Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2290/04 – 0TBBCL.G1. S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DA PROVA
NEXO DE CAUSALIDADE
Data do Acordão: 11/02/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
1) São as instâncias que procedem ao apuramento da matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado na 1.ª instância.

2) O Supremo Tribunal de Justiça, e salvo situações de excepção legalmente previstas, só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

3) De acordo com as regras do artigo 342.º do Código Civil o ónus da prova recai sobre ambos os litigantes, devendo o autor provar os factos constitutivos do direito que alega, sendo que o réu terá de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que aquele invoca.

4) Mas beneficiando o autor de uma presunção legal, não tem que provar os factos que a ela conduzem, invertendo-se quanto a esses factos, se constitutivos do direito do demandante, o encargo da não prova para a contraparte “ex vi” do n.º 1 do artigo 344.º do Código Civil.

5) Na responsabilidade contratual há uma presunção legal “tantum juris” da culpa do contraente faltoso, mas é sobre o contraente cumpridor que recai o ónus da prova dos restantes pressupostos: violação contratual, dano e nexo causal.

6) O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.°, n.° 1 e 722.º , n.°2 do Código de Processo Civil.

7) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, o que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.° do Código Civil.

8) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele , que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.

9) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



AA e sua mulher BB intentaram acção, com processo ordinário, contra CC e mulher DD.

Pediram a condenação dos Réus a:

- suprimirem os defeitos que referem na p.i. e outros que venham a ser detectados;

- pagarem-lhes a quantia de 10.325,16 euros, a título de cláusula penal pelo atraso na conclusão dos trabalhos;

- devolverem-lhes 1000,00 euros, a título de trabalhos previstos no contrato e não efectuados;

- pagarem-lhes uma indemnização, a título de danos não patrimoniais, em montante não inferior a 3000,00 euros, acrescidos de juros à taxa legal, desde a citação.

Os Réus contestaram e, em reconvenção, pediram a condenação dos Autores a pagarem-lhes a quantia de 2630,25 euros, com juros, à taxa legal.

No 3.º Juízo Cível de Barcelos a acção foi julgada improcedente e os Réus absolvidos do pedido, mas a reconvenção foi julgada procedente e os Autores condenados a pagar ao Réu-marido a quantia de 2534,70 euros com juros moratórios à taxa da lei desde a citação.

Os Autores apelaram para a Relação de Guimarães.

Aí a apelação foi julgada parcialmente procedente e os Réus condenados a repararem os defeitos dos pontos 14 a 24 da sentença apelada, com excepção do ponto 22, absolvendo-os do mais pedido; declarado foi que os Autores têm o direito de reter 2534,70 euros, correspondentes ao remanescente do preço em falta, absolvendo-os em consequência, do pedido reconvencional.

Inconformados, os Réus pedem revista.

E concluem assim a sua alegação:
- A sentença da 1.ª instância não merece qualquer censura;
- Mostra-se correcta na apreciação do direito aos factos que foram provados na audiência de julgamento;
- Aos Autores, aqui recorridos, cabia o ónus da prova quanto à responsabilidade do Réu/marido pelos defeitos que a sua casa de habitação apresentava.
- Nenhuma prova foi feita pelos mesmos dessa responsabilidade.
- O contrato de empreitada é claro ao dizer que o réu marido foi contratado para conclusão da obra de pedreiro e trolha.
- Logo, os defeitos que a mesma possa apresentar não podem, sem mais, ser atribuídos a quem foi concluir uma obra já com construção de outrem.
- Os autores não fizeram a prova de que foi o réu marido quem provocou aqueles alegados defeitos.
- As tentativas de acordo nos autos não passaram disso mesmo e, porque não se logrou aquele intento não podem ser valoradas mais que isso, tentativa, o tal relatório dos Srs. Peritos nomeados pelas partes.
- Aliás o tribunal da Relação é bem expresso ao afirmar que não existe qualquer transacção nos autos.
- Pelo que também não pode usar na sentença as tentativas dessa transacção.

