Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S3279
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MARIA LAURA LEONARDO
Descritores: ESTADO ESTRANGEIRO
IMUNIDADE JURISDICIONAL
ACÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DE DESPEDIMENTO
Nº do Documento: SJ200602180032794
Data do Acordão: 02/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: CONCEDIDO PARCIAL PROVIMENTO.
Sumário : I - A imunidade de jurisdição dos Estados é distinta das imunidades diplomáticas e consulares que a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas (aprovada em 18-04-61) atribui aos agentes diplomáticos.
II - Esta imunidade jurisdicional dos Estados apresenta-se como corolário do princípio da igualdade entre Estados e radica numa regra costumeira de acordo com a qual nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado (par in parem non habet judicium), regra esta cujo sentido actual deve ser captado e definido.
III - É hoje dominante a concepção restrita da regra da imunidade de jurisdição, que a restringe aos actos praticados jure imperii, excluindo da imunidade os actos praticados jure gestionis.
IV - Quer a extensão da aludida regra, quer os critérios de diferenciação entres estes tipos de actividade, não têm contornos precisos e evoluem de acordo com a prática, designa­damente jurisprudencial, dos diversos Estados que integram a comunidade internacional.
V - Embora Portugal tenha assinado a Convenção de Basileia sobre a imunidade dos Estados em 10-05-79 - de acordo com a qual não pode em princípio ser invocada a imunidade de jurisdição se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular - não ratificou esta convenção, o que significa que, em face do que estabelece o artº 8º, n.º 2 da CRP, a mesma não vigora na ordem interna portuguesa .
VI - Todavia este facto não a torna inócua, na medida em que, evidenciando uma certa tendência na definição do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, na prática internacional (subscreveram e ratificaram a Convenção a Áustria, Bélgica, Chipre, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Suíça e Reino Unido), pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido actual da correspondente regra consuetudinária, sendo certo que o costume internacional é a segunda das fontes formais enunciadas no artº 38º-1 do Estatuto do Tribunal Internacional de Justiça.
VII - Também o projecto de articulado sobre a Imunidade Jurisdicional dos Estados e da sua Propriedade apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas (em 1991) pela Comissão de Direito Internacional constituída no âmbito da ONU, não sendo vinculante, tem o mérito de demonstrar, ao estabelecer várias restrições ao princípio da imunidade jurisdicional dos Estados (segundo o qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objecto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular), uma tendência generalizada na prática dos Estados no sentido do alargamento das restrições ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros, o que tem igualmente reflexos na delimitação do conteúdo objectivo da referida regra costumeira.
VIII - Sabido que, na ordem interna portuguesa, vigora o costume internacional de âmbito geral (artº 8º, n.º 1 da CRP), com o conteúdo e o sentido actualizado, e uma vez que toda a restrição ao princípio da imunidade deve estar generalizadamente radicada na consciência jurídica das colectividades - o que impõe grande prudência e muita segurança na sua aplicação -, é de considerar que o âmbito das restrições que aquela regra consuetudinária permite, não pode ultrapassar as que constam da convenção e projecto de articulado referidos (que constituem manifestações de uma certa prática, ou tendência, internacional).
IX - Numa acção de impugnação de despedimento intentada por uma trabalhadora que fazia parte do "pessoal administrativo e técnico" da delegação comercial da Embaixada da Áustria em Lisboa, cumprindo funções de secretária (de carácter subalterno e não estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental), em que o fundamento da acção é a comunicação à autora de que o contrato de trabalho cessou (situação em que a parte agiu como qualquer empregador privado), a Embaixada da Áustria goza de imunidade de jurisdição relativamente ao pedido de reintegração da autora e aos que tenham essa reintegração como pressuposto.
X - Quanto aos restantes pedidos - de pagamento de retribuições que deveria auferir entre o despedimento e a sentença, de retribuições de férias e subsídios de férias e de Natal e indemnizações por violação de direito a férias, danos não patrimoniais decorrentes do despedimento ilícito e, à cautela, de indemnização em substituição da reintegração ou indemnização pela caducidade do contrato - os tribunais portugueses têm competência internacional para deles conhecer.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I - "AA", cidadã alemã, residente em Lisboa, na Calçada do Poço dos Mouros, nº 42, r/c, Esq., instaurou acção declarativa comum contra a Embaixada da Áustria - Delegação Comercial da Embaixada da Áustria, com sede também em Lisboa, mas na Rua Rodrigues Sampaio, nº ... andar, em que pede que o seu despedimento seja considerado ilícito e que a ré seja condenada a pagar-lhe:
- € 2122.05, valor correspondente às retribuições que a autora deixou de auferir desde a data do despedimento, deduzido das referentes ao período que vai desde essa data até 30 dias antes da propositura da presente acção; e, ainda, o valor das que se vencerem até à data da sentença;
- € 2.893,70, quantia referente ao período de férias que não gozou nos anos de 2002 (8 dias) e 2003 (22 dias);
- € 4.244,10, quantia correspondente à remuneração e subsídio de férias não gozadas do ano de 2004, nos temos do artº 10º do DL nº 874/76 de 2004;
- € 21.413,40, quantia correspondente ao triplo da retribuição relativa ao período em falta, nos termos do disposto no artº 13º do DL nº 874/76, de 28 de Fevereiro;
- € 2.122,05, quantia correspondente ao subsídio de Natal não pago relativo ao ano de 2003;
- € 2.122,05, quantia correspondente ao subsídio de Natal não pago relativo ao ano de 2004;
- € 964,56, quantia correspondente à retribuição do período de férias proporcional ao tempo de serviço no ano da cessação do contrato, acrescido do respectivo subsídio;
- € 482,28, quantia correspondente ao proporcional do subsídio de Natal do ano da cessação do contrato de trabalho;
- € 9.813,83, a título de danos patrimoniais;
- € 19.881,82, a título de danos não patrimoniais;
- as retribuições vincendas até à data do trânsito em julgado da sentença, a liquidar em execução de sentença;
- e juros de mora, à taxa legal, sobre as prestações já vencidas, a contar da data da citação; relativamente às vincendas, a contar do respectivo vencimento.
Pede ainda que a ré seja condenado a reintegrá-lo no posto e local de trabalho, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade, ou no pagamento dos quantitativos compensatórios máximos devidos em substituição da reintegração.
Subsidiariamente, para a hipótese de se considerar que o contrato caducou, pede que a ré seja condenada no pagamento da compensação por antiguidade prevista nos artºs 46º e 50º da LCCT, acrescida de juros legais, desde a data da citação até integral pagamento.
Para tanto, alega, em síntese, o seguinte:
- foi contratada pela Embaixada da Áustria - Delegação Comercial em Lisboa, em 23 de Fevereiro de 2000, para exercer as funções de secretária da referida Delegação Comercial, embora no contrato celebrado figure como empregador o Sr. BB, ao tempo Conselheiro Comercial da Embaixada, e se diga que a autora era admitida para exercer as funções de secretária deste, conforme documento junto a fls 49 e 50 que aqui se dá por reproduzido;
- consta da cláusula 6ª do referido contrato que a relação contratual vigorava a termo incerto, e cessaria por acordo, mediante um pré-aviso de rescisão comunicado com a antecedência mínima de 3 meses no final do mês;
- o objecto da actividade da autora cingia-se a matérias atinentes à Delegação Comercial da Embaixada, concretamente, todo o serviço administrativo desta Delegação, cabendo-lhe, entre outras funções, a organização da documentação, processamento de salários, contabilidade, conferência de movimentos e extractos bancários, dar resposta a solicitações que chegavam à Delegação por telefone, telefax ou correio electrónico, de empresas ou particulares que pretendiam obter informações sobre o estabelecimento de actividades comerciais em Portugal ou na Áustria;
- a autora exercia tais funções em estrita obediência às directivas e ordens do seu máximo superior hierárquico, no caso, o Conselheiro Comercial;
- exerceu-as de forma ininterrupta até final do mês de Fevereiro de 2003, data em que, por se encontrar em final de gravidez (de risco), teve que interromper a laboração, por ordem médica;
- por virtude da baixa médica, antes e depois do parto (ocorrido em 18 de Março de 2003), e da posterior licença por maternidade, aleitação e assistência ao filho recém-nascido, a autora só se encontrou em condições de poder reiniciar a sua actividade em 4 de Março de 2004;
- nessa altura foi impedida de entrar nas instalações da Delegação Comercial, sendo informada verbalmente pelo novo Conselheiro Comercial, CC, que o contrato de trabalho tinha terminado;
- já antes, em 28 de Outubro de 2003, através de carta emanada dos mandatários da ré, fora comunicado à autora que o contrato celebrado com o "senhor BB" havia cessado por caducidade no dia 30 de Setembro de 2003;
- todavia, em 1 de Outubro de 2003, a autora recepcionou, por meio de telefax, um documento enviado pela referida Delegação Comercial e assinado pelo seu Conselheiro Comercial, com a denominação de "aditamento ao contrato de trabalho" do seguinte teor:
«Na sequência da mudança de direcção da Delegação Comercial da Áustria em Lisboa foi efectuado o seguinte aditamento ao contrato de trabalho:
O senhor Dr. BB, designado como entidade empregadora do presente contrato de Trabalho da Senhora AA, é nele substituído pelo Senhor Mag.CC na qualidade de Delegado Comercial da Áustria a partir de 1 de Outubro de 2003.
O contrato de trabalho mantém a sua forma inicial, com excepção do ponto 4 onde deverá constar que a trabalhadora auferirá uma remuneração mensal ilíquida de (14 pagamentos anuais) pagos no final do mês.»

