Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
961/14.2T8VCT.G1.S2
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: OLINDO GERALDES
Descritores: CUSTAS
TRANSACÇÃO
TRANSAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
VONTADE REAL DO DECLARANTE
Data do Acordão: 02/28/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / DECLARAÇÃO NEGOCIAL / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO / SENTIDO NORMAL DA DECLARAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / CUSTAS, MULTAS INDEMNIZAÇÃO / CUSTAS / REGRA GERAL EM MATÉRIA DE CUSTAS / REGRAS ESPECIAIS / CUSTAS NO CASO DE CONFISSÃO, DESISTÊNCIA OU TRANSACÇÃO.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 237.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 527.º, N.ºS 1 E 2 E 537.º, N.ºS 1 E 2.
Sumário :
I. As declarações de vontade das partes, tanto pelo seu sentido corrente como pelo contexto contratual, revelam que as custas da ação ainda devidas seriam pagas por ambas segundo a proporção do respetivo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível.

II. A objetividade da declaração negocial e a sua correspondência verbal determinam o sentido normal da transação sobre o pagamento das custas.

III. Não havendo dúvida sobre o sentido da declaração negocial, não é aplicável o disposto no art. 237.º do Código Civil.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



I – RELATÓRIO


AA & Filhos, Lda., instaurou, em 4 de novembro de 2014, nos Juízos Centrais Cíveis da Comarca de …, contra BB - Companhia de Seguros, S.A., (que, entretanto, passou a denominar-se CC - Companhia de Seguros, S.A.), ação declarativa, sob a forma de processo comum, pedindo que a Ré fosse condenada a pagar-lhe a quantia de € 168 182,95, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até pagamento, e de sanção pecuniária compulsória.

Para tanto, alegou, em síntese, que entre as partes correu termos uma ação com o valor processual de € 9 148 575,20, na qual transigiram, designadamente quanto às custas judiciais; face ao seu decaimento (14,0723 %), pagou a mais a quantia de € 168 182,95, devendo a R. reembolsá-la da quantia.

Contestou a R., arguindo, designadamente, a exceção de caso julgado, porquanto, por decisão transitada em julgado, foi decidido que a Autora teria de pagar as custas em dívida a juízo, na proporção em que as pagou.

Replicou a A.

Foi proferido despacho saneador, no qual, além do mais, foi julgada improcedente a exceção do caso julgado.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, em 2 de dezembro de 2016, que, julgando a ação improcedente, absolveu a Ré do pedido.

Inconformada com a sentença, a A. recorreu para o Tribunal da Relação de Guimarães que, por acórdão de 11 de julho de 2017, anulou a sentença, que veio a ser anulado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de fevereiro de 2018.

Regressado o processo ao Tribunal da Relação de Guimarães foi proferido, em 11 de outubro de 2018, novo acórdão que, julgando a apelação procedente, condenou a Ré a pagar à Autora a quantia de € 168 182,95, acrescida de juros de mora, à taxa de 4 % ao ano, desde a citação até integral pagamento, acrescendo ainda a sanção pecuniária compulsória, correspondente aos juros, à taxa de 5 % ao ano, a contar da data do trânsito em julgado do acórdão.


De novo inconformada, a Ré recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça e, tendo alegado, formulou essencialmente as seguintes conclusões:


a) Foi possível concluir que houve uma intenção clara das partes em distinguir dois tipos de custas, aquelas que se encontravam em dívida no momento da transação daquelas que eventualmente poderiam advir posteriormente, como são as custas do processo que, in casu, advieram posteriormente a ser conhecidas pelas mesmas.

b) Não se podendo ignorar que as partes deixaram presente a sua vontade de distinguir duas realidades aquando da celebração do acordo, e sobre as quais consentiram.

c) A decisão recorrida encontra-se em total desrespeito com aquela que foi a vontade da Recorrente e com o art. 237.º do Código Civil.

d) A mesma contraria completamente aquela que era a vontade das partes, no momento da celebração da transação.

e) Foram violados os arts. 405.º, 236.º, 237.º, 238.º e 1248.º, todos do Código Civil.


Com o provimento do recurso, a Recorrente pretende a revogação do acórdão recorrido e a sua absolvição dos pedidos formulados na ação.


Contra-alegou a A., no sentido de ser mantido o acórdão recorrido.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


Nesta revista, está em discussão a interpretação de transação judicial, quanto ao pagamento das custas.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. No acórdão recorrido, foram dados como provados os seguintes factos:


1. Correu termos, sob o n.º 612/09.7TBVCT, no extinto 1.º Juízo Cível da Comarca de …, ação de condenação instaurada pela A. contra a R.