- Não tendo sido feita qualquer prova, que aos autores incumbia, de que os defeitos apresentados se devem ao trabalho realizado pelo réu.
- Além de que, sem prescindir, o Tribunal da Relação acaba por condenar o réu na realização de trabalhos que estão expressamente assentes que este não fez.
- Também as respostas aos quesitos 41.º 42°, 43°, e 44° não poderiam ter sido alteradas porque nenhuns elementos foram carreados para os autos que tal possibilitem.
- Trata-se de um erro grosseiro esta alteração.
- E assim, de conhecimento deste Supremo Tribunal.
- Devendo, como tal, manter-se as respostas dadas em primeira instância.
- E o Tribunal da Relação de Guimarães não poderia ter absolvido os autores do pedido reconvencional se, isto sem prescindir, lhes reconhece um direito de retenção da quantia peticionada.
- Ao decidir de forma contrária violou o douto acordo ora recorrido o disposto nos artigos 668° n° 1 alínea h) e 342° do Código Civil.

Contra alegaram os Autores em defesa do julgado, concluindo, desde logo, pela impossibilidade deste Supremo Tribunal sindicar a matéria de facto fixada pela 2.ª instância.

Mais disseram ainda que:
- Igual destituição de fundamento merece a afirmação de que “A prova trazida pelos autores ao processo é nula quanto à responsabilidade dos réus quanto àqueles defeitos”.
- Com efeito, atendendo aos critérios da distribuição do ónus da prova, resulta da lei precisamente o contrário, pois: IV- Como a existência do defeito é facto constitutivo dos direitos do dono da obra, compete-lhe a respectiva prova, nos termos do artigo 342.°, n.° 1, do Código Civil. V- Tendo o dono da obra provado a existência do defeito e que o mesmo era relevante, na medida em que afectava o uso normal da coisa, competia ao empreiteiro a prova dos factos impeditivos da sua responsabilidade ( artigo 342°, n.° 2 do Código Civil)».
- Como tal, in casu, era aos Recorrente que competia demonstrar que os defeitos, nomeadamente os elencados nos Pontos 15. a 34. dos Factos Provados não resultavam da sua responsabilidade.
- Ora, claro se torna que não consta dos Factos Provados nada que exclua a responsabilidade dos Recorrentes, a qual aliás se presume.
- Não tendo os Recorrentes demonstrado a verificação de facto impeditivo do direito invocado pelos Recorridos, estão aqueles obrigados a reparar e suprimir os defeitos dados como provados.
- Por fim, referem ainda os recorrentes que “não poderia o Tribunal da Relação de Guimarães absolver os autores do pedido reconvencional, julgando ao mesmo tempo que os autores têm direito de retenção do valor de 2.534,70 €“, parecendo que pretendem apontar uma nulidade do acórdão (oposição entre os fundamentos e a decisão).
- Todavia, também neste ponto não assiste qualquer razão aos Recorrentes.
- Com efeito, porque a excepção do não cumprimento é um meio de defesa dos Autores para obterem a execução do contrato de empreitada nos termos que foram acordados, estando coenvolto na arguição da excepção, embora indirectamente, o pedido reconvencional, improcede este pedido, pois com ele se pretende obter o mesmo resultado que se obtém com a excepção do não cumprimento.
- Desta forma, improcedem integralmente as conclusões alinhadas pelos recorrentes.

