Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B3146
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: CUSTÓDIO MONTES
Descritores: ABERTURA DE CRÉDITO
EMPRESTIMO COM PENHOR
MANDATO
ANTECIPAÇÃO BANCARIA
ADIANTAMENTOS
RISCO DE DESVALORIZAÇÃO DA BOLSA
Nº do Documento: SJ200810230031467
Data do Acordão: 10/23/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1. A abertura de crédito para compra de activos financeiros, com penhor sobre estes, é um contrato autónomo atípico que consiste no adiantamento de dinheiro (mútuo) por parte de um banco, remunerado, a um seu cliente, ficando o banco com garantia sobre os referidos activos financeiros, e com direito ao pagamento do empréstimo e encargos findo o contrato.
2. A autonomia desse contrato deriva da interdependência da relação de crédito e da relação de garantia que se deve manter durante o contrato.
3. Sendo um contrato atípico, a sua regulamentação há-de ir buscar-se aos contratos típicos análogos, como sejam as normas do mútuo e do penhor.
3. A outorga de mandato ao Banco para, em reforço da sua garantia, em caso de incumprimento, poder vender os títulos dados em penhor, não integra a obrigação por sua parte da venda dos títulos no fim do contrato, mas um direito que o Banco pode usar quando lhe convier, verificado aquele incumprimento, por o penhor e o mandato serem outorgados em seu benefício e não em benefício do devedor.
4. Findo o contrato é obrigação deste pagar o seu débito, não sendo dever do credor executar o penhor para efectivar o seu crédito.
5. Destinando-se a abertura de crédito a financiar o cliente do Banco na compra de acções, o risco da desvalorização destas corre por conta daquele e não deste.
Decisão Texto Integral:
AA Intentou contra BB

Acção declarativa de condenação sob a forma ordinária

Pedindo

A condenação deste a pagar-lhe a quantia de €470.113,09 e juros de mora à taxa legal, acrescida de 2%, conforme acordado pelas partes, e calculada desde 31.7.2002, sobre o capital de 441.113, 09, dívida resultante de um contrato de crédito - abertura de crédito com penhor - que lhe concedeu e cujo montante ainda está em dívida.

O R. contestou por excepção (alegando que nada deve ao A. porque este tinha a obrigação de vender a carteira de títulos do R. logo que findou o contrato -18.5.2001 - a cuja prorrogação este não deu o seu assentimento) e por impugnação.

Houve réplica.

Efectuado o julgamento, foi a acção julgada procedente e o R. condenado a pagar ao A. a quantia peticionada (470.13,09€) e juros legais, acrescidos de 2% sobre 441.381,00, desde 31.7.2002.

O R. apelou, pedindo a alteração da matéria de facto e a sua absolvição, sendo a apelação julgada parcialmente procedente, condenando-se o R. a pagar ao A. o saldo negativo à data de 19.05.2001e juros contratualizados, a liquidar em execução de sentença.

É agora o A. que pede revista, terminando as suas alegações com as seguintes

Conclusões

A. Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido em 7 de Abril de 2008 pelo Tribunal da Relação do Porto, que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Recorrido;

B. Nos termos do Acórdão recorrido, a sentença proferida, em primeira instância pelo Tribunal Judicial de Matosinhos, foi parcialmente revogada, “condenando-se o réu no pagamento de ao saldo negativo à data de 18.05.2001 acrescido dos juros contratualizados menos o valor da carteira de títulos à data de 19.05.01, [cujo] a liquidar em execução de sentença porquanto dos autos não constam todos os elementos necessários, à mesma” (p. 20 do Acórdão);

C. No entanto, em face da factualidade dada como provada e do enquadramento jurídico aplicável, entende o Recorrente que deveria ter sido totalmente diversa a decisão final do Tribunal a quo, no sentido da confirmação da sentença proferida em sede de Primeira Instância pelo Tribunal Judicial de Matosinhos;

D. Efectivamente, nenhum dos elementos de facto dados como provados, nem tão pouco qualquer das normas ou princípios jurídicos aplicáveis in casu, permitem concluir no sentido da decisão recorrida (de que a venda das acções que integravam o penhor terá sido feita tardiamente, tendo, nessa medida, ocorrido a violação de um conjunto de deveres acessórios de conduta por parte do Recorrente);

E. Com efeito, o Acórdão recorrido assentou na errada interpretação de que o Recorrente deveria ter procedido à venda dos títulos em 18 de Maio de 2001 (data do vencimento da obrigação do Recorrido), sob pena de violação dos deveres acessórios de conduta a que se encontrava vinculado, sem que, no entanto, se vislumbre o mínimo fundamento na interpretação sufragada, dado que não impendia sobre o Recorrente qualquer obrigação de proceder à venda dos títulos nessa data;

