Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A2113
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ALVES VELHO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
ÓNUS DA PROVA
EXAME HEMATOLÓGICO
ASSENTO
Nº do Documento: SJ200609120021131
Data do Acordão: 09/12/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Indicações Eventuais: 1
Sumário :
I - O Assento de 21 de Junho de 1983 deve ser interpretado de forma actualista, restringindo o ónus da prova, imposto ao autor, da prova da exclusividade aos casos em que não é possível fazer a prova directa da paternidade biológica, vínculo que sempre constitui, afinal, a causa de pedir nas acções de investigação de paternidade.
II - Tendo no caso essa prova sido feita, nomeadamente por meios laboratoriais, que concluíram pela “paternidade praticamente provada”, um “índice de paternidade IP=328666900” e uma “probabilidade de paternidade W=99,9999997%”, é de considerar demonstrado que o menor é filho biológico do Réu, como tal devendo ser reconhecido.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. - O Magistrado do Ministério Público, em representação do menor AA, intentou acção de investigação de paternidade contra BB, pedindo seja o dito menor reconhecido como filho do réu, para todos os legais efeitos.
Alegou, para tanto, que o menor nasceu, em 6 de Fevereiro de 2003, fruto das relações sexuais de cópula completa havidas entre este a mãe do menor, CC.
O Réu contestou, alegando, em síntese, nunca ter tido relações sexuais com a mãe do menor.
Requeridos pelo Autor exames ao sangue, com vista à prova biológica da alegada paternidade, e junto, pelo Instituto de Medicina Legal, o respectivo relatório - que dá como “praticamente provada”, com um índice de 99,9999997%, a paternidade do Réu -, este requereu a realização de 2ª perícia pretensão que foi indeferida e impugnada mediante agravo do R..
A final a acção foi julgada procedente, decisão que a Relação confirmou, do mesmo passo que negou provimento ao agravo referido.
O Réu pede ainda revista, insistindo na revogação do acórdão, ao abrigo das conclusões que se transcrevem:
- Como certo e seguro, apenas e só, existe, nos autos, a afirmação da mãe do menor;
- Como, igualmente, existe a negação do Recorrente;
- Tão credíveis são a afirmação da CC como a negação do BB;
- A prova testemunhal é nula;
- Fica de pé, apenas e só, a perícia;
- Ora, perante a atitude inocente, séria e credível do ora recorrente, em assunto tão sério, a presunção, com base numa única perícia, nunca poderá servir de fundamento e alicerce seguro, a uma decisão, com repercussões tão graves;
Normas violadas – arts. 1871º-e), 342º e 1801º, todos do C. Civil; e 578º, 589º, 590º e 591º, todos do CPC.
O Autor respondeu.
2. - O Tribunal recorrido julgou provados os seguintes factos:
1. No dia 6 de Fevereiro de 2003, nasceu na freguesia de São Cipriano, concelho de Viseu, AA;
2. AA, encontra-se registado na Conservatória do Registo Civil de Viseu apenas como sendo filho de CC, solteira;
3. O R. e a progenitora daquele AA conheceram-se em Janeiro de 2002, no “Solar …”, por ocasião das eleições para a concelhia da Juventude Democrata de Viseu.
4. Entre o Réu e a mãe de AA não existem quaisquer relações de parentesco ou de afinidade;
5. A propositura da presente acção foi julgada viável, por despacho judicial proferido nos autos de Averiguação Oficiosa de Paternidade n.º 1045/03.4TBVIS;
6. O nascimento de AA ocorreu no termo da gravidez que sobreveio a sua mãe, CC, em consequência das relações sexuais de cópula havidas entre esta e o R.;
7. Após se terem conhecido na data referida em 3. e até por volta de finais de Maio/princípios de Junho de 2002, o R. e a mencionada CC mantiveram entre si relações sexuais de cópula completa;
8. Tais relações sexuais tinham sempre lugar em casa de CC, sita em …, São Cipriano;
9. O relacionamento amoroso entre aqueles era mantido às escondidas;
10. Durante o tempo em que se relacionou com o R., e designadamente entre os dias 12 de Abril de 2002 e 10 de Agosto de 2002, CC só com este manteve relações sexuais, não se lhe conhecendo quaisquer relacionamentos com outros homens;
11. O R. é uma pessoa séria, honesta, trabalhador, estudante universitário, bom aluno, pessoa respeitada e respeitador, e de boa família;
12. No ano de 2002, o réu esteve a estudar em Coimbra.
3. - Mérito do recurso.
