Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3907
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACÇÃO SUB-ROGATÓRIA
COMPETÊNCIA MATERIAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
DIREITOS DOS SÓCIOS
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
Nº do Documento: SJ20081218039077
Data do Acordão: 12/18/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: PROVIDO
Sumário :
1. O conceito de direitos sociais, a que se reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais abrange essencialmente os que se inscrevem na esfera jurídica dos sócios das sociedades em razão de nestas participarem por via de contrato e que se traduzem em posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societários.
2. A determinação da competência do tribunal deve assentar na estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial da acção na altura em que é intentada.
3. A acção prevista no artigo 77º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais assume estrutura sub-rogatória oblíqua, por não visar fazer valer directamente um direito próprio de quem a intentou, mas o direito de indemnização da própria sociedade, de que participa, em virtude de prejuízos só reflexamente susceptíveis de se repercutirem na sua esfera jurídica de sócio.
4. A competência em razão da matéria para conhecer da referida acção inscreve-se nos tribunais do comércio.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I
AA intentou, no dia 4 de Junho de 2004, contra BB, CC e DD, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a condenação solidária a EE -Comércio Internacional, Ldª por BB de € 4 333 442,43 a título de danos patrimoniais e de € 2 000 000 a título de danos não patrimoniais, de CC da quantia de € 3 418 598, 12 a título de danos patrimoniais € 2 000 000 a título de danos não patrimoniais, e de DD na quantia de € 2 800,560,24, a título de danos patrimoniais e de € 2 000 000 a título de danos não patrimoniais, com fundamento em responsabilidade civil por danos por eles causados à última das referidas sociedades na posição de administradores.
Contestaram DD, BB, FF, esta na sequência de chamamento, e CC, que arguiu a incompetência material da vara mista para conhecer da acção, sob o argumento de tal competência se inscrever no Tribunal de Comércio de Vila Nova de Gaia, e a autora, na replica afirmou ser competente em razão da matéria para o efeito a vara cível em que a ação foi intentada.
À última, em impugnação da decisão de indeferimento do pedido de apoio judiciário, foi-lhe concedido, em 12 de Junho de 2006, na modalidade de dispensa parcial do pagamento de taxa de justiça, incluindo incidentes, devida a final, com exclusão das taxas de justiça iniciais e demais encargos, a partir do montante de € 7500.
O tribunal da primeira instância, por sentença proferida no dia 5 de Setembro de 2006, absolveu os réus da instância, com fundamento na incompetência em razão da matéria, e dela a autora não recorreu.
Interpôs BB recurso de agravo, apesar de não ter sido vencido na causa, e a Relação, por acórdão proferido no dia 13 de Maio de 2008, dando-lhe provimento ao recurso, declarou ser o tribunal recorrido competente para conhecer da acção.

CC interpôs recurso de agravo para este Tribunal, formulando, em síntese, as seguintes conclusões de alegação:
- os tribunais comuns têm competência residual em termos materiais, na medida em que apenas lhe cumpre julgar matérias que não tenham sido expressamente atribuídas à jurisdição dos tribunais de competência especializada;
- trata-se de acção uti singuli prevista no artigo 77º do Código das Sociedades Comerciais, sendo que os sócios com a maioria do capital exigida por aquele preceito têm legitimidade ou direito social para, em nome próprio, exercerem um direito que compete à sociedade, procurando efectivar a responsabilidade dos gerentes ou administradores perante esta;
- está em causa uma acção para assegurar a defesa dos interesses da sociedade que, em segunda linha, afecta também os dos seus sócios, pelo que a acção respeita ao exercício de um direito social, a que se refere a alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais;
- apesar de o pedido de indemnização da sociedade para com o seu administrador não configurar um direito social, pois atém-se a uma relação sociedade/administrador, estranha aos sócios, no caso de acção de responsabilidade proposta pelo próprio sócio, uti singuli, está a exercer no âmbito da sociedade de que faz parte o direito de impor ao administrador que pague a respectiva indemnização à sociedade;
- como sócio, faz valer um direito social próprio, embora a beneficiária seja a sociedade;
- o sócio não tem um direito de indemnização próprio, porque o seu direito é de ver o direito do administrador responsabilizado pelo eventual incumprimento dos seus deveres para com a sociedade, ou seja, poder efectivar essa responsabilidade de que beneficiará indirectamente;
- a acção destina-se ao exercício do direito social da autora para garantir a reintegração do património da sociedade que representa, e que, alegadamente, foi lesado pela conduta dos réus;
- foram violados os artigos 77º do Código das Sociedades Comerciais e 89º, alínea c), da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, pelo que o acórdão recorrido deve ser revogado.