F. Vários são os argumentos que sustentam tal posição – conforme entendimento perfilhado pelo Professor CC no Parecer, cuja junção se requer nos termos do n.º 2 do artigo 706.º ex vi do artigo 726.º do C.P.C - a começar pelo teor do acordo celebrado entre o Recorrente e Recorrido, em especial, no segmento relativo ao penhor;

G. Com efeito, atento aos termos do contrato celebrado entre as partes, não impendia sobre o Recorrente qualquer dever de promover a venda dos activos financeiros que integravam o penhor, na data de vencimento da obrigação do Recorrido, ou seja, no dia 18 de Maio de 2001;

H. Efectivamente, estabeleceram as partes uma garantia especial – um penhor – de modo a colocar o Recorrente numa posição “fortalecida” em relação aos demais credores, sem que tenha sido consensualizada qualquer data para o seu accionamento;

I. Neste preciso sentido, atente-se, de modo particular, no teor das Cláusulas Nona e Décima das Condições Gerais do Penhor, das quais resulta, com total clareza, que o Recorrente encontrava-se autorizado a proceder à venda dos títulos integrantes do penhor aquando do incumprimento das obrigações que o mesmo visava garantir, mas tal autorização de venda não correspondia a uma obrigação de promoção da mesma em data determinada;

J. Ao ter decidido nos exactos termos em que decidiu, o Acórdão recorrido olvidou por completo que o penhor constituído sobre a carteira de títulos destinava-se, apenas e só, a garantir o cumprimento das obrigações advenientes do contrato de abertura de crédito por parte do Recorrido, pois, consistindo o mesmo numa garantia especial de natureza real limita-se a conferir ao credor um direito cujo modo de exercício – incluindo, naturalmente, o momento de exercício – é determinado pelo credor, com observância do princípio da boa-fé;

K. Em suma, do Contrato de Abertura de Crédito e Penhor não resultava qualquer obrigação de venda dos títulos objecto da garantia no dia 18 de Maio de 2001;

L. O entendimento sufragado pelo Acórdão recorrido colide ainda, de modo frontal, com os usos bancários, dado que não se afigura minimamente usual que as instituições bancárias procedam ao accionamento da garantia no dia em que a dívida se venceu (ou no dia seguinte);

M. Bem ao invés, o comportamento usual, típico, das instituições bancárias em situações semelhantes à dos autos, passa por desenvolver – tal como fez o Recorrente e se encontra provado – um conjunto de contactos, de diligências junto do devedor tendo em vista a obtenção do pagamento de modo voluntário, evitando, assim, o recurso à garantia;

N. Aliás, o accionamento da garantia, por parte do Recorrente, na data do vencimento (ou no dia seguinte), poderia configurar uma violação do dever de boa-fé;

O. O Acórdão recorrido encontra-se ainda em clara desconformidade com o princípio jurídico, vigente no ordenamento português, de que quem incorre em mora deve suportar os riscos daí advenientes;

P. Com efeito, não tendo o Recorrido, no dia 18 de Maio de 2001, procedido ao reembolso do crédito concedido, nem à liquidação dos juros vencidos e outros encargos decorrentes do contrato celebrado, entrou em mora, ficando, em consequência, responsável pelos riscos de desvalorização da carteira de títulos que integravam o penhor;

Q. Acresce que na hipótese do Recorrente ter procedido à venda judicial do penhor – como poderia ter feito – não haveria qualquer controlo sobre o momento da venda dos títulos dados em penhor, podendo, nessa hipótese, ter a venda ocorrido bem depois de Novembro de 2001;

R. Ora, se nessa eventualidade, os riscos de desvalorização correriam na esfera do Recorrido, não se pode conceber, por inexistência de fundamento jurídico, que tendo a venda sido promovida extrajudicialmente, tais riscos se transfiram para o credor Recorrente;

S. Finalmente, cumpre deixar totalmente claro que o Recorrente não violou os deveres que sobre si recaiam – os previstos nos artigos 73.º e 74.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras – nem o (alegado) dever de acompanhamento, cuja violação também lhe foi imputada no Acórdão recorrido;

T. Analisada a factualidade dada como provada, resulta, de modo cristalino, que toda a actuação do Recorrente – quer no período que antecedeu o vencimento da obrigação do Recorrido, quer no período posterior – foi pautada pelo estrito cumprimento dos deveres legais e convencionais que sobre si impendiam, tendo o accionamento do penhor surgido na sequência directa da violação dos deveres contratuais que vinculavam o Recorrido;

