Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
226/09.1YFLSB
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA
BENS COMUNS DO CASAL
APROPRIAÇÃO
ACÇÃO PENAL
PEDIDO DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL
ABSOLVIÇÃO CRIME
DANOS PATRIMONIAIS
REPARAÇÃO
Data do Acordão: 05/28/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :


I - Estando provado que o arguido e a assistente/demandante casaram no regime de comunhão de adquiridos e que, durante a constância do matrimónio, o casal acumulou poupanças que provinham única e exclusivamente dos rendimentos do trabalho de ambos e que constituíam, assim, bens comuns do casal, das quais o arguido se apropriou em proveito próprio e exclusivo, sem conhecimento ou consentimento da assistente, não se verifica o crime de abuso de confiança.

II - Tratando-se de «“património colectivo” o direito cabe a cada uma das pessoa por completo sem que se verifique a sua divisão em quotas ideais; por isso, abuso de confiança só será aqui possível se e quando o agente, uma vez feita a divisão, ultrapassar a parte que lhe cabe» (Comentário Conimbricense, Tomo II, p. 98).

III - A questão, portanto, não pode colocar-se no plano criminal, através de um crime que tem como elemento típico a inversão do título de posse ou detenção, que no caso não de verificou, mas no plano cível, pois, ao contrário do que diz a decisão recorrida, o arguido, na qualidade de cônjuge, portanto, com legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal, não podia “dar-lhe(s) o destino que bem entendesse”, mas administrá-los no interesse do casal (art.ºs 1678.º, n.º 3 e 1682.º, n.º 4, do CC).

IV – Se é certo que, conforme o disposto no art.º 71.º do CPP, o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, tem de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado, não é por não se apurarem na sentença os elementos constitutivos do crime que desaparece, automaticamente, o dever de indemnizar.

V - Com efeito, o art.º 377.º, n.º 1, do mesmo código, dispõe que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo de, nos termos do n.º 3 do art.º 82.º, poder remeter as partes para os meios comuns.

VI - Portanto, tendo o STJ, anteriormente, ordenado que a Relação retirasse da procedência do recurso quanto à parte criminal (absolvição pelo crime) as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, teria aquele tribunal de verificar se, tendo deixado de subsistir a responsabilidade civil fundada na prática de um crime, poderia persistir responsabilidade civil fundada na prática de um acto ilícito de outra natureza ou injunção prevista no C. Civil.

VII - Nos termos do art.º 1682.º, n.º 4, do CC, «Quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais».

VIII - «Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente (...) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (art.º 483.º, n.º 1, do CC). Ora, «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art.º 562.º).

IX - No caso, a forma de reparar o dano causado é, especificamente, a fixada pelo art.º 1862.º, n.º 4: a atribuição à meação do cônjuge administrador (dos bens móveis comuns alienados gratuitamente sem consentimento do outro) do «valor dos bens alheados». Ante a «reconstituição natural» configurada por esta disposição legal, torna-se dispensável, pois, a indemnização em dinheiro (art.º 566.º, n.º 1) a que as instâncias, escusadamente, lançaram mão.

X - Assim sendo, o arguido não deve ser condenado na indemnização fixada na 1ª instância, mas a ter de relacionar no processo de inventário em curso (por apenso à acção de divórcio), por conta da sua meação, o valor dos bens alheados (€ 241 082).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

1. A foi julgado pela 3ª Vara Criminal do Porto, pronunciado pela prática de um crime de abuso de confiança p. e p. pelo artigo 205.º, n.ºs 1 e 4, al. b), com referência à al. b) do artigo 202º, ambos do C. Penal.
A assistente B, a fls. 340 a 342, com os demais sinais nos autos, havia formulado pedido de indemnização civil contra o arguido, pedindo que fosse condenado a pagar-lhe a quantia de € 120.540,80, correspondente a metade do valor dos bens comuns do casal de que se apropriou, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, até integral e efectivo pagamento.
Por acórdão de 15 de Fevereiro de 2007, aquele tribunal condenou o arguido na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com a condição de, no prazo de 30 (trinta) dias, contados do trânsito em julgado deste acórdão, comprovar nos autos ter efectuado o pagamento integral da indemnização em que também foi condenado a pagar à assistente, incluindo os respectivos juros; condenou-o ainda a pagar à assistente a quantia de 120 540,80€ (cento e vinte mil e quinhentos e quarenta euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados sobre as quantias 102 439,03 € (cento e dois mil e quatrocentos e trinta e nove euros e três cêntimos), 10 000,00 € (dez mil euros) e 8 101,77€ (oito mil e cento e um euros e setenta e sete cêntimos), desde, respectivamente, 02.12.2002,07.02.2003 e 20.02.2003, às taxas legais sucessivas de 7% e 4%, estas nos termos do disposto nas Portarias nºs 263/99, de 12.04 e 291/2003, de 8.04, até integral e efectivo pagamento.