A ré Embaixada da Áustria, antes da audiência de partes, veio invocar que goza de imunidade de jurisdição, em virtude do seu estatuto diplomático, sendo os tribunais portugueses internacionalmente incompetentes para conhecer da presente acção.
Cita o artº 31º da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, que entrou em vigor em Portugal em 11.10.1968, e o acórdão da Relação de Lisboa de 12.07.89 (in CJ 1989, 4, pg 178), que entendeu que se os agentes diplomáticos, representantes do Estados, gozavam de imunidade de jurisdição, por maioria de razão, o mesmo devia acontecer com os próprios Estados.
Alega, ainda, que a autora foi contratada, como secretária pessoal do então Conselheiro Comercial da Embaixada da Áustria, para o secretariar no exercício das funções oficiais deste.

Ouvida, a autora defende que o incidente de imunidade jurisdicional deve ser julgado improcedente.

O tribunal de 1ª instância entendeu de outro modo. Consequentemente, julgou-se incompetente quanto à nacionalidade para julgar a ré, absolvendo-a da instância.

A autora agravou deste despacho, com sucesso, pois o Tribunal da Relação, julgando o Tribunal de Trabalho de Lisboa competente internacionalmente para conhecer do litígio, revogou o despacho recorrido e ordenou o prosseguimento dos autos.

