Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B3450
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: MOITINHO DE ALMEIDA
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
ÓNUS DA ALEGAÇÃO
CONCLUSÕES
Nº do Documento: SJ200411250034502
Data do Acordão: 11/25/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Processo no Tribunal Recurso: 2250/03
Data: 04/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : O convite para o aperfeiçoamento das conclusões, previsto no artigo 690°, n°4 do Código de Processo Civil não tem lugar no âmbito do artigo 690°A do mesmo Código.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. "A", B e C, intentaram a presente acção de investigação de paternidade contra D, pedindo que sejam reconhecidos como filhos do falecido E.
A acção foi julgada procedente, tendo a sentença proferida em 1ª instância sido confirmada por acórdão da Relação de Guimarães, de 28 de Abril de 2004.

Inconformada, recorreu D para este Tribunal, concluindo as alegações da sua revista nos seguintes termos:
1. O presente recurso tem por fundamento a violação de lei substantiva por erro de interpretação e aplicação do preceituado no n°4 do art°1817° do Código Civil.
2. Da correcta interpretação e aplicação deste normativo legal resultaria procedente a invocada excepção da caducidade.
3. Os factos assentes como provados são insuficientes para integrarem o conceito de "tratamento" previsto no n°4 daquele normativo legal.
4. Não foi efectuada uma análise global da prova.
5. Foram desconsiderados factos importantes para a boa decisão da causa.
6. A posse de estado tem como pressuposto o tratamento e a reputação como filho pelo Pai.
7. O n°4 do art° 1817° do Código Civil apenas se refere ao tratamento como filho pelo pretenso Pai e não à situação inversa.
8. A posse de estado tem de ser apreciada no seu conjunto numa perspectiva global e não separadamente como o foi.
9. Não foi apreciado e valorado o documento n°22 junto aos autos com a petição inicial, em conjunto com a própria alegação dos Recorridos e o que consta do ponto 4 da matéria provada, bem como o que consta do depoimento escrito a fls.231e e seguintes referente à testemunha angélica Pereira.
10. Factos que não foram devidamente valorados e que por si só provavam que o E nunca se reputou pai dos recorridos nem nunca os tratou como tal.
11. O acórdão recorrido conclui pela improcedência da excepção da caducidade com fundamento nos pontos 13, 17 e 21 dos factos assentes como provados.
12. O ponto 13 da matéria assente como provada é uma conclusão de direito não alicerçada em factos concretos e circunstanciados no tempo que constem do elenco da matéria assente como provada, porquanto tão pouco foram alegados pelos recorridos.
13. E, assim sendo, nos termos do preceituado no n°4 do art°646° do C.P.C. o que consta do ponto 13 dos factos assentes, deve considerar-se não escrito.
14. Os pontos 17 e 21 são manifestamente insuficientes para se concluir pela improcedência da excepção da caducidade, á luz e no prazo do preceituado no n°4 do art°1817° do Código Civil.
15. Incumbia aos Recorridos alegarem e provarem a verificação excepcional da situação prevista no n°4 do art°1817° do Código Civil.
16. Nem sequer tendo alegado datas em que tal tratamento ocorreu, nem constando os mesmos do elenco da matéria assente, à excepção do ponto 21 atinente aos AA, A e B.
17. Matéria que ainda que se entenda suficiente para integrar o conceito de tratamento a que alude o n°4 do art°1817° do Código Civil, no que se concede, sempre levaria a que se julgasse procedente a excepção de caducidade relativamente ao A. C.
18. Não tendo os AA alegado e provado os requisitos factuais impostos pelo n°4 do art°1817° do C. Civil deveria ter sido julgada procedente a excepção de caducidade.
19. Recaía sobre os Recorridos o ónus da prova da verificação da situação especial e excepcional prevista no n°4 do art°1817° do Código Civil.
20. Apenas do ponto 21 da matéria assente se infere uma data, porém a expressão "chamou-os de filhos" é insuficiente à luz do "tratamento" a que alude aquele preceito legal.
21. Deveria ter sido julgada procedente a excepção da caducidade.
22. A Recorrente procedeu sistematicamente à transcrição das passagens tidas por relevantes dos depoimentos gravados, que inseriu no teor da própria Alegação, nos termos fo art°690° A do C.P.C. não havendo fundamento para rejeitar o recurso.
23. Se assim não se entender e por aplicação do n°4 do art°690° do C.P.C. deveria a recorrente ter sido convidada a apresentar a transcrição das gravações atento o princípio da cooperação consignado no art°266°, n°1 do C.P.C. ao invés de se rejeitar o recurso.
24. Conforme relatório do C.P.C. da Reforma de 1995 o direito de acesso aos Tribunais envolverá a eliminação de todos os obstáculos à obtenção de uma decisão de mérito, privilegiando-se a decisão de fundo e de mérito sobre a mera decisão de forma.
25. A Recorrente cumpriu na íntegra todos os requisitos exigidos pelos n°s 1 e 2 do artigo 690° A do C.P.C.
26. Ainda que assim não se entenda, a recorrente cumpriu de forma incompleta o referido ónus, pelo que sempre se imporia, antes de mais, um convite para o aperfeiçoamento da alegação neste ponto, assim se dando cumprimento correcto e completo ao preceituado no art°690° A do C.P.C. na versão aplicável "sub júdice".
