Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
94/14.1T8VRS.E1.S1
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
LIQUIDAÇÃO
INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
EQUIDADE
Data do Acordão: 11/07/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INCIDENTES DA INSTÂNCIA / LIQUIDAÇÃO – PROCESSO EM DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA.
Doutrina:
- Giuseppe Chiovenda, Istituzioni di diritto processuale civile, tomo I — I concetti fondamentali, la dottrina delle azione, Napoli, Jovene, 1933, p. 42.
- José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - Artigos 1.º a 361.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), p.706 e ss.
- Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e 675-676.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 358.º A 361.º E 609.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 3-02-2009, PROCESSO 08A3942
- DE 22-02-2011, PROCESSO 81/04.8TBVLF.C1.S1
- DE 10-01-2013, PROCESSO 1346/10.5TBT.S1;
- DE 17-11-2015, PROCESSO 480/11.9TBMCN.P1.S1
- DE 21-03-2019, PROC. 4966/17.3T8LSB.L1.S1, TODOS IN HTTP://WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:

- DE 9-05-2017, PROCESSO 2440/13.6TBLRA.C1, IN HTTP://WWW.DGSI.PT
Sumário :
I. Estando provados os requisitos do enriquecimento sem causa, a  exacta medida do enriquecimento e do empobrecimento não constitui facto essencial à condenação na obrigação de restituição, em conformidade com o artigo 609.º, n.º 2, do CPC.

II. O incidente de liquidação, regulado nos artigos 358.º a 361.º do CPC, é o instrumento próprio para apurar ou tornar líquido o pedido genérico bem como o pedido específico que não seja possível confirmar enquanto tal.

III. Sendo o incidente de liquidação o instrumento que melhor assegura que o sujeito obtém aquilo – tudo aquilo mas só aquilo – a que tem direito, o recurso à equidade deve ser subsidiário.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



I. RELATÓRIO



AA intentou a presente acção declarativa comum contra BB, ambos com os demais sinais constantes dos autos, pedindo que se declare que a situação de união de facto estabelecida entre autora e réu e iniciada em 1980 cessou a partir de 2009 e se declare que todo o património adquirido durante a vigência dessa união de facto (composto pelo prédio urbano sito na Rua …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º 4…7/19…9) foi feito com economias de ambos os membros da união de facto e que qualquer deles tem direito a metade, condenando-se o réu a entregar à autora metade do valor de tal património.

Alegou, em síntese, que viveu em união de facto com o réu entre 1982 e 2009, a qual cessou por vontade deste, e o mencionado prédio foi adquirido com economias de ambos na constância dessa união.

O réu contestou, alegando, em suma, que o prédio urbano foi apenas adquirido por si com meios próprios e deduziu pedido reconvencional, no qual peticiona que se reconheça o direito de propriedade em exclusivo sobre o prédio urbano, que se condene a autora a entregar a importância de € 68.400,00 relativa à utilização do imóvel que vem fazendo desde Março de 2008 e o valor de €600,00 por cada mês de utilização que do mesmo fizer, abstendo-se de praticar atos sobre o prédio sem autorização, nomeadamente não alterando a estrutura do mesmo e mantendo-o na sua forma original

A autora apresentou réplica, na qual impugnou os factos, concluindo pela improcedência do pedido reconvencional, e pediu a condenação do réu como litigante de má fé em multa e indemnização e que se reconheça direito de retenção sobre o prédio urbano para pagamento da quantia correspondente a metade do valor do imóvel.

Foi realizada audiência prévia, no âmbito da qual foi indeferida a ampliação do pedido e proferido despacho saneador, após o que foi identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova, sem que tenha sido apresentada reclamação.

Realizado o julgamento foi proferida a competente sentença, cujo dispositivo se transcreve.

“A) - julgar a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

- declaro que autora e réu viveram em situação de união de facto no período compreendido entre 1982 e 2009, situação que cessou nessa data;

- declaro que o património adquirido durante a vigência dessa união de facto, correspondente ao prédio urbano, sito na Rua …, nº …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº4..7/19…9 e inscrito na matriz predial urbana sob o artº8294 daquela freguesia, foi feito com as economias de ambos os membros da união de facto;

- declaro que a autora tem direito a metade do valor desse prédio urbano, na quantia de €130.000,00 (cento e trinta mil euros), deduzida a quantia de Esc. 270.000 (duzentos e setenta mil escudos) atualizada de acordo com os índices de inflação à data do trânsito em julgado da sentença;

- condeno o réu a entregar à autora a referida quantia;

B) - julgar a reconvenção parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:

- declaro que o réu é proprietário do prédio urbano sito na Rua …, nº …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº 4…7/19…9 e inscrito na matriz predial urbana sob o artº 8294 da freguesia de …;

C) - absolvo autora e réu do demais peticionado na ação e na reconvenção;

D) - julgo improcedente, por não provado, o pedido de condenação do réu como litigante de má-fé e, em consequência, absolvo-o deste pedido”.


