Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
983/06.7TBBGR.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: SIMULAÇÃO DE CONTRATO
INTERPOSIÇÃO FICTÍCIA DE PESSOAS
DIREITO DE RETENÇÃO
INCUMPRIMENTO
CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA
NULIDADE DO CONTRATO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 03/25/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: PROVIMENTO PARCIAL
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL, ARTIGOS 220º, 240º, 241º,286º, 289º, 294º, 342º, 364º, 715º 875º, 883º CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, ARTIGOS 3º,498º, 660º
Jurisprudência Nacional: SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, ACÓRDÃOS DE:
5 DE JULHO DE 2007, WWW.DGSI.PT, PROC. 07B1361
27DE MAIO DE 2009, WWW.DGSI.PT, Nº 08B1170
Sumário :
1. Incumbe a quem invoca simulação de preço o ónus de a provar.
2. Em caso de simulação relativa, por interposição fictícia de pessoas, é nulo o negócio aparente, por ser simulado.
3. A nulidade do negócio simulado não implica a nulidade do negócio dissimulado.
4. Sendo de natureza formal o negócio dissimulado, e tratando-se de negócio translativo, só será válido se a transmissão efectivamente pretendida constar da forma exigida.
5. Não tendo a acção sido proposta e registada nos três anos posteriores aos negócios, a nulidade do negócio dissimulado não prejudica os direitos sobre o mesmo bem por terceiros de boa fé, adquiridos por acto oneroso.
6. Subsiste, assim, a hipoteca constituída a favor de terceiro por contrato com o simulado adquirente.
Decisão Texto Integral:



Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:


1. AA instaurou contra a Massa Falida da Sociedade Comercial por Quotas BB – Sociedade de Construções, Lda., CC (liquidatário judicial), DD, EE e Caixa Económica FF uma acção na qual pediu:
– que fosse declarada “nula e de nenhum efeito a escritura pública de compra e venda outorgada em 4 de Junho de 2002 (…) entre a 1ª R., representada pelo 2ºR, e o 3º R, porque enferma de nulidade, por simulação advinda da fictícia interposição da pessoa do comprador e por simulação do preço da venda”;
– que fosse declarada “nula e de nenhum efeito a escritura pública de compra e venda outorgada em 1 de Agosto de 2002 (…) entre o 3ª R. e o 4 ºR, , por ser igualmente simulada, mercê da interposição fictícia da pessoa do vendedor”;
– que fosse ordenado o cancelamento dos registos correspondentes e eventualmente dos que posteriormente fossem efectuados e que deles dependam.
Em síntese, alegou ser titular de um crédito reconhecido e graduado “com a preferência resultante do direito de retenção” no processo de falência da primeira ré, resultante do incumprimento de um contrato-promessa de compra e venda de determinada fracção autónoma de um prédio urbano situado em Gualtar, Braga, devidamente descrita nos autos, que celebrara com BB; ter sido a fracção autónoma simuladamente vendida, em primeiro lugar, pelo segundo réu, enquanto liquidatário, ao terceiro, pelo preço declarado de € 37.400,00 e, em segundo lugar, pelo terceiro ao quarto, pelo preço declarado de € 75.000,00, por escritura em que interveio a Caixa Económica FF, por ter concedido crédito ao comprador; e traduzirem-se os referidos negócios num “estratagema urdido pelos 2º, 3º e 4º RR, com vista a diminuir o património da 1ª R.” e assim “ impedir a satisfação do direito de crédito dos seus credores, em especial daquele que assiste à aqui A., que seria paga com preferência sobre o produto da venda dessa concreta fracção autónoma”. Na realidade, o verdadeiro comprador sempre foi EE, o quarto réu, e o verdadeiro preço o de € 75.000,00; ambos os contratos de compra e venda são nulos, por simulação (interposição fictícia de pessoas, nos dois casos, e simulação de preço no primeiro).
Todos os réus contestaram; a autora replicou.
No despacho saneador, o réu CC foi absolvido da instância, por ilegitimidade.
Pela sentença de fls. 489, a acção foi julgada improcedente, por não ter ficado provado, nem a interposição fictícia de pessoas, nem a simulação relativa ao preço, sendo certo que incumbia à autora o correspondente ónus da prova.
Por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de fls. 1370, foi mantida a decisão de improcedência, embora com diferente fundamentação.
A Relação, julgando procedente, em parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, julgou provado “que o real propósito das pessoas envolvidas no negócio – liquidatário, réu DD (através do seu procurador) e réu EE – foi no sentido da venda da fracção a este último, mediante a interposição fictícia do réu DD” mas não provado, nem que o preço realmente acordado fosse de € 75.000,00, nem que “houve intenção de prejudicar a massa falida e (…) impedir a satisfação dos créditos sobre a massa”.
Assim, considerou ocorrer um caso de simulação relativa – era meramente aparente o comprador, na primeira compra e venda; mas ter havido transmissão do objecto da venda, deste para o real comprador, em execução do que ficara acordado; e que portanto “o negócio simulado – a venda feita ao interposto – é nulo. Mas o negócio dissimulado – a venda feita pela Massa Falida ao EE – vale como está, como se tivesse sido abertamente concluído, uma vez que nada vem provado que o inquine, seja no plano formal, seja no plano substancial. (…) De outro lado, a nulidade do negócio simulado não possui, no contexto da simulação relativa, qualquer autonomia jurídica, de modo que não faz sentido declarar nulas e de nenhum efeito as escrituras nele envolvidas ou ordenar o cancelamento de registos”.
Julgou, portanto, nula a compra e venda feita pela escritura de 4 de Junho de 2002, por simulação, mas confirmou a improcedência da acção.

