de preferência em relação à fração do prédio em que se pretende preferir é legalmente admissível. Se o for, terá de proceder-se à realização das diligências necessárias com vista à determinação do preço atinente à parte em que se pretende preferir”.


EE- Se o não for, como sucede no caso presente, então, a ação tem de ser julgada improcedente, não havendo razão alguma que justifique ou imponha a realização de qualquer diligência com vista à determinação de qualquer preço, o que, a fazer-se, não passaria de ato despido de qualquer utilidade.


FF- Ora, como já se deixou dito, o acórdão proferido, encontra-se exemplarmente fundamentada em várias e mui doutas decisões de Tribunais Superiores, proferidas no âmbito da mesma questão, que vão ao encontro da sentença proferida.


GG- Realce-se que o recorrente, nas suas alegações de recurso lança mão de legislação que não é aplicada, a esta situação em concreto, bem como pretende que seja aplicada uma norma que foi julgada inconstitucional.


HH-Tal entendimento, terá, pois, de necessariamente naufragar, não podendo merecer acolhimento por parte do Tribunal superior.


II-Ou seja, apesar da inconstitucionalidade da norma, que foi declarada pelo Tribunal Constitucional, o recorrente insiste erradamente na sua aplicação,


JJ- Em suma, é nosso firme entendimento que o recurso interposto carece em absoluto, de fundamento, de direito, tendo o douto Tribunal a quo ponderado adequadamente, e nesses termos, feito uma correta aplicação do direito, pelo que, o Douto Acórdão recorrido não merece qualquer censura e, portanto, deve ser negado, provimento ao recurso apresentado.


11. Remetidos os autos à Formação, foi proferido Acórdão que julgou verificada a contradição jurisprudencial pressuposta pelo norma constante da alínea c) do n.º1, do art.º 672, do CPC, admitindo a revista excecional.

12. Cumpre apreciar e decidir.

*


II – Enquadramento facto-jurídico


A . Dos factos.

Foram considerados provados os seguintes factos:

1 – Em 10-8-2018, o A. recebeu a carta junta como doc. nº 3 à petição, remetida por CC e II.


2 – Consta dessa carta, designadamente, o seguinte:


“Na qualidade de cabeça de casal e de interessados na herança aberta por óbito de BB (…) e da herança aberta por óbito de DD (…) da qual fazem parte os seguintes prédios:


A) Prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e por casa de um pavimento, sito na Rua ... da União de Freguesias de ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº 246 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial sob os arts. 994º e 1856º (…);


B) Prédio urbano composto por 16 casas, sito na Rua ..., União de Freguesias de ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº 247 da freguesia de ..., a saber:


“Casa 1 – de dois pavimentos, com o art. 958 da dita união de freguesias (…);


Casa 2 – de um pavimento, com o art. 960º da dita união de freguesias (…)


(…)


Casa 16 – de dois pavimentos e quintal, com o art. 988º da dita união de freguesias (…).


Vimos dar conhecimento a V. Exa., na qualidade de inquilino do 1º andar do prédio identificado em A), composto por casa de dois pavimentos, com entrada pelo nº 426 da Rua..., com o art. 994º da União de Freguesias de ..., de que vamos proceder à venda do imóvel à sociedade comercial “Euro Empreendimentos, SA” (…), sendo as condições do negócio as seguintes:


I) Venda da totalidade dos prédios aqui identificados;


II) O preço global da transação é de 825 000 €, a ser liquidado integralmente no ato de celebração do contrato definitivo, pelo meio de cheque bancário;


III) O Contrato definitivo será celebrado no dia 31 de Agosto de 2018, num Escritório/Cartório Notarial ...;


IV) os imóveis são vendidos no estado físico em que se encontram e onerados com s seguintes arrendamentos:


- o primeiro piso da casa de dois pavimentos referente ao prédio identificado em A) com o art. 994, encontra-se arrendado a JJ, pela renda mensal de 384,05 €;


(…)


Todos os arrendamentos urbanos em causa são de natureza vinculística, sendo o primeiro de natureza não habitacional e os restantes de natureza habitacional.