Inconformado veio o réu BB interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Évora.

Apreciando este recurso, acordaram os Exmos. Juízes Desembargadores deste Tribunal da Relação em “julgar parcialmente procedente a apelação e alterar a decisão recorrida, condenando o réu a restituir à autora a quantia que esta suportou com o pagamento do empréstimo referido em 18 dos factos provados, bem como as quantias que suportou com a reconstrução e ampliação do prédio referida em 21 dos factos provados, que se vier a liquidar em execução de sentença, por enriquecimento sem causa, mantendo no mais o decidido”.


Inconformada, veio a autora AA, por sua vez, interpor recurso de revista para este Supremo Tribunal.

Na conclusão das suas alegações diz o seguinte:

1.- O Tribunal recorrido entendeu que 'tem razão o recorrente ao defender que apurando-se ter havido união de facto entre a A. e Réu, e que ambos contribuíram com os seus rendimentos para a construção e ampliação do imóvel, a Autora tem direito a ser ressarcida do quantum efectivamente disponibilizado, reduzindo-se o montante que o Réu lhe deverá entregar a título de compensação de enriquecimento sem causa aos montantes que efectivamente comprovou.

Porque se desconhece qual o montante que a Autora e o Réu liquidaram, em conjunto do empréstimo relativo ao imóvel, bem como o que aquela despendeu nessa reconstrução, cessada que foi a união de facto em 2009, deve o Réu restituir à Autora, na proporção de metade, a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, por enriquecimento sem causa, relativa ao valor total pago por ambos, por ser esse o exacto montante que traduz o empobrecimento da Autora e que corresponde ao enriquecimento do Réu, ou seja, ser esse o valor indevidamente recebido.'

2.- Atentos os contornos do caso 'sub judice' é manifesto não ser possível apurar 'o exacto valor' do contributo de A. e R. para 'a reconstrução e ampliação para um edifício de habitação e comércio, a que corresponde o processo de obras nº 135/98 Câmara Municipal de …'

3. A decisão em crise, a manter-se, é inexequível e logo imprestável.

4. No caso vertente é patente que o enriquecimento do R. resulta da valorização do prédio com as obras realizadas por si e pela A., não sendo possível distribuir a contribuição de cada um, devendo fixar-se o valor da compensação/indemnização devida à A., com recurso à equidade nos termos do artigo 4º do Código Civil, mas tendo por base os valores apurados na perícia e que a proporção de contribuição de cada um foi de 50%, sobretudo considerando que o R. fica com um imóvel e a A. apenas poderá receber um montante monetário.

5. Tudo razões para revogar a decisão recorrida e manter a sentença da 1ª instância”.


O réu contra-alegou, pugnando pela manutenção do Acórdão recorrido.


Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão (única) a decidir, in casu, é a de saber se a autora / ora recorrente tem direito a metade do valor do imóvel pertence ao réu / ora recorrido.


*

II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - A autora é divorciada.

2 - O réu é solteiro.

3 - Autora e réu viveram em comunhão de mesa, leito e habitação, como se marido e mulher se tratassem, no período entre 1982 e 2009.

4 - Primeiro habitando em …, depois em …, no Bairro do …, em casa arrendada pela autora, local onde esta vive actualmente.

5 - Por último, habitando o prédio urbano, sito na Rua …, em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de …, sob o nº4…7/19…9, inscrito na matriz predial urbana de …, sob o artº 8294.

6 - Dessa vivência em comum nasceram dois filhos, CC, nascido em … .01.1982 e DD, nascida em … .02.1985.

7 - Durante o período referido em 3. autora e réu estiveram separados, por período não concretamente apurado, entre os anos de 1997 e 1999.

8 - Altura em que o réu viveu em …, com EE, em comunhão de mesa, leito e habitação, como se fossem marido e mulher.

9 - Dessa vivência em comum nasceu um filho, FF, nascido em … .12.1997.

10 - Por vezes, o réu pernoitava na camarata da PSP de …, onde então prestava serviço.

11 - Durante o período em que autora e réu viveram juntos ambos contribuíam com os rendimentos do seu trabalho para as despesas da vida conjunta, nomeadamente as de alimentação, de vestuário, médicas e medicamentosas e de habitação.

12 - Possuindo uma conta bancária em que ambos eram titulares, domiciliada na CAIXA GG, com o nº 0…0.