3. 1. - O Recorrente invoca a “nulidade” da prova testemunhal, ao que parece com fundamento em que a mesma apenas se pode fundar nas declarações afirmativas da mãe do menor e nas negativas do Réu, de igual valor, o que, de resto, se pode concluir da circunstância, provada, de que «o relacionamento amoroso entre aqueles era mantido às escondidas».
A ser assim, não se argúi qualquer vício ou irregularidade respeitante à aquisição ou formação da prova testemunhal, designadamente nos termos em que poderia ter lugar a sua impugnação (art. 636º CPC), mas a inexistência ou falta de produção de prova testemunhal susceptível de fundamentar a convicção das Instâncias relativamente às respostas de conteúdo positivo.
Acresce que, como irregularidade processual integradora de nulidade, sujeita ao regime do art. 201º CPC, porque nunca antes arguida, há muito estaria sanada – arts. 205º e 206º do mesmo diploma.
Sobra, pois, a questão da valoração da prova.
De facto, o que o Recorrente pretende é pôr em causa a decisão da matéria de facto, tal como a fixaram as Instâncias, como se pode extrair da conclusão a que chega de que “fica de pé, apenas e só, a perícia”.
Nesta parte, o recurso resume-se, na prática, a uma nova tentativa de reapreciação da matéria de facto, sendo que os argumentos aduzidos pelo Recorrente são essencialmente os mesmos que foram colocados no recurso de apelação, julgado improcedente pelo bem fundamentado acórdão impugnado, em que se entendeu e decidiu, invocando o disposto nos arts. 690º-A e 712º-1 e suas alíneas do CPC, “inexistir base legal para a Relação modificar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, a qual, por isso, se decide manter”.
Na verdade, não invoca o Recorrente violação de disposição legal impositiva de certo meio específico de prova para a existência de qualquer facto ou com especial força probatória, nem insuficiência ou contradição entre concretos pontos da matéria de facto fixada, susceptíveis de inviabilizarem a solução jurídica da causa, condições sempre exigidas nos arts. 722º-2 e 729º-2 e 3 e sem o concurso das quais o erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto não pode ser objecto de recurso de revista.
Está, pois, como é jurisprudência uniforme deste STJ, fora dos seus poderes de cognição a valoração das provas, sua apreciação e alteração da matéria de facto, a não ser naqueles casos excepcionais, seja directa ou indirectamente, mediante a pretendida baixa do processo à Relação, apenas possível nos casos em que se mostre necessária a ampliação – sempre por omissão da apreciação e qualquer facto – ou existam contradições que inviabilizem a solução de direito, o que não ocorre (cfr., v. g., ac. de 23/4/002, Proc. 997/02-1ª; 28/5/02, Proc. 1605/02-6ª; 1/7/03, Procs. 1803/03-6ª e 1981/03-1ª ; 8/7/03, Proc. 1904/03-7ª; e de 25/9/03, Proc. 2515/03-5ª).
Consequentemente, pelas razões referidas, está vedada ao STJ a intromissão na fixação dos factos, matéria da exclusiva competência das instâncias, fora dos mencionados casos excepcionais.
Acresce que questões como a ora proposta e as decisões sobre elas proferidas são justamente aquelas que têm o recurso vedado para o STJ por expressa disposição da norma do n.º 6 do art. 712º CPC.
Está, assim, este Tribunal vinculado à matéria de facto fixada pelas instâncias, carecendo de fundamento legal o pedido de reapreciação formulado, por isso que, insiste-se, pressuporia a reapreciação da valoração e fixação dos factos materiais da causa, só permitida nos excepcionais casos expressamente mencionados.
Do acabado de referir decorre, necessariamente, ter de manter-se toda a matéria de facto e não apenas a que se funde no resultado da perícia.
3. 2. - O Recorrente parece insistir na necessidade de realização da 2ª perícia. De facto, embora o não diga expressamente nas conclusões, sustenta-o no corpo das alegações e indica como violadas as normas que lhe dizem respeito.