Inconformada, agora a ré, vem interpor recurso, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
1ª) - A Embaixada da Áustria, o seu Conselheiro Comercial e o Estado da Áustria gozam de imunidade diplomática e de jurisdição, assim como, nas mesmas condições o Estado Português e a sua Embaixada gozam de imunidade diplomática e de jurisdição na Áustria.
2ª) - A Embaixada da Áustria, o seu Conselheiro Comercial e o Estado da Áustria não renunciaram, no presente caso, à imunidade diplomática e de jurisdição;
3ª) - As funções exercidas pela agravada, enquanto secretária do Senhor Conselheiro Comercial da Embaixada da Áustria, que exercia funções de jus imperii representando o Estado da Áustria, eram de especial confiança e por tal motivo foi contratada pelo Senhor Conselheiro;
4ª) - Ainda que se aplicasse a doutrina mais avançada da imunidade relativa em termos de redução do âmbito da imunidade, que não se encontra ainda sequer em vigor (alínea b) do n° 2 do artigo 11 dos Draft Articles on Jurisditional Immunities of States and their Property das Nações Unidas - pág. 6 do acórdão recorrido), o objecto da presente acção seria precisamente excluído do âmbito dos tribunais portugueses por se tratar de "renovação ou reintegração de uma pessoa singular";
5ª) - Portugal, como Estado Soberano não ratificou a Convenção Europeia de Basileia sobre a Imunidade dos Estados por não querer que esta vigore na Ordem Jurídica Portuguesa, pelo que não deve esta ser aplicada pelo acórdão recorrido;
6ª) - Mesmo que tivesse sido ratificada por Portugal, não seria aplicada ao caso concreto, porquanto no artigo 32° da mesma está previsto que esta não "afectará os privilégios e imunidades relacionadas com as missões diplomáticas e postos consulares e as pessoas relacionadas com as mesmas";
7ª) - A jurisprudência dos Tribunais Portugueses vai no sentido de reconhecer a imunidade diplomática em situações semelhantes, não devendo estes interferir na estrutura ou organização de missões diplomáticas de outros Estados ou nas relações entre diplomatas acreditados e os seus colaboradores pessoais;
8ª) - Os trabalhadores administrativos das missões diplomáticas são considerados como membros do pessoal da missão, com as consequentes obrigações e direitos, o que se justifica em virtude de terem um papel fundamental e de relevante interesse público para o Estado acreditante, o qual é o único que poderá regular, em todas as formas, o relacionamento destes com o Estado Austríaco.
Termina no sentido de o acórdão recorrido ser revogado, devendo ser reconhecida a imunidade diplomática e jurisdicional da Embaixada da Áustria - Delegação Comercial da Embaixada da Áustria e dos seus diplomatas acreditados, nomeadamente do seu Conselheiro Comercial, e declarada a incompetência internacional dos tribunais portugueses, com a consequente absolvição da ré da instância.

Nas contra-alegações, a autora defende a manutenção do acórdão recorrido.
O Exmº Procurador-Geral Adjunto pronuncia-se no sentido de ser negado provimento ao agravo.
Na resposta, a agravante sustenta a bondade da sua posição.

II - O que importa resolver
Fundamentalmente determinar se o Estado Austríaco goza de imunidade judiciária relativamente ao litígio dos presentes autos.

III - Factos
Os relatados em I, completados com o teor da petição inicial, cujo pedido atrás se transcreveu.

IV - Apreciando
As instâncias divergiram na decisão do caso. Enquanto a 1ª instância julgou o tribunal de trabalho de Lisboa incompetente quanto à nacionalidade para julgar a ré (artºs 101º e 105º-1 do CPC, ex vi do artº 1º-2-a) do CPT), a 2ª instância assumiu posição contrária.
Aquela reconheceu a imunidade jurisdicional do Estado Austríaco, esta não.