Caso pretenda exercer o direito de preferência nesta venda, deverá comunicar-nos por escrito, no prazo legal de 8 dias (…), sob pena de ficar preterido o referido direito.


(…)”.


3 – O prédio acima referido em A) é composto por uma casa de dois pavimentos e por uma casa de um pavimento, situando-se na Rua ... da União de Freguesias de ..., concelho ..., e está descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº 246 da freguesia de ....


4 - O prédio acima referido em B) é composto por 16 casas, situando-se na Rua ..., União de Freguesias de ..., concelho ..., e está descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº 247 da freguesia de ..., não se encontram submetidos ao regime da propriedade horizontal.


5 – Por documento de fls. 78-verso e segs., KK, por si e na qualidade de procurador de BB, LL e MM declararam vender a “Euro Empreendimentos, SA”, e esta declarou comprar-lhes, a casa de dois pavimentos e a casa de um pavimento acima referidas em A), bem como as casas acima referidas em B), pelo preço global de 825 000 €, tendo sido atribuído à casa de dois pavimentos referida em A) o preço de 425 000 € e à casa de um pavimento referida em A) o preço de 40 000 €.

B. Do direito.


1. O presente recurso foi admitido como revista excecional, consignando-se no Acórdão da Formação:


“(…) 6. Ora, analisados os processos em confronto, resulta evidente que, em ambos os processos, se discutiu se o arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no art.º 1091º n.º 1 alínea a) do Código Civil, na redação da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro, direito de preferência na venda do prédio.


Acontece que, como bem adianta o Recorrente/Autor/JJ, no acórdão recorrido sustenta-se que: “O art. 1091º, nº 1, do CC, na redação da Lei 6/2006 de 27 de fevereiro, prevê que o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objeto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência nem sobre essa parte (sem autonomia jurídica), nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último”, ao invés, no acórdão fundamento, defende-se que: “O arrendatário de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, continua a ter, perante o disposto no artº 1091º nº1 al. a) do CC, direito de preferência na venda ou dação em pagamento do prédio.”


7. Reconhecendo haver pronúncias contraditórias expressas nos acórdãos em confronto, determinantes para as decisões das respetivas causas, acerca de uma mesma questão jurídica fundamental, resta concluir que se encontra verificada a contradição jurisprudencial pressuposta pela norma constante da alínea c) do n.º 1 do art.º 672º do Código de Processo Civil.”


2. Delimitado, assim o âmbito do presente recurso, importa, ainda que de forma brevíssima, fazer referência a duas questões suscitadas pelo Recorrente, nas alegações/conclusões da revista, apresentadas.


2.1. A primeira prende-se com em saber se o prédio a preferir é todo uno, no concerne à respetiva estrutura e autonomia relativamente ao outro prédio, e ainda a uma possível concessão de direito de preferência pelos RR anteriores proprietários, devendo em conformidade ser ampliada a matéria de facto assente que contemplasse a factualidade correspondente.


Em sede do Acórdão da Relação do Porto, agora em crise, apreciando a pretensão do então Apelante, quanto a terem sido omitidos factos relevantes em tal sentido, pronunciou-se expressamente esse Aresto, concluindo que não se justificava ampliar a decisão de facto, estando reunidos no processo todos os elementos de facto para decidir de mérito, não carecendo de prosseguir para produção de prova.


Ora, é sabido que a competência deste Tribunal, Supremo Tribunal de Justiça, está confinada à matéria de direito, enquanto tribunal de revista, não podendo debruçar-se sobre a matéria de facto, enquanto ocorrências da vida real, eventos materiais e concretos ou quaisquer mudanças operadas no mundo exterior, mas também o estado, qualidade e situação reais das pessoas e das coisas, percetíveis como tal que não tem de ser necessariamente simples1, ficando desse modo vinculado aos factos fixados pelo Tribunal recorrido, a que aplica definitivamente o regime jurídico tido pelo o adequado, art.º 682, n.º1, do CPC.