Respondeu AA, em síntese de conclusão de alegação:
- os tribunais de competência especializada têm a sua competência estabelecida de forma positiva, através da indicação tipificada das questões que lhe são cometidas;
- essa especialização é motivada pela maximização da produtividade, pelo que tal competência deve ser interpretada com recurso, além do elemento literal da tipicidade, ao sistemático e teleológico;
- a lei não pretendeu circunscrever o exercício de direitos sociais dos tribunais do comércio, nos termos do artigo 89º, nº 1, alínea c), da Lei de Organização de Funcionamento dos Tribunais Judiciais, às acções constantes dos artigos 1479º a 1501º do Código de Processo Civil;
- nem pretendeu alargar a competência daqueles tribunais a todas as acções emergentes do exercício dos direitos previstos no Código das Sociedades Comerciais, como fez na alínea g) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização de Funcionamento dos Tribunais Judiciais;
- o direito societário reivindicado pela recorrida é tão só a possibilidade de se substituir à sociedade e propor acção social de responsabilidade contra os gerentes ou administradores a favor daquela, nos termos do artigo 77º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais;
- a competência é aferida de harmonia com a relação controvertida tal como é configurada pelo autor na petição, conforme o disposto no nº 3 do artigo 26º do Código de Processo Civil;
- está em causa a actividade dos administradores ou gerentes no âmbito das suas funções, sendo e que o sócio, dentro do direito que lhe assiste, pretende responsabilizar, independentemente daquela qualidade de sócio ou accionista daqueles gerentes ou administradores;
- trata-se de manifestação de responsabilidade contratual individual, em que os responsáveis são os titulares do órgão administrativo e não o próprio órgão;
- a acção configura-se como de responsabilidade civil, não é em exercício de direitos sociais, pelo que não é acção relativa ao exercício desses direitos, pelo que o tribunal competente dela conhecer é aquele em que ela foi intentada.

III
A questão essencial decidenda é a de saber se a Vara Cível em que a acção foi intentada é ou não competente em razão da matéria para dela conhecer.
Tendo em conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação formuladas pela recorrente e pelo recorrido, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- regime processual aplicável ao recurso;
- estrutura e natureza da acção em causa;
- competência jurisdicional em razão da matéria;
- âmbito da competência material dos tribunais do comércio;
- integra a acção o conceito legal de acções relativas ao exercício de direitos sociais?
- competência jurisdicional para conhecer da acção em causa.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões.

1.
Comecemos por uma breve referência ao regime processual aplicável ao recurso.
Como a acção em causa foi intentada no dia 4 de Junho de 2004, ao recurso ainda não é aplicável o regime processual implementado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
É-lhe aplicável o regime anterior ao implementado pelo aludido Decreto-Lei (artigos 11º e 12º).
Além disso, pelo mesmo motivo, é aplicável no caso-espécie a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei 3/99, de 13 de Janeiro, e não a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, aprovada pela Lei nº 52/2008, de 28 de Agosto.