U. Com efeito, a par de uma actuação diligente relativa à evolução dos mercados, o Recorrente procurou ainda alcançar, em período prévio ao accionamento do penhor, uma solução consensual expressa no pagamento voluntário do Recorrido, já que o penhor constituído se destinava a garantir o pagamento e não a substituí-lo sem mais;

V. No entanto, não se vislumbrando possível a obtenção de uma solução consensual, o Recorrente viu-se constrangido, após análise ponderada da situação, a accionar o penhor em Novembro de 2001 – em plena consonância com as Cláusulas Nona e Décima das Condições Gerais do Penhor – procedendo à venda dos activos financeiros que integravam a carteira, “para se ressarcir, em parte” (alínea Z dos factos provados);

W. Ora, não negando o Recorrente a existência de uma tendência decrescente das cotações das acções, acentuada a partir de Março de 2001, a verdade é que, no seu próprio interesse, o momento escolhido para proceder à venda da carteira de títulos não foi fruto do acaso, não configurando uma conduta contrária aos deveres legal e contratualmente consagrados.

Termina pedindo se conceda a revista e se revogue o acórdão recorrido.

Juntou um Parecer do Dr. CC que corrobora a sua tese.

O R. contra alegou para pugnar pela manutenção da decisão recorrida, sustentando a sua tese no Parecer já junto aos autos do Sr. Professor Doutor Menezes Cordeiro.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

Matéria de facto provada:

1. O A. é uma sucursal da sociedade anónima bancária inglesa denominada AA, que exerce em Portugal, devidamente licenciada, a actividade bancária comercial.

2. No exercício da sua actividade comercial e em Outubro de 2000, o autor celebrou com o mesmo um contrato de abertura de crédito e penhor (doc. nº 1 que se encontra junto ao requerimento inicial de arresto em apenso).

3. Nos termos do referido contrato, o A. concedeu ao R. um crédito até ao montante máximo de 500.000.000$00 (€2.493.989,49) (n.º 1 da cláusula primeira das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais no mencionado doc. n.º 1),

4. Terminando o prazo do mesmo no dia 18.05.2001 (doc. n.º 1 – condições especiais da abertura de crédito).

5. Tal crédito destinava-se à realização de investimentos –“trading” – nos mercados de capitais (n.º 2 da cláusula primeira das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais, no doc. n.º 1).

6. Ficou ainda acordado que o crédito contratado seria utilizado por crédito na Conta de Depósito à Ordem n.º ........................ de que o R. era titular (n.º 2.1 e 2.2.1 da cláusula primeira das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais, no doc. n.º 1).

7. As partes convencionaram que a taxa de juros remuneratórios das quantias creditadas seria indexada à taxa LISBOR a três meses, acrescida de 1% a partir de 12 de Outubro de 2000, devendo os juros ser liquidados com uma periodicidade trimestral nos dias 28/2, 31/5, 31/08 e 30/11 de cada ano (cláusula terceira das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais, no doc. n.º 1).

8. Mais foi convencionado que, no caso de atraso no pagamento de qualquer prestação de capital e/ou juros, à taxa de juro legal deveria acrescer uma sobretaxa de 2% pela mora (cláusula nona das condições gerais da abertura de crédito, no doc. n.º 1).

9. No âmbito do referido contrato, o R. obrigou-se a reembolsar o autor do crédito concedido até 18 de Maio de 2001, bem como a ter provisionada a conta de depósito à ordem nº ...................... para a liquidação do capital, juros e demais encargos devidos (cláusula sétima das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais, no doc. n.º 1).

10. Para caução e garantia do capital, juros remuneratórios, juros de mora e demais encargos emergentes do contrato de abertura de crédito, o R. deu de penhor ao autor os activos financeiros que integravam a carteira de títulos n.º 751 – 1300173967, ou outros constituídos/adquiridos em sua substituição, associada à conta de depósito à ordem referida em I).

11. Em caso de incumprimento das obrigações que o penhor referido em 10 garantia – situações estas em que se tornava exigível – o autor ficava de imediato autorizado a vender os activos financeiros como melhor entendesse e sem qualquer tipo de formalidade, por forma a ser reembolsado do seu crédito.

12. Para tanto, o R. concedeu irrevogavelmente, através de carta de 16 de Outubro de 2000, poderes ao autor para desmobilizar as aplicações financeiras de que era titular e para em seu nome vender, por uma ou mais vezes e como entendesse por mais conveniente, os títulos dados de penhor e que integravam a dita carteira n.º 751 – 1300173967.

