Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
218/21.2JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: TERESA DE ALMEIDA
Descritores: RECURSO PER SALTUM
ABUSO SEXUAL DE MENORES DEPENDENTES
PORNOGRAFIA DE MENORES
REINCIDÊNCIA
CRIME CONTINUADO
PLURALIDADE DE AÇÕES
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
Data do Acordão: 09/06/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O disposto no art. 30º, nº 2 do Código Penal não abrange os crimes praticados contra bens jurídicos eminentemente pessoais, revestindo-se desta natureza a autodeterminação sexual da vítima.

II. Este tribunal tem vindo a aplicar a norma, afastando, de modo claramente maioritário, outras leituras, sem ancoramento legal, que conduzam à condenação da pluralidade de infrações como uma só infração.

III. No que à ponderação do valor da indemnização por danos não patrimoniais respeita, mostram-se descritos efeitos nocivos no desenvolvimento, bem-estar, saúde, sucesso escolar e integração social da menor.

IV. Todavia, não se mostra demonstrada a capacidade económica do arguido, ignorando-se o valor das quantias auferidas pelo trabalho por conta de outrem realizado no reduzido período de tempo em que manteve vida laboral e a viabilidade de atividade profissional, após cumprimento de pena.

V. Sendo a equidade o guia na ponderação da indemnização a fixar, a jurisprudência deste tribunal quanto aos montantes fixados para crimes da mesma natureza há-de constituir uma referência relevante, a integrar na avaliação concreta.

VI. Considerando o que se conhece da situação económica do arguido, os danos não patrimoniais dados como provados e a jurisprudência recente do tribunal em crimes de natureza idêntica, entende-se adequado reduzir o montante indemnizatório fixado para 20000,00€.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. O arguido, AA, não se conformando com o Acórdão proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de Coimbra – Juiz ..., em 19 de janeiro de 2022, veio interpor recurso.

O arguido foi condenado nos seguintes termos:

- Como reincidente pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso de sexual de menor adolescente agravado, pp. nos artigos 173.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão para cada um dos crimes;

- Como reincidente pela prática de um crime de pornografia de menores agravado, pp. nos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 meses de prisão;

- Em cúmulo, englobando as penas descritas parcelares descritas, na pena única 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Mais foi julgado procedente o pedido de indemnização civil, sendo o demandado AA condenado a pagar a BB a quantia de €30.000,00 (trinta mil euros).

2. Formulou as seguintes conclusões (transcrição):

“1. O acórdão recorrido padece de um erro na interpretação e aplicação do direito.

2. O Tribunal a quo considerou que o depoimento da Ofendida e a confissão do Arguido, ora Recorrente, corroborados pelos meios de prova documentados, são credíveis e coerentes face aos factos ocorridos.

3. É desproporcional e irrazoável atribuir uma correlação direta entre os atos perpetrados pelo Arguido e o comprometimento do percurso escolar da Ofendida, a qual apresenta um comprometimento do funcionamento intelectual global, devidamente sustentado por relatório social, que lhe limita naturalmente um progresso escolar mais ambicioso.

4. O montante da indemnização civil (€ 30.000) a título de danos não patrimoniais sofridos pela Ofendida, extravasa por completo a capacidade financeiro do Arguido, criando um desequilíbrio entre o sustento do Arguido com o mínimo de dignidade e a proteção dos interesses da Ofendida.

5. Em sede de motivação da decisão de facto, ficou demonstrado, pelas mensagens trocadas entre o Arguido e a Ofendida, que ambos mantiveram relações sexuais por decisão conjunta, na sequência de um relacionamento afetuoso.

6. Ficou também provado que a Ofendida consentiu em todos os atos de cariz sexual com o arguido.

7. Em momento algo se comprova que a Ofendida era inexperiente no que toca à prática de atos sexuais, pelo que, o facto de a Ofendida já poder ter iniciado a sua vida sexual anteriormente é bastante elevado, não tendo, desta forma, o Recorrente aproveitado a imaturidade ou ingenuidade sexual da Ofendida.

8. De igual modo, apesar de a perícia médico-legal ter revelado que a Ofendida é portadora de um défice cognitivo, em nenhum momento se logrou demonstrar, inequivocamente, que o Recorrente estava ciente de tal desiderato, ou que se tenha mesmo aproveitado da ingenuidade, imaturidade e debilidade mental da Ofendida.

9. Pelo que o consentimento e acordo por parte da Ofendida deveria ser relevado para efeitos de exclusão da ilicitude, nomeadamente quanto aos quatro crimes de atos sexuais com adolescente agravados.

10. Sem prejuízo do anteriormente exposto, atento o facto de a Ofendida e o Arguido se terem conhecido e iniciado uma relação de namoro e de as relações sexuais entre ambos terem ocorrido no seio desse relacionamento amoroso, o qual facilitou a repetição da atividade criminosa, deverá consubstanciar-se num único crime continuado de atos sexuais com adolescente, por se encontrarem preenchidos os pressupostos previstos no nº 2 e 3 do art.º 30º do Código Penal.

11. A pena aplicada não contemplou a observância do processo de socialização conturbado do Arguido, na sua infância e adolescência, pautado por vivências desviantes do seu normal desenvolvimento psicológico, emocional e afetivo.

12. Tão pouco teve em consideração a sua atual integração social e laboral adequada, bem como o facto de ser um indivíduo pacato, sem historial de uso de substâncias psicoativas de qualquer natureza.

13. Mormente, entendemos ter relevância major, no caso sub judice, que o Arguido seja reincidente em crimes de natureza sexual, o que, não obstante não descriminalizar nem ilibar as suas condutas, remete para a existência de um desvio de ordem psíquica subjacente, o qual deveria ser alvo de perícia e intervenção clínica Psiquiátrica e/ou Psicológica adequadas - como já sustentado em sede de relatório social elaborado pela Direção Regional de Reinserção ....

14. A pena aplicada parece-nos, pois, desmedida e desproporcional, pecando por excesso, pois a mesma visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, em caso algum podendo ultrapassar a medida da culpa do agente, nos termos do art.º 40º nºs 1 e 2 do CP.

15. O Tribunal a quo, ao optar por uma pena privativa da liberdade de 7 anos e 6 meses de prisão, não teve em atenção os art.ºs 40º, 50º, 70º e 71º, todos do CP, nem as circunstâncias que militam a favor e contra o Arguido, a sua reintegração social, o facto de que está inserido social, familiar e profissionalmente, bem assim como o circunstancialismo em que ocorreram os factos, sem olvidarmos toda a dimensão psíquica, afetiva e psicoemocional adversas que concorreram para a conduta do Arguido.

16. Pelo que, atendendo à violação dos artigos 40º nºs 1 e 2, 47º nº 2, 50º, 70º e 71º nºs 1 e 2, todos do Código Penal, deveria o Recorrente ser condenado a uma pena bem mais reduzida, complementada com uma reabilitação clínica Psiquiátrica e/ou Psicológica adequada, medidas que realizam de forma mais razoável e justa as finalidades da punição e da reintegração social do condenado.

Nestes termos e nos melhores de Direito, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado, revogando-se a sentença proferida e, em consequência: a) Reduzir a pena de prisão efetiva aplicada, e b) Reduzir o montante da indemnização civil.”

3. Respondeu o Ministério Público na 1.ª Instância, concluindo (transcrição)

“A) Como que a título prévio de análise do mérito da motivação apresentada pelo recorrente sempre diremos que o mesmo, apesar de invocar ‘erro de julgamento’, o que por si só pressupõe que recorra de facto e não apenas de direito, não indica, como legalmente se lhe impunha, as concretas provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida;

B) Impõe o art.º 412.º, n.º3 do C.P.P. que" Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.";

C) O recorrente não cumpre nenhuma destas especificações;

D) Esta omissão viola o disposto nos art.os 411.º, n.º3, 412.º, n.os 1, 3, alís. a), b) e c) e 4, e 414.º, n.º2 do Código de Processo Penal (doravante, apenas C.P.P.), e constitui falta de motivação;

E) Tal incumprimento do ónus de impugnação deverá conduzir à rejeição do presente recurso, nesta parte, ao abrigo do disposto no art.º 420.º, n.º1 do C.P.P..