2. Continuemos, ora com um sucinto apontamento sobre a estrutura e natureza da acção em causa.
A autora invocou na petição inicial actos de administração danosa da sociedade EE - Comércio Internacional, Ldª entre os anos de 1999 e 2002 que imputa aos réus, pelo que a causa de pedir na acção é integrada pelos factos tendentes a revelar o referido ilícito e o dano dele derivado.
É uma acção declarativa de condenação contra determinadas pessoas que ocuparam a posição de gerentes da sociedade EE-Comércio Internacional, Ldª, intentada por quem dela é e era sócia, que assenta em normas de direito comercial societário e outras de direito civil geral relativas à responsabilidade civil.
Com efeito, os gerentes das sociedades devem observar, no exercício da sua função de administração, a diligência própria de gestores criteriosos e ordenados, e proceder com lealdade no interesse da sociedade e dos sócios, respondendo para com aquela pelos danos que lhe causarem por actos e omissões praticados com preterição dos deveres legais e estatutários, salvo se provarem que procederam sem culpa (artigos 64º e 74º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais - CSC).
Considerando as relações existentes entre a sociedade e os seus administradores, trata-se de uma situação de responsabilidade civil contratual, porque assenta em violação de deveres contratuais decorrente do contrato de sociedade ou da lei.
Deliberado que seja por maioria nesse sentido, a referida acção de responsabilidade, designada por acção social ut universi, pode ser intentada pela própria sociedade, forma normal de a entidade lesada conseguir a reparação do dano que a afectou por acção ou omissão dos seus administradores (artigo 75º, nº 1, do CSC).
Mas a referida acção social, no caso a título subsidiário, designada ut singuli, também pode ser intentada pelos próprios sócios, conforme decorre do artigo 77º do Código das Sociedades Comercial.
O sócio ou a pluralidade de sócios com cinco por cento do capital social no caso de sociedades por quotas, como ocorre no caso em análise, podem intentar esta acção especial de responsabilidade contra os seus gerentes com vista à reparação, a favor da sociedade, do prejuízo por esta sofrido, quando a mesma a não haja solicitado (artigo 77º, nº 1, do CSC).
Trata-se, conforme já se referiu, de danos causados à sociedade por actos praticados com preterição dos deveres legais ou contratuais pelos seus administradores que tenham actuado com culpa.
A instauração desta acção corresponde ao exercício de um direito social, mas a perda da qualidade de sócio no seu decurso não obsta ao seu prosseguimento (artigo 77º, nºs 2 e 3, do CSC).
É a designada acção sub-rogatória oblíqua, por não fazer valer directamente um direito próprio, mas o direito de indemnização da sociedade pelos seus prejuízos, que só reflexamente se repercutem na esfera dos respectivos sócios, no quadro da responsabilidade civil contratual.


3
Prossigamos, agora com a análise da competência jurisdicional em razão da matéria em tanto quanto releva no caso vertente.
A medida da jurisdição interna dos tribunais distingue-se em competência em razão do território, da hierarquia e em razão da matéria.
A competência material dos tribunais para as causas de natureza cível resulta de normas de atribuição directa ou indirecta, nesta última situação por via da afectação das causas que não sejam afectas a outros tribunais (artigos 211º, n.º 1, da Constituição e 18º, n.º 1, da LOFTJ).
A vertente da competência jurisdicional em razão da matéria é delineada por via da sua distribuição por lei pela pluralidade de tribunais inseridos no mesmo plano horizontal (artigo 18º, n.º 2, da LOFTJ).
Consoante a matéria das causas que lhe são atribuídas, distinguem-se os tribunais de 1ª instância em tribunais de competência genérica, a quem compete julgar as causas não atribuídas a outro tribunal, o que constitui a regra, e tribunais de competência especializada simples ou mista, que conhecem de determinadas matérias (artigos 64º, n.º 2, e 77º, n.º 1, alínea a), da LOFTJ).
Entre os tribunais de competência especializada contam-se os tribunais de comércio (artigo 78º,alínea e), da LOFTJ).
O nexo de competência fixa-se no momento da propositura da acção, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente (artigo 22º, n.º 1, da LOFTJ).
Para determinação da competência do tribunal em razão da matéria importa ter em linha de conta, além do mais, a estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na acção, no momento em que a mesma é intentada.
Assim, afere-se a competência em razão da matéria do tribunal dos factos reveladores da à relação jurídica controvertida, tal como é configurada pelo autor da acção na respectiva petição inicial.