O recorrente considera que a boa decisão é a da 1ª instância.
Ambas as instâncias partem dos seguintes pressupostos:
- O princípio da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros é um corolário do princípio da igualdade soberana dos Estados e está consagrado no artº 2º-1 da Carta das Nações Unidas;
- aquele princípio significa que nenhum Estado (em princípio) pode julgar os actos de um outro ou mesmo um dos seus órgãos superiores, maxime por intermédio de um dos seus tribunais, sem o consentimento deste;
- trata-se duma noção de direito internacional que se desenvolveu a partir da máxima par in parem non habet imperium;
- todavia, o desenvolvimento das relações internacionais e a intervenção crescente do Estado em áreas do direito privado concorreram para o reforço da teoria da imunidade relativa em detrimento da teoria da imunidade absoluta;
- segundo aquela teoria, o estado beneficiaria da imunidade para os actos jure imperii, mas não para os actos jure gestionis (aqueles em que intervém como pessoa de direito privado em relações de direito privado);
- a Convenção de Basileia, ao limitar o número de casos em que os Estados podem invocar a imunidade de jurisdição, acompanha a tendência que se desenvolveu na doutrina e jurisprudência da maioria dos países;
- também o projecto de articulado sobre a Imunidade Jurisdicional dos Estados e da sua Propriedade (Draft Articles on Jurisdictional Immunities of States and Their Property), apresentado à Assembleia Geral da ONU (em 1991), parte do ponto de vista de que os Estados gozam de imunidade restrita, imunidade que, nomeadamente, não deve existir quando o Estado empreende uma actividade comercial (nº 32 do relatório do respectivo grupo de trabalho);
- segundo o artº 11º deste projecto, um Estado, salvo acordo em contrário entre os Estados envolvidos, "não pode invocar a imunidade de jurisdição perante o tribunal de outro Estado que de outro modo seria competente para um processo relacionado com um contrato de trabalho, entre o Estado e uma pessoa singular, para trabalho prestado, no todo ou em parte, no território desse Estado" (embora no nº 2 contemple algumas excepções a esta regra; assim, o nº 1 não se aplica: a) se o trabalhador foi recrutado para desempenhar funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental; b) se o objecto do processo é o recrutamento, renovação do contrato ou reintegração duma pessoa singular; c) se o trabalhador não era nacional nem residente habitual do Estado do foro ao tempo em que o contrato foi celebrado; d) se o trabalhador era nacional do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado; e) se o Estado empregador e o trabalhador acordaram, por escrito, em sentido diverso, salvo considerações de ordem pública que confiram aos tribunais do foro jurisdição exclusiva em virtude do assunto objecto do processo);
- também o artº 5º-1 da Convenção de Basileia sobre a Imunidade dos Estados - aprovada em 16.05.72 (http://conventions.coe.int/) - estipula que um Estado contratante não pode invocar imunidade de jurisdição perante um tribunal de um outro Estado contratante se o processo se relacionar com um contrato de trabalho celebrado entre o Estado e uma pessoa singular, devendo o trabalho ser realizado no território do Estado do foro (no seu nº 2 salvaguarda estes casos: o nº 1 não se aplica: a) se a pessoa física tiver a nacionalidade do Estado empregador na altura em que o processo foi instaurado; b) se a pessoa singular, na altura da celebração do contrato, não tinha a nacionalidade do Estado do foro, nem residia habitualmente nesse Estado; c) se as partes acordaram por escrito em sentido contrário, a menos que, de acordo com a lei do Estado do foro, os tribunais desse Estado tivessem jurisdição exclusiva em virtude do objecto do processo);
- Portugal assinou esta convenção em 10.05.1979, mas não a ratificou (o que significa que a mesma não vigora no país);
- por seu turno, a Áustria assinou-a e ratificou-a (assim como a Bélgica, Chipre, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Suíça e Reino Unido);
- no direito português, não existe norma que regule a questão da imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros perante os tribunais portugueses;
- a questão tem que ser apreciada à luz das normas e dos princípios do Direito Internacional, os quais, segundo o artº 8º-1 do CRP, fazem parte integrante do direito português;
- a jurisprudência dos tribunais evoluiu de posições que consideravam em termos quase absolutos a imunidade jurisdicional dos Estados estrangeiros para a tese da imunidade restrita;
- também na jurisprudência portuguesa, designadamente no foro do trabalho, esta tese tem vindo a receber acolhimento;
- as funções da Delegação Comercial da Embaixada da Áustria - de promoção e desenvolvimento das relações comerciais entre aquele país e o nosso -inserem-se no âmbito das funções que cabem a uma missão diplomática (artº 3° da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo DL 48295 de 27/3/68);
- a autora era membro do pessoal administrativo e técnico da missão.

Partindo destes pressupostos, mas pondo o acento na alínea e) do artº 3º da citada Convenção de Viena, segundo a qual, entre as funções duma missão diplomática, se conta a de "promover relações amistosas e desenvolver as relações económicas, culturais e científicas entre o Estado acreditante e o Estado acreditador", o tribunal da 1ª instância concluiu que a autora tinha sido contratada para exercer funções relacionadas com a actividade diplomática exercida pela Embaixada da Áustria em Portugal, na medida em que foi contratada pelo Conselheiro Comercial da Embaixada, no uso dos seus poderes de agente diplomático da Áustria, para o auxiliar no exercício da sua actividade de Conselheiro Comercial, gozando este de imunidade de jurisdição civil, no que respeita a litígios respeitantes a tal contrato, nos termos do artº 31º da citada Convenção de Viena.
Uma vez, porém, que a autora não demandou o Conselheiro Comercial, que a contratou, mas a própria Embaixada da Áustria - sendo funções da missão diplomática representar o Estado acreditante perante o Estado acreditador - o mesmo tribunal entendeu que quem afinal era demandado era o próprio Estado Austríaco, através da sua embaixada. Assim, não estava em causa a aplicação directa do regime das imunidades previstas na Convenção de Viena, mas tão-só a sua análise enquanto elemento a levar em conta na apreciação da questão da imunidade do Estado Austríaco.
Entendeu ainda que na falta de lei interna ou de convenção internacional aplicável, a recusa de imunidade a um Estado estrangeiro que a ela não renunciasse devia ser uma opção tomada de forma prudente e em casos que não suscitassem quaisquer dúvidas.
Havendo dúvidas, devia prevalecer a regra geral, que é a da imunidade jurisdicional do Estado estrangeiro (como regra geral a trata tanto o Projecto da Comissão de Direito Internacional - artº 5º -, como a Convenção de Basileia - artº 15º).
Considerando ser esta a situação dos autos, o tribunal da 1ª instância reconheceu a imunidade jurisdicional do Estado Austríaco.