DE DIREITO,

F) O Tribunal a quo, julgando a acusação pública parcialmente procedente, por parcialmente provada, condenou o arguido [na parte que efetivamente releva para a matéria que carece de pronúncia pelo Ministério Público], pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real e efetivo, como reincidente, de 4 (quatro) crimes de abuso de sexual de menor adolescente agravado, p. e p. nos artigos 173.º, n.os 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea c) do C.P., nas penas parcelares de 3 (três) anos de prisão para cada um dos crimes; e de um crime de pornografia de menores agravado, p. e p. nos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea c) do C.P., na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão; Em cúmulo jurídico, o arguido foi  condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;

G) Vem agora o recorrente (arguido) alegar que a pena aplicada é “(…) desmedida e desproporcional, pecando o Tribunal a quo por excesso (…)”, tanto na dosimetria das penas parcelares, como na medida da pena única em que foi condenado, em cúmulo jurídico;

H) Invoca violação, pelo Tribunal a quo, do disposto nos art.os 40.º, n.os 1 e 2, 47.º, n.º2, 50.º, 70.º, 71.º, n.os 1 e 2, todos do C.P.;

I) Venerandos Desembargadores, o Tribunal a quo escalpelizou de forma exaustiva o iter normativo aplicável, bem como o juízo conjugado e delimitador da medida concreta das penas parcelares, assim como da escolha e dosimetria da pena única;

J) Os crimes em apreço são punidos, em abstrato, com as condicionantes da reincidência por que vem acusado e cujos pressupostos objetivos e subjetivos se mostram preenchidos, com pena de prisão fixada entre os 3 (três) anos e os 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão.

K) Relembramos que o arguido já sofreu diversas condenações criminais, das quais salientamos quatro condenações por crimes de natureza sexual praticados contra menores;

L) Por outro lado, o arguido já cumpriu pena de prisão efetiva por crimes desta natureza, que não o impediram de praticar os crimes dos autos;

M) A(s) pena(s) aplicadas ao arguido não é/são excessiva(s).

N) Se há alegação que não pode proceder, é a de que a(s) pena(s) é/são excessiva(s)[tendo em conta a gravidade dos  factos dados como provados, a culpa do arguido, as exigências de prevenção geral e especial (fortíssimas in casu) e o patamar abstrato da moldura penal dos crimes que lhe são imputados];

O) Num limite compreendido, como indicado em J), entre os 3 (três) anos e os 14 (catorze) anos e 6 (seis) meses de prisão, o arguido foi condenado na pena de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão efetiva;

P) Ao contrário do que alega o recorrente, que as penas de prisão parcelares e a consequente pena única em que foi condenado se mostra(m) adequada(s) e proporcional(ais) ao grau de culpa.

Q) O Tribunal a quo ponderou devidamente todas as circunstâncias com relevo para a escolha da(s) pena(s), tal como proficientemente consta do Douto Acórdão recorrido, de modo que com ele concordamos in totum e nenhum reparo igualmente nos merece;

R) Não violou o Tribunal a quo quaisquer normativos, designadamente, os art.os 40.º, n.os 1 e 2, 47.º, n.º2, 50.º, 70.º, 71.º, n.os 1 e 2, todos do C.P.;

Nestes termos, deverá o recurso improceder, in totum – se não merecer decisão de rejeição, como propugnamos supra, em A) a E), a título de questão prévia - confirmando-se o Acórdão recorrido, por nenhum agravo ter feito à Lei e por nenhum reparo nos merecer.”

4. A Demandante civil, BB, apresentou, igualmente, resposta, concluindo (transcrição)

A) Dúvidas não restam de que o arguido abusou da inexperiência da ofendida, levando-a a praticar ato sexual de relevo (entre os quais, cópula e coito oral) – e para mera satisfação da sua líbido.

B) Assim sendo, e sem necessidade de mais considerandos, entendemos que bem andou o Tribunal a quo ao considerar que o arguido cometeu quatro crimes de abuso sexual de menor adolescente, na forma agravada, pp. nos artigos 173º, nºs 1 e 2, e 177.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal.

C) O bem jurídico protegido pela incriminação do abuso sexual de crianças é de natureza pessoal e o crime continuado não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais (art.º 30º/3 do CP):

D) Uma vez que se não apurou, qualquer situação exterior que diminuísse consideravelmente a culpa do Recorrente, nunca a sua conduta podia ser tipificada como crime continuado.

E) Quanto à pena aplicada, perante a factualidade provada e face à motivação da douta decisão e à fundamentação fáctico – conclusiva e jurídica, verifica-se que na mesma foi feita a ponderação das circunstâncias provadas, em ordem à determinação concreta da pena única aplicada.

F) Quanto ao montante indemnizatório fixado na douta sentença, não lhe pode ser apontada qualquer crítica, uma vez que o mesmo é justo e adequado atentos os crimes praticados pelo Arguido. Aliás, tem de se iniciar uma mudança de mentalidades em termos de condenações, nomeadamente em termos civis, ou seja que efectivamente se comece aqui também a punir a conduta do Arguido e que se minimize os danos provados na esfera jurídica de outrem, neste caso da ofendida BB.

G) O valor de € 30.000,00 foi considerado o justo e adequado, ponderados todos os requisitos legais para a condenação do Arguido naquele valor. Sem deixar de voltar a referenciar que, o valor a que o Arguido foi condenado a pagar em termos de indemnização civil, é um valor meramente simbólico, pois não é com o mesmo que a ofendida vai remediar tudo o que sofreu. Além de não merecer qualquer juízo de valor o montante indemnizatório a pagar pelo Arguido à ofendida, é o mesmo justo e adequado tendo em consideração os resultados provenientes da conduta criminosa do Arguido.

Pelo que deverá improceder o recurso apresentado pelo Arguido, mantendo-se a douta decisão proferida no tribunal a quo.

5. O Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitiu parecer: (transcrição)

“1. O tribunal colectivo do Juízo Central Criminal de Coimbra (J...) condenou o arguido AA (ref.ª 87396243, de 19.01.2022):

(…) Por razões de economia expositiva damos por integralmente reproduzida a factualidade provada e a fundamentação probatória da convicção do tribunal colectivo.

4.1. A condenação no pedido de indemnização civil

Quanto a esta questão abstemo-nos de tomar posição em virtude de a demandante se encontrar devidamente representada e patrocinada.

4.2. A consensualidade do relacionamento, o aproveitamento da imaturidade da vítima e a exclusão da ilicitude

Diz o recorrente que «ficou demonstrado, pelas mensagens trocadas entre o Arguido e a Ofendida, que ambos mantiveram relações sexuais por decisão conjunta, na sequência de um relacionamento afectuoso» (conclusão 5.ª), que «a ofendida consentiu em todos os actos de cariz sexual com o arguido (conclusão 6.ª) e que «[e]m momento alg[um] se comprova que a ofendida era inexperiente no que toca à prática de actos sexuais» (conclusão 7.ª), ou que se tenha «aproveitado da ingenuidade, imaturidade e debilidade mental» da mesma (conclusão 8.ª), pelo que «o consentimento e acordo por parte da ofendida deveria ser relevado para efeitos de exclusão da ilicitude» (conclusão 9.ª).