4.
Atentemos, ora, no âmbito da competência material dos tribunais do comércio, em tanto quanto releva no caso.
A lei prescreve competir aos tribunais de comércio preparar e julgar, além do mais, as acções relativas ao exercício de direitos sociais (artigo 89º, nº 1, alínea c), da LOFTJ).
Conforme resulta da lei, a determinação do seu sentido e alcance não se cinge à sua letra, porque também envolve a chamada mens legis, isto é, além do mais, a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada (artigo 9º, n.º 1, do Código Civil).
O limite é o de que não pode ser considerado um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (artigo 9º, n.º 2, do Código Civil).
Nessa operação deve, porém, o intérprete presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e expressou o seu pensamento em termos adequados (artigo 9º, n.º 3, do Código Civil).
Dir-se-á, em síntese, dever a lei ser interpretada, não apenas em função das palavras usadas pelo legislador, mas também na envolvência de todo o condicionalismo envolvente do processo de criação e subsequente vigência, ou seja, à luz dos elementos extra-literais, entre os quais se contam os antecedentes históricos e as circunstâncias relacionadas com a sua elaboração e publicação, designadamente o exórdio dos diplomas em que é consubstanciada.
Estes elementos extra-literais exercem, por um lado, a função confirmativa da interpretação literal da lei em razão da presunção de que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
E, por outro, a função correctiva, se houver de se concluir que o legislador disse menos ou mais do que pretendia, a implicar, respectivamente, uma interpretação extensiva ou restritiva.
As soluções mais acertadas presumivelmente consagradas pelo legislador são as mais conformes com os valores inspiradores do sistema jurídico, captáveis no quadro da sua unidade.
A letra da lei deverá, pois, harmonizar-se, além do mais, com a motivação do legislador para a criação dos tribunais do comércio, designadamente a de não reatamento do modelo dos antigos tribunais dessa espécie, mas a de lhes atribuir competência em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade, designadamente as do contencioso das sociedades comerciais.

5.
Vejamos agora se o conceito acções relativas ao exercício de direitos sociais, a que se reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, abrange ou não a acção em causa.
Tal questão reconduz-se, pois, a saber se a lei, ao prever, sem qualquer restrição, a competência dos tribunais de comércio para conhecerem das acções relativas a direitos sociais a exclui quanto às deles derivadas que tenham por objecto litígios relativos a danos no âmbito da responsabilidade civil contratual aqui em causa.
Importa salientar, em primeiro lugar, ser a própria lei a expressar que a instauração da acção em causa se traduz em exercício de um direito social, aliás com a relevância de envolver, de algum modo, a tutela das minorias societárias (artigo 77º, nº 2, do CSC).
A lei não define o que são direitos sociais. Dela resulta, porém, que tais direitos se inscrevem na esfera jurídica dos sócios das sociedades em razão de nestas participarem por via de contrato, e que se traduzem em posição jurídica envolvente da protecção dos seus interesses societários.
A letra do segmento normativo da alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, ao expressar compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções relativas a direitos sociais permite ao intérprete a consideração de que o mesmo abrange todas as mencionadas acções, independentemente do seu desiderato finalístico, incluindo aquela que aqui está em causa.
Com efeito, o referido normativo não distingue, para efeito de determinação da competência especializada dos tribunais de comércio, entre acções relativas a direitos sociais as relativas, e onde a lei não distingue, também ao intérprete não é legítimo distinguir, salvo se houver ponderosas razões de sistema que o imponham.
Conforme já se referiu, a letra da lei deve harmonizar-se com os elementos extra-literais relevantes, designadamente com a motivação do legislador para a criação dos tribunais do comércio a que se aludiu.
Neste ponto, a mencionada motivação aponta no sentido de que a competência dos tribunais de comércio se prende com questões relacionadas com a actividade das sociedades comerciais.
Mas, no caso, do que se trata é de uma acção por via da qual uma sócia de uma sociedade por quotas pretende exercer um direito social em benefício directo da sociedade, o qual implica a apreciação de uma situação de responsabilidade civil contratual.
Acresce que, em regra, as acções tendentes a fazer valer obrigações decorrentes da responsabilidade civil contratual ou extracontratual não se inscrevem na competência dos tribunais do comércio.
Todavia, os deveres que os gerentes e administradores das sociedades devem observar no exercício das suas funções assumem aspectos de particularidade relevante em relação aos que devem ser observados na contratação em geral, nos termos dos artigos 406º, nº 1, e 762º do Código Civil.
Com efeito, os gerentes e administradores das sociedades devem, por um lado, observar deveres de cuidado, revelando a disponibilidade, e a competência e o conhecimento da actividade da sociedade adequados às suas funções e empregando nesse âmbito a diligência de um gestor criterioso e ordenado.
E, por outro, observar os deveres de lealdade no interesse da sociedade, atendendo aos interesses de longo prazo dos sócios e ponderar os interesses dos sujeitos relevantes para a sustentabilidade da sociedade, designadamente trabalhadores, clientes e credores (artigo 64º, nº 1, do CSC).
Assim, a referida situação de responsabilidade civil, no plano da ilicitude, assenta em pressupostos específicos concernentes aos deveres dos gerentes e administradores das sociedades, do que decorre a especificidade da matéria quanto aos pressupostos da responsabilidade civil envolventes.
Perante este quadro, tendo em conta a especificidade da situação de responsabilidade civil de que o exercício do mencionado direito social é instrumental, importa concluir que a acção em causa se enquadra no conceito acções relativas aos direitos sociais a que se reporta a alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.