Partindo dos mesmos pressupostos, o Tribunal da Relação chegou a diferente solução.
Tendo como dado adquirido que a teoria restritiva da imunidade é hoje dominante, considerou que a resolução da questão em apreço passava por saber se a actividade a que se refere o litígio é ou não soberana, ou seja, se é jure imperii ou jure gestionis. Por outras palavras, se estamos perante um acto de gestão pública ou de gestão privada.
Embora não seja pacífico o critério distintivo entre estes actos, a Relação considera dominante o que atende à respectiva natureza (1)
. Assim, segundo este critério, actos jure imperii serão os actos de poder público, de manifestação de soberania; enquanto, os actos jure gestionis, são actos de natureza privada, os que poderiam ser de igual modo praticados por um particular.
Entendeu ainda que, estando em causa um litígio laboral, importaria, na definição dessa natureza, atender às funções desenvolvidas pelo trabalhador - se eram funções subalternas ou funções de direcção na organização do serviço público do Estado demandado, funções de autoridade ou de representação - interessando, sobretudo, apurar se o regime legal aplicável à relação laboral estabelecida era substancialmente diferente do que liga qualquer trabalhador com as mesmas funções a um qualquer particular.
Face às funções alegadamente exercidas pela autora, a Relação concluiu que, sendo as mesmas meramente subalternas, não podiam considerar-se abrangidas pelo jus imperii. Tão-pouco assumia tal natureza o despedimento de que a autora teria sido alvo. A ré, ao comunicar à autora a cessação do contrato de trabalho, agiu como um qualquer empregador privado, praticando um acto de gestão e não um acto de soberania, pelo que não podia, quanto a esse acto, beneficiar da imunidade judiciária.
Sublinha ainda que, no circunstancialismo descrito - ser a autora uma trabalhadora por conta de outrem, dependente para a sua subsistência, do rendimento do trabalho; ser cidadã estrangeira, mas residir em Portugal antes de passar a trabalhar para a ré; terem ocorrido em Portugal os factos que constituíam a causa de pedir (a relação de trabalho e despedimento - artº 10º do CPT) -, era de presumir que a propositura da acção de impugnação do despedimento perante a jurisdição austríaca constituísse para ela uma dificuldade apreciável, o que determinava, nos termos do artº 65°-1-d) do CPC, a competência internacional da jurisdição portuguesa.

Já vimos que a agravante discorda desta posição. Vejamos se tem razão.
As opiniões são concordantes em afirmar que "o direito internacional comum reconhece aos Estados certos direitos derivados da sua qualidade de sujeitos de direito internacional, direitos esses «essenciais» (....) sem os quais os Estados não poderiam viver e dos quais decorrem todos os seus outros direitos".
Um desses direitos fundamentais é o direito à igualdade (igualdade nas relações entre os Estados, direito a uma igual medida de soberania, garantia da igualdade na aplicação do direito internacional ....).
A soberania é um dos elementos constitutivos do Estado, sendo uma das suas marcas o exercício dos poderes de jurisdição (tanto de sentido normativo, como administrativo, ou jurisdicional, havendo uma tendencial correspondência entre os limites territoriais e o alcance do direito de jurisdição). (2)
Os direitos fundamentais dos Estados sofrem, todavia, algumas restrições. Umas resultam do costume internacional, outras derivam de normas convencionais.
A imunidade de jurisdição de que gozam os Estados estrangeiros é uma dessas restrições.

A agravante começa por invocar, em seu favor, o estatuto da imunidade diplomática.
As grandes mudanças operadas no século XX, sobretudo após a segunda guerra mundial, determinaram a necessidade dos Estados criarem (convencionalmente) directrizes para o tratamento das questões diplomáticas. Assim, em 18 de Abril de 1961, oitenta e um países soberanos aprovaram o texto da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas. Com o aparecimento desta Convenção, o costume passou a fonte subsidiária na matéria, tornando-se aquela o verdadeiro código das relações diplomáticas, completada em 1969 por uma Convenção sobre missões especiais.
Este direito convencional veio assegurar um amplo rol de garantias aos agentes de missões diplomáticas.
Pretende a recorrente que este rol de garantias seja aplicado aos próprios Estados (uma vez que, nesta acção, representa o próprio Estado Austríaco). Em abono da sua posição invoca um acórdão da Relação de Lisboa de 1989 (atrás melhor identificado) que, usando o argumento da maioria de razão, estendeu aos Estados as imunidades atribuídas aos agentes diplomáticos.
Embora ainda se tivesse defendido - como dá conta Luiz Paulo Romano (3) - que as regras estatuídas por aquelas convenções conferiam aos Estados estrangeiros imunidade total em face da jurisdição do país em que se situavam tais missões, julgamos que este entendimento está hoje completamente superado.
A agravante, no corpo da sua alegação, invoca que a acção foi mal posta. Devia ser movida contra o Conselheiro Comercial da Embaixada, dado que foi ele que contratou a autora, e não contra a própria Embaixada. Trata-se doutra questão, a apreciar noutro momento. Saber quem é o titular da relação controvertida poderá ter a ver com a legitimidade processual ou com o fundo, mas não com a questão da imunidade de jurisdição a aferir perante a entidade realmente demandada.
Temos, pois, como assente que a imunidade dos próprios Estados não radica no citado direito convencional, sendo algo de distinto das imunidades diplomáticas e consulares. Apresenta-se como corolário do princípio da igualdade entre Estados - o que já foi afirmado pelas instâncias - e expressa a regra costumeira sintetizada no aforismo par in parem non habet judicium. De acordo com esta regra nenhum Estado soberano pode ser submetido, contra sua vontade, à condição de parte perante o foro doméstico de outro Estado.