Nos termos do art. 432.º, n.º 2, al. c), do Código de Processo Penal, na versão introduzida pela Lei 94/2021, de 21.12, recorre-se para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos no n.º 2 e no n.º 3 do artigo 410.º (sendo certo que nestas hipóteses, conforme o acórdão de fixação de jurisprudência 5/2017, publicado no DR, 1.ª série, n.º 120, de 23.06.2017, a competência do STJ abrange as questões relativas às penas parcelares englobadas na pena única superior a 5 anos, se impugnadas).

Concordantemente, o art. 434.º do Código de Processo Penal dispõe que o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas als. a) e c) do n.º 1 do art. 432.º do Código de Processo Penal.

Do cotejo destes dois normativos resulta que no que toca à matéria de facto o recorrente pode actualmente invocar como fundamento do recurso do acórdão final proferido pelo tribunal de júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, com exclusivo apoio no texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova previstos no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Se o não fizer e nenhum desses vícios for detectável no texto da decisão recorrida, o STJ não pode alterar a matéria de facto e os seus poderes de cognição ficam circunscritos à matéria de direito.

No caso sub iudice o recorrente não assaca ao acórdão recorrido nenhum dos mencionados vícios lógicos do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

A alegação de que o relacionamento sexual foi consensual é totalmente inconsequente, nomeadamente para efeitos de exclusão da ilicitude, porquanto o crime do art. 173.º do Código Penal pressupõe a prática consentida de acto sexual de relevo entre um adulto e um menor entre os 14 e os 16 anos (não fosse essa consensualidade e os factos cairiam noutra descrição típica mais grave, nomeadamente, na prevista nos arts. 164.º e 177.º, n.º 6, do Código Penal).

De resto, como o recorrente certamente não desconhece, enquanto causa de exclusão de ilicitude, o consentimento só é eficaz se for prestado por quem tiver mais de 16 anos e possuir o discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta (art. 38.º, n.º 3, do Código Penal).

Ora, também quanto a esse pressuposto típico, os factos não deixam margem para dúvidas quanto ao seu preenchimento (v. nomeadamente o facto provado 2).

Lê-se no acórdão que «[o] arguido confessou os factos, esclarecendo apenas que a menor teria 14 anos, à data da prática dos factos».

O elemento subjectivo foi alcançado «tendo em conta as regras da experiência comum e os demais factos assentes».

Em suma, independentemente de não terem sido invocadas, da leitura do texto do acórdão, mormente do inventário dos factos provados e não provados e do segmento dedicado à indicação e exame crítico das provas utilizadas para a formação da convicção do tribunal, também não transparece nenhuma das disfunções a que alude o art 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nomeadamente que os factos sejam insuficientes para a subsunção jurídica da conduta do arguido no tipo de actos sexuais com adolescentes do art. 173.º do Código Penal ou que tivessem sido declarados provados factos que notoriamente estão errados e são totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica e da experiência.

A matéria de facto deve, por isso, considerar-se definitivamente fixada.

4.3. O crime continuado

Diz o recorrente que «atento o facto de a ofendida e o arguido se terem conhecido e iniciado uma relação de namoro e de as relações sexuais entre ambos terem ocorrido no seio desse relacionamento amoroso, o qual facilitou a repetição da actividade criminosa», os factos deverão «consubstanciar-se num único crime continuado de actos sexuais com adolescente, por se encontrarem preenchidos os pressupostos previstos no n.º 2 e 3 do art.º 30.º do Código Penal» (conclusão 10.ª).

Sem o menor vislumbre de razão.

Na verdade, desde 03.10.2010, data da entrada em vigor da Lei 40/2010, de 03.09, «está expressamente excluída (…) a possibilidade de crime continuado quanto aos tipos de crime que protejam bens jurídicos de cariz eminentemente pessoal (…) independentemente de o bem jurídico ser da titularidade da mesma pessoa ou de pessoas diferentes» (Duarte Rodrigues Nunes, Curso de Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Gestlegal, 2021, pág. 739).

Ora, o tipo esculpido no art. 173.º está inserido no Título I, do Livro II do Código Penal, dedicado aos crimes contra as pessoas, e protege, naturalmente, um bem jurídico pessoal [«a liberdade sexual do adolescente (menor entre 14 e 16 anos de idade), em face de um processo fraudulento e enganoso de sedução utilizado pelo agente» (Paulo Pinto de Albuquerque, obra citada, pág. 480)].

Daí que, ab initio, a pretensão de emoldurar os factos que cabem na previsão típica do art. 173.º do Código Penal na figura jurídica do crime continuado seja totalmente insustentável.

4.4. A medida da pena única

Diz o recorrente que a pena aplicada «não contemplou a observância do processo de socialização do Arguido, na sua infância e adolescência, pautada por vivências desviantes do seu normal desenvolvimento psicológico, emocional e afectivo» (conclusão 11.ª), que o tribunal «não teve em atenção (…) as circunstâncias que militam a favor e contra o Arguido, a sua reintegração social, o facto de que está inserido social, familiar e profissionalmente, bem assim como o circunstancialismo em que ocorreram os factos, sem olvidarmos toda a dimensão psíquica, afetiva e psicoemocional adversas que concorreram para a conduta do Arguido» (conclusão 15.ª) e que, por conseguinte, deve «ser condenado a uma pena bem mais reduzida, complementada com uma reabilitação clínica Psiquiátrica e/ou Psicológica adequada» (conclusão 16.ª).

Novamente sem razão.

Contrariamente ao alegado, a matéria respeitante ao «processo de socialização do recorrente» e à «dimensão psíquica, afectiva e psicoemocional adversas que concorreram para a conduta do arguido» foram expressamente ponderadas pelo tribunal colectivo como resulta da seguinte passagem do acórdão que versa a determinação da medida da pena:

«Do processo de desenvolvimento de AA evidencia-se a sua integração num agregado familiar pautado por violência, parentalidade marcada pela ausência afectiva do progenitor, assim como de experiências de intimidade precoces mal adaptativas que, apesar de desvalorizadas pelo próprio, poderão, eventualmente, ter marcado de forma indelével o seu percurso de vida ao nível da construção da identidade, interações afetivas e de intimidade».

A inserção social, familiar e profissional do recorrente, quando estão em causa crimes contra a autodeterminação sexual, escasso ou nulo valor atenuativo pos-sui (v. a título de exemplo os acórdãos do STJ de 10.09.2008, processo 2032/08, www.colectaneadejurisprudencia.com, e de 07.06.2017, processo 367/16.9JA PDL.S1, www.dgsi.pt).

A invocação do circunstancialismo em que ocorreram os factos como factor abonatório é, salvo o devido respeito, incompreensível na medida em que esse circunstancialismo, tingido pela natureza e diversidade de actos sexuais praticados, pelo dolo directo e persistente com que o arguido actuou, pelos seus antecedentes criminais, pela significativa diferença de idades entre ele e a vítima e pelos traumas emocionais que a esta foram causados, aponta para graus globais de ilicitude e de culpa bastante elevados e para uma personalidade egoísta e propensa para o envolvimento sexual com menores.

Por fim, a «reabilitação clínica psiquiátrica e/ou psicológica adequada» é matéria que diz respeito à, e poderá ser obtida na fase de execução da pena.

Acompanhando, em tudo o mais, os argumentos expostos no acórdão recorrido a este propósito, entendemos, assim, que também nesta parte o recurso deve improceder e que a pena conjunta de 7 anos e 6 meses de prisão deve ser confirmada.”

Foi cumprido o disposto no art.º 417º n. 2 do CPP.

Colhidos os vistos, o processo foi à conferência.

O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), visando, exclusivamente, o reexame de matéria de direito.