13. Tudo conforme documentos de fls. 21 a 24 e 25 dos autos de arresto apensos, cujo teor se dá por integralmente reproduzidos.

14. Em 18 de Maio de 2001, o réu não reembolsou ao autor o crédito concedido, nem liquidou os juros vencidos e outros encargos decorrentes do referido contrato.

15. No dia 31 de Maio de 2001 tal dossier de títulos era composto pelas seguintes acções:

. 22.000 Ac Telecel,

. 50.000 Ac Jerónimo Martins SGPS,

. 16.050 Ac Pt Multimédia,

. 20.000 Ac Sonae Com,

. 16.050 Pt Multimédia Com.

16. No dia 31 de Maio de 2001, tais activos tinham a valorização de 209.192.542$00, conforme extracto enviado ao Réu no dia 31 de Maio de 2001, constante de fls. 221 e 222 dos autos de arresto em apenso, cujo teor se dá por reproduzido.

17. O autor enviou ao réu a carta datada de 3 de Julho de 2001, constante de fls. 29 dos autos de procedimento cautelar apenso, cujo teor se dá por reproduzido.

18. O A. tentou por diversos meios contactar o R., por forma a tentar acordar com o mesmo uma solução consensual para o pagamento da dívida.

19. Procurando obter o pagamento voluntário por parte do R.

20. O autor e o réu mantiveram contactos durante o mês de Junho de 2001, os quais não levaram a que o réu procedesse ao pagamento de quaisquer das quantias em dívida.

21. Em 30 de Setembro de 2001, a dívida do réu para com o autor ascendia a 235.899.717$00 (€1.176.662,83), correspondendo 230.941.631$00 (€1.151.932,00), ao capital em dívida e 4.958.086$00 a juros vencidos e encargos fiscais.

22. Nessa mesma data, o valor da carteira de títulos oferecida em penhor ascendia a 122.494.502$00 (€611.000,00).

23. O autor procedeu à venda dos activos financeiros que integravam a carteira n.º 751 – 1300173967, para se ressarcir, em parte.

24. Em Novembro de 2001, o autor efectuou a venda dos referidos títulos mobiliários, tendo obtido como produto dessa venda a quantia total de 146.416.274$00 (€730.321,30).

25. Após a venda dos mencionados títulos em meados de Novembro de 2001, a dívida do R. para com o autor ficou reduzida para 88.488.946$00 (€441.381,00).

26. O R. não pagou, até à presente data, a quantia em dívida.

27. Houve uma tendência de queda da Bolsa de Valores de Lisboa e Porto, entre Março de 2000 até Março de 2003, com momentos de aparente retoma.

28. Em conversa tida no escritório do Réu com os representantes do autor, antes do vencimento do contrato, aquele recusou-se a aportar os meios necessários para repor o grau de cobertura, por confiar que a carteira de títulos oferecida em penhor viesse a valorizar-se no mercado bolsista.

29. O réu foi contactado por responsáveis do Autor depois do vencimento do contrato, tendo-lhes comunicado que não tinha outros activos financeiros para reforçar a carteira de títulos oferecida em penhor, e que fizessem o que entendessem.

30. Ocorreram, pelo menos, duas reuniões no escritório do R, em 04.06.01 e 13.06.01, com funcionários da A”.

O direito

Sendo embora várias as conclusões(1). do recorrente, a questão que verdadeiramente interessa decidir é a de saber se a relação contratual estabelecida entre as partes impunha ao Banco A. a obrigação de executar o penhor, findo o contrato (em 18.5.2001), como defende o R., ou no momento em que o entendesse, como defende o A.

A tese do R. estriba-se no Parecer do Ex.mo Sr. Professor Doutor Menezes Cordeiro, que, por sua vez, assenta a. na natureza complexa da relação bancária b. na situação de confiança existente entre as partes c. na ligação funcional (não apenas de garantia) do empréstimo aos títulos d. na diligência e consideração de interesses impostos pelo RGIC e e. nos deveres acessórios do art. 762.º, 2 do CC (boa fé).

A tese do A., por seu turno, segue o Parecer do Ex.mo Sr. Advogado Dr. CC Professor da faculdade de Direito da UNL, que defende que o Banco tinha o direito, não a obrigação, de vender os títulos, sendo por conta do A. que corria o risco quer da valorização quer da desvalorização dos mesmos, a partir do termo do contrato (18.5.2001).

Analisemos.

Antes de mais importa definir o contrato ou contratos firmados pelas partes.