27. É relevante o facto de a actual redacção do art°690° A do C.P.C. nem sequer impor ao recorrente a transcrição da prova gravada, sendo que nos termos do art°522° do CP.C. é assinalado na acta o início e o termo da gravação de cada depoimento.
28. Nos presentes autos foi cumprido o previsto no art°522° do C.P.C.
29. O mecanismo aí previsto só tem cabimento no caso de não ser exigível ao recorrente transcrever a prova gravada, dando-se, assim, cumprimento ao previsto no art°690°A do C.P.C., o qual não impõe ao recorrente a transcrição da prova gravada.
30. O facto de a acta de julgamento conter as menções exigidas pelo art°522° torna, na prática, perfeitamente inútil a transcrição da prova gravada, porquanto os depoimentos estão perfeitamente identificados.
31. Não existe, pois, qualquer fundamento para a rejeição de recurso, já que, no máximo, deveria ter-se dado à Recorrente oportunidade para apresentar a transcrição dactilografada em prazo razoável, sob pena de rejeição do recurso.
32. A Recorrente impugnou a matéria de facto com base na errada apreciação dos meios de prova que não se confinam à prova gravada, mas a todos os meios probatórios onde se inserem, nos presentes autos, depoimentos transcritos e documentos.
33. O recurso apenas foi rejeitado na parte relativa à impugnação da matéria de facto, com base nos depoimentos gravados.
34. Não se tendo pronunciado minimamente sobre os restantes meios de prova
35. Não tendo sido cumprido o preceituado no n°2 do art°660° do C.P.C. o douto Acórdão recorrido enferma de nulidade, nos termos da alínea d) do art°668° do C.P.C., aplicável por força do preceituado no n°1 do art°716° do C.P.C.

2. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelas instâncias:
1. No dia 28.12.1997, faleceu, no lugar e freguesia de N.ª S.ª de Fátima, Lisboa, E.
2. A mulher dele, F, faleceu em 14 de Abril de 1997.
3. Os pais, G e H, faleceram antes deles, respectivamente em 6 de Fevereiro de 1975 e 20 de Outubro de 1926.
4. Por testamento celebrado no dia 28 de Abril de 1997, no 2° Cartório Notarial de Viana do Castelo, o falecido E instituiu sua única e universal herdeira a irmã D.
5. No dia 30 de Maio de 1963, nasceu em Moçâmedes, A que, após ter casado, adoptou o nome de A, tendo sido registada na Conservatória do Registo Civil apenas como filha de I, sem identificação do pai.
6. No dia 19 de Outubro de 1966, nasceu no concelho de Nova Lisboa, Angola, B, tendo sido registado na Conservatória do Registo Civil apenas como filho de I, sem identificação do pai.
7. No dia 2 de Janeiro de 1970, nasceu no concelho de Nova Lisboa, Angola, C, tendo sido registado na Conservatória do Registo Civil apenas como filho de I, sem a identificação do pai.
8. A mãe dos AA. sempre trabalhou como empregada doméstica em casa de F, inicialmente em Angola e a partir de 1974, em Portugal, na "Casa das Cunhas", na freguesia da Correlhã, quer quando esta era casada com J, quer quando, após enviuvar, casou com E;
9. O E e a F foram os padrinhos de baptismo dos Autores, tendo ambos organizado e custeado as respectivas festas de baptizado.
10. O E sempre foi o encarregado da educação dos Autores a quem, com F, sustentou, vestiu e pagou toda a educação.
11. A I manteve um relacionamento sexual com o E, desde antes do anos de 1962 e que perdurou por mais trinta e cinco anos.
12. Os AA. foram fruto das relações sexuais mantidas entre o E e a I, nos primeiros cento e vinte dias dos trezentos que antecederam os respectivos nascimentos dos AA.
13. O E sempre tratou os AA. como e por filhos.
14. Os Autores, sua mãe e E viveram sempre em comunhão de habitação, até que os Autores mais velhos se casaram e o mais novo emigrou para a Alemanha.
15. Os AA. pernoitavam, tomavam as suas refeições e faziam a sua vida familiar na referida "Casa das Cunhas" , desde que voltaram de Angola e até os Autores B e A se terem casado e o C ter ido para a Alemanha.
16. Depois de se ter casado, a Autora A, marido e filhos passavam muitos fins de semana na Casa das Cunhas, na companhia da mãe daquela e de E.
17. O E esteve presente no baptizado dos filhos da A. A e sempre a tratou como filha e a eles como netos, nomeadamente nas festas de familiares e amigos.
18. O E foi quem educou os Autores, ministrando-lhes educação rigorosa e própria de um pai que quer o melhor para os seus filhos.
19. Os Autores sempre trataram o E como pai, até ao final do mês de Agosto de 1997.
20. Em 22 de Agosto de 1997, os AA. A e B foram visitá-lo ao Hospital Curry Cabral, em Lisboa, e chamaram-no e trataram-no como pai.