2. Novamente recorreu a autora, agora para o Supremo Tribunal da Justiça; o recurso, ao qual não são aplicáveis as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto, foi admitido como revista, com efeito meramente devolutivo.
Nas alegações que apresentou, formulou as seguintes conclusões:

«I. Ao conhecer da existência e validade de um pretenso negócio dissimulado, sem que alguma das partes o tivesse pedido, o Tribunal a quo conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, assim desrespeitando o princípio do dis­positivo consagrado no art. 3.°, n.º 1, do CPCiv. e violando, do mesmo passo, o disposto no art. 660.°, n.º 2 - 2.a parte, do mesmo diploma legal, o que acarreta a nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia;
II. A matéria de facto fixada, em definitivo, pelo acórdão recorrido não permite o tra­tamento jurídico que nele foi dado à causa, já que não foi apurado o que na reali­dade se quis e fez sobre o que simuladamente se concebeu, mas apenas que houve divergência intencional entre a vontade real e a declaração das partes na escritura outorgada em 4 de Junho de 2002, resultante de combinação ou conluio entre a 1.a, 3.° e 4.° Réus, com o intuito ou propósito de enganar terceiros, e, bem assim, que todos os intervenientes quiseram a venda da fracção em causa da 1.a ao 4.° Réu, que este a quis comprar àquela e, finalmente, que o 3.° Réu interveio naquela escritura com o único propósito de mais tarde a transmitir ao 4.° Réu;
III. Não se tendo provado que o preço do negócio realmente querido pelas partes corresponde ao declarado na escritura de 04-06-2002, no valor de € 37.400,00, e estando até assente que o comprador aparente, em execução do acordo simula­tório, transmitiu para o comprador real o objecto da venda pelo preço declarado de € 75.000,00, jamais poderia afirmar-se que o negócio dissimulado vale como está, como se tivesse sido abertamente concluído, retirando eficácia invalidante à nulidade do negócio simulado;
IV. Ao julgar improcedente a apelação, mantendo a decisão proferida pela 1.a instân­cia, por entender que a nulidade do negócio simulado não possui qualquer auto­nomia jurídica, no contexto da simulação relativa e no seguimento da apreciação que fez do negócio dissimulado, o Tribunal a quo fez errada interpretação do dis­posto nos arts. 240.°, n.º 2, 286.° e 289.°, n.º 1, todos do CCiv., para além de ter aplicado erradamente o regime legal previsto no art. 241.°, n.º 1, do mesmo diploma;
V. Declarada que foi a nulidade do negócio simulado e de acordo com o disposto no art. 289.°, n.º 1, do CCiv., todos os negócios subsequentes e dele emergentes caem por força do vício que inquinou o primeiro, sendo ainda certo que, por força da eficácia retroactiva, terá de ser restituído tudo o que foi prestado;
VI. A decisão recorrida deve ser revogada e substituída por uma outra que, mantendo a declaração de nulidade, por simulação, da compra e venda dita feita mediante a escritura de 04-06-2002, considere cessada a eficácia da compra e venda titulada pela escritura de 01-08-2002, enquanto negócio subsequente e consequente, e determine o cancelamento das inscrições G-UM, G-DOIS e C-UM referentes à fracção autónoma descrita sob o n.º 00339-E/GUALTAR, bem como de todas as que tenham ou venham a ser efectuadas em data posterior e que tenham origem naquelas e/ou delas dependam».