Os elementos factuais caracterizadores da relação contratual entre A. e R. vêm vertidos nos n.ºs 2 a 12:

O A., em Outubro de 2000, no exercício da sua actividade comercial, celebrou com o R. um contrato de abertura de crédito garantida por penhor, concedendo aquele a este um crédito até 500.000000$00 (€2.493.989,49), destinado à realização de investimentos –“trading” – nos mercados de capitais e seria utilizado na conta à ordem do R. n.º ................

O R. obrigou-se a reembolsar o autor do crédito concedido até 18 de Maio de 2001, bem como a ter provisionada a conta de depósito à ordem n.º .................... para a liquidação do capital, juros e demais encargos devidos.

Para caução e garantia do capital, juros remuneratórios, juros de mora e demais encargos emergentes do contrato de abertura de crédito, o R. deu de penhor ao autor os activos financeiros que integravam a carteira de títulos n.º ......................., ou outros constituídos/adquiridos em sua substituição, associada à conta de depósito à ordem referida.

E, em caso de incumprimento das obrigações que o penhor referido em J) (10 da matéria de facto supra) garantia – situações estas em que se tornava exigível – o autor ficava de imediato autorizado a vender os activos financeiros como melhor entendesse e sem qualquer tipo de formalidade, por forma a ser reembolsado do seu crédito.

Para tanto, o R. concedeu irrevogavelmente, através de carta de 16 de Outubro de 2000, poderes ao autor para desmobilizar as aplicações financeiras de que era titular e para em seu nome vender, por uma ou mais vezes e como entendesse por mais conveniente, os títulos dados de penhor e que integravam a dita carteira n.º .....................

As partes a esta materialidade de facto deram o nome de abertura de crédito para investimentos na bolsa (trading), garantido por penhor, constituído pelos “activos financeiros que integravam a carteira de títulos n.º.................., ou outros constituídos/adquiridos em sua substituição, associada à conta de depósito à ordem referida”.

E, no caso de o R. não cumprir as obrigações que o penhor garantia, este tornava-se exigível, ficando o A. de imediato autorizado a vender os activos financeiros como melhor entendesse e sem qualquer tipo de formalidade, por forma a ser reembolsado do seu crédito.

Afloram-se aqui elementos factuais que poderiam integrar três contratos: a abertura de crédito, sob a forma de mútuo em conta corrente, o penhor e um contrato de mandato ou, então, considerar todo este circunstancialismo como um único contrato autónomo (2)., permitido pela liberdade contratual que o art. 405.º do CC consagra(3)..

A relação contratual estabelecida entre as partes integrará

. vários contratos coligados,

. um contrato misto, em que “há fusão, num só negócio, de elementos contratuais distintos que, além de perderem a sua autonomia no esquema negocial unitário, fazem simultaneamente parte do conteúdo deste. (4)

. ou, finalmente, um contrato autónomo?

José Maria Pires (5) considera como contrato atípico a “antecipação bancária(6). , que define como um contrato “caracterizado necessariamente por uma relação de crédito e por uma relação de garantia, de tal modo interdependentes que durante a sua vigência se deve manter uma proporção constante entre as duas relações. A garantia pode ser constituída por penhor de mercadorias, títulos de crédito ou depósito em dinheiro”.

Refere que, entre nós, esse contrato tem sido considerado como “uma espécie de mútuo pignoratício” ou como “abertura de crédito caucionado por penhor”, aqui “contrato consensual em que o penhor e a proporcionalidade do mesmo são elementos essenciais para a utilização do crédito”; acolá, “contrato quoad constitutionem, exigindo para a perfeição do contrato as entregas das importâncias mutuadas e das coisas dadas em penhor”.

Em sua opinião(7)., quer uma quer outra construção na qualificação desses contratos envolvem alguma rigidez, preferindo designá-los como “… vulgares adiantamentos sobre mercadorias ou sobre os títulos em que se inserem as cláusulas, obrigando ao reforço das garantias se o banco o exigir, quando estas se desvalorizem abaixo de certa margem mínima”; refere ainda que essas garantias são elementos acessórios: o incumprimento da obrigação de reforço não extingue, por si só, o contrato, pode é permitir a sua rescisão.

Diz ainda que esses “adiantamentos são, em regra, créditos a curto prazo garantidos por letras (…..) ou por valores mobiliários (…..)”.

Por sua vez, Luís Poças (8). considera que “o empréstimo sobre penhor” constitui “um tipo legal autónomo, de estrutura complexa” e que “as referências ao mútuo e ao penhor dever-se-ão considerar feitas a tipos legais análogos, no quadro respectivamente, da relação de crédito e de garantia. Ou seja, as relações de crédito e de garantia são semelhantes – diremos mesmo análogas – ao mútuo e ao penhor, mas não podem ser consideradas mútuo nem penhor porque integram um tipo complexo original e autónomo (e não um contrato misto).