Com efeito, como decorre do art.º 662, n.º1, do CPC, impende sobre a Relação o dever de alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa da proferida, estabelecendo-se no n.º 2 e n.º 3 do mesmo preceito legal, um conjunto de decisões e procedimentos que podem ser determinados e seguidos, consignando-se expressamente no n.º 4, também do art.º 662, que das decisões da Relação previstas nos aludidos n.ºs 1 e 2 não cabe recurso para este Tribunal, num compreensível afastamento da possibilidade de pronúncia sobre a matéria de facto, vedada que lhe está a competência, ficando desse modo impedido de censurar o uso dos poderes conferidos à Relação, por tais dispositivos legais2, nada em conformidade importando decidir.


2.2. Alude também o Recorrente à atribuição do direito de preferência por via convencional, mencionando que os Recorridos efetuaram o que sempre tinham prometido fazer, isto é, conferir-lhe direito de preferência no caso de venda do imóvel, efetuando a comunicação pela carta enviada, como consta dos autos, que mereceu o assentimento do Autor, aceitando a proposta.


Não se questiona, que para além dos direitos legais de preferência, existem direitos convencionais de preferência, decorrentes de negócios jurídicos, celebrado pelos seus sujeitos, no âmbito da respetiva autonomia da vontade.


Temos, desse modo, os pactos de preferência, regulados nos artigos 414, e seguintes3 do CC, exigindo-se expressamente, como requisito substantivo, em função do objeto, caso dos bens imóveis, a existência de documento assinado pela parte que se vincula, ou por ambas, se unilateral ou bilateral, artigos 415 e 410, n.º2, do CC. Tal não se confunde com possíveis acordos negociais, ainda que versem sobre o conteúdo do contrato definitivo, sem exigências formais anteriores, ou contemporâneas do negócio a realizar, mas naturalmente sendo comunicados, por escrito, os termos do contrato a celebrar.


Não se divisando a necessidade de qualificar juridicamente as comunicações dadas como provadas nos autos no âmbito dos acima designados acordos negociais, certo é, que tais comunicações não se consubstanciam como um pacto de preferência, concedendo um direito convencional de preferência, afastada ficando assim a pretensão do Recorrente nesse âmbito.


3. Passando ao objeto do recurso, isto é, se ao Recorrente arrendatário assiste um direito legal de preferência na compra do imóvel, não constituído em propriedade horizontal, onde se situa o local arrendado.


3.1. Resulta dos autos que KK, por si e na qualidade de procurador de BB, LL e MM declararam vender a “Euro Empreendimentos, SA”, e esta declarou comprar-lhes, a casa de dois pavimentos e a casa de um pavimento referidas em A), (Prédio urbano composto por casa de dois pavimentos e por casa de um pavimento, sito na Rua ... da União de Freguesias de ..., concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº 246 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial sob os arts. 994º e 1856º) bem como as casas acima referidas em B), pelo preço global de 825 000 €, tendo sido atribuído à casa de dois pavimentos referida em A) o preço de 425 000 € e à casa de um pavimento referida em A) o preço de 40 000 €.


O primeiro piso da casa de dois pavimentos referente ao prédio identificado em A) com o art. 994, encontra-se arrendado a JJ, Recorrente, pela renda mensal de 384,05 €, sendo de natureza não habitacional, tendo em 10-8-2018, recebido a carta remetida por CC e II, dando-lhe conhecimento, na qualidade de inquilino do 1º andar do prédio identificado em A), de que iriam proceder à venda do imóvel à sociedade comercial “Euro Empreendimentos, SA” (…), sendo o contrato definitivo celebrado no dia 31 de Agosto de 2018.


3.2. Importa ter presente que o direito legal de preferência confere ao respetivo titular a faculdade de substituir ao adquirente da coisa sobre a qual o direito incida, em igualdade de condições, isto é, um privilégio de prioridade em situação relativas, de confronto ou competição com outrem4, não nascendo com a constituição da relação jurídica de onde emana a preferência, mas sim quando se verificam os concretos pressupostos enunciados na norma que o confere. Tal significa, por um lado, que inexiste, desde logo, por parte do sujeito passivo da obrigação de preferência o dever de contratar com o preferente, e por outro, que o direito de preferência dimana tantas vezes, quantas as que o respetivo pressuposto se venha a verificar.