Não houve contra-alegações.

Pelo acórdão de fls. 1422, a Relação decidiu não haver que suprir qualquer nulidade.

3. Vem definitivamente provada a seguinte matéria de facto (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1°-Por sentença proferida em 22/02 /2000 no âmbito do processo que corre termos no I ° Juízo Cível deste Tribunal sob o nº 307/99, transitada em julgado, foi declarada a falência da sociedade BB ­Sociedade de Construções, Lda;
1°- No processo referido no anterior facto, por sentença de 27/09/2001, em acção instaurada nos termos do art. 105° do CPEREF, foi julgado verificado o crédito de 26.000.000$00 da aqui autora sobre a massa falida da sociedade BB – Sociedade de Construções. Lda:
3°- Por sentença proferida em 6/02/2002, no apenso da reclamação de créditos do referido processo de falência, o crédito da autora, referido no anterior facto, foi reconhecido e graduado com a preferência resultante do direito de retenção relativamente ao produto da venda da fracção E. com garagem individual e arrumos do prédio situado na Quinta da Igreja. Gualtar, Braga, em 2° lugar, sendo quanto ao restante património da falida graduado a par dos créditos comuns e de forma rateada:
4°- O Liquidatário Judicial da falência fez dar entrada no referido processo, em 11/03/1001, de requerimento do seguinte teor: 'CC, na qualidade de Liquidatário Judicial do processo em epígrafe, informa que, consultada a Comissão de Credores sobre a venda das Verbas n° 1 do Auto de Apreensão de Bens e n° 1 do Aditamento ao mesmo, conforme cópias das cartas em anexo, os mesmos não se pronunciaram, dado que anteriormente já haviam dado o seu acordo ao leilão para a venda, entre as duas propostas em presença. Face ao exposto, é entendimento do signatário que estão reunidas as condições para concretizar a venda, pelo que requer que V. Ex.a se digne mandar emitir certidão, conferindo-lhe poderes para vender os referidos prédios pelo montante de €37.400.00/cada. a favor do Sr. EE, residente em Valcovo, Rendufinho, Póvoa de Lanhoso ou pessoa individual ao colectiva por ele indicada:
5°- Em 3/04/002 foi emitida a certidão pretendida e referida no anterior facto que habilitou o liquidatário judicial com poderes para vender a EE, ou pessoa individual ou colectiva por ele indicada, pelo preço de 37.400.00€ o prédio urbano correspondente a uma habitação no segundo andar esquerdo, tipo T3, com entrada pelo n° 53 com garagem e um lugar para arrumos na cave designados pelo n° 5, com entrada pelo n° 36, inscrito na matriz predial urbana com o artigo n° 1605 Fracção E, freguesia de Gualtar e descrito na Conservatória do Registo Predial de Braga sob o n° 00339 Fracção E;
6°- Em escritura pública outorgada no 3° Cartório Notarial de Braga no dia 4/06/2002, CC, outorgando na qualidade de liquidatário judicial na falência da sociedade comercial BB ­Sociedade de Construções. Lda, no uso dos poderes resultantes dessa qualidade, declarou vender a DD, que declarou aceitar tal contrato, pelo preço de trinta e sete mil e quatrocentos euros a fracção autónoma designada pela letra “E”, habitação no segundo andar esquerdo, tipo T3, com entrada pelo n° 53 de polícia, com uma garagem e um lugar para arrumos na cave designados pelo número 5, com entrada pelo n° 36 de polícia, descrita na C.R.P. sob o n° 339/Gualtar, fracção que faz parte do prédio urbano sito na Rua José Antunes Guimarães, n° ... de polícia e Rua João Nascimento dos Santos. nº … a … de polícia, Gualtar, Braga;
7°- Consta na escritura referida no anterior facto que ficou arquivada no referido cartório a certidão judicial referida no anterior facto 5° bem como declaração de desistência do comprador indicado na referida certidão do Tribunal;
8°- Em 10/7/2002 foi inscrita no registo predial a aquisição da fracção referida nos anteriores factos a favor do réu EE:
9°- Em escritura pública outorgada em1/08/2002 no Cartório Notarial da Póvoa de Lanhoso, o réu DD declarou vender ao réu EE pelo preço de setenta e cinco mil euros, tendo este último declarado aceitar tal contrato, a fracção autónoma identificada no anterior facto 6°;
10°- Na escritura referida no anterior facto o réu EE e a ré Caixa Económica FF declararam celebrar contrato de empréstimo, declarando o réu EE confessar-se devedor a esta ré da quantia de setenta e cinco mil euros, que naquele acto recebeu a título de empréstimo para aquisição do imóvel referido, mais declarando constituir a favor desta ré, para garantia do integral cumprimento das obrigações assumidas em tal contrato, hipoteca voluntária sobre o imóvel adquirido nesse acto e aí identificado;
11°- Por conta do crédito reconhecido no processo de falência a autora tem a receber a importância de 42.656.79E. tendo recebido já a quantia de 12.656.79E;
12°- A presente acção foi intentada em 1/02/2006;
13°- Pela apresentação n° 29 de 10/7/2002 foi levada ao registo a constituição de hipoteca voluntária referida no anterior facto 10°:
14°- A primeira, terceiro e quarto réus quiseram a venda da fracção da primeira ré ao quarto réu;
15°- A primeira ré quis vender a referida fracção ao quarto réu:
16°- O quarto réu quis comprar a referida fracção à primeira ré:
17°- A primeira ré nunca quis vender ao terceiro réu a referida fracção;
18°- O terceiro réu nunca quis comprar a referida fracção;
19°- O terceiro réu interveio na escritura referida em 6° com o exclusivo propósito de mais tarde transmitir ao quarto réu a referida fracção;
20°- A primeira, terceiro e quarto réus actuaram e produziram as declarações referidas nas escrituras aludidas em 6° e 9° no âmbito de estratagema por eles urdido e previamente acordado.»