Argumenta a agravante que, não tendo Portugal ratificado a Convenção de Basileia sobre a imunidade de jurisdição, não pode a mesma ser aqui aplicada.
Desde há muito que o princípio da imunidade de jurisdição dos Estados tem vindo a sofrer restrições. Isto foi uma consequência da crescente intervenção estadual no campo das finanças, do comércio, da indústria e dos transportes. Depressa a tese da imunidade absoluta começou a revelar-se injusta.
Para a contrariar aparece, "já em 1934, a convenção para a unificação de certas regras relativas às imunidades dos navios de Estado, a qual apenas concede tal privilégio aos navios de guerra, aos navios-hospitais e a outros não utilizados pelo Estado em actividades comerciais".
Também a doutrina, na definição do sentido daquela regra costumeira, se foi separando, "ora pugnando a favor da imunidade absoluta, ora defendendo a imunidade relativa."
Igual fenómeno aconteceu nas diversas jurisprudências nacionais. Se é verdade que até à segunda grande guerra mundial iam aceitando sem incómodo a regra da imunidade absoluta, a partir daí "começaram a hesitar e a operar uma distinção entre as actividades governamentais tradicionais e as que entram no domínio das transacções comerciais. Era o início da distinção entre os actos iure imperii e os actos iure gestionis." (4)
Tanto a 1ª como a 2ª instância aceitam a tese da imunidade restrita, hoje dominante, que pressupõe aquela distinção.
Quanto ao critério a usar na distinção, o mesmo não tem sido pacífico. Enquanto uns põem o acento na natureza do acto, outros atendem mais à finalidade por ele visada.
Eduardo Correia Baptista (in obra cit. pg 143 e sgs) refere que a concretização dos actos de gestão privada tem suscitado alguma divisão entre os Estados. No entanto, não deixa de sublinhar que é pacífico o critério da natureza do acto (embora para alguns Estados não seja exclusivo).
"Actualmente, a Convenção Europeia sobre a Imunidade dos Estados consagra a tese da imunidade relativa e põe definitivamente de lado a qualificação do acto através da sua finalidade. Em matéria de contratos distingue entre os contratos de trabalho e outros contratos, não permitindo, em qualquer dos casos, que o Estado possa invocar a imunidade de jurisdição. Tal orientação, cujo teor é justificado pelo facto de a actuação estadual que obriga à celebração de tais contratos não poder ser considerada jure imperii, é complementada pelo artº 7º, que nega igualmente a possibilidade de o Estado recorrer àquele tipo de defesa formal sempre que a actividade financeira, industrial ou comercial é levada a cabo por um escritório, agência ou estabelecimento que age da mesma forma como agiria uma pessoa privada." (5)
O tribunal recorrido aceitou - e bem - o critério de distinção baseado na natureza do acto.
Foram signatários da Convenção de Basileia os Estados Membros do Conselho da Europa.
Consta do seu preâmbulo que se manifesta no direito Internacional uma tendência para restringir os casos em que um Estado pode invocar a imunidade diante dos tribunais dum outro Estado e tendente a assegurar a execução dos julgamentos dirigidos contra um Estado.
Como salienta a agravante, Portugal, embora tenha assinado esta convenção (em 10.05.1979) não a ratificou, o que significa que a mesma não vigora na ordem interna portuguesa (artº 8º-2, a contrario, da CRP). Todavia este facto não a torna inócua, na medida em que, evidenciando uma certa tendência na definição do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros, na prática internacional, pode ajudar a definir o conteúdo, a marcha evolutiva e o sentido actual da correspondente regra consuetudinária.
Lembremos que o costume internacional é a segunda das fontes formais enunciadas no artº 38º-1 do Estatuto do TIJ (Tribunal Internacional de Justiça) - onde aparece definido como "prova de uma prática geral aceite como sendo direito" - e que a função do costume é idêntica à das convenções. Tanto define direitos e obrigações subjectivas particulares entre Estados, como cria normas objectivas gerais válidas para o conjunto dos membros da sociedade internacional.
Por outro lado, sendo os preceitos costumeiros direito não escrito emergente duma pluralidade de comportamentos que se inscrevem numa prática, os quais podem apresentar diferenças entre si e dar lugar a variações no modo de cumprimento dessa prática, admite-se "uma margem mais larga de flexibilidade na apreciação do cumprimento dos costumes que na apreciação do cumprimento das convenções".
De sublinhar, ainda, que o citado artº 38º do Estatuto do TIJ não faz depender a aplicação judicial dos costumes gerais, da circunstância de os litigantes os terem praticado ou aceite. Por isso, o "TIJ tem aplicado costumes considerados gerais à solução de litígios entre Estados que não tinham aceite a aplicação desses costumes ao caso litigioso."
O método de demonstração mais directo consiste em evidenciar que o Estado réu se tem comportado de acordo com o mesmo costume, exercendo os poderes e cumprindo os deveres que dele derivam. Quando este método não seja concludente, outro método consiste em evidenciar que uma maioria de Estados se tem comportado de acordo com o mesmo costume, sem que o réu o tenha rejeitado (6) .