2. Pelos pedidos formulados na ação (€ 6 937 413,00) e na reconvenção (€ 2 211 162,20), o valor do processo foi fixado em € 9 148 575,20.

3. Com o processo pendente no Supremo Tribunal de Justiça, as partes transigiram sobre o objeto do litígio nos seguintes termos: 1.ª AA & Filhos, Lda. (…), doravante designada como 1.ª transacionante; 2.ª BB - Companhia de Seguros, S.A. (…), doravante designada como 2.ª transacionante; Considerando que: A) A 1.ª transacionante intentou contra a 2.ª a ação declarativa ordinária que corre termos no 1.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de … com a referência alfanumérica 612/09.7TBVCT, no âmbito da qual a 2.ª enxertou o apenso A; B) A 1.ª transacionante intentou contra a 2.ª a ação de execução comum que corre termos no 3.º Juízo Cível do Tribunal Judicial de … sob o n.º 1180/13.0TBVCT; Pelo presente escrito celebram, ao abrigo do disposto nos artigos 1248.º e seguintes do Código Civil, a presente transação subordinada ao seguinte clausulado e regida, no que este for omisso o lacunoso, pelo disposto nos normativos legais, imperativos ou supletivos, complementarmente aplicáveis: Primeira 1. A 2.ª transacionante compromete-se a pagar à 1.ª a quantia de € 5.650.000,00 (…), na data de 13/05/2013, contra recibo, a título de indemnização por todos e quaisquer danos sofridos e despesas efetuadas na decorrência do sinistro melhor identificados nos supra (A) mencionados autos. 2. As custas judiciais em dívida nos autos principais e no sobredito apenso serão suportadas pelas transacionantes pelo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível. 3. Cumpridos os termos da presente transação, a 2.ª transacionante nada mais terá a pagar à 1.ª por conta dos factos trazidos a juízo, declarando-se a 1.ª transacionante totalmente ressarcida e sem direito a qualquer outro recebimento, seja a que título for, dando plena e completa quitação, desobrigando a 2.ª transacionante de tudo o que se relacione com o sinistro em causa. Segunda 1. As transacionantes desistem de todos os pedidos formulados entre si no âmbito da ação declarativa identificada na alínea A) dos considerandos preambulares, nomeadamente no que respeita ao recurso de revista e respetiva ampliação, interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça. 2. As custas judiciais em dívida serão suportadas pelas transacionantes pelo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível. Terceira 1. A 1.ª transacionante desiste do pedido formulado contra a 2.ª no âmbito da ação de execução comum identificada na alínea B) dos considerandos preambulares, comprometendo-se a ordenar, na presente data, à Sra. Agente de Execução o imediato levantamento da penhora que incide sobre os saldos de depósitos bancários das contas tituladas pela 2.ª transacionante, bem como de qualquer outra penhora ou diligência que tenha sido tomada no âmbito da execução. 2. As custas e honorários em dívida da Sra. Agente de Execução serão suportados pela 2.ª transacionante, prescindindo ambos das custas de parte e da procuradoria disponível.”

4. Esse acordo foi homologado por sentença, transitada, nos seguintes termos: “por válida, relevante e tempestiva, provindo de quem tem legitimidade, e versando sobre direitos disponíveis, homologa-se por sentença a transação que antecede, condenando as partes nela intervenientes a observarem-na nos seus precisos termos. (…) Custas pela forma acordada”.

5. Na ação, as custas em dívida a juízo foram fixadas em € 529 707,00, tendo a A. pago € 242 724,90 e a R. € 286 982,10.

6. Nas negociações entre a A. e a R. foi entendido que as custas ainda em dívida quando negociaram o acordo, a serem apuradas posteriormente, seriam pagas na proporção do decaimento (introduzido pela Relação).

7. O que ficou claro em todos os momentos que antecederam a entrega da quitação, tendo sido esta uma exigência da A. (introduzido pela Relação).



***



2.2. Delimitada a matéria de facto, depois de alterada pela Relação, importa conhecer do objeto do recurso, definido pelas suas conclusões, nomeadamente da interpretação de uma transação judicial, quanto ao pagamento das custas em dívida.

As instâncias, com efeito, divergiram no julgamento, pois, enquanto a sentença julgou a ação improcedente, o acórdão recorrido, pelo contrário, julgou a ação totalmente procedente, condenando a Recorrente a pagar, à Recorrida, a quantia de € 168 182,95, acrescida dos juros mora e da sanção pecuniária compulsória.

A Recorrente, todavia, baseando-se na vontade das partes no contrato de transação judicial, continua a pugnar pela sua absolvição do pedido.