4. A fls. 1444, foi proferido o seguinte despacho, notificado às partes:

«1. Pelo acórdão recorrido, de fls. 1370, foi decidido manter a decisão de improcedência da acção proposta por AA contra a Massa Falida da Sociedade Comercial por Quotas BB – Sociedade de Construções, Lda., CC, DD, EE e Caixa Económica FF, mas por fundamento diferente do que, em primeira instância, levara igualmente à improcedência.
Em síntese, a Relação considerou ocorrer um caso de simulação relativa e que “o negócio simulado – a venda feita ao interposto – é nulo. Mas o negócio dissimulado – a venda feita pela Massa Falida ao EE – vale como está, como se tivesse sido abertamente concluído, uma vez que nada vem provado que o inquine, seja no plano formal, seja no plano substancial. (…) De outro lado, a nulidade do negócio simulado não possui, no contexto da simulação relativa, qualquer autonomia jurídica, de modo que não faz sentido declarar nulas e de nenhum efeito as escrituras nele envolvidas ou ordenar o cancelamento de registos”.
2. Admite-se, todavia, que o negócio dissimulado seja nulo, por falta de forma (artigos 241º, nº 2, 220º e 875º do Código Civil), uma vez que se considere essencial que conste da forma legalmente exigida a transmissão efectivamente pretendida – no caso, entre a Massa Falida e EE, segundo o que ficou provado.
Assim, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 3º do Código de Processo Civil, notifique as partes para se pronunciarem, querendo, sobre essa eventualidade.»