A Relação, após ter alterado a decisão da 1.ª instância, considerou definitivamente assentes os seguintes factos:
1. Encontra-se inscrita a aquisição, por doação, a favor do Autor/marido do prédio urbano sito no lugar da Penide, da freguesia de Areias S. Vicente, esta Comarca, composto por edifício destinado a habitação com cave, rés do chão e andar, anexo, um viveiro e um lago e logradouro, inscrito na matriz predial urbana deste concelho sob o art° 425° e descrito na Conservatória respectiva sob o n.° 227/Areias S. Vicente.
2. Por si, antepossuidores e anteproprietários, há mais de 5, 10, 15, 20, 25, 30 anos, utilizam os autores o descrito bem imóvel, fazendo nele obras e melhoramentos, edificando construções nele, requerendo em seus nomes as licenças necessárias, pagando as contribuições e impostos, tudo à vista de toda a gente, sem a oposição de quem quer que seja, em tudo se comportando como donos, por todos sendo considerados como tal, na convicção de que exercem um direito próprio.
3. Em 8 de Dezembro de 2001, os autores acordaram mediante contrato escrito com o réu marido, pelo preço global de €46.787,24 (Esc.9.380.000$00), que o réu se obrigava a executar os trabalhos necessários para a conclusão da obra de pedreiro e trolha (incluindo mão de obra e todo o material para a obra de pedreiro e para as massas de trolha) que faltavam para concluir a construção de uma moradia, incluindo arranjos exteriores envolventes e respectivas estruturas (designadamente anexos, viveiros para aves, lago, etc.), de acordo com a discriminação constante do ANEXO A ao contrato de empreitada, obra essa sita no lugar da Penide, lote n° 4, freguesia de Areias S. Vicente, concelho de Barcelos, objecto do alvará de licença de construção nb240/99, de 05/03/99.
4. Nos termos da cláusula quinta, os trabalhos previstos no contrato deveriam estar concluídos até ao dia 30 de Julho de 2002, tendo ainda ficado estabelecida uma cláusula penal no caso de atraso na conclusão da obra no montante de €37,41 (Esc.7.500$00) por cada dia que ultrapassasse a data de conclusão da obra.
5. o réu deu por concluídos os trabalhos em 2 de Maio de 2003.
6. Os autores procederam ao pagamento do preço da empreitada aludida em 3.
7. Os autores enviaram ao réu uma carta registada com aviso de recepção, a 26 de Julho de 2003, na qual lhe comunicaram que:
- O chão do lago não tem pendente para o tubo de esgoto da água e como o chão foi colocado depois de o tubo estar lá, o erro deve-se a quem efectuou o trabalho por não ter deixado a inclinação suficiente para que ao abrir-se o passador para despejar o lago a água saia toda, o que não acontece devido à inclinação ter ficado ao contrário;
- Falta rematar cantos das paredes dos anexos à volta das torneiras da água;
- Falta rematar no canil/viveiro os locais onde saem tubos de electricidade;
- Nas banheiras WC do andar e WC privativa a massa junto à parede está a estalar (colocar silicone);
- Na varanda à volta da casa a tijoleira está levantada e com juntas abertas originando infiltrações de água para debaixo da tijoleira;
- A massa está a estalar nas juntas das janelas, floreiras, rodapés e portas (colocar silicone);
- Escorre água no espelho da varanda em frente à cozinha do rés-do-chão (solucionar como sugeriu com bica em inox?)
- Em certas zonas do beiral do telhado tem pedaços mal rematados (emendas)
- Tapar os buracos dos suportes dos caleiros em toda a casa;
- Limpar pedaços de cimento que existem nas pingadeiras da pedra e beirais dos anexos;
- Existe cimento nos caleiros e nos rufos da casa;
- Telha à volta das chaminés deixar cerca de 7 cm livres em toda a volta para impedir que o lixo se junte;
- Fazer caixas de visita conforme se falou (para recolher águas das chuvas) que fica no paralelo em frente às portas da cozinha da cave, dado que o nível do paralelo e da relva é o mesmo;
- Abertura (corte na floreira a desfazer-se)
- Trabalho de estanhador nas escadas e garagem mal executado;
- Floreiras em cima no andar não foram cerzitadas devidamente.
8. E, por carta registada com aviso de recepção, enviada em 4 de Março de 2004, os autores insistiram com o réu pela eliminação dos defeitos anteriormente comunicados, bem como denunciaram ao réu a existência de mais defeitos entretanto surgidos, nomeadamente:
- Cimento junto aos rufos: rachou e partiu, entra humidade nos Anexos, espalhando-se pelas várias divisões junto ao muro do vizinho;
- Humidade no tecto do Anexo das máquinas por debaixo da escada;
- Humidade no tecto da adega da entrada, da porta até ao fundo;
- Pedra a descolar no exterior junto à janela da cozinha no rodapé (sujeita a partir);
- Na entrada principal o tecto de madeira continua com humidade. A madeira está a ficar com bolor;