Tal matéria, porém, encontra-se definitivamente decidida nos termos em que o fez a 2ª Instância.
De facto, foi objecto de recurso de agravo, sendo certo que o regime do art. 754º CPC condiciona a admissibilidade do recurso de agravo continuado à verificação de alguma das excepções previstas no 2º segmento do seu n.º 2 e no n.º 3, tornando-as requisitos de conhecimento do objecto do recurso, pressuposto cuja exigibilidade é reiterada pelo n.º 1 do art. 722º quando a matéria do agravo (violação da lei processual) seja invocada como acessória da da revista.
Inalterável, também quanto a este ponto, o decidido no acórdão recorrido.
3. 3. - Face ao abundante acervo fáctico provado não pode deixar de concluir-se, como concluíram as Instâncias, estar demonstrado que o menor é filho biológico do Réu, como tal devendo ser reconhecido, provado que ficou ter nascido de relações sexuais havidas entre a mãe daquele e este no período legal de concepção (art. 1798º C. Civil).
Beneficiaria ainda o Autor, se necessário fosse dela lançar mão – e não o é, perante a provada exclusividade do trato sexual -, da presunção enunciada no art. 1817º-1-e) C. Civil, provadas que estão as relações sexuais no período legal da concepção, e indemonstradas que ficaram circunstâncias susceptíveis de gerar dúvidas sobre a paternidade – n.º 2 do mesmo artigo.
Finalmente, uma vez que o Recorrente invoca a regra da livre apreciação da prova pericial, como referido no art. 591º CPC, importa ainda deixar uma nota sobre o ponto.
Como especificamente se prevê no art. 1801º C. Civil, nas acções relativas à filiação são admitidos como meios de prova os exames de sangue e quaisquer outro métodos cientificamente comprovados.
Consequentemente, contrariamente ao que insinua o Recorrente, os exames efectuados, mau grado continuarem a ver a sua força probatória sujeita à livre apreciação do tribunal – art. 389º C. Civil -, não podem ser encarados como um qualquer elemento de prova em paridade com quaisquer outros igualmente de livre apreciação e valoração.
Com efeito, do que se trata é de prova por métodos científicos que, no actual estado de desenvolvimento do conhecimento, bem distante dos tempos em que os exames apenas permitiam concluir pela rejeição da paternidade, não pode deixar de levar ao seu reconhecimento pela jurisprudência, atento o grau de certeza sobre o vínculo biológico que podem transmitir, como sucede no caso presente, em que a margem de erro é apenas de três décimas de milésima de milésima (ac. de 06/05/03, Proc. nº. 8/03-1, do ora relator).
Como se vem acentuando na jurisprudência e se escreveu no acórdão de 24/9/96 (BMJ 459º-543), “hoje temos três tipos de acção de investigação de paternidade: - Presuntivos – art. 1871 do Código Civil; - Exclusividade sexual, em aplicação do Assento de 21 de Junho de 1983; - Laboratoriais, interpretando restritivamente o Assento”.
Consoante dos fundamentos do acórdão de que resultou o Assento emerge, não lhe esteve subjacente a ideia de afastar os meios probatórios previstos no art. 1801º C. Civil, nem podia estar. O que aconteceu foi que não se previu aí a evolução e grau de certeza que tais meios vieram, entretanto, a atingir.
Daí que se imponha a interpretação actualista do Assento, restringindo o ónus da prova imposto ao autor da prova da exclusividade aos casos em que não é possível fazer a prova directa da paternidade biológica, vínculo que sempre constitui, afinal, a causa de pedir nestas acções.
No caso, essa prova está feita, nomeadamente por meios laboratoriais, atente a conclusão de «paternidade praticamente provada», perante um “índice de paternidade IP=328666900” e uma “probabilidade de paternidade W=99,9999997%”.
3. 4. - Improcedem, pois, todas as conclusões do Recorrente.
4. Decisão.
Termos em que, no seguimento do exposto, se decide:
- Negar a revista;
- Confirmar o acórdão impugnado; e,
- Condenar o Recorrente nas custas.
Lisboa, 12 de Setembro de 2006

Alves Velho (Relator)
Moreira Camilo
Urbano Dias