DD, EE e Caixa Económica FF responderam, sustentando a validade do negócio dissimulado. Sustentaram que “a doutrina dominante entende, hoje, que o nº 2 do artigo 241º não exige que a parte oculta do negócio tenha de revestir a forma legalmente exigida, bastando-se com a observância da forma no negócio aparente (simulado). (…) os elementos do contrato real ou dissimulado não cobertos pela forma do negócio aparente ou simulado ficam expressos e tornam-se aparentes ou cognoscíveis, na sentença que declare a simulação, entendendo-se que a forma da sentença é soleníssima e, seguramente, mais solene do que a de qualquer escritura (…)”.
E que no caso dos autos tal problema nem se põe, porque “constata-se que o negócio dissimulado obedeceu à forma solene de escritura pública”.
Entendem, assim, que deve manter-se o acórdão recorrido.

5. Estão em causa neste recurso, cujo âmbito se delimita pelas conclusões das alegações da recorrente (nº 3 do artigo 684º do Código de Processo Civil), as seguintes questões:
– Nulidade do acórdão recorrido, por excesso de pronúncia;
– Falta de prova do preço realmente acordado e suas consequências;
– Consequências da nulidade do primeiro contrato de compra e venda.

6. A recorrente começa por sustentar que o acórdão recorrido, “ao conhecer da existência e validade de um pretendo negócio dissimulado, sem que alguma das partes o tivesse pedido (…), excedeu a sua actividade cognitiva e desrespeitou o princípio do dispositivo, consagrado no art. 3º, nº 1, do CPCivil”, sendo nulo por excesso de pronúncia.
Não tem razão, todavia. A recorrente invocou terem sido celebrados dois contratos de compra e venda que considera não corresponderem à real vontade dos contraentes, no que agora interessa, porque os intervenientes em ambos sempre quiseram que o verdadeiro comprador fosse o réu EE. Colocou, portanto, à apreciação do tribunal a existência aparente de dois contratos cuja interligação se apresenta como um meio para se alcançar o efeito realmente – a compra à massa falida por EE. A descrição que faz do conluio globalmente destinado a atingir esse fim, através da interposição fictícia do réu DD, consiste, do ponto de vista da lei, na existência de uma simulação relativa, onde se sobrepõem dois negócios, o aparente (simulado) e o realmente querido (dissimulado), tal como é descrito pela autora.
Das contestações dos réus retira-se, também apenas para o que agora releva, a afirmação de que a interposição foi realmente pretendida, e não corresponde a qualquer simulação, mas igualmente que o efeito final dos dois contratos era o de proporcionar a aquisição da fracção autónoma por EE.
Neste contexto, não era sequer possível ao tribunal julgar a simulação sem analisar as diferenças entre o negócio simulado e o dissimulado, porque só dessa análise poderia resultar o seu juízo sobre a validade dos negócios aparentes, que a autora questiona e os réus defendem. Ora essa análise não podia ignorar o negócio realmente pretendido e o objectivo final com que a autora propôs a acção: o retorno à massa falida da fracção autónoma em causa.
A apreciação desse retorno – que é, na verdade, o efeito pretendido pela autora (cfr. nº 3 do artigo 498º do Código de Processo Civil), e que faz decorrer do encadeamento de negócios que considera nulos – não é possível sem a consideração do negócio dissimulado.
A apreciação que o acórdão recorrido fez do negócio dissimulado teve apenas em vista o julgamento do pedido da autora e a sua improcedência, e não retirar desse negócio nenhum efeito a favor dos réus.
Não ocorreu excesso de pronúncia, nem tão pouco foi violado o princípio dispositivo.

7. A recorrente sustenta, ainda, que, não tendo ficado provado que o preço realmente acordado foi de € 37.400,00, o acórdão recorrido não podia ter considerado “válido o negócio encoberto ou disfarçado, considerando ter apenas existido a intervenção de um sujeito aparente”.
Também não tem razão. Isolando agora as questões da simulação relativa por interposição fictícia de pessoas e da simulação de preço, e curando por agora apenas desta última, cumpre reconhecer que, no contexto da acção, a simulação de preço aparece como um facto cujo ónus da prova incumbe à autora (nº 1 do artigo 342º do Código Civil).
Com efeito, a autora, ao invocar a nulidade da compra e venda realizada em primeiro lugar, atribui-lhe dois vícios; um deles é a simulação de preço.
Na falta de prova sobre qual foi o preço realmente acordado, o tribunal tem de julgar contra a autora, não reconhecendo a existência dessa divergência.
Isso não significa, todavia, que se não pudesse apreciar a interposição de pessoas, pois que são vícios distintos.
Note-se, aliás, que o acórdão recorrido não declarou a validade do negócio dissimulado com o preço de € 75.000,00; antes afirma que não foi possível concluir qual o preço realmente acordado.
E a verdade é que esta questão perde importância, em resultado do que adiante se dirá.