Este Tribunal é, assim, chamado a apreciar e decidir se:

- a condenação devia ter sido por crime continuado de atos sexuais com adolescentes;

- a medida da pena única se mostra excessiva, devendo ser reduzida;

- o montante da indemnização civil é excessivo e incomportável para o arguido, devendo ser reduzido.

Cumpre decidir.

II. Fundamentação

1. os factos:

O Acórdão recorrido deu como provados os seguintes factos: (transcrição)

1.   A ofendida BB, nasceu a .../.../2006, residia com os pais na Rua..., 495, ..., ..., ... e frequentava o 9.º ano de escolaridade na escola EB de ....

2. A ofendida apresentava idade inferior à real, funcionamento intelectual global muito inferior para o seu grupo etário, vocabulário empobrecido, reduzido conhecimento de informação geral, fracos conhecimentos ao nível do cálculo, do raciocínio lógico e dedutivo e de conhecimentos culturais básicos, e era portadora de um grau de debilidade mental ligeira, que lhe limita a perceção do perigo, bem como do que é certo ou errado.

3. Em data não apurada, quando a ofendida tinha 14 anos de idade, o arguido enviou-lhe um pedido de amizade através da rede social Facebook e, após saber idade daquela, disse-lhe que tinha a mesma idade.

4. A partir dessa altura, convencida de que o arguido era da mesma idade da sua, a ofendida começou a responder às mensagens que o arguido lhe enviava através daquela rede social, nas quais se lhe dirigia de forma carinhosa e utilizando palavras próprias de namorados, e a reagir às fotografias e aos vídeos que aquele lhe enviava, através das plataformas Facebook (utilizando os usernames “AA” e “CC”) e Instagram (utilizando o username “DD”).

5. Apesar de saber que a ofendida tinha 14 anos de idade, o arguido pediu-lhe que lhe enviasse fotografias tiradas a si própria, ora vestida, ora nua, pedidos a que BB acedeu.

6. Também nessa altura, o arguido enviou à ofendida fotografias suas, desnudado e exibindo os seus órgãos genitais, mas ocultando o rosto.

7. Em data não apurada, o arguido enviou à ofendida um vídeo onde era visível o seu rosto.

8. Constatando que o arguido lhe tinha mentido quanto à idade, a ofendida, zangou-se com ele.

9. Porém, pouco depois, o arguido pediu-lhe desculpa e reataram os contatos.

10. O arguido informou então a ofendida que vivia em ..., tendo ela também informado acerca do local da sua residência.

11. A partir dessa altura, o arguido continuou a enviar à ofendida mensagens, fotografias e vídeos de cariz sexual, designadamente fotografias e vídeos onde aparecia todo nu, exibindo os seus órgãos genitais.

12. Também a ofendida, a pedido do arguido, lhe enviava vídeos a exibir e a mexer na sua vagina.

13. O arguido convenceu então a ofendida a encontrarem-se pessoalmente.

14. Tais encontros vieram a ocorrer no decurso dos meses de janeiro e de fevereiro de 2021, pelo menos por 4 vezes, sempre à noite, depois de os combinarem através das redes sociais, perto de casa da ofendida, dentro de uma cabine em cujo interior existia um ..., de forma a que não fossem vistos por quem ali passasse.

15. O arguido deslocava-se para o local dos encontros numa motorizada que estacionava nas proximidades.

16. A ofendida saía da sua casa, sem que os pais se apercebessem, quando já se encontravam a dormir ou quando estavam na sala a ver televisão.

17. Quando se encontravam no interior da referida cabine, o arguido abraçava a ofendida, comprimindo o corpo dele contra o dela, beijava-a na boca, apalpava-lhe os seios e introduzia os seus dedos na vagina de BB.

18. Seguidamente, o arguido abria o fecho das calças que usava, retirava o pénis para o exterior, solicitava a BB que se ajoelhasse em frente dele, introduzia-lhe o pénis na boca e solicitava-lhe que o chupasse até ficar ereto, o que a ofendida fazia.

19. Seguidamente, a ofendida voltava a pôr-se de pé e despia-se da cintura para baixo.

20. O arguido colocava então um preservativo, baixava-se e introduzia o seu pénis ereto na vagina da ofendida, consumando a relação de cópula.

21. Pelo menos uma vez, o arguido fotografou os seus genitais e os da ofendida, numa altura em que mantinham relações sexuais, tendo depois remetido a fotografia a BB, utilizando o user “AA” (fl. 14 do anexo A).

22. Depois de consumado o relacionamento sexual, ausentavam-se ambos daquele local.

23. No regresso a casa, a ofendida procedia de forma a que os seus pais de nada desconfiassem.

24. No decurso daquele período temporal, para aliciar e seduzir a ofendida, o arguido ofereceu-lhe bolachas, chocolates, dois perfumes, a quantia monetária de € 60,00, enviou-lhe um telemóvel de marca Samsung, por correio, e fez sucessivos carregamentos num telemóvel de que a ofendida já era possuidora (fls. 26 e 26 v.º do anexo A).

25. Através desse telemóvel, a ofendida trocou mensagens com o arguido (utilizador do nº ...46) e enviou-lhe fotos de “nudes” suas, numa das quais é apenas visível a zona genital da ofendida (mensagens/sms que apresentam um desfasamento temporal pelo motivo de a data no aparelho da ofendida não ter sido alvo de acerto).

26. A título de exemplo de mensagens com cariz sexual enviadas pelo arguido à ofendida destacam-se as seguintes:

(…)

27. Com recurso ao user “AA”, o arguido remeteu à ofendida, entre outras, as seguintes mensagens, das quais também resulta que o arguido sabia qual era a idade da ofendida:

(…)

35. Aquando da busca domiciliária levada a cabo na casa do arguido, no dia 29.03.2021, foram apreendidos um computador portátil, de marca HP, modelo 14s-dq0008np, com número de série ..., um telemóvel de marca ZTE, modelo Blade A5 2020, com o IMEI ...57 e ...52 e um telemóvel de marca Vodafone, modelo VDF 630, com o IMEI...42.

36. Da pesquisa informática realizada esse equipamento, resulta que o arguido continuou a trocar mensagens com a vítima até ao dia 28.03.2021 (dia anterior à detenção).

37. Com efeito, verificou-se a existência de troca de mensagens (já abertas) entre o arguido (com o e-mail já referido - ...) e a vítima, tendo-lhe o arguido enviado uma fotografia sua na qual se encontra completamente despido (fls. 296 v.º).

38. Dessa troca de mensagens, utilizando o arguido o user “AA”, resulta que este iniciou as conversações com a vítima mentindo-lhe acerca da sua idade (diz que tem 17

39. Ulteriormente, o arguido envia à ofendida uma fotografia do seu braço engessado e informa-a que regressará a Portugal porque partiu um braço (23.03.2021, 01:59), solicita-lhe que aceite os seus pedidos no Facebook e no Instagram (23/03/2021, 02:04), enviando-lhe designadamente as seguintes mensagens:

)…)

f. A ofendida informa o arguido que o teste de gravidez deu negativo, ao que o arguido responde que tal não era possível acontecer porque nunca tinha ejaculado aquando da penetração:

(…)

40. A ofendida foi submetida a perícia médica de clínica forense, resultando do relatório pericial que “apresenta défice cognitivo (…)” e que “(…) As lesões descritas ao nível do hímen são compatíveis com cópula não recente, tal como referido pela examinada

(…)”.

41. O arguido agiu sempre de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo qual era a idade de BB, que esta não tinha maturidade intelectual e emocional, até porque era evidente a debilidade ligeira de que sofria, para se autodeterminar sexualmente e que, com as condutas descritas, prejudicava gravemente o livre e harmonioso desenvolvimento da sua personalidade na sua esfera sexual, tendo-se aproveitado da sua ingenuidade para satisfazer os seus impulsos e instintos libidinosos, ofendendo reiteradamente o livre despertar da sexualidade da ofendida.