Desta forma(9). o legislador deu explicitamente por assente a analogia de figuras e regimes a que fizemos referência, preocupando-se fundamentalmente em regular os aspectos em que o empréstimo sobre penhor se traduz num tipo autónomo e que decorrem, em grande medida, não de uma simples adição, por analogia, de regimes de dois tipos básicos, mas, mais do que isso, do elemento original que caracteriza e distingue o empréstimo sobre penhor, o que se refere `profunda interdependência entre a relação crédito (análoga ao mútuo) e a de garantia (análoga ao penhor)”.

Menezes Cordeiro (10). ensina que a abertura de crédito pode ser simples ou em conta corrente (12). e garantida, quando acompanhada de uma garantia e, porque não está regulada entre nós, devem as partes “prever com clareza, o termo da operação e as condições da sua eventual renovação”. Não o fazendo devem aplicar-se as regras da conta corrente, quando for o caso, as do mandato quanto à disponibilidade, as do mútuo quanto ao saldo.

E diz também que neste tipo de contratos “em todo o processo de renovação ou de cessação, há que manter contínuos fluxos de informação, sob pena de se poderem criar situações de confiança que, depois, a serem desamparadas, podem originar responsabilidade. Do mesmo modo, na movimentação do crédito há também, que atender às exigências da boa fé(11)

Embora nos pareça mais correcta e elaborada a tese do contrato autónomo, não se nos impõe, no caso, a opção por qualquer das teses em análise, pois, quer se trate de contrato autónomo, de contrato misto ou de abertura de crédito com garantia, as regras a aplicar são as do mútuo à relação de crédito, as do penhor à relação de garantia e as do mandato, às da solvabilidade da dívida no caso de incumprimento.

Analisemos então a factualidade provada em função das regras dos contratos de mútuo, de penhor e de mandato.

A abertura de crédito não é definida por lei, embora ela se lhe refira(13); trata-se de um contrato em que um banco se obriga a ter à disposição de um cliente uma soma em dinheiro por determinado período ou por tempo indeterminado (14).

É uma espécie de mútuo (15)). em conta corrente (16)., sendo certo, no entanto, que, no caso dos autos, o banco podia exigir, antes do términu (17). do contrato o montante do empréstimo, se o R. não cumprisse as obrigações assumidas (18), podendo executar extrajudicialmente o penhor (19).

Esta garantia – o penhor – “confere ao credor o direito do seu crédito, bem como dos juros, com preferência sobre os demais credores, pelo valor de certa coisa, ou pelo valor de créditos ou outros direitos não susceptíveis de hipoteca, pertencentes ao devedor ou a terceiro(20)..

No caso, trata-se de penhor mercantil (21)., por a dívida caucionada proceder de acto comercia l(22) (23).

O penhor incidia sobre os activos financeiros que integravam a carteira de títulos existentes na conta referida ou outros constituídos/adquiridos em sua substituição.

Embora o penhor de coisas só produza efeitos com a sua entrega, o conceito de entrega é aqui utilizado em termos hábeis, pois, pode consistir numa mera entrega simbólica(24)., derivada, no caso, do registo na conta do titular desses valores(25)”..

A carteira dos títulos dada em penhor pertencia ao R. embora a sua substituição ou modificação só pudesse ocorrer com a concordância do credor do penhor – o A. -, como decorre do disposto no art. 671.º, b) do CPC(26)

Mas, como diz Luís Poças(27)., a realização do valor dos títulos dados em garantia é “um evento indesejado e apenas decorre do incumprimento pelo devedor, não de mandato ou de dação pro solvendo ou pro soluto. Se a operação …. se destinasse à pré-realização do valor da garantia, isso significaria que a venda da coisa empenhada, no final do prazo, constituiria o objecto mediato do contrato e não a execução de uma garantia”.

Assim, os títulos penhorados, em vez de garantirem o cumprimento das obrigações assumidas pelo R., constituiriam, a tratar-se de dação, o próprio pagamento.

Ora, o mandato que o R. outorgou ao A. para venda dos títulos que constituíam a carteira de activos do R. só ocorreria em caso de incumprimento por parte deste.

Só então podia o A. usar dos poderes que o R. lhe concedeu para “desmobilizar as aplicações financeiras de que era titular e para em seu nome vender, por uma ou mais vezes e como entendesse por mais conveniente, os títulos dados de penhor e que integravam a dita carteira n.º........................”.