8. Finalmente, a recorrente, sustentando a nulidade da compra e venda realizada em primeiro lugar, pretende que caiam, “por força do vício que inquinou o primeiro”, “todos os negócios subsequentes e dela emergentes”.
Para apreciar esta questão cumpre, todavia, verificar se, na realidade, deve entender-se não ocorrer motivo de invalidade do negócio dissimulado, que seja de conhecimento oficioso, uma vez que disso depende, eventualmente, a procedência do pedido de restituição à massa falida.
Tal como se entendeu no acórdão recorrido, estão provados todos os dados de facto necessários para se ter como verificada a simulação dos contratos de compra e venda constantes das escrituras públicas de 4 de Junho de 2002 (entre a massa falida, representada por CC, na qualidade de liquidatário judicial, vendedor e DD, comprador) e de 1 de Agosto de 2002 (entre DD, vendedor, e EE, comprador). Está com efeito assente que, em resultado de concertação entre os diversos intervenientes, se realizaram esses dois contratos de compra e venda sem que os correspondentes intervenientes efectivamente quisessem comprar e vender às contrapartes, já que o contrato realmente querido se traduzia na venda da massa falida a EE; que DD não queria comprar a fracção a que o presente litígio respeita, tendo intervindo nos contratos apenas para a poder transmitir a EE; está ainda assente (por presunção não controlável pelo Supremo Tribunal da Justiça, cfr. acórdão recorrido, fls. 1385 e, por exemplo, acórdão deste Supremo Tribunal de 27 de Maio de 2009, www.dgsi.pt, proc. nº 08B1170) “o intuito de causar engano”, não sendo realmente requisito da simulação o intuito de prejudicar (nº 1 do artigo 240º do Código Civil).
Também está assim feita prova da existência e conteúdo essencial do negócio dissimulado: a compra e venda entre a massa falida e EE. A falta de prova da simulação de preço (no primeiro contrato) invocada pela autora não impede que se tenham por assentes os contornos do negócio dissimulado, sendo aliás certo que o montante do preço não é elemento essencial do contrato de compra e venda (cfr. artigo 883º do Código Civil); essencial é a existência de preço (cfr. artigo 874º do Código Civil).
Trata-se pois sem dúvida de uma simulação relativa, na modalidade de simulação de pessoas, por se ter verificado uma interposição fictícia do réu DD.
São pois nulos ambos os contratos simulados (nº 2 do citado artigo 240º); mas essa nulidade não acarreta a nulidade do negócio dissimulado, cuja validade depende de, em relação a ele próprio, se encontrarem preenchidos os correspondentes requisitos (nº 1 do artigo 241º).
Ora, no caso, o negócio dissimulado tem natureza formal. Com efeito, de acordo com o disposto no artigo 875º do Código Civil, na redacção vigente à data dos factos, “O contrato de compra e venda só válido se for celebrado por escritura pública”.
O acórdão recorrido considerou não existirem obstáculos, nomeadamente de natureza formal, à validade do negócio dissimulado. E, na verdade, a forma exigida foi observada quanto aos negócios simulados, aparentes; no entanto, não consta de escritura pública a transmissão realmente pretendida, não esclarecendo o mesmo acórdão recorrido como ultrapassou esta dificuldade.
Coloca-se assim a questão de saber se o nº 2 do artigo 241º do Código Civil permite considerar suficiente, no caso, que os negócios simulados constem de escritura pública.