13 - Apresentando em conjunto as respetivas declarações de rendimentos nomeadamente referentes aos anos de 1999, 2000, 2001, 2002 e 2003.

14 - O pai do réu, em data não concretamente apurada, negociou a aquisição de um prédio urbano, sito na Rua …, em …, inscrito na matriz sob o artº1712, daquela freguesia.

15 - O réu celebrou contrato promessa de compra e venda com o anterior proprietário, em 20.04.1998, nos termos do qual prometia adquirir esse prédio urbano, pelo preço global de Esc.5.000.000$00, com sinal na quantia de Esc.270.000$00.

16 - O valor do sinal foi pago pelo réu com dinheiro que lhe foi dado pelo seu pai.

17 - Em 11.05.1998 o réu outorgou no Cartório Notarial de … uma escritura pública de compra e venda e mútuo com hipoteca, através da qual adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio urbano identificado em 15.

18 - Contraindo um empréstimo para pagamento do remanescente do preço, no valor de Esc.4.500.000$00, a ser pago através da conta bancária referida em 12. ou outra a indicar.

19 - O réu contraiu outro empréstimo no valor de Esc.6.500,000$00, que deu lugar a nova hipoteca sobre o referido prédio urbano (ap. 6 de 12.05.1999).

20 - O pagamento das últimas prestações dos empréstimos referidos em 18. e 19. foi realizado na íntegra pelo réu.

21 - No prédio urbano adquirido através da escritura pública referida em 17. autora e réu levaram a cabo a reconstrução e ampliação para um edifício de habitação e comércio, a que corresponde o processo de obras nº 135/98 da Câmara Municipal de … .

22 - A construção foi realizada faseadamente, consistindo na ampliação e reconstrução desse prédio, ficando concluída em 2003 a parte do prédio destinada a comércio, e, posteriormente em data não concretamente apurada, a parte habitacional.

23 - Prédio onde autora e réu viveram juntamente com os seus dois filhos.

24 - A autora explorou e explora um estabelecimento comercial de pastelaria (restauração e bebidas) denominado “HH” na parte do prédio destina a comércio.

25 - Não pagando qualquer contrapartida monetária ao réu.

26 - Estabelecimento comercial que foi explorado entre 2006 e 2007 pelo filho da autora e do réu.

27 - Autora e réu foram fiadores em empréstimo no valor de €22.500,00, contraído junto da Caixa GG, em 17.06.2003, através de escritura pública de hipoteca e fiança, outorgada no Cartório Notarial de … .

28 - O montante do empréstimo destinava-se à aquisição de uma viatura em nome do filho de ambos, CC, e à aquisição de materiais de construção para o prédio urbano.

29 - Ficando a hipoteca registada sobre o prédio urbano referido em 18.

30 - Os pagamentos dos empréstimos bancários contraídos pelo réu foram efetuados através da conta bancária referida em 12. e da conta bancária de que este era único titular, domiciliada na CAIXA GG, com o nº 0…0, com rendimentos de ambos.

31 - A vivência em comum entre autora e réu cessou por vontade deste.

32 - O qual se ausentou para o … em Novembro de 2009, passando ali a viver com II.

33 - O réu tem inscrita a seu favor a aquisição, por compra, do prédio urbano sito na Rua …, nº …, …, composto por dois pisos, destinado a habitação e comércio, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o nº4…7/19…9 e inscrito na matriz sob o artº8294 da freguesia de … .

34 - O prédio urbano tem um valor de mercado atual de €260.000,00 e o terreno de €86.000,00, correspondendo €130.000,00 à fração A, €66.000,00 à fração B e €64.000,00 à fração C.

35 - O valor locativo da parte comercial do prédio urbano é de €450,00 - perícia fls. 343/352.


O DIREITO

Apreciando a questão de fundo que (também) é suscitada no presente recurso, o Tribunal da Relação de Évora decidiu, como se viu atrás, revogar a sentença e condenar o réu a restituir à autora as quantias despendidas por esta e relacionadas com o pagamento do empréstimo e a reconstrução e a ampliação do prédio que se venham a liquidar em execução de sentença, com fundamento no enriquecimento sem causa.