Releva também sublinhar que com atribuição do direito de preferência ao arrendatário se visou, tão só, permitir a este o acesso à propriedade do prédio arrendado, e não de proteger o arrendamento5, sem esquecer contudo que o mesmo se consubstancia numa verdadeira exceção à regra geral da liberdade de escolher o contraente no que respeita à disponibilidade da coisa pelo proprietário, regra esta com assento legal, nomeadamente nos artigos 405 e 1305, do CC, pelo que refletindo a lei o presumível equilíbrio dos interesses em conflito, art.º 9, n.º 3, também do CC, o sacrifício exigido a quem está adstrito à obrigação de preferência deverá apenas ser o necessário à prossecução do objetivo visado pela norma.


Desse modo compreende-se a atribuição do direito de preferência aos arrendatários habitacionais, permitindo o acesso a casa própria e uma estabilidade conferida a título habitacional, na medida da correspondente ligação do arrendatário ao locado, face a uma determinada duração do contrato.


Já quanto aos arrendatários comerciais, industriais ou os relativos ao exercício de profissões liberais, a atribuição do direito de preferência estará necessariamente ligada à relevância das atividades exercidas no locado, em termos económicos, mas também sociais, numa decorrente disponibilidade do local, de forma estável, assegurando a continuidade do desempenho, envolvendo não só os interesses do arrendatário, mas também de todos aqueles que orbitam e permitem o normal desenrolar do funcionamento, caso de trabalhadores, mas também da clientela, com o inerente favorável reporte económico.


3.3. A lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretiza o ato de alienação, porquanto o direito legal de preferência mais não é que uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que apenas com o negócio translativo de propriedade, no caso a celebração da escritura de compra e venda, o transforma em direito potestativo, se não tiver ocorrido a oferta do exercício da preferência6.


Reportando a 31.08.2018, vigorava o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), Lei 6/2006, de 27.027, que alterando, para além do mais o Código Civil, reintroduziu no mesmo o regime de arrendamento urbano, nomeadamente o disposto no art.º 1091, que consagrando a regra geral do direito preferência, consignava, “1- O arrendatário tem direito de preferência; a) Na compra e venda ou dação em pagamento do local arrendado há mais de três anos (…) 4- É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416 a 418 e 1410.”.


3.3.1. Antes de se prosseguir, importa reter que a Lei 64/2018, de 29.10, que entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, art.º 3, veio segundo o disposto no seu art.º 1, alterar o Código Civil, garantindo o exercício efetivo do direito de preferência pelos arrendatários na alienação do locado, e assim alterando o vertido no art.º 1091, consignando-se relevantemente: “8 - No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: a) O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; b) A comunicação prevista no n.º 1 do artigo 416.º deve indicar os valores referidos na alínea anterior; c) A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado. 9 - Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade”, evidenciando-se uma ampliação da atribuição do direito de preferência apenas aos arrendatários habitacionais dos prédios não constituídos em propriedade horizontal.


Ora facilmente se depreende que não são tais normativos aplicáveis aos presentes autos, tendo em conta o início da vigência do regime legal.


Por outro lado, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 299/2020, de 18.06, in DR. 1.ª série de 18.0.2020, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma constante do n.º 8, do art.º 1091, do CC, na redação dada pela lei 64/2018, de 29 de outubro, pelo que, nos termos do art.º 282, n.º1, da Constituição da Republica, produziu efeitos desde a entrada em vigor, afastada ficando, igualmente, a sua aplicabilidade.


3.4. Voltando ao disposto no art.º 1091, n.º1, a), do CC, aplicável aos presentes autos, acolhe-se o entendimento que a preferência legal ali atribuída tem índole excecional, por redundar numa verdadeira limitação à obrigação de contratar, no que concerne à escolha da contraparte, mas também injuntiva, face às razões de interesse público que lhe subjazem, pelo que exige-se na sua interpretação e subsequente subsunção aos factos realizado pelo julgador, uma natural ponderação e cautela8 quanto às obrigações do sujeito passivo, isto é, do locador9.