Descritos, sumariamente, os termos da discussão jurídica emergentes dos autos, há que aplicar o respetivo direito.


As partes, tendo estado envolvidas em litígios, celebraram uma transação judicial e, no âmbito das custas, acordaram:


“As custas judiciais em dívida nos autos principais e no (…) apenso serão suportadas pelas transacionantes pelo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível” (cláusula 1.ª, n.º 2).

“As custas judiciais em dívida serão suportadas pelas transacionantes pelo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível” (cláusula 2.ª, n.º 2).

As custas e honorários em dívida da (…) Agente de Execução serão suportados pela 2.ª transacionante, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível” (cláusula 3.ª, n.º 2).  


Estas foram as declarações de vontade expressas pelas partes, consubstanciadas na transação judicial, quanto ao pagamento das custas judiciais.

As declarações de vontade das partes, tanto pelo sentido corrente como pelo contexto contratual, revelam que as custas da ação ainda devidas seriam pagas por ambas segundo a proporção do respetivo decaimento, prescindindo ambas das custas de parte e da procuradoria disponível.

Com tal declaração de vontade, as partes afastaram, expressamente, a regra supletiva de pagamento a meio para o caso de transação, prevista no art. 537.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC).

As partes quiseram, antes, estabelecer uma regra específica de pagamento, proporcional relativo ao decaimento de cada uma, à semelhança da regra geral estabelecida no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC, e da regra aplicável no caso de confissão e desistência (art. 537.º, n.º 1, do CPC).

O objeto da regulação contratual das custas judiciais circunscrevia-se às custas ainda em dívida, a liquidar na conta correspondente, elaborada no prazo de dez dias após o trânsito em julgado da decisão final, sendo certo que ambas as partes, porque dispunham dessa disponibilidade, prescindiram também do direito às custas de parte e à procuradoria (disponível).

Deste acordo resulta ainda também que as partes consideraram, como custas já pagas, as quantias pagas previamente por cada uma, mas sem observância da regra da proporção (decaimento) estabelecida para as custas que viessem a ser liquidadas.

Perante a transação concretamente celebrada, o sentido normal da declaração só pode corresponder a que as custas da ação em dívida, a liquidar ulteriormente, seriam pagas conforme a proporção do decaimento das partes.

Para um declaratário normal, para mais tratando-se de advogado, tal constitui o sentido normal da declaração negocial, ou, dito de outra maneira, o seu sentido objetivo. Aliás, conforme a Relação considerou provado, nas negociações, ficou claro, em todos os momentos que antecederam a entrega da quitação, que as custas ainda em dívida seriam pagas na proporção do decaimento, o que constituía uma exigência da Recorrida.

Assim, tanto pelo sentido objetivo da declaração negocial, com particular relevo para o contexto em que foi formalizada, como também pela sua correspondência verbal, o sentido normal da transação, quanto ao pagamento das custas da ação em dívida, não pode ser diferente do afirmado.

Esta interpretação, quanto ao sentido objetivo da declaração de vontade das partes, está em inteira harmonia com as regras da interpretação dos negócios jurídicos consagradas, nomeadamente, nos arts. 236.º, n.º 1, e 238.º, ambos do Código Civil (CC).

De resto, tal sentido da declaração negocial corresponde, na realidade, ao sentido comum dado e seguido na prática judiciária corrente.

Esclarecido o sentido (normal) da declaração negocial, torna-se evidente que não sobra qualquer espaço para a aplicação do disposto no art. 237.º do CC, porquanto esta norma é relativa a casos duvidosos sobre o sentido da declaração, o que, como se viu, não sucede nos presentes autos.

Conclui-se, portanto, que a vontade real das partes foi no sentido do pagamento das custas da ação, ainda não pagas e com liquidação a final, seriam pagas de acordo com o respetivo decaimento.


Nestas circunstâncias, tendo a decisão recorrida absorvido a interpretação agora acolhida, carece de fundamento a revista e, assim sendo, confirma-se o acórdão recorrido, o qual não violou qualquer disposição legal aplicável, nomeadamente as especificadas pela Recorrente.

  

2.4. A Recorrente, ao ficar vencida por decaimento, é responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a regra da causalidade consagrada no art. 527.º, n.º s 1 e 2, do CPC.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decide-se:


1) Negar a revista, confirmando o acórdão recorrido.


2) Condenar a Recorrente (Ré) no pagamento das custas.


Lisboa, 28 de fevereiro de 2019


Olindo Geraldes (Relator)

Maria do Rosário Morgado

Hélder Almeida