Salienta-se que a Áustria foi um dos países que subscreveu e ratificou a Convenção de Basileia sobre a imunidade dos Estados, assim como a Bélgica, Chipre, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Suíça e Reino Unido, o que significa que estes países não só se vincularam nos termos da referida convenção - que consagra restrições ao princípio da imunidade de jurisdição dos Estados estrangeiros - como reconheceram a existência duma tendência geral nesse sentido.
Ora, a constatação duma certa tendência na limitação do princípio da imunidade na prática internacional não pode deixar de ter repercussão na definição do sentido actual da referida regra consuetudinária.
O mesmo se diga relativamente à argumentação da agravante, quando invoca o facto de a doutrina mais avançada sobre a imunidade relativa - referindo-se a disposições dos Draft Articles on Jurisdicional Immunities of States and Their Porperty - não se encontrar em vigor.
Trata-se dum projecto de articulado sobre a Imunidade Jurisdicional dos Estados e da sua Propriedade apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas (em 1991) pela Comissão de Direito Internacional (International Law Commission - ILC), constituída no âmbito da ONU, em que se estabelece várias restrições ao princípio da imunidade jurisdicional dos Estados (destacando-se o artº 10º e o artº 11º, relativos, respectivamente, a transacções comerciais e a contratos de trabalho, encontrando-se já atrás explicitado o teor desta última disposição).
Este projecto não sendo vinculante tem (também) o mérito de demonstrar uma tendência generalizada na prática dos Estados no sentido do alargamento das restrições ao princípio da imunidade dos Estados estrangeiros, o que também não pode deixar de ter reflexos na delimitação do conteúdo objectivo da referida regra costumeira.
O acórdão do STJ de 13 de Novembro de 2002 (in CJ X, 3, 276) dá também conta dessa tendência, fazendo um estudo desenvolvido sobre a matéria.
Destacamos algumas passagens e dados recolhidos (alguns também referidos no acórdão recorrido).
"Desde há vários anos, as sessões regulares do Instituto de Direito Internacional vêm salientando que deve ser, em via de regra, afastada a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro quando estejam em causa relações reguladas pelo direito privado (civil ou comercial), o que inclui, além do mais (.....), contracts of employment and contracts for professional services to which a foreign State (or its agent) is a party (.....)." Esta linha de orientação tem sido evidenciada pelas análises comparadas das diversas jurisprudências nacionais (invoca a este propósito estudos em revistas e publicações de direito internacional, que nos dispensamos de enumerar).
O tema foi recentemente objecto de desenvolvida monografia da autoria de Isabelle Pingel-Lenuzza ("Les Immunités des États en Droit International, Editions Bruylant/Editions de L’ Université de Bruxelles, 1997) que, a propósito do não reconhecimento da imunidade de jurisdição em litígios laborais, refere que "a prática tende a admitir (...) que o Estado não beneficia da imunidade nos litígios que o opõem a uma pessoa privada com a qual concluiu o contrato de trabalho".
Adverte, porém, a mesma autora que "esta regra tem sido aplicada com nuances, revelando o exame das jurisprudências nacionais que se a imunidade é geralmente recusada nos casos em que o litígio respeita a um trabalhador que exerce funções subalternas, ela já lhe é frequentemente concedida quando a pessoa em causa ocupa funções mais elevadas".
Acrescenta que a "justificação desta orientação assenta no reconhecimento de que só os contratos de trabalho celebrados com pessoal de grau elevado é que é susceptível de estar relacionado com o exercício do poder público (jus imperii) e de beneficiar a este título, da imunidade".
Também Michel Menjucq, citado no mesmo acórdão, afirma - sintetizando a actual orientação jurisprudencial francesa na matéria - que "unicamente as pessoas que tenham uma função de direcção agem no interesse do serviço público estrangeiro e podem ver ser-lhes opostas a imunidade do Estado estrangeiro, [o qual] pratica um acto de soberania ao despedi-las"; pelo contrário, "as pessoas que apenas têm uma função subalterna no serviço público, não implicando qualquer responsabilidade de direcção do serviço, não são consideradas (....) como actuando no interesse do serviço público." Consequentemente, "a acção judicial por elas intentada não pode ser entravada pela imunidade do Estado estrangeiro, pois este intervém, ao despedi-las, como simples empregador privado, praticando um acto de gestão".
A agravante nas suas alegações cita vários acórdãos nacionais que, em questões laborais, reconheceram a imunidade jurisdicional dos Estados Estrangeiros. Acontece que a esmagadora maioria desses acórdãos não são recentes, sendo certo que desde então, se registou uma evolução significativa no sentido atrás apontado (de que dá conta o citado acórdão de 13.11.2002).
No caso dos autos, não está em causa o conhecimento do direito aplicável em juízo, pois está aceite a existência duma regra consuetudinária que consagra a imunidade jurisdicional dos Estados. Do que se trata é tão-só de definir ou captar o sentido actual dessa regra.
Aqui temos que ser sensíveis a um argumento da agravante.
Se na definição do conteúdo e sentido actual daquela regra, invocamos a Convenção de Basileia e o projecto de articulado apresentado à Assembleia das Nações Unidas em 1991 como consagração do que era a tendência duma prática generalizada, não podemos, em coerência, levar mais longe a interpretação restritiva (redução do âmbito de aplicação) do princípio da imunidade de jurisdição dos Estados, ali consagrada.
Todavia, também importa salientar que, ao ratificar a Convenção de Basileia, a Aústria também aceitou a existência duma prática ou, pelo menos, duma tendência para essa prática no sentido do regime consagrado convencionalmente.
Aqui chegados, resta analisar a relação material controvertida tal como se mostra configurada na petição inicial e também o pedido.
São estes os elementos a ter em conta:
- a autora foi contratada pela ré para exercer as funções de secretária da referida Delegação Comercial;
- o objecto da actividade da autora cingia-se, concretamente, a todo o serviço administrativo dessa Delegação, cabendo-lhe, entre outras funções, a organização da documentação, processamento de salários, contabilidade, conferência de movimentos e extractos bancários, dar resposta a solicitações que chegavam à Delegação por telefone, telefax ou correio electrónico, de empresas ou particulares que pretendiam obter informações sobre o estabelecimento de actividades comerciais em Portugal ou na Áustria;
- a autora exercia tais funções em estrita obediência às directivas e ordens do seu máximo superior hierárquico, no caso, o Conselheiro Comercial;
- o contrato foi designado como contrato de trabalho, constando da sua cláusula 6ª que a relação contratual vigorava a termo incerto e cessaria por acordo, mediante um pré-aviso de rescisão comunicado com a antecedência mínima de 3 meses no final do mês;
- nesta acção, a autora pede a condenação da ré a reintegrá-la no seu posto e local de trabalho e a pagar-lhe as retribuições que deixou de auferir desde a data do despedimento até à data da sentença (deduzidas das referentes até 30 dias antes da propositura da acção); pede, ainda, o pagamento das retribuições de férias, subsídios de férias e de Natal (referentes aos anos que indica) e também indemnizações - pelo não gozo de férias e por danos não patrimoniais decorrentes do despedimento ilícito;
- à cautela, prevenindo a hipótese de a ré vir "obstar à reintegração", pede que esta seja condenada no pagamento dos quantitativos compensatórios máximos devidos em substituição da referida a reintegração...;
- também à cautela, para o caso de ser julgado improcedente o pedido de declaração da ilicitude do despedimento, pede que seja declarada a caducidade do contrato de trabalho com a consequente condenação da ré no pagamento da compensação por antiguidade prevista nos artºs 46º e 50º da LCCT, acrescida de juros desde a citação (....).
Neste contexto, não podemos deixar de concluir que a autora, pelo contrato celebrado passou a ser "membro do pessoal administrativo e técnico da missão" (alínea f) do artº 1º da Convenção de Viena sobre as Relações Diplomáticas).
Todavia, as funções para que foi contratada não eram de direcção, antes tinham carácter subalterno. A autora cumpria todas as tarefas próprias duma secretária, exercendo-as sob a direcção da entidade empregadora. Também não eram funções estreitamente relacionadas com o exercício de autoridade governamental (jus imperi).
Tanto a designação do contrato, como as suas cláusulas, apontam para um contrato de natureza privada, designado pelas partes como contrato de trabalho.
O fundamento da acção é a cessação da relação de trabalho, por facto imputável à entidade empregadora. Ao comunicar à autora que o contrato de trabalho tinha cessado a recorrente agiu como qualquer empregador privado. Não praticou um acto de soberania.
Contrariamente ao que a recorrente sustenta, não altera os dados da situação o facto de a autora ser uma trabalhadora administrativa da recorrente e nessa qualidade gozar de privilégios e imunidades, nos termos do artº 37º-2 da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (desde logo, porque foi a autora que propôs a acção).
Sublinha-se ainda que o artº 32º da Convenção de Basileia (convenção que, não vigorando na ordem interna portuguesa, tem o mérito de evidenciar uma tendência geral sobre o âmbito de aplicação do princípio de direito internacional sobre da imunidade dos Estados) apenas salvaguarda os privilégios e imunidade das missões diplomáticas e postos consulares consagradas noutras fontes (Convenções de Viena - sobre Relações Diplomáticas e sobre Relações Consulares, esta aprovada em Viena, em 24 de Abril de 1963 - ...).
Sabido que, na ordem interna portuguesa, vigora a regra consuetudinária (costume internacional de âmbito geral - artº 8º-1 da CRP), com o conteúdo e o sentido (actualizado) já definidos, mas considerando que toda a restrição ao princípio da imunidade deve estar generalizadamente radicada na consciência jurídica das colectividades, o que impõe grande prudência e muita segurança na sua aplicação, entendemos que o âmbito das restrições que aquela regra (consuetudinária) permite não pode ultrapassar - por tudo o que já se disse - as que constam daquela convenção e do referido projecto de articulado (7) (segundo o qual, a imunidade pode ser invocada se estiver em causa um contrato de trabalho e o objecto do processo for a sua renovação ou a reintegração duma pessoa singular - artº 11º-2-[b]), que aceitamos como manifestações de uma certa prática (ou tendência) internacional.
Assim sendo, impõe-se concluir que relativamente ao pedido de reintegração da autora e aos que tenham essa reintegração como pressuposto a ré goza de imunidade de jurisdição.
Quanto aos restantes pedidos, pelas razões e com base nas normas que o acórdão recorrido invoca (ver também artºs 1º e 18º do Regulamento [CE] nº 44/2001 do Conselho, de 22 de Dezembro de 2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial), os tribunais portugueses têm competência internacional para deles conhecer.