Sendo um direito que apenas pode ser exercido pelo arrendatário, na vigência do contrato de arrendamento, pode dizer-se que resulta do enunciado legal uma coincidência entre o objeto do direito de preferência com o direito decorrente do aludido contrato de arrendamento que a justifica ou suporta, desse modo, o locatário que apenas ocupa por via do arrendamento, uma parte do imóvel, não constituído em propriedade horizontal, não tem preferência na venda ou dação em cumprimento de todo o prédio, pois o texto legal refere, tão só, ao local arrendado, na observação do enunciado princípio da coincidência10.


Ainda sobre o objeto a adquirir, o local arrendado, tendo presente os limites físicos que não coincidem com os jurídicos, saliente-se que na formulação legal do art.º 1091, n.º 1, a), do CC, comparando com o vertido no âmbito do art.º 47, do DL 321-B/90, de 15.10, Regulamento de Arrendamento Urbano (RAU), desapareceram dois segmentos literais que podiam sustentar que a preferência do arrendatário poderia estender-se para além dos aludidos limites físicos do arrendado, pois contrariamente do ora consagrado, era mencionado o “arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma”, bem como “as licitações na hipótese de serem dois ou mais preferentes”, e assim afastada a hipótese do exercício do direito de preferência na falta de coincidência dos limites físicos do local arrendado com os jurídicos, como no caso do locado se encontrar num prédio urbano não constituído em propriedade horizontal11.


Saliente-se, por outro lado, que se pode dizer que existe neste Tribunal uma Jurisprudência consolidada no sentido que o art.º 1091, n.º1, a), do CC, na redação dada pela Lei 6/2006, de 27.02, NRAU, como se já se mencionou, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica do prédio, como ora Recorrente, na venda do imóvel não constituído em propriedade horizontal, onde se situa o locado12.


Para além das razões já enunciadas, chama-se também à colação, no sentido de firmar o entendimento seguido, e que se perfilha, o precedente legislativo do NRAU, Proposta de Lei n.º 140/IX13, que continha um preceito que pretendia eliminar o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados, numa visada transparência do mercado mobiliário, mas também a Lei 42/17, de 14.06, no seu art.º 7, n.º 3, estabelecendo que os arrendatários de imóvel em que esteja situada uma entidade de reconhecido interesse histórico, cultural ou social, gozam do direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou parte de imóveis, nos quais se encontram instalados, deixando evidente a necessidade de assegurar uma tutela específica, diferenciando-a da tutela geral decorrente do n.º 1, a) do art.º 1091, do CC, pretendendo o legislador salvaguardar, nomeadamente, as chamadas lojas históricas, situadas muitas vezes em edifícios que não estão constituídos em propriedade horizontal, até por em geral não reunirem os requisitos para tanto.


4. Aqui chegados, conclui-se, tal como o fizeram as Instâncias que não assiste ao Recorrente o pretendido direito de preferência, improcedendo as conclusões formuladas.


III – DECISÃO


Nestes termos, decide-se negar a revista.


Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 28 de setembro de 2023

Ana Resende (Relatora)

Amélia Alves Ribeiro

Graça Amaral


*


Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.


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1. Como, sem perder a atualidade, refere Alberto Reis, Código de Processo Civil Anotado, III vol., fls. 206 e seguintes, no estabelecimento da dicotomia, da matéria de facto apurada à margem direta da lei, averiguando factos cuja existência não dependa da interpretação de qualquer norma jurídica, matéria já de direito.↩︎