42. Com efeito, após saber que BB tinha 14 anos de idade, o arguido, atuando ardilosamente, fez-lhe crer que também ele tinha essa idade (quando, na verdade, tinha 51 anos), para assim conquistar a sua atenção e concretizar os seus intentos libidinosos, beneficiando da imaturidade e da debilidade mental da ofendida.

43. Acresce que, para alcançar o seu propósito, o arguido adotou uma estratégia de aparente generosidade, cativando a menor com oferendas.

44. Conquistada a atenção da ofendida, o arguido trocou com ela as mensagens, fotos e vídeos supra referidos, de cariz sexual e pornográfico, quando esta tinha 14 anos de idade, e fotografou-a quando com ela mantinha relações sexuais.

45. De igual modo, apesar de saber que a ofendida tinha apenas 14 anos de idade e de ter constatado que aquela apresentava alguma debilidade intelectual, o arguido manteve com ela relações sexuais de cópula e de coito oral.

46. Efetivamente, para alcançar o seu propósito, o arguido aproveitou-se sempre da circunstância de a BB ter a referida debilidade, tendo, por isso, dificuldade em entender a gravidade da conduta dele para com ela.

47. O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e criminalmente punidas e, não obstante, não se absteve de as levar a cabo.

48. O arguido já foi condenado:

a.  No âmbito do PCC 333/13...., por acórdão datado de 25.02.2014, transitado em julgado em julgado em 01.04.2014, pela prática, em 19.07.2013, de um crime de abuso sexual de crianças, p.p. pelo artigo 171.º do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão;

b. No âmbito do PCC 25/12...., por acórdão datado 06.06.2014, transitado em julgado em 09.07.2014, pela prática, em 2011, de dois crimes de pornografia de menores, pp. pelo artigo 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 6, ambos do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão;

c. No âmbito do PCS 346/12...., por acórdão datado de 15.10.2015, transitado em julgado em 17.11.2015, pela prática, em agosto de 2012, de um crime de pornografia de menores agravado, pp. pelos artigos 176.º, n.º 1, alínea b) e 177.º, n.º 6 do Código Penal e de um crime de abuso sexual de crianças, na forma tentada, p.p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º e 171.º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, na pena única de 2 anos de prisão;

d. No âmbito do PCC 1490/16...., foi operado o cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado no âmbito dos processos referidos nas alíneas a), b) e c), por acórdão datado de 06.07.2016, transitado em julgado em 21.09.2016, que fixou a pena única em 6 anos de prisão.

49. O arguido esteve ininterruptamente privado de liberdade, no Estabelecimento Prisional ..., em cumprimento daquela pena única em que foi condenado no PCC 1490/16...., desde o dia 16.09.2013 até ao dia 14.09.2019.

50. Os factos praticados pelo arguido são graves e o facto de já ter cumprido pena por factos de idêntica natureza não serviu para o dissuadir da prática de novos crimes.

51. O arguido foi, ainda, condenado:

a. Em 07.10.2002, por decisão transitada em julgado em 22.11.2002, pela prática, em 05.10.2002, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 90 dias de multa (... 612/02....);

b. Em 24.03.2003, por decisão transitada em julgado em 08.04.2003, pela prática, em 13.03.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 130 dias de multa (... 108/03....);

c. Em 29.11.2004, por decisão transitada em julgado em 14.12.2004, pela prática, em 29.11.2004, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 200 dias de multa (PCS 159/03....);

d. Em 16.05.2008, por decisão transitada em julgado em 23.07.2009, pela prática, em 16.02.2008, de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena única de 6 meses de prisão, suspensa pelo prazo de 12 meses (... 34/08....);

e. Em 05.11.2009, por decisão transitada em julgado em 25.11.2009, pela prática, em 13.09.2008, de um crime de abuso sexual de crianças, na pena de 18 meses de prisão, suspensa por igual período de tempo (PCS 581/08....);

52. AA, oriundo de ..., ..., cresceu num agregado constituído pelos progenitores, três descendentes, sendo o arguido o segundo elemento da fratria.

53. A mãe, trabalhadora agrícola, em terras doutrem, foi o elemento que assumiu o processo educativo dos filhos.

54. Ao progenitor, ex-combatente na guerra colonial portuguesa, são atribuídos comportamentos agressivos, perpetrados não só sobre os elementos familiares, como também sobre outros indivíduos, contexto reportado como eventualmente decorrente de stress pós-traumático.

55. Esta realidade, associada à falta de hábitos de trabalho, foram fatores que terão culminado no divórcio do casal há quase três décadas.

56. Apesar da separação, o casal permaneceu na mesma propriedade, o pai na habitação principal, e a mãe e respetivos descendentes nos anexos agregados à mesma.

57. No que diz respeito ao seu percurso escolar, AA iniciou-o em idade própria, frequentando a escola primária na localidade de ... e, mais tarde, em ....

58. Concluiu o 1.º ciclo do ensino básico com aproveitamento, abandonando os estudos, durante a frequência do 5.º ano de escolaridade, por desinteresse pelas matérias escolares e elevado absentismo.

59. Iniciou atividade laboral aos 12 anos, à data como ..., num estabelecimento localizado na ..., mais tarde como ... e, posteriormente, como ....

60. Paralelamente, auxiliava a progenitora nas tarefas agrícolas, bem como junto de vizinhos, sempre que estes o solicitavam.

61. Manteve posterior ligação a empresas de trabalho temporário, onde exerceu funções ligadas à indústria, nomeadamente “C... S.A.” e na “..., I... S.A.”.

62. Exerceu, ainda, funções, durante largos anos, em limpeza e montagens de ..., passando o arguido, grande parte do tempo, fora de Portugal.

63. Atribuiu o seu primeiro contacto íntimo/sexual, aos 12 anos, com uma vizinha de cerca de 40 anos de idade, já com dois filhos, vivência que recorda e descreve com relativa normalidade, sem manifesto stress ou aparente memória traumática associada.

64. Apesar de não referir relacionamentos afetivos relevantes ou descendência até à data, há registos de uma proximidade afetiva, aos 18 anos de idade, com uma jovem aparentemente da sua idade, namorada que o terá deixado por outro elemento, grávida do arguido.

65. Desconhece o paradeiro quer da ex-companheira, quer do descendente.

66. Apresentou contactos com a justiça, com cumprimento de pena de prisão no Estabelecimento Prisional ..., que teve início a 16.09.2013, tendo sindo libertado a 17.09.2019.

67. Regressou ao agregado da mãe, ascendente com quem vai mantendo maior apoio e proximidade.

68. Com o pai, atualmente integrado num lar em ..., já não apresenta contactos desde 2013, altura em que foi privado de liberdade.

69. Não lhe são conhecidas adições ou problemática clínica associada durante o seu percurso de vida.

70. À data dos factos, o arguido residia com a progenitora, ..., na Rua ..., ....

71. O imóvel arrendado, de tipologia 2, é constituído por dois quartos, cozinha, casa de banho, anexos e quintal.

72. Não obstante ser uma casa antiga e de pequenas dimensões, oferece condições condignas de habitabilidade.

73. A mãe do arguido é beneficiária de apoio estatal, sendo este o seu único rendimento.

74. A despesa mais significativa respeita à renda da habitação, de cerca de € 100.00 mensais, onde acrescem cerca de € 50.00 relativos aos consumos domésticos (água, luz e eletricidade).

75. O arguido verbaliza ter mantido atividade, desde 2019, na empresa “G...” com ..., junto a ..., atividade que manteve quer em Portugal, quer pela Europa.

76. A mãe do arguido apoia o filho, manifestando dificuldades em compreender os factos que o têm mantido em contactos regulares com a justiça.