9. Contrariamente ao Código Civil 1867, o actual Código Civil trata expressamente da questão (controversa na doutrina) do valor do negócio dissimulado, em caso de simulação relativa; e, em particular, da eventualidade de este se tratar de um negócio de natureza formal.
Resulta do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 241º citado a regra segundo a qual o negócio dissimulado deve ser apreciado como se tivesse sido concluído sem dissimulação, sendo ou não válido consoante se verifiquem ou não, em relação a ele, os correspondentes requisitos de fundo e, se formal, de forma.
Tratando-se de negócio para cuja validade a lei exija forma (cfr. artigo 220º do Código Civil), na falta de contra-declaração constante dessa forma (hipótese que naturalmente se não coloca quando seja exigido documento autêntico, como é o caso em apreciação), se ela tiver sido observada quanto ao negócio simulado, essa observância será suficiente se a simulação incidir sobre um elemento não essencial do negócio dissimulado.
Estando em causa agora uma simulação de pessoas, não interessa tomar partido sobre que elementos objectivos (comuns ao negócio dissimulado) têm de constar da forma adoptada para o negócio simulado: se todos os que são essenciais à configuração do correspondente tipo negocial, se apenas aqueles que são determinantes para a exigência de forma, em aplicação do critério do artigo 221º do Código Civil, se os suficientes para a existência de “um mínimo de correspondência”, seguindo a razão de ser do artigo 238º do Código Civil.
Em qualquer caso, e pensando exclusivamente nos negócios translativos, porque é o que agora interessa, tem de constar da forma legalmente exigida o encontro de vontades que é a causa da transmissão pretendida.
Como se sabe, costumam apontar-se fundamentalmente três ordens de razões justificativas do abandono do princípio da liberdade da forma (artigo 219º do Código Civil) e da exigência de maior ou menor formalismo como condição de validade de uma declaração negocial tem em vista (reconhecidamente sintetizadas de forma elucidativa no conhecido relatório do Decreto-Lei nº nº 32.032, de 25 de Maio de 1942):
– assegurar uma correcta ponderação dos outorgantes quanto aos efeitos que do negócio resultam para a sua esfera jurídica;;
– permitir aos interessados, sobretudo se a forma se reveste de publicidade (documento autêntico, por exemplo), tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar.
– provar o acto realizado; como se sabe, há regras estritas quanto à possibilidade de prova de um acto solene (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 364º do Código Civil).
Ora, se parece evidente que o primeiro objectivo estará alcançado ainda que não conste de escritura pública o conjunto das duas declarações de vontade dos verdadeiros contraentes (é claro que, se as partes realizam um negócio simulado para encobrir um outro, em princípio terão ponderado devidamente os efeitos deste, e terá sido provavelmente por isso que os quiseram esconder perante terceiros), já os dois últimos impedem que, no caso, se possa considerar suficiente para se ter como respeitada a forma de escritura pública para o negócio dissimulado o conjunto das escrituras de 4 de Junho de 2002 (na qual figura a declaração da massa falida de querer vender, mas a DD) e de 1 de Agosto seguinte (da qual consta a declaração de EE de querer comprar, mas a DD).
Considerar suficientes as duas escrituras, ainda que completadas com a decisão judicial de reconhecimento da simulação relativa e da configuração do negócio dissimulado, equivaleria a tratar como interposição real uma interposição comprovadamente fictícia; e seria contrário ao disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 241º do Código Civil.
A transmissão da massa falida para EE não consta de escritura pública; o negócio dissimulado é nulo por falta de forma, nos termos conjugados do disposto nos artigos 875º, 241º, nº 2 e 220º do Código Civil.
Sendo a nulidade de conhecimento oficioso, podendo ser suscitada a todo o tempo (artigo 286º do Código Civil), resta julgar nulos, quer os negócios simulados (nº 2 do artigo 240º do mesmo Código), quer o negócio dissimulado.