- Na entrada exterior da casa (rua) os tubos de água das floreiras juntam muita água, o que dá origem a verdete e sujidade que escorre pelo passeio e torna-se escorregadio e perigoso para quem passa no passeio ou entra no portão;
- Os tubos no passeio exterior (rua) estão à vista, O cimento desapareceu;
- Alguns azulejos estão a descolar no WC dos Anexos;
- Nas paredes dos Anexos a humidade está a subir pelas paredes; existe uma faixa de 10 a 15 cms com uma mancha branca devido possivelmente às massas do alicerce não terem sido hidrofugadas conforme previsto no caderno de encargos da obra;
- As paredes das casas de banho dos Anexos que estão revestidas a azulejo quando chove ou está tempo húmido aparecem cheias de humidade que até escorre pelos azulejos, possivelmente devido a existir muita humidade dentro das paredes.
9. Além de comunicarem a existência dos defeitos, por essa mesma carta os autores concederam ao réu marido um prazo de 15 dias para que este procedesse à eliminação dos defeitos existentes e que caso não o fizesse, recorreriam às vias judiciais.
10. Na sequência do contrato de empreitada referido em 3., os autores solicitaram ao réu marido a realização de obras extra, ou seja não previstas no contrato, como sejam: construção de um muro de vedação, com mão-de-obra e materiais; uma caixa de PVC e caleiros para o canil, obras essas que o réu levou a cabo e que custaram a quantia de
11. O réu marido é empresário em nome individual e dedica-se de forma habitual e com escopo lucrativo à indústria de construção civil, actividade esta de cujos proventos beneficia e depende o seu agregado familiar, designadamente o seu cônjuge mulher que se sustenta, veste e calça com os rendimentos que o réu marido aufere da sua actividade de construção civil;
12. O preço pago pelos autores pela empreitada ingressou no património do casal, beneficiando-o e aumentando-o, e reverteu em proveito comum;
13. Quando o réu deu por concluída a obra, ficaram por realizar os seguintes trabalhos: fazer churrasqueira de pedreiro e trolha, designadamente a montagem da churrasqueira, colocação de uma chaminé em aço inox, perfurando a cobertura para esse efeito e colocação de armários e material cerâmico na parede à volta da churrasqueira, trabalhos esses cuja execução não estava incluída no acordo a que se alude em 3.
14. Após o réu marido ter dado a obra por concluída, os autores verificaram que os trabalhos por aquele realizados apresentavam deficiências, designadamente que o chão do lago não tem pendente suficiente para o tubo de escoamento da água;
15. Na varanda à volta da casa há algumas juntas por fechar.
16. A massa está a estalar nas juntas das janelas, floreiras, rodapés e portas, sendo necessário colocar silicone;
17. Escorre água no espelho da varanda em frente à cozinha do rés-do-chão.
18. Os chumbadores dos suportes metálicos não estão rematados na sua ligação à parede;
19. Falta limpar pedaços de cimento que foram deixados pelo réu nas pingadeiras da pedra e nas beiras dos anexos;
20. O afastamento da telha junto à chaminé é inferior a 7 cm;
21. Falta fazer caixas de visita conforme acordado para recolher águas das chuvas que se acumula no paralelo em frente às portas da cozinha da cave, dado que o nível do paralelo e da relva;
22. A junta existente na floreira está a desfazer-se, sendo necessário recompô-la;
23. Trabalho de estanhador nas escadas e garagem encontra-se mal executado;
24. Existem algumas telhas partidas;
25. Existem manchas de humidade nos tectos, desconhecendo-se, porém, a sua origem;
26. Existe humidade no anexo das máquinas, bem como na face interior da parede exterior contígua da casa;
27. Pedra a descolar no exterior junto à janela da cozinha no rodapé (sujeita a partir);
28. Na entrada principal o tecto de madeira continua com humidade e está a ficar com bolor, tecto esse que não foi colocado pelo réu;
29. Na entrada exterior da casa (rua) existem manchas de bolores no passeio;
30. Os tubos no passeio exterior (rua) estão à vista, sendo que o cimento desapareceu;
31. No WC dos anexos existem dois azulejos descolados e um partido;
32. Existem manchas de humidade nas paredes dos anexos junto ao solo;
33. Há pequenos remates a corrigir nas floreiras;
34. O tubo de queda de da cobertura do canil não se encontra rematado;
35. Os autores têm sofrido aborrecimentos e arrelias;
36. Aquando da recepção da obra por parte dos autores, uma vistoria geral à obra realizada
37. A junta existente na floreira foi realizada de acordo com o que o autor marido pretendeu e contra a vontade do réu;
38. Os trabalhos aludidos em 10 foram facturados pelo réu em 6.10.2003.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,
1. Alteração da matéria de facto.
2. Ónus da prova.
3. Nexo de causalidade.
4. Conclusões.