77. Esta ascendente mantém-se recetiva à sua reintegração no agregado familiar, salientando o apoio que o recluso sempre lhe foi prestando, alicerçado em muitos anos de convivência com este, situação aparentemente extensível às suas irmãs.

78. Ao nível social, não há sinais de rejeição, sendo considerado uma pessoa com hábitos de trabalho, pacato e com uma inserção no meio adequada.

79. Manteve, de forma mais recente, um relacionamento afetivo com EE, de 44 anos de idade, iniciado e terminado, pouco antes da atual detenção.

80. O arguido ingressou ao meio prisional, a 31 de março de 2020, preventivo à ordem do atual processo, mantendo comportamento compatíveis com as regras institucionais.

81. Devido à tipologia de crimes constantes na acusação, AA encontra-se alojado na ala de separação.

82. Apesar de já ter solicitado trabalho, mantem-se inativo até à data, tendo em conta que uma eventual ocupação formativa ou laboral implicaria a sua permanência em espaços comuns.

83. Apresenta contactos com o agregado de origem, nomeadamente com a progenitora e irmãs, contactos essencialmente não presenciais, situação que o coloca numa posição de maior fragilidade e isolamento.

Do pedido de indemnização civil:

84. Devido aos factos acima relatados, perpetrados pelo arguido, a menor BB sente vergonha e humilhação por ter mantido relações sexuais e de coito oral com aquele.

85. Devido à conduta do arguido acima relatada, a menor tem sonhos e pensamentos perturbadores que a impedem de dormir com normalidade;

86. (…) sente-se ansiosa, tem receio de estar sozinha e de sair de casa.

87. Durante o tempo em que os factos acima relatados ocorreram e ainda hoje, a menor viu-se incapaz de estudar e de se concentrar, situação que motivou e intensificou o seu insucesso escolar e frustração por não conseguir obter os resultados escolares que pretendia, sentindo-se diminuída entre o seus colegas de escola e socialmente.

Sobre a pena

(…)

No que à prevenção geral diz respeito, note-se que as exigências se afiguram muito elevadas, atenta a existência de muitos crimes desta natureza e o alarme social que os crimes sexuais cometidos contra jovens provocam na comunidade. Há que ter grande rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento e para que os agentes percebam que, enquanto adultos, têm de respeitar o normal desenvolvimento das crianças ou jovens, sem atropelos e provocações.

Em sede de medida concreta da pena há que ponderar, ainda, o grau de ilicitude do facto, que se reputa de elevado, considerando essencialmente os atos sexuais praticados com a menor, o teor das conversações e o facto de ter levado a menor a praticar atos de natureza sexual e a expor o seu corpo.

O arguido agiu com dolo direto, na sua modalidade mais intensa.

Temos, ainda, de considerar as nefastas consequências do comportamento do arguido na vida da menor.

Quanto à conduta do agente anterior à prática dos factos, temos que o arguido já sofreu diversas condenações criminais, das quais destacamos as quatro condenações por crimes de natureza sexual praticados contra menores. O arguido já cumpriu pena de prisão efetiva por crimes desta natureza, que não o impediram de praticar os crimes dos autos. o processo de desenvolvimento de AA evidencia-se a sua integração num agregado familiar pautado por violência, parentalidade marcada pela ausência afetiva do progenitor, assim como de experiências de intimidade precoces mal adaptativas que, apesar de desvalorizadas pelo próprio, poderão, eventualmente, ter marcado de forma indelével o seu percurso de vida ao nível da construção da identidade, interações afetivas e de intimidade.

O arguido vem acusado por reincidência.

Determina o artigo 75º do Código Penal:

(…)

Exige-se, outrossim, ao nível do pressuposto material, que, de acordo com as circunstâncias do caso, a condenação(ões) anterior (es) não serviram ao agente de suficiente advertência contra o crime.

(…) A mera existência de condenações anteriores não é suficiente, exigindo-se uma “específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor».

Ora no caso dos autos verificamos que se encontram preenchidos todos os requisitos enunciados.

Com efeito, nos presentes autos o tribunal considera adequada penas muito superiores a 6 meses de prisão.

Por acórdão transitado em julgado em 25.02.2014, o arguido foi condenado pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, na pena de 3 anos de prisão. Em 06.06.2014, foi condenado por dois crimes de pornografia de menores, na pena de 4 anos de prisão. Em 15.10.2015, pela prática de um crime de pornografia de menores agravado e abuso sexual de crianças, na pena única de 2 anos de prisão. Em cúmulo jurídico destas três penas foi o arguido condenado, em 06.07.2016, na pena única de 6 anos de prisão. Para cumprimento desta pena o arguido esteve privado da liberdade de 16.09.2013 até ao dia 4.09.2019. Ora desde esta data até à data dos factos em análise no presente processo não decorreram os cinco anos a que alude o artigo 75.º, n.º 2 do Código Penal.

Constatamos, então, que o arguido sofreu três condenações criminais, em penas de prisão muito superiores a 6 meses e, antes de decorrido o prazo de 5 anos, voltou a cometer os crimes dos autos. Estão, consequentemente, verificados os requisitos formais da reincidência.

Também não nos oferecem dúvidas que as condenações anteriores não serviram de suficiente advertência contra o crime, pois o arguido continuou a praticar crimes da mesma natureza, sem se preocupar com as sanções já sofridas e com aquelas que irá sofrer. O seu comportamento denota falta de crítica quanto à gravidade dos factos por si praticados e que as penas que sofreu não foram suficiente censura para evitar o cometimento de novos crimes.

Assim, deverá o arguido ser punido como reincidente.

Nos termos do artigo 76º, n.º 1 do Código Penal, em caso de reincidência o limite mínimo da pena aplicável ao crime é elevado de um terço e o limite máximo permanece inalterada. A agravação não pode exceder a medida da pena mais grave aplicada nas condenações anteriores.

A ser assim, a moldura pena abstrata do crime de abuso sexual de criança agravado passa a ser agora de 53 dias de prisão a 4 anos e o crime de pornográfica de menores de 21 meses de prisão a 6 anos e 8 meses de prisão.

Ponderando todas as circunstâncias já acima referidas, este tribunal considera adequada aplicar ao arguido as seguintes penas:

- 3 anos de prisão por cada crime de abuso sexual de crianças agravado;

- 2 anos e 6 meses pelo crime de pornografia de menores.

Importa, a este passo, determinar a pena única, em obediência ao disposto no artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal. De acordo com esta norma “na medida da pena são considerados em conjunto os factos e a personalidade do agente”.

Os factos, como já referimos, são muitos graves, atento os atos sexuais praticados com a menor, ao teor das conversas mantidas, ao facto de ter determinado a menor a enviar fotografias despida e em atos sexuais e sem esquecer que o arguido a fotografou durante o ato sexual. Relativamente à personalidade do arguido, temos que o vasto rol de antecedentes criminais evidencia bem a sua personalidade desviante e uma tendência para a prÁtica de abusos sexuais contra menores.

Aplicando as regras de punição previstas no artigo 77.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, a pena aplicável oscila entre os 3 anos e os 14 anos e 6 meses de prisão.

Tudo ponderado, consideramos adequada aplicar ao arguido uma pena única de 7 anos e 6 meses de prisão.

Sobre o Pedido de indemnização civil

FF, em representação da sua filha menor, BB, deduziu pedido de indemnização civil contra AA, pedindo que o mesmo seja condenado a pagar-lhe a quantia de € 30.000,00, acrescido de juros, para ressarcimento dos danos não patrimoniais sofridos, e, ainda, nos danos patrimoniais que se vierem a liquidar em sede de execução de sentença.

De acordo com o artigo 129.º do Código Penal “a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil”.

Há, assim, que atender ao disposto no artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, que regula os casos de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, já cima referido.