10. Sendo nulo o negócio dissimulado por virtude do qual EE pretendeu adquirir o direito de propriedade da fracção autónoma em causa nesta acção, coloca-se a questão da subsistência da hipoteca voluntária constituída a favor da ré Caixa Económica FF, inscrita no registo (cf. ponto 13º dos factos provados).
É certo que a declaração de nulidade do contrato dissimulado, tendo efeito retroactivo (nº 1 do artigo 289º do Código Civil), implica a nulidade do acto de constituição da hipoteca, por falta de legitimidade de EE (artigos 715º e 294º do Código Civil).
No entanto, nos termos do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 291º do Código Civil (como a ré observou na contestação), a nulidade do negócio dissimulado não prejudica o seu direito, porque a presente acção não foi proposta e registada nos “três anos posteriores” à celebração do negócio: a segunda escritura de compra e venda foi celebrada em 1 de Agosto de 2002; a presente acção foi instaurada em 1 de Fevereiro de 2006.
Como se escreveu por exemplo no acórdão deste Supremo Tribunal de 5 de Julho de 2007 (www.dgsi.pt, proc. nº 07B1361), este artigo 291º do Código Civil não foi revogado pelo artigo 5º do Código do Registo Predial: “Como se sabe, o problema da delimitação de ambos os preceitos foi já longamente analisado pela jurisprudência e pela doutrina, desde logo porque se punha a questão de saber se o artigo 291º não teria sido revogado pelo Código do Registo Predial. Assim, por exemplo, os acórdãos de 14 de Novembro de 1996 deste Tribunal (cujo sumário se encontra em www.dgsi.pt) e o já citado acórdão de 11 de Maio de 2006 afirmaram que não tinha ocorrido tal revogação, fazendo a delimitação entre os campos de aplicação dos dois preceitos. E neste mesmo sentido, também apenas a título de exemplo, podem citar-se Oliveira Ascensão (Direitos Reais, 5ª ed., Coimbra, pág. 368 e segs.), Menezes Cordeiro (Direitos Reais, Lisboa, 1993, reimp. da 2ª ed., de 1979, pág.277 e segs.) ou Carvalho Fernandes (Direitos Reais, 4ª ed., Lisboa, pág. 143 e segs.), embora não totalmente coincidentes quanto à forma concreta da delimitação. Entende-se, na linha da jurisprudência deste Tribunal, que o artigo 291º do Código Civil não foi revogado pelo Código do Registo Predial, porque são diferentes as previsões dos respectivos preceitos (…).O artigo 291º do Código Civil aplica-se, pois, às hipóteses em que o interveniente num negócio substantivamente inválido pretende a respectiva invalidação” (ou, naturalmente, um terceiro com legitimidade para pedir a declaração da respectiva nulidade, como se verifica na acção presente), “mas se vê confrontado com terceiros (não intervenientes nesse negócio) que adquiriram, de boa fé e a título oneroso, direitos sobre os bens (imóveis ou móveis sujeitos a registo) cuja subsistência depende do primeiro negócio. Se esses terceiros registaram o correspondente acto aquisitivo, a invalidade não lhes é oponível, salvo se a acção de anulação ou de declaração de nulidade for instaurada e registada nos três anos posteriores à celebração do primeiro negócio. Entre a tutela da validade substancial do negócio e da confiança depositada no registo, o equilíbrio encontrado pela lei foi assim definido.”
A declaração de nulidade do negócio dissimulado não prejudica, assim, a subsistência da hipoteca constituída a favor da Caixa Económica FF.

11. Nestes termos, concede-se provimento parcial à revista, decide-se revogar o acórdão recorrido na parte em que considerou válido o negócio dissimulado e, consequentemente:

a) Declarar a nulidade do contrato de compra e venda celebrado no dia 1 de Agosto de 2002 no Cartório Notarial da Póvoa do Lanhoso entre DD, representado por A… G… de A…, e EE, da fracção autónoma designada pela letra “E”, habitação no segundo andar esquerdo, com entrada pelo nº 53, de polícia, com uma garagem e um lugar para arrumos na cave designados pelo nº 5, com entrada pelo nº 36, de polícia, descrita na Primeira Conservatória do Registo Predial de Braga sob o nº 339-E/Gualtar, que faz parte do prédio urbano situado na Rua José Antunes Guimarães, nº …, de polícia, e Rua João nascimento dos Santos, nºs … e …, de polícia, freguesia de Gualtar, concelho de Braga;
b) Determinar o cancelamento da inscrição no registo predial da aquisição a favor de EE;
c) Quanto ao mais, confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente e pelos recorridos que ficaram vencidos, na proporção do vencimento.

Lisboa, 25 de Março de 2010
Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (Relator)
Lopes do Rego
Barreto Nunes