1. Alteração da matéria de facto

Em primeira linha, os recorrentes insurgem-se contra a alteração da matéria de facto pela Relação, quanto às respostas aos quesitos 41, 42, 43 e 44.

Sem razão, porém.

Cumpre às instâncias apurar a matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado pela 1.ª instância.

O Supremo Tribunal de Justiça, e salvo situações de excepção legalmente previstas, só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto, ou se tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória certos meios de prova (artigo 722.º, n.º 2 do Código de Processo Civil) podendo, no limite, mandar ampliar a decisão sobre a matéria de facto (artigo 729.º, n.º 3).

À Relação cabe, assim, a última palavra, só a esta instância competindo censurar as respostas ao questionário ou anular a decisão proferida na 1.ª instância, através do exercício dos poderes conferidos pelos n.ºs 1 e 4 do artigo 712.º do diploma citado.

Em consequência, o tribunal de revista limita-se a aplicar os factos definitivamente fixados pelo tribunal recorrido, o regime jurídico adequado – cf. o artigo 26.º da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais – aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Março de 2005 – 05B2682, de 18 de Abril de 2006 – 06 A871, e de 18 de Maio de 2006 – 06 A1248.

A Relação fez uso da faculdade do n.º 1 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, sendo a validade intrínseca do uso desse poder insindicável, como resulta do n.º 6 daquele preceito (na redacção do Decreto-Lei n.º 375-A/99, de 20 de Setembro).

O Supremo Tribunal nunca poderia, pois, sindicar a alteração em si mas apenas a legalidade da mesma, apurando se a Relação podia alterar as respostas sem subverter os princípios do direito probatório.

É que só essa averiguação, por se prender com a aplicação de normas jurídicas, é matéria de direito, tal como o é quando (e nos termos acima referidos) o STJ lança mão da faculdade do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil pois, então, apenas censura tacitamente o não uso pela Relação dos poderes de alteração da decisão de facto, ao entender que a mesma deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito ou que ocorrem contradições naquela decisão que inviabilizam o julgamento jurídico do pleito.

Mas tal não acontece “in casu” pelo que fica a valer a regra do n.º 2 do mesmo artigo 729.º, quedando intocada a factualidade provada, pois, e insiste-se, o eventual erro na apreciação das provas, isto é, a decisão da matéria de facto baseada nos meios de prova produzidos e de livre apreciação do julgador, não cabe no âmbito do recurso de revista.

Apenas e “ex abundantia” se dirá que a referência a uma eventual transacção “abortada” irreleva para afastar as conclusões ora alcançadas.

2- Ónus da prova

2.1 De seguida, os recorrentes defendem cumprir aos Autores a prova de que os defeitos encontrados na obra são imputáveis à actuação do Réu/marido.

Na sua contra alegação os recorridos insistem cumprir aos recorrentes a demonstração que os defeitos encontrados não eram da sua responsabilidade.

Conhecendo,

Estamos perante um contrato de empreitada nos precisos termos documentados a fls. 16 a 17/U, do qual faz parte integrante um caderno de encargos (“Anexo A”) resultando da cláusula terceira os trabalhos parcelares que o empreiteiro – ora recorrente – teria de efectuar (telhado; assentamento de pedra – granito; trabalhos de pedreiro; trabalhos de “trolha”; colocação de azulejos e tijoleiras; conclusão da obra).

Do elenco dos factos provados resulta terem sido verificadas as deficiências/defeitos dos n.ºs 14 a 24, sendo que o Acórdão recorrido condenou o Réu a proceder à respectiva reparação (à excepção do nº 22).

Certo é que, tratando-se de responsabilidade contratual, há presunção legal de culpa do contraente faltoso, nos termos do n.º 1 do artigo 799.º do Código Civil.

Daí que o demandante, ao beneficiar dessa presunção ”juris tantum” não tenha que provar os factos conducentes à demonstração daquele nexo de imputação subjectiva, “ex vi” do n.º 1 do artigo 350.º do mesmo diploma, invertendo-se outrossim, o “ónus probandi” - n.º 1, 1.ª parte, do artigo 344.º (cf. Prof. Vaz Serra, “Provas”, BMJ, 112-128 e ss.).

Porém, tal não bastaria para concluir pela responsabilidade do empreiteiro.

É que, o demandante terá sempre de demonstrar os outros pressupostos daquele tipo de responsabilidade: violação contratual, dano (ou prejuízo) e nexo causal, assim e nos termos do n.º 1 do artigo 342.º do Código Civil.

Trata-se da aplicação do princípio “actor incumbit probatio; reus in exipiendo fit actor”.

O ónus da prova recai, assim, sobre ambos os litigantes, devendo o autor provar os factos constitutivos do direito que alega ter, sendo que o réu terá de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que aquele invoca.