Para criar a sua convicção, o Tribunal a quo deu especial atenção ao que resultava de determinados pontos da matéria de facto, a saber:

a) que autora e réu viveram em união de facto desde 1982 a 2009 (com uma interrupção entre 1997 a 1999);

b) que durante esse período autora e réu contribuíam com os rendimentos do seu trabalho para as despesas da vida conjunta, possuindo uma conta bancária em que ambos eram titulares e apresentando em conjunto, em diversos anos, as respectivas declarações de rendimentos;

c) que o prédio dos autos foi adquirido exclusivamente pelo réu em data em que não estava ainda a viver em união de facto com a autora, tendo contraído um empréstimo para pagamento do remanescente do preço;

d) que autora e réu levaram a cabo a reconstrução e a ampliação, nesse imóvel, de um edifício de habitação e comércio.

e) que o pagamento do empréstimo foi efectuado através da conta bancária comum e da conta bancária que o réu era único titular; e

f) que o pagamento das últimas prestações dos empréstimos referidos foi realizado na íntegra pelo réu.

Partindo dos factos descritos, o Tribunal a quo efectuou um percurso que passa pelos seguintes pontos essenciais:

- a lei não reconhece a produção de quaisquer efeitos patrimoniais decorrentes dessa comunhão, ao contrário da união conjugal;

- mas a comunhão de vida gerada pela união de facto implica, em regra, a contribuição de ambos os membros, com rendimentos do seu trabalho, para as despesas do lar e aquisição de bens, como é o caso de aquisição da casa para nela instalar a casa de morada de família;

- tendo a autora pedido a restituição dos valores com base no enriquecimento sem causa e estando verificados os seus pressupostos (cfr. artigos 473.º e s. do CC), a autora tem um direito à restituição, mas este direito deve corresponder ao quantum que ela efectivamente disponibilizou;

- não tendo a autora provado, como lhe competia (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC), a medida do seu empobrecimento e do correspondente enriquecimento do réu à sua custa, conforme determina o artigo 473.º do CC, não pode concluir-se, como na decisão recorrida, que a autora tem direito a metade do valor do imóvel, devendo a obrigação de restituição ser fixada em execução de sentença.

Como é visível, a divergência entre as instâncias reside no facto de a primeira ter considerado que, no desconhecimento da concreta contribuição da autora para a liquidação do empréstimo e para as obras de reconstrução e ampliação do edifício, era admissível recorrer à equidade[1] e fixar de imediato o valor da obrigação de restituição a cargo do réu e de a Relação ter entendido que não.

É essa também, justamente, a questão que está em causa no presente recurso: é admissível fixar logo o montante da obrigação de restituição ou deve o tribunal remeter a tarefa para liquidação ulterior?

Sem dificuldades se conclui que a resposta é esta última, portanto, que assiste razão ao Tribunal recorrido.

Desde logo, não devem existir dúvidas de que o desconhecimento da medida do enriquecimento e do empobrecimento não prejudica a condenação do réu em enriquecimento sem causa. Quer dizer: estando provados o enriquecimento e o empobrecimento, a sua exacta medida não constitui facto essencial à condenação na obrigação de restituição[2], dispondo o artigo 609.º, n.º 2, do CPC que “se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condena no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja liquidada”.

A verdade é que a lei prevê um incidente próprio para resolver aquela indeterminação, ou seja, que serve, precisamente, para apurar ou tornar líquido o pedido genérico bem como o pedido específico que não seja possível confirmar enquanto tal[3] – o incidente de liquidação (antes designado “liquidação ulterior de sentença”), regulado actualmente nos artigos 358.º a 361.º do CPC[4].

Sem prejudicar, de forma alguma, o direito das partes à tutela jurisdicional efectiva[5], o mecanismo é o que melhor assegura que o sujeito obtém aquilo – tudo aquilo mas só aquilo – a que tem realmente direito. É oportuna a frase lapidar de Giuseppe Chiovenda, proferida no início do século XX: “[i]l processo deve dare per quanto è possibile praticamente a chi ha un diritto tutto quello e proprio quello ch'egli ha diritto di conseguire”[6].

Concluindo: o incidente de liquidação é aquele que propicia a solução (mais) ajustada à realidade, portanto, a solução (mais) justa. Nesta conformidade, o recurso à equidade para quantificar a obrigação é – deve ser – um recurso de ultima ratio[7], logo, só quando se mostre de todo impossível proceder à especificação da obrigação no incidente de liquidação é que se deverá recorrer a ela[8].

Num caso muito semelhante ao caso dos autos decidiu já este Supremo Tribunal de Justiça – no mesmo sentido. A decisão foi proferida no Acórdão de 10.01.2013, Proc. 1346/10.5TBTMR.C1.S1, dizendo-se: “[t]endo inquestionavelmente resultado provado que as obras (no prédio do réu) foram efectuadas pelo casal (…), assim também pela recorrente, sendo igualmente irrefutável que tais obras aumentaram o valor do prédio, não há obstáculo, ao contrário do entendido pela Relação, à condenação do réu a restituir à autora o valor do enriquecimento a liquidar em incidente próprio (artigo 661º, nº 2 do CPC)[9].