V - Decidindo
Nestes termos, concedendo parcial provimento ao agravo, revogam parcialmente o acórdão recorrido na parte em que não reconheceu a imunidade do Estado Austríaco relativamente ao pedido de reintegração da autora e aos outros dele dependentes, devendo o processo prosseguir para conhecimento dos restantes pedidos.
Custas por recorrente e recorrida, na proporção de metade.

Lisboa, 12 de Janeiro de 2006
Maria Laura Leonardo (Relator)
Sousa Peixoto
Sousa Grandão
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(1) Cita Eduardo Correia Batista, in "Direito Internacional Público", Almedina, 2004, II vol, pg. 144, nota 279.
(2) Jónatas E. M. Machado, in Direito Internacional, do Paradigama Clássico ao Pós-11 de Setembro", pg 130 e sgs.
(3) In "A imunidade de Jurisdição do Estado Estrangeiro: absoluta ou relativa?, Enciclopédia Jurídica, acessível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id:1638.
(4) Albino de Azevedo Soares, in "Lições de Direito Internacional Público", 4ª ed. (reimpressão), Coimbra Editora, pg. 340.
(5) Albino de Azevedo Soares, obra cit., pg 341e sg.
(6) António Cabral de Moncada, in Curso de Direito Internacional Público, I, Almedina, 248 e sgs.
(7) Apresentado à Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1991 (http://www.un.org/law/ilc/).