2. Cf. Ac. STJ de 30.11.2011, processo n.º 581/1999.P1.S1, o uso ou não uso dos poderes da Relação, em termos de decisões negativas ou positivas, desde que fundadas em meios de prova livremente apreciáveis pelo julgado, reportam-se à valoração da matéria de facto, pronúncia sobre a matéria de facto que é vedada ao STJ, Ac. STJ de 4.07.2013, processo n.º 1727/07.1TBSTS-L.P1, não pode em sede de revista sindicar-se alegados erros na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais, Ac. STJ de 05.05.2016, processo n.º 690/13.4TVPRT.P1.S1, cumprindo às instâncias apurar a matéria de facto, só a Relação pode emitir um juízo de valor sobre o apurado na 1.ª instância, Ac. STJ de 24.11.2020, processo n.º 2350/17.8T9PRT.P1.S1., o que Supremo pode conhecer em matéria de facto são os efetivos erros de direito cometidos pelo tribunal recorrido na fixação da prova, competindo mediante iniciativa da parte pronunciar-se sobre a legalidade do apuramento dos factos, Ac. STJ de 18.06.2019, processo n.º 745705.9TBFIG.C1.S2, a livre apreciação da prova não é sindicável pelo STJ, todos in www.dgsi.pt.↩︎

3. Como contrato autónomo, ou cláusula acessória de outros contratos.↩︎

4. Como menciona Aragão Seia, in Arrendamento Urbano, pag. 301, referenciando Antunes Varela, RLJ, 118, pag. 126.↩︎

5. Aragão Seia refere na obra citada, a fls. 304, que tanto é assim que não há qualquer sanção para o caso de após a opção, o prédio ser vendido devoluto, e a ação de despejo, para casos verificados posteriormente à compra e venda, ser totalmente irrelevante para a existência do direito de preferência e decorrente exercício judicial.↩︎

6. Cf. Acórdãos do STJ de 21.10.2016, processo n.º 9065/12, e de 14.09.2023, processo n.º 135/20.3T8PVZ.P1.S1.↩︎

7. Dando nota da evolução legislativa no âmbito da atribuição do direito de preferência ao arrendatário, vejam-se os Acórdãos do STJ de 11.07.2019, processo n.º 3818/17.1T8VNF.G1.S2, e de 14.09.2023, processo n.º 135/20.3T8PVZ.P1.S1.↩︎

8. Cf. João Brandão Proença, in Para uma leitura restritiva da norma (artigo 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, Volume II, 2008, fls. 963, mencionando que se deve aplicar com prudência uma norma tida por genérica, “ (…) é segundo a nossa convicção, o único que permite evitar uma (anómala) asserção acerca do tom (por desproporcionado) da norma do art.º 1091, a descaracterização parcial do direito de preferência (…)”.↩︎

9. Cf. Laurinda Gemas, Albertina Pedroso, João Jorge, in Arrendamento Urbano, Novo regime anotado e legislação complementar, 2009, fls. 430 e segs.↩︎

10. Cf. Laurinda Gemas e outros, obra citada, fls. 435, com referência doutrinal, no sentido maioritário do entendimento enunciado.↩︎

11. Cf. Maria Olinda Garcia, O Arrendamento Plural, Quadro Normativo e Natureza Jurídica, 2009, fls. 162 e 163.↩︎

12. Vejam-se os Acórdãos do STJ de 10-01-2023, Revista n.º 2834/18.0T8STR.E1.S1, de 13-10-2022 Revista n.º 3391/08.1TVLSB.L1.S1, de 25-03-2021, Revista n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1, de 09-03-2021 Revista n.º 2899/18.5TBALM.L1.S1, de 02-06-2020, Revista n.º 22782/17.0T8PRT.P1.S2, de 07-11-2019 Revista n.º 14276/18.3T8PRT.P1.S2, de 11-07-2019, Revista n.º 3818/17.1T8VNF.G1.S2, de 26-02-2019, Revista n.º 9/13.4TBFAF.G1.S1, de 18-10-2018, Revista n.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1, de 24-05-2018, Revista n.º 1832/15.0T8GMR.G1.S2, de 21-01-2016, Revista n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, todos consultáveis, in www.dgsi.pt.↩︎

13. Anteprojeto de decreto-lei autorizado aprovando o regime dos novos arrendamentos urbanos, no DAR, II série A, n.º 5/IX/3, suplemento de 30.09.04.↩︎