6.
Atentemos, ora, na competência jurisdicional para conhecer da acção em causa.
Ignora-se se os factos que integram a acção foram ou não objecto de queixa criminal recebida e que origem a inquérito criminal.
E, neste recurso, nenhuma das partes suscitou a problemática de saber se os tribunais do comércio são ou não competentes em razão da matéria para conhecerem das acções relativas à responsabilidade civil extracontratual emergente de factos eventualmente integrantes de algum crime.
Não temos, por isso, que nos pronunciar sobre essa matéria (artigos 684º, nº 3, e 690º, º 1, do Código de Processo Civil).
A acção declarativa de condenação em causa, tendo em conta a causa de pedir e o pedido formulados pela autora na petição, envolve uma situação de responsabilidade civil contratual.
Confrontando o resultado da interpretação meramente literal com o aludido elemento sistemático e teológico, impõe-se a conclusão de que o legislador, ao expressar o normativo da alínea c) do n.º 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, não referiu mais do que pretendia.
Inexiste, por isso, fundamento legal para a sua interpretação restritiva do em termos de exclusão de abrangência das acções declarativas de condenação a que se reporta a segunda parte do nº 1 do artigo 77º, por referência ao nº 1 do artigo 72º, ambos do Código das Sociedades Comerciais.
Em consequência, a competência jurisdicional para conhecer da acção em causa inscreve-se nos tribunais do comércio, tal como foi decidido no tribunal da primeira instância, e ao invés do que decidido foi a propósito pela Relação.
Procede, por isso, a excepção dilatória de incompetência material da Vara Mista em que foi intentada a acção, com a consequência de absolvição dos réus da instância (artigos 102º, 103º, 288º, nº 1, alínea a), 494º, alínea a), e 495º do Código de Processo Civil).

7.
Finalmente, a síntese da solução para o caso, decorrente da dinâmica processual envolvente e da lei.
É aplicável ao recurso o regime processual anterior ao implementado pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto.
No quadro da responsabilidade civil contratual, a acção em causa assume a estrutura sub-rogatória oblíqua, por não visar fazer valer directamente um direito próprio de quem a intentou, mas o direito de indemnização da própria sociedade, de que participa, em virtude de prejuízos que só reflexamente são susceptíveis de se repercutir na sua esfera jurídica de sócia.
A competência do tribunal em razão da matéria é determinável face à estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido formulados na petição inicial.
A alínea c) do nº 1 do artigo 89º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais deve ser interpretada em função da sua vertente literal e dos elementos extra-literais, designadamente os antecedentes históricos e as circunstâncias relacionadas com a sua elaboração e publicação, designadamente o exórdio do respectivo diploma.
Os elementos extra-literais do referido normativo não justificam a sua interpretação restritiva em termos de exclusão do exercício do direito social em que se consubstancia a acção em causa, cuja particularidade decorre de envolver matéria de responsabilidade civil baseada em pressupostos específicos do direito societário.
A apreciação da acção em causa, em que se consubstancia o exercício do direito social de quem a intentou, inscreve-se na competência dos tribunais do comércio.
A incompetência absoluta da Vara Mista em que a acção foi proposta para dela conhecer implica a absolvição dos réus da instância.

Procede, por isso, o recurso, com a consequência de ser revogado o acórdão recorrido, e de prevalecer a sentença proferida no tribunal da primeira instância, que absolveu os réus da instância.
Vencida no recurso na posição de agravada, é AA responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).



IV
Pelo exposto, dando provimento ao recurso, revoga-se o acórdão recorrido, absolvem-se os réus da instância e condena-se a recorrida AA no pagamento das custas respectivas.

Lisboa, 18 de Dezembro de 2008.

Salvador da Costa (relator)
Ferreira de Sousa
Armindo Luis