Só nesse caso é que o A. podia utilizar o poder de disposição dos títulos(28), porque tal poder “só existe se e na medida em que for conferido por contrato(29)” e na estrita medida do acordado.

Por outro lado, como mandatário, ao A. apenas competia “praticar os actos compreendidos no mandato”(30)..

Ou seja, do que vem de expor-se, ao A. não competia a obrigação da venda dos activos em causa quer antecipadamente quer no fim do contrato, mas apenas no caso de incumprimento do R., já que o penhor constituía uma simples garantia especial da obrigação contraída que confere ao credor o direito à satisfação do seu crédito (31)..

A este é que competia, neste contrato sinalagmático, a obrigação de “reembolsar o autor do crédito concedido até 18 de Maio de 2001, bem como a ter provisionada a conta de depósito à ordem n.º ................... para a liquidação do capital, juros e demais encargos devidos (cláusula sétima das condições gerais da abertura de crédito e respectivas condições especiais, no doc. n.º 1)(32).

Regra que, aliás, está em consonância com a noção de mútuo contida no art. 1142.º do CC (33) que o define como “o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género ou qualidade”.

É, pois, o R., que não o A., quem está em mora (34) e, por isso, é ele o responsável pelo prejuízo que o credor tiver em consequência da perda ou deterioração daquilo que devia entregar, mesmo que os factos lhe não sejam imputáveis (35).

De facto, “em 18 de Maio de 2001, o réu não reembolsou ao autor o crédito concedido, nem liquidou os juros vencidos e outros encargos decorrentes do referido contrato(36).

E, além disso, vê-se da matéria de facto que o A. tentou cobrar a dívida por acordo com o R., não o tendo conseguido até à data.

Por isso, ao executar o penhor, mais não fez do que utilizar a garantia acordada, sendo certo que, com a mora, o R. passou a suportar o risco da desvalorização da sua carteira de activos, como é próprio de quem joga em bolsa que, para o bem e para o mal, é quem sofre as consequências dos ganhos ou das percas que ocorram com a valorização ou desvalorização dos títulos.

Aliás, vindo demonstrado que desde Março de 2000 já se acentuava em queda a bolsa, não faz sentido que o R. apenas queira assumir as percas até 18.5.2000 e queira repercutir no A. as que daí em diante se verificassem.

Acontece até que o A. também sofreu perdas com a não execução do penhor logo no fim do contrato, pois as perdas em bolsa lhe diminuíram a garantia.

Por outro lado, não se pode descurar a ideia de que os credores, e ainda para mais os bancos, não exigem o pagamento dos seus créditos logo que se vence a obrigação, a menos que contratualmente obrigados, pois a política da concessão de crédito impõe que, antes da cobrança litigiosa, se tente a amigável.

Não vemos, finalmente, que tenham sido violados os deveres que impendem sobre o Banco derivadas do art. 73.º e sgts. Do RGICSF(37) , pois não vem demonstrado que o A. tenha violado os deveres de diligência, lealdade, neutralidade, informação e respeito dos interesses que foram confiados ao banco, pelo facto de não ter vendido os títulos no fim do prazo do contrato - em18.5.2000.

De facto, vem demonstrado que

. em conversa tida no escritório do Réu com os representantes do autor, antes do vencimento do contrato, aquele recusou-se a aportar os meios necessários para repor o grau de cobertura, por confiar que a carteira de títulos oferecida em penhor viesse a valorizar-se no mercado bolsista;

. em 18 de Maio de 2001, o réu não reembolsou ao autor o crédito concedido, nem liquidou os juros vencidos e outros encargos decorrentes do referido contrato;

. foi contactado por responsáveis do Autor depois do vencimento do contrato, tendo-lhes comunicado que não tinha outros activos financeiros para reforçar a carteira de títulos oferecida em penhor, e que fizessem o que entendessem;

. o A. tentou por diversos meios contactar o R., por forma a tentar acordar com o mesmo uma solução consensual para o pagamento da dívida, procurando obter o pagamento voluntário por parte do R.; e mantiveram contactos durante o mês de Junho de 2001, os quais não levaram a que o réu procedesse ao pagamento de quaisquer das quantias em dívida.

Toda a conduta do A. foi no sentido de tentar cobrar a dívida do R. que, quer antes quer depois do fim do contrato, não cumpriu com as seus compromissos contratualmente acordados.

O retardamento da execução do penhor por parte do banco mais não denota do que a sua tentativa de cobrar amigavelmente o seu crédito, não lhe podendo ser imputado o risco da desvalorização da carteira de aplicações financeiras do R., cuja movimentação competia a este, embora com o aconselhamento e aceitação do banco, no caso dessa movimentação originar perda ou diminuição da garantia prestada.