Não se trata de repartir o encargo da prova em atenção à qualidade do facto probando mas à posição na lide daquele que o invoca, sempre ressalvando (e no que ora releva) o citado disposto no n.º 1 do artigo 344.º da lei civil. (cf. Prof. Vaz Serra, “Provas”, BMJ 112-269/270).

2.2 Fora de dúvida que os Autores fizeram a prova do dano, e da violação contratual.

Restaria para completar o elenco dos pressupostos da responsabilidade contratual, a demonstração do nexo causal entre a culpa (como nexo de imputação subjectiva) e o dano obrigacional (contratual ou negocial), isto é, que o incumprimento do contratado constituiu causa do dano, o qual terá de se apresentar como resultado directo e actual daquele.

A Relação deu por assente essa causalidade e os termos em que o fez impedem a sua sindicabilidade por este Supremo Tribunal.

3- Nexo de causalidade

A causalidade é de apreciar em duas perspectivas.

A naturalística, ou seja, no averiguar se o processo sequencial foi, ou não, factor desencadeador, ou gerador do dano.

Trata-se de apurar uma mera relação de causa-efeito, ou seja, no percurso do “iter” causal-naturalistico verificar se a conduta do lesante foi desencadeadora do resultado lesivo.

Esta perspectiva naturalística insere-se num plano puramente factual (cf., v.g., os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Novembro de 1998, P.º 660/98-2.ª; de 11 de Junho de 2002 – P.º 1810/02, 2.ª; e, desta Conferência, os Acórdãos de 13 de Março de 2008 – 08 A369; e de 17 de Junho de 2008 – 08 A1700).

E a (causalidade) legal, resultando da pura aplicação dos princípios do artigo 563.º do Código Civil (cf. Prof. Pereira Coelho, “O nexo de causalidade na responsabilidade civil”, in “Revista de Direito e Estudos Sociais”, VI, 1, 2, 3, 113 e ss, e “A causalidade na responsabilidade civil em direito português”, cit., “R.D Estudos Sociais”, XII, 3, 39 e ss, e 4, 1 ss) que consagra a teoria da causalidade adequada afirmando “uma ligação positiva, em termos de juízo de probabilidade entre o facto jurídico e o dano.” (Prof. Pessoa Jorge, in “Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil”, 413 e nota 374 a citar o Prof. Vaz Serra – BMJ – 100-127, nota 269).

Ora o nexo de causalidade que a Relação deu por verificado implicou a formulação de um juízo naturalístico que, como acima se referiu, integra pura matéria de facto.

Por isso, o Supremo Tribunal de Justiça não o pode sindicar, de acordo com o conjugado nos artigos 29.º da LOFTJ e 729.º, n.º 1 do Código de Processo Civil.

Restar-lhe-ia – por esta parte ser matéria de direito, já que respeita à interpretação e aplicação de norma jurídica – verificar da sua correcta inserção nos princípios do citado artigo 563.º do Código Civil.

Isto é, só se a Relação considerou verificado o nexo factual é que cumpre ao Supremo Tribunal de Justiça apurar o nexo legal de adequação.