Por outro lado, determina o n.º 1, do artigo 496º, do mesmo diploma legal, que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

No caso em análise verificam-se todos os pressupostos do citado artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, atendendo aos factos que ficaram provados. Na verdade, o arguido, agindo dolosamente, violou o disposto nos artigos 173.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, disposições legais destinadas a proteger a liberdade sexual, colocando em causa a liberdade de autodeterminação sexual da vítima. Violou, deste modo, o arguido a sua liberdade, intimidade corporal e sexual.

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta os critérios estabelecidos no artigo 494.º do Código Civil, aplicado ex vi do n.º 3 do artigo 496º. A indemnização fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores: “O grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

Encontrando-se devidamente abordado o condicionalismo que rodeia a prática do facto ilícito, e sem esquecermos que a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua situação económica e os danos sofridos, consideramos adequada uma indemnização compensatória pelos danos sofridos no montante de € 30.000,00 (trinta mil euros).

Sobre a quantia fixada serão apenas devidos juros desde a data da presente decisão, uma vez que a situação que se atendeu para a sua determinação foi aquela existente à data do encerramento da discussão em primeira instância, conforme artigo 566.º, n.º 2 do Código Civil, que manda atender à data mais recente em que o facto é apreciado pelo tribunal”.

b. De direito

1. Como se referiu supra, trata-se de um recurso visando o reexame da matéria de direito.

A referência, em conclusões da motivação do arguido, a “erro de julgamento” tem em vista a valoração em sede de medida da pena e de montante da indemnização.

Como se afirmou na Decisão Sumária em que o Tribunal da Relação de Coimbra se declarou materialmente incompetente: “Ainda que o recorrente faça referência, nas conclusões, ao depoimento da ofendida e confissão do arguido, certo é que o faz, não na perspetiva de impugnação de qualquer ponto da matéria de facto, mas tão só e apenas na perspetiva da impugnação da medida da pena e da indemnização arbitrada.

Temos assim que não há impugnação de qualquer ponto específico da decisão da matéria de facto, seja por apelo aos vícios do art. 410º, nº2, do CPP, seja com fundamento em reapreciação da prova”.

A competência deste tribunal resulta, no caso, da al. c), do n.º 1, do art. 432.º do Código de Processo Penal, que dispõe que se recorre para o Supremo de “acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.os 2 e 3 do artigo 410.º”.

Nada parece impedir, contudo, o tribunal de conhecer dos vícios da decisão recorrida a que se refere o n.º 2 do artigo 410.º do CPP, se eles resultarem do texto da decisão recorrida, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, e se a sua sanação se revelar necessária à boa aplicação do direito.

Ora, não se desvela, no texto da decisão recorrida, qualquer dos vícios de que o tribunal pudesse conhecer.

2. Vem o arguido sustentar que, a haver condenação por crime de abuso de sexual de menor adolescente agravado, pp. nos artigos 173.º, n.ºs 1 e 2 e 177.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, esta deveria ser por um só crime continuado.

O disposto no art. 30º, nº 2 do Código Penal não abrange os crimes praticados contra bens jurídicos eminentemente pessoais, revestindo-se desta natureza a autodeterminação sexual da vítima.

A Lei 40/2010 de 2/09, suprimiu o trecho final do até aí vigente n.º 3 do artigo 30º citado, pelo que, a repetida ofensa de bens eminentemente pessoais criminalmente protegidos, ainda que a vítima seja a mesma, independentemente das circunstâncias, consubstancia concurso efetivo de crimes.

Cada um dos atos praticados não constituiu um segmento de uma unidade factual, constituindo, por si mesmo, facto autónomo.

Este tribunal tem vindo a aplicar a norma, afastando, de modo claramente maioritário, outras leituras, sem ancoramento legal, que conduzam à condenação da pluralidade de infrações como uma só infração.[1]

Pelo que não procede, nesta parte, o recurso interposto.

3. O recorrente entende, igualmente, ser excessiva a pena aplicada.

Nos termos do artigo 40.º, do Código Penal, que dispõe sobre as finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Por aplicação das normas constitucionais convocáveis (artigo 27.º, n.º 2 e 18.º, n.ºs 2 e 3), a determinação e escolha da pena privativa da liberdade regem-se pelo princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso e pelos respetivos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade – segundo o qual a pena privativa da liberdade se há de revelar necessária aos fins visados, que não podem ser realizados por outros meios menos onerosos –, adequação – que implica que a pena deva ser o meio idóneo e adequado para a obtenção desses fins – e da proporcionalidade em sentido estrito – de acordo com o qual a pena deve ser encontrada na “justa medida”, impedindo-se, deste modo, que possa ser desproporcionada ou excessiva (cfr. acórdão deste Tribunal, 3.ª Secção, de 3.11.21, no proc. n.º 875/19.0PKLSB.L1.S1, e Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, notas aos artigos 18.º e 27.º).

A aplicação da pena tem como pressuposto que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito, sendo o grau da culpa o limite da pena (artigo 40.º, n.º 2).

O artigo 71.º, no n.º 2, do Código Penal, enumera, de modo não taxativo, fatores que conformam a determinação da medida da pena que se referem à execução do facto (“o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente”, “a intensidade do dolo ou da negligência”, “os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram”), à personalidade do agente (“As condições pessoais do agente e a sua situação económica”, “a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena”) e outros relativos à conduta do agente anterior e posterior ao facto (“A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime”)[2].

Sendo a finalidade da pena a proteção de um bem jurídico e, sempre que possível, a reintegração social do agente e não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa, a medida da pena corresponderá à medida necessária de tutela do bem jurídico sem ultrapassar a medida da culpa.[3]

Importa, pois, averiguar se a pena aplicada respeita os mencionados critérios de adequação e proporcionalidade que devem pautar a sua aplicação.

Na sua fundamentação, o acórdão condenatório tomou em consideração existirem muito elevadas razões de prevenção geral, “atenta a existência de muitos crimes desta natureza e o alarme social que os crimes sexuais cometidos contra jovens provocam na comunidade. Há que ter grande rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento e para que os agentes percebam que, enquanto adultos, têm de respeitar o normal desenvolvimento das crianças ou jovens, sem atropelos e provocações”.

Com exceção da ausência de comprovação da expressão quantitativa dos crimes de abuso de sexual de menor adolescente, o mais da fundamentação afigura-se corresponder aos propósitos de prevenção geral em relação com o ilícito em causa.

E que, “em sede de medida concreta da pena há que ponderar, ainda, o grau de ilicitude do facto, que se reputa de elevado, considerando essencialmente os atos sexuais praticados com a menor, o teor das conversações e o facto de ter levado a menor a praticar atos de natureza sexual e a expor o seu corpo”.

O acórdão especificou, também, com exaustão, as circunstâncias que considerou relevantes “no campo da prevenção especial”, a favor e contra o arguido, “quanto à conduta do agente anterior à prática dos factos, temos que o arguido já sofreu diversas condenações criminais, das quais destacamos as quatro condenações por crimes de natureza sexual praticados contra menores. O arguido já cumpriu pena de prisão efetiva por crimes desta natureza, que não o impediram de praticar os crimes dos autos. o processo de desenvolvimento de AA evidencia-se a sua integração num agregado familiar pautado por violência, parentalidade marcada pela ausência afetiva do progenitor, assim como de experiências de intimidade precoces mal adaptativas que, apesar de desvalorizadas pelo próprio, poderão, eventualmente, ter marcado de forma indelével o seu percurso de vida ao nível da construção da identidade, interações afetivas e de intimidade”.

Importa, aqui, ter presente que a condenação relevante para a reincidência não pode igualmente relevar na escolha da medida da pena, sob pena de violação da proibição da dupla valoração.