21. E o E chamou-os de filhos, mal os viu e durante o período da visita.
22. O E ficou sensibilizado e emocionado com a visita;
23. A generalidade das pessoas que conviveram com os Autores e com o E, em Angola e em Ponte do Lima, consideravam os Autores filhos do J e da I.
24. Estando convencidos de que o J os tinha perfilhado.
Cumpre decidir.
3. Suscita a Recorrente questões que se prendem com a apreciação das provas (1) com a verificação dos pressupostos do n°4 do artigo 1817° do Código Civil (2) e com a caducidade da acção (3), a nulidade do acórdão recorrido (4) e a violação do disposto no artigo 690° A, do Código de Processo Civil.
3.1 Apreciação das provas
A parte respeitante às conclusões 4ª, 5ª, 9ª e 10ª , em que se impugna a valoração feita de certas provas pelo acórdão recorrido, escapa à competência deste Tribunal (artigos 729°, n°2 e 722°, n°2, do Código de Processo Civil).

3.2 Artigo 1817°, n°4 do Código Civil
Considera a Recorrente que deve ser considerada como não escrita a parte respeitante ao n°13 dos factos assentes, por se tratar de uma conclusão de direito. E a restante matéria de facto não permite concluir pela existência de tratamento como filhos para efeitos do disposto no n°4 do artigo 1817° do Código Civil.
A este respeito importa observar que mesmo a entender-se que o tratamento como filho não possa ser quesitado, como sustenta a Recorrente, já o pode a questão de saber se o pretenso pai tratou os Autores "por filhos", o que corresponde a um facto natural. Tratar "por filhos" ou "chamá-los de filhos", expressão depois utilizada no n°21 dos factos assentes, é o mesmo.
E o falecido E não se limitou a tratar os Autores por filhos. Com eles conviveu em comunhão de mesa e habitação, educou-os e vestia-os. A generalidade das pessoas que com eles mantinham relações, em Angola e em Ponte do Lima, consideravam os Autores filhos de E e da I. Tanto basta para se entender que o pretenso pai tratou os Autores como filhos para efeitos do disposto no n°4 do artigo 1817° do Código Civil, aplicável às acções de investigação de paternidade por força do disposto no artigo 1873°.
De observar ainda que a questão agora suscitada, relativa ao n°13 dos factos assentes , não constituiu objecto de recurso de apelação e assim, de qualquer modo não podia dela ser agora tomado conhecimento.
3.2 Caducidade da acção
Não se tendo verificado a interrupção voluntária do tratamento dos Autores como filhos, por parte do E, a acção devia ter sido proposta dentro do ano posterior à morte daquele (artigos 1817°, n°4 e 1873° do Código Civil). Ora, a acção foi proposta em 11 de Fevereiro de 1998, ou seja, menos de um ano depois de ter falecido o pretenso pai (28 de Dezembro de 1997).
É , assim, manifesta a inexistência de caducidade.
3.3 Nulidade do acórdão recorrido
Entende a Recorrente que o acórdão recorrido, mesmo que não pudesse ter em conta os depoimentos gravados, devia ter procedido à apreciação dos outros meios de prova constantes dos autos (os depoimentos escritos e a prova documental), o que o não fez . Encontra-se, pois, ferido da nulidade prevista na alínea d) do artigo 668°, do Código de Processo Civil.
Importa observar a este respeito que, face ao disposto no artigo 712°, n°1 do mesmo Código, a Relação não podia alterar a matéria de facto dada como provada. E, por isso, no acórdão em crise se escreve: "quanto ao erro de julgamento por erro nos motivos em que assenta a decisão, tal não se pode dar como verificado face à rejeição do recurso da matéria de facto".
Não existe, pois, a omissão de pronúncia pretendida pela Recorrente.
3.4 Artigo 690° A do Código de Processo Civil
Começou o acórdão recorrido por observar a este respeito ser aplicável no caso dos autos a redacção do artigo 690° A anterior à introduzida pelo Decreto-Lei n°183/2000, que impunha ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda. O que a Recorrente não fez, limitando-se a remeter para o início e o fim da gravação de cada depoimento, que depois apreciou criticamente.
Considera a Recorrente que mesmo a assim se entender devia ter sido convidada, à semelhança do que estabelece o artigo 690°, n°4, a corrigir o recurso.
A este respeito importa observar que se é certo existir jurisprudência deste Tribunal, que a Recorrente cita, no sentido que pretende, como salienta o acórdão deste Supremo de 20 de Maio de 2004, processo n°122/04 ela é minoritária e não deve ser seguida.
Com efeito, se o legislador tivesse pretendido aplicar, no âmbito do artigo 690° A o regime previsto no artigo que precede o artigo 690°, n°4, tê-lo-ia dito expressamente. Não o fez certamente por entender que o convite ao recorrente para completar o requerimento de recurso se prestava a chicanas e atrasos processuais, como bem o referido acórdão demonstra.
Termos em que se nega a revista.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 25 de Novembro de 2004
Moitinho de Almeida
Ferreira de Almeida
Abílio Vasconcelos