A propósito, disse-se no citado Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2006, deste Colectivo:
“Como já se insinuou, o artigo 563.° do Código Civil consagra o princípio da causalidade adequada na sua formulação negativa.
E este Supremo Tribunal vem entendendo que ‘o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgultig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercedam no caso concreto.’ (cf. ainda os Acórdãos de 4 de Novembro de 2004 — P.° 2855/04-2.ª, de 13 de Janeiro de 2005 — P.° 4063/04-7°; Prof. A. Varela, in ‘Das Obrigações em Geral’, 10.ª ed, 1, 893, 899, 890/1 — ‘... do conceito de causalidade adequada pode extrair-se, desde logo, como corolário, que para que haja causa adequada, não é de modo nenhum necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano. Essencial é que o facto seja condição do dano, mas nada obsta a que como frequentemente sucede, ele seja apenas uma das condições desse dano.’).
É a consagração do ensinado por Enneccerus-Lehman, que para o Dr. Ribeiro de Faria, conduz a que ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu ‘pelas referidas circunstâncias excepcionais ou extraordinárias’. (apud ‘Direito das Obrigações’, 1, 502) e que o Prof. Almeida Costa diz dever interpretar-se no sentido de que ‘o facto que actua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se mostre por sua natureza de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais sendo que a citada doutrina da causalidade adequada ‘não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta tenha só por si determinado o dano.’ (in ‘Direito das Obrigações’, 632).
Parte-se, pois, de uma situação real, posterior ao facto, e até ao dano, e afirma-se que o segundo decorreria daquele perante um desenvolvimento normal, ou seja, o dever de indemnizar existe em relação aos danos que terão provavelmente resultado da lesão.
Ou como julgou este Supremo Tribunal ‘a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele, que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias’ (Acórdão de 20 de Outubro de 2005 — 05B2286).
O facto terá de ser, em concreto, ‘conditio sine qua non’ do dano mas também ser, em abstracto, causa normal, ou adequada da sua verificação.
E o que a doutrina que o direito Norte-Americano chama de “substantial factor formula.”
Também aí, dano só não se considera causado pelo facto se este apenas o produziu por circunstâncias anómalas e imprevisíveis.
Mas é-o ainda que causado indirecta, ou mediatamente, pelo facto.
Este entendimento resulta da conjugação dos artigos 562.° (‘...a situação que existiria...’) e 563.° (‘...danos que o lesado provavelmente não teria sofrido...’) do Código Civil. (cf Prof. Pessoa Jorge, ‘Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil’, 410-nota 373; Prof. Galvão Telles, ‘Direito das Obrigações’, 409 ss).”

“In casu”, tendo, e como se disse, a Relação considerado provado o nexo naturalístico e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça sindicar essa verificação, restaria apurar a não verificação do nexo legal por não enquadramento nos princípios do artigo 563.º do Código Civil.

Ora, não resulta que o apuramento daquele primeiro nexo tenha sido feito à revelia (ou contrariando) o imperativo legal.

Daí que se não censure o juízo de facto alcançado pelo Tribunal recorrido.

Improcedem, assim, as conclusões dos recorrentes valendo quanto ao, eventualmente, omisso – e quanto ao pedido reconvencional – as razões constantes do Acórdão em crise que, aqui, se acolhem.

4- Conclusões

Pode concluir-se que:

a) São as instâncias que procedem ao apuramento da matéria de facto relevante para a solução do litígio, só a Relação podendo emitir um juízo de censura sobre o apurado na 1.ª instância.

b) O Supremo Tribunal de Justiça, e salvo situações de excepção legalmente previstas, só conhece matéria de direito, sendo que, no âmbito do recurso de revista, o modo como a Relação fixou os factos materiais só é sindicável se foi aceite um facto sem produção do tipo de prova para tal legalmente imposto ou tiverem sido incumpridos os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova.

c) De acordo com as regras do artigo 342.º do Código Civil o ónus da prova recai sobre ambos os litigantes, devendo o autor provar os factos constitutivos do direito que alega, sendo que o réu terá de provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito que aquele invoca.

d) Mas beneficiando o autor de uma presunção legal, não tem que provar os factos que a ela conduzem, invertendo-se quanto a esses factos, se constitutivos do direito do demandante, o encargo da não prova para a contraparte “ex vi” do n.º 1 do artigo 344.º do Código Civil.

e) Na responsabilidade contratual há uma presunção legal “tantum juris” da culpa do contraente faltoso, mas é sobre o contraente cumpridor que recai o ónus da prova dos restantes pressupostos: violação contratual, dano e nexo causal.

f) O juízo de causalidade numa perspectiva meramente naturalística de apuramento da relação causa-efeito, insere-se no plano puramente factual insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça, nos termos e com as ressalvas dos artigos 729.°, n.° 1 e 722.º , n.°2 do Código de Processo Civil.

g) Assente esse nexo naturalístico, pode o Supremo Tribunal de Justiça verificar da existência de nexo de causalidade, o que se prende com a interpretação e aplicação do artigo 563.° do Código Civil.

h) O artigo 563.º do Código Civil consagrou a doutrina da causalidade adequada, na formulação negativa nos termos da qual a inadequação de uma dada causa para um resultado deriva da sua total indiferença para a produção dele , que, por isso mesmo, só ocorreu por circunstâncias excepcionais ou extraordinárias.

i) De acordo com essa doutrina, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis.

Nos termos expostos, acordam negar a revista.

Custas a cargo dos recorrentes.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Novembro de 2010

Sebastião Póvoas (Relator)

Moreira Alves

Alves Velho