Contudo, se é certo que os fatores de determinação da medida das penas singulares não podem voltar a ser considerados na medida da pena conjunta, “aquilo que à primeira vista possa parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá razão para invocar a proibição de dupla valoração”.[4]

Sendo que, para a reincidência, releva o último crime cometido (art. 75.º, n.º 1 do Código Penal), independentemente do cúmulo efetuado, há que considerar, na ponderação do retrato global, a existência de outros crimes, anteriores e da mesma natureza, objeto de condenação.

Verifica-se, pois, uma persistência assinalável de condutas dirigidas a bens jurídicos similares, sempre relativos a menores e de cariz sexual.

No que à culpa respeita, o acórdão condenatório considera que o arguido agiu com dolo direto, na sua modalidade mais intensa.

Em aplicação dos critérios anteriormente expostos, a determinação da pena dentro das molduras penais correspondentes aos crimes praticados (face à reincidência, a moldura penal abstrata do crime de abuso sexual de menor adolescente agravado, de 53 dias de prisão a 4 anos e o crime de pornografia de menores de 21 meses de prisão a 6 anos e 8 meses de prisão), deve, pois, comportar-se nos limites da gravidade dos factos definida pelas circunstâncias concorrentes por via da culpa e da prevenção (artigo 71.º do Código Penal) descritas na matéria de facto provada, isto é, pelas circunstâncias que exprimem a gravidade do ataque aos bens jurídicos protegidos pelas respetivas normas incriminadoras.

A ponderação dessas circunstâncias, levada a efeito no acórdão recorrido não é, no que à pena única respeita, merecedora de censura.

Com efeito, não se evidenciam circunstâncias que devam merecer particular valoração por deporem a favor do arguido, com impacto na determinação da pena.

São, pois, como consideram o acórdão condenatório, o Ministério Público e a demandante, elevados o grau de culpa e as exigências de prevenção geral e especial, revelados pelas circunstâncias mencionadas, a ter em consideração nos termos do artigo 71.º do Código Penal, sem ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal).

Assim, tendo em conta as molduras das penas abstratamente aplicáveis, não se surpreendem elementos que permitam justificar um juízo de discordância relativamente à pena aplicada. Não se verificando, pelo exposto, motivo que permita identificar violação do disposto nos artigos 40º., 70º., 71º., 72º. e 77º., todos do Código Penal.

Pelo que, se entende não ser de efetuar intervenção corretiva na medida da pena única.

Improcede, assim, a petição de redução da pena conjunta.


4. O recorrente, demandado civilmente, entende ser exagerado o montante da indemnização em cujo pagamento foi condenado, no valor de 30000,00€.

Alega, quanto a esta parte, que:

“O montante da indemnização civil (€ 30.000) a título de danos não patrimoniais sofridos pela Ofendida, extravasa por completo a capacidade financeiro do Arguido, criando um desequilíbrio entre o sustento do Arguido com o mínimo de dignidade e a proteção dos interesses da Ofendida”.

Estipula o n.º 1, do artigo 496º, do Código Civil que: “na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”.

Na determinação do quantitativo indemnizatório dever-se-á ter em conta os critérios estabelecidos no artigo 494.º do Código Civil, aplicado ex vi do n.º 3 do artigo 496º. A indemnização fixar-se-á equitativamente, atendendo-se aos seguintes fatores: “O grau de culpa do agente, a situação económica deste e as demais circunstâncias do caso”.

A equidade é um critério para a correção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto.

Na atribuição dessa indemnização deve respeitar-se «todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida» (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª edição, pág. 501 e, entre outros, Ac. deste Supremo de 05-11-2008, in Proc. n.º 3266/08 desta 3ª Secção)

O tribunal considerou que “encontrando-se devidamente abordado o condicionalismo que rodeia a prática do facto ilícito, e sem esquecermos a gravidade dos factos praticados pelo arguido, a sua situação económica e os danos sofridos, consideramos adequada uma indemnização compensatória pelos danos sofridos no montante de € 30.000,00 (trinta mil euros)”.

A situação económica do arguido é, de acordo com os factos provados, a seguinte:

“O arguido verbaliza ter mantido atividade, desde 2019, na empresa “G...” com ..., junto a ..., atividade que manteve quer em Portugal, quer pela Europa.

Esta ascendente mantém-se recetiva à sua reintegração no agregado familiar, salientando o apoio que o recluso sempre lhe foi prestando, alicerçado em muitos anos de convivência com este, situação aparentemente extensível às suas irmãs.

O arguido ingressou ao meio prisional, a 31 de março de 2020, preventivo à ordem do atual processo”.

Note-se que o arguido estivera privado da liberdade entre 16.09.2013 e 4.09.2019.

Ou seja, desde setembro de 2013 até ao presente, apenas terá auferido rendimentos no período de 6 meses.

Por seu turno, a vítima sofreu danos assim descritos na matéria provada:

“Devido aos factos acima relatados, perpetrados pelo arguido, a menor BB sente vergonha e humilhação por ter mantido relações sexuais e de coito oral com aquele.

Devido à conduta do arguido acima relatada, a menor tem sonhos e pensamentos perturbadores que a impedem de dormir com normalidade;

(…) sente-se ansiosa, tem receio de estar sozinha e de sair de casa.

Durante o tempo em que os factos acima relatados ocorreram e ainda hoje, a menor viu-se incapaz de estudar e de se concentrar, situação que motivou e intensificou o seu insucesso escolar e frustração por não conseguir obter os resultados escolares que pretendia, sentindo-se diminuída entre o seus colegas de escola e socialmente.”

Em suma, mostram-se descritos efeitos nocivos no desenvolvimento, bem-estar, saúde, sucesso escolar e integração social da menor.

Já não é tão evidente a capacidade económica do arguido, ignorando-se o valor das quantias auferidas pelo trabalho por conta de outrem realizado naquele período de 6 meses e a viabilidade de atividade profissional, após cumprimento de pena.

Sendo a equidade o guia na ponderação da indemnização a fixar, a jurisprudência deste tribunal quanto aos montantes fixados para crimes da mesma natureza há-de constituir uma referência relevante, a integrar na avaliação concreta.

Considerando o que se conhece da situação económica do arguido, os danos não patrimoniais dados como provados e a jurisprudência recente do tribunal em crimes de natureza idêntica, entende-se adequado reduzir o montante indemnizatório fixado para 20000,00€.

Nesta parte, procede parcialmente o recurso.


III. Decisão

Nos termos expostos, o Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, acorda em:

1. Julgar parcialmente procedente o recurso, reduzindo o montante da indemnização e fixando-o em 20 mil euros;

2. No mais, julgar improcedente o recurso, mantendo-se o acórdão recorrido.

Sem custas (art. 513º n.º 1 parte final do CPP).


Supremo Tribunal de Justiça, 06 de setembro de 2022

Teresa de Almeida (Relatora)

Ernesto Vaz Pereira (1.º Adjunto)

Lopes da Mota (2.º Adjunto)

_____

[1] Cfr., entre outros, acórdãos: no Proc. 53/17.2JABRG.G1. S1, de 28.01.2021, 5.ª Secção; no Proc. 396/18.8PBLRS.L1.S1, 3.ª Secção, de 13.05.2020; no Proc. 430/16.6GABRR.S1, de 22.01 2020, 3.ª secção; no Proc. 1257/18.6SFLSB.L1.S1, de 27.11.2019, 3ª Secção; no Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1, de 04-05-2017, 5.ª Secção e no Proc. n.º 110/14.7JASTB.E1.S1, de 14.01.2016, 5.ª Secção.
[2] Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2.ª Edição, 2022, pag.57.
[3] Maria João Antunes, Ob. Cit., pag.55, Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, pp. 611-678 e Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp. Coimbra Editora, 2011, pp. 232-357.
[4] Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs.290/292.