No entanto, nada vem provado ou alegado que comprove que essa movimentação se não tenha dado por culpa do A ou que este tenha, de algum modo, agido com violação daqueles deveres de diligência, lealdade, neutralidade, informação e respeito dos interesses que foram confiados ao banco.

Procede, por isso, o recurso.

Decisão

Pelo exposto, concede-se a revista, revogando-se a decisão recorrida, mantendo-se o decidido na 1.ª instância, julgando a acção procedente e condenao o R. a pagar ao A. a quantia de 470.113,09€ (quatrocentos e setenta mil cento e treze euros e 9 cêntimos), e juros de mora legais, com o acréscimo de 2%, conforme acordado, calculados desde 31.7.2002 sobre 441.381,00€.

Custas pelo R., aqui e nas instâncias.

Lisboa, 23 de Outubro de 2008


Custódio Montes (Relator)
Mota Miranda
Alberto Sobrinho

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(1) Que circunscrevem o âmbito do recurso – arts. 684.º, 3 e 690.º, 1 e 2 do CPC.
(2) Neste caso, ou seja, se se tratar de um contrato autónomo atípico – por não estar regulado especificamente na lei – as regras que o disciplinam hão-de ir buscar-se àqueles contratos típicos por serem os que dele mais se aproximam.
(3) “1. Dentro dos limites, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir neles as cláusulas que lhes aprouver”.
(4) . Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 9.ª ed., pág. 291.
(5) Elucidario Elucidário de Direito Bancário, 2002, pág. 680.
(6) A que corresponde o contrato italiano denominado “antecipatione bancaria”, tipificado nos arts. 1846.º a 1851.º do Códice Civile.
(7) Ob. cit., pág. 662.
(8) A Antecipação Bancária e Empréstimo Sobre Penhor no âmbito das Operações Bancárias, págs. 26 e 130 e sgts.
(9) Continua o mesmo autor
(10) Manual de Direito Bancário, 2008, págs. 542 e 543.
(11) Esta em que o cliente pode sacar diversas vezes sobre o crédito solvendo o que não precisa.
(12) Ob e loc. Cits.
(13) Art. 362.º do Cód. Comercial, ao referir-se às operações de banco; contrato nominado mas legalmente atípico – Menezes Cordeiro, Ob. cit., pág. 544.
(14) Como se ensina no Parecer do Ex.mo Prof. Doutor Menezes Cordeiro, em citação do art. 1842.º do Cód. Civil Italiano.
(15) Art. 1142.º do CC e 394.º e 402.º do Cód. Comercial (por ser acto de comércio).
(16) Art. 344.º do Cód. Comercial.
(17) Daí o não se enquadrar rigorosamente no conceito de conta corrente.
(18) Por exemplo o não pagamento trimestral dos juros e demais encargos e não ter a conta provisionada para pagar capital e juros.
(19) Art. 675.º, 1 do CC.
(20) Art. 666.º, 1 do CC.
(21)Art. 397.º do Cód. Comercial.
(22) O adiantamento de dinheiro - empréstimo - feito pelo Banco.
(23) José Maria Pires, Direito Bancário, 2.º vol., pág. 445.
(24) José Maria Pires, ob. cit., pág. 447.
(25) .Art. 81.º do CMVM: ”1. O penhor de valores mobiliários constitui-se pelo registo na conta do titular dos valores mobiliários, com indicação da quantidade de valores mobiliários dados em penhor, da obrigação garantida e da identificação do beneficiário”.
(26) Calvão da Silva, Banca, Bolsa e Seguros, 2.ª ed., pág. 223.
(27) A Antecipação Bancária e Empréstimo Sobre Penhor no âmbito das Operações Bancárias, pág. 142.
(28) O que está aqui em causa é apenas o poder de disposição e não o ius fruendi – que o credor penhoratício tem de usar como um proprietário diligente, nos termos do art. 671.º, a ) do CC.
(29) Calvão da Silva, Ob. e loc. Cits.
(30) Art. 1161.º, a) do CC.
(31) Ac. do STJ de 30.11.2006, dgsi, proc. n.º 05B4152.
(32) Como resulta do n.º 9 da matéria de facto provada.
(33) Ex art. 3.º do CComercial.
(34) Arts. 805.º, 1, a) do CC.
(35) Art. 807.º, 1 do CC.
(36) N.º 14 da matéria de facto.
(37) Dec. Lei n.º 298/92, de 31.12.