 


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III. DECISÃO


Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.



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Custas pela recorrente.



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LISBOA, 7 de Novembro de 2019


Catarina Serra (Relator)

Bernardo Domingos

João Bernardo

________

[1] Aquele montante foi fixado na sentença dizendo-se que “se afigura justo e adequado que a autora tenha direito a metade do valor do bem imóvel, deduzido o montante pago a título de sinal pelo réu, com montante doado pelo pai” (sublinhados nossos).
[2] Cfr., por exemplo, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.01.2013, Proc. 1346/10.5TBTMR.C1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[3] Como se diz, entre outros, no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 22.02.2011, Proc. 81/04.8TBVLF.C1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt), “[o] preceito constante do art. 661.º, n.º 2, do CPC, tanto se aplica no caso de se ter inicialmente formulado um pedido genérico e de não se ter logrado converter em pedido específico, como ao caso de ser formulado pedido específico sem que se tenha conseguido fazer prova da especificação, ou seja, quando não se tenha logrado coligir dados suficientes para se fixar, com precisão e segurança, o quantitativo da condenação”. À norma do artigo 661.º, n.º 2, corresponde actualmente a norma do artigo 609.º, n.º 2, do CPC.
[4] Sobre estes incidente e a sua evolução no quadro da lei processual portuguesa cfr. José Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º - Artigos 1.º a 361.º, Coimbra, Almedina, 2018 (4.ª edição), pp. 706 e s.
[5] Destaque-se, a este propósito, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.05.2017, Proc. 2440/13.6TBLRA.C1 (disponível em http://www.dgsi.pt). Diz-se aí que “[a]o relegar-se para ulterior incidente de liquidação o quantum da obrigação de restituir por enriquecimento sem causa não se prejudica a igualdade de armas entre as partes e o contraditório, que continuarão a vigorar na fase incidental de liquidação, antes se visando, ao conceder nova oportunidade de prova (do montante a restituir), a obtenção da justiça material, fim último do processo”.
[6] Cfr. Giuseppe Chiovenda, Istituzioni di diritto processuale civile, tomo I — I concetti fondamentali, la dottrina delle azione, Napoli, Jovene, 1933, p. 42.
[7] Embora seja usada com o propósito de alcançar justiça, a equidade pressupõe sempre um juízo humano, permitindo atingir, quando muito, um resultado “aproximado” àquele que resultaria se fossem conhecidos com exactidão todos os elementos da realidade – àquele que resultaria de uma ponderação absolutamente rigorosa e objectiva destes elementos. Sobre o que é a equidade “não há resposta fácil nem unívoca”, mas parece poder dizer-se que a decisão segundo a equidade (…) pode conferir peso a quaisquer argumentos sem se preocupar com a sua autoridade e relevância face às aludidas fontes (do sistema). É campo ilimitado do 'material', do 'razoável', do 'justo', do 'natural'”. Cfr. Manuel A. Carneiro da Frada, “A equidade ou a 'justiça com coração' – A propósito da decisão arbitral segundo a equidade”, in: Forjar o Direito, Coimbra, Almedina, 2015, p. 656 e pp. 675-676.
[8] Cfr., neste sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3.02.2009, Proc. 08A3942 (disponível em http://www.dgsi.pt): “Quando fiquem provados danos mas não tenha sido possível estabelecer a sua quantificação, a opção entre equidade e liquidação prévia em fase posterior, deve obedecer àquela que dê mais garantias de se mostrar ajustada à realidade. Assim, se apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se na fase que vai até à Sentença um valor exacto para a sua quantificação, mas seja admissível que ainda é possível atingi-lo com recurso a prova complementar sobre o montante exacto ou muito próximo dos danos reais, não deve passar-se para a fase executiva na parte em que a condenação ainda não esteja líquida, sendo o instrumento adequado o incidente de liquidação (…) Se, pelo contrário, apesar de provado o dano, não foi possível atingir-se a determinação do seu montante exacto, nem se veja forma de o poder atingir com prova complementar sobre a quantificação dele, o meio adequado para o estabelecer é utilizar desde logo a equidade – art. 566.º-3 do CC”. Cfr., ainda, mais recentemente, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17.11.2015, Proc. 480/11.9TBMCN.P1.S1, e de 21.03.2019, Proc. 4966/17.3T8LSB.L1.S1.
[9] Disponível em http://www.dgsi.pt. Como se disse, à norma do artigo 661.º, n.º 2, corresponde actualmente a norma do artigo 609.º, n.º 2, do CPC.