2. O arguido recorreu dessa decisão para o Tribunal da Relação do Porto, mas limitou-se a pedir a sua absolvição na parte penal.
O Tribunal da Relação do Porto, por acórdão de 12/09/2007, concedeu provimento ao recurso e revogou a decisão recorrida, absolvendo o arguido do crime que lhe havia sido imputado.
Do acórdão da Relação do Porto recorreu uma primeira vez a Assistente para o STJ, alegando, entre outras coisas, que o arguido não impugnara a condenação cível e acabando por pedir a revogação do acórdão recorrido, com a manutenção, no todo ou em parte, do acórdão proferido pela 1ª instância.
O STJ, por acórdão de 28 de Maio de 2008 (proc. n.º 131/08-3), considerou que, nos termos do artigo 403°, n° 3, do CPP, «A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida». O acórdão recorrido limitou-se a revogar a decisão recorrida absolvendo o arguido do crime de abuso de confiança pelo qual havia sido condenado, nada dizendo sobre o pedido cível. Os factos imputados ao arguido, mesmo que na óptica de simples demandado, configuram ilícito civil, violador de direitos da demandante e causador de prejuízos à mesma, estando-se manifestamente fora do campo da responsabilidade contratual. O acórdão recorrido não cumpriu a injunção legal, pois tinha o dever de retirar da procedência do recurso, ou seja, da absolvição criminal, as consequências que daí adviriam para a parte cível. O acórdão recorrido omitiu por completo qualquer alusão, referência ou consideração sobre a questão, que devia conhecer. E, assim, declarou nulo o acórdão da Relação e ordenou que este Tribunal se pronunciasse sobre a questão cível.
O Tribunal da Relação do Porto, por novo acórdão, agora de 22/10/2008, considerou que “no caso concreto dos autos entendeu-se a fls. 577 que sendo o arguido «propríetárío» ainda de tais bens podia dar-lhe o destino que bem entedesse e assim concluiu-se que o recorrente não cometeu o crime de abuso de confiança porque aqueles bens móveis referidos não lhe tinham sido entregues por título não translatívo de propriedade, antes eram dele. Poder-se-á dizer que não estando verificados os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança e ínverífícado este, também o arguido não está obrigado a reparar os prejuízos ou danos que causou à assistente. Quer isto dizer que o pedido civil formulado pela mesma é obviamente improcedente”. E, assim, decidiu, no suprimento da nulidade apontada, absolver também, para além do mais, o arguido do pedido de índemnízação civil formulado pela assistente.

3. Do acórdão de 22/10/2008 recorre agora a Assistente para o STJ e, da sua motivação, extrai as seguintes conclusões:
1ª- Os factos provados nos autos mostram que esta não é uma situação normal de administração de bens comuns do casal;
2ª- Deles resulta uma actuação por parte do arguido perfeitamente dirigida à apropriação do que não lhe pertencia, e disso tendo perfeita consciência;
3ª- A conduta do arguido é penalmente relevante;
4ª- Os factos provados, em nosso entender, mostram que com a conduta do arguido se está perante a acção típica, ilícita, culposa e punível, conforme a previsão do art. 205°, do Cód. Penal, a que é subsumível;
5ª- Verificados estão, pois, os elementos objectivos e subjectivos de imputação ao arguido como agente da prática do crime por que foi condenado em 1ª Instãncia;
6ª Acresce que o arguido, como requerido, não impugnou a decisão sobre o pedido de indemnização civil, que o condenou a pagar à assistente, como requerente, a quantia de 120.540,80 € acrescida dos juros legais até efectivo e integral pagamento;
7ª- E não o tendo feito, sobre tal decisão formou-se caso julgado;
8ª- Tanto mais que tal condenação pode ter lugar, mesmo em caso de absolvição;
9ª- De todo o modo, sempre estão verificados os pressupostos para que deva ter lugar a condenação do arguido na indemnização peticionada.
10ª- Conforme resulta de toda a matéria dada como provada e dos fundamentos do douto acórdão da 1ª Instância, que, assim, deverá ser mantido.
11ª- Consideram-se violadas as disposições dos art.s 205°, n° 1, e n° 4, al. b), com referência ao disposto no art. 202°, al. b) ambos do Cód. Penal; art.s 377°, n° 1, 84°, do Cód. Proc. Penal; 684°, n°s 2 e 3, do Cód. Proc. Civil.
Termos em que, e nos mais de direito, requer a V. Exas. seja dado provimento ao presente recurso, e, revogando-se o douto acórdão recorrido, manter-se o douto acórdão proferido pela 1ª Instância, no todo ou em parte, conforme conclusões supra - com as legais e inerentes consequências.

4. O M.º P.º, quer no Tribunal da Relação, quer no STJ, defendeu que o recurso, na parte criminal, não merecia provimento.
O arguido apresentou extemporaneamente a sua resposta ao recurso, mas depois pronunciou-se nos termos do art.º 417.º, n.º 2, do CPP, dizendo que os bens em causa já não existiam à data do decretamento do divórcio, pelo que não cometeu o crime de abuso de confiança. Por outro lado, indicou que a questão cível (reportando-se aqui ao inventário para separação de meações por apenso à acção de divórcio) transitou em julgado.
Porém, a Assistente, nos termos do referido art.º 417.º, n.º 2, juntou fotocópia de uma decisão da Relação do Porto a ordenar o prosseguimento da reclamação por ela apresentada no dito processo cível (de meação de bens), contra a relação de bens que o cabeça de casal entregara.

5. Não tendo sido requerida audiência, foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir.

As principais questões a decidir são:
1ª- Os factos provados configuram o crime de abuso de confiança imputado ao arguido?
2ª- Há obrigação de indemnizar por parte do arguido, apesar da absolvição criminal?

FACTOS PROVADOS NA 1ª INSTÂNCIA

1- O arguido e a assistente B casaram no regime de comunhão de adquiridos, em 10 de Agosto de 1974;
2- Durante a constância do matrimónio, o casal acumulou poupanças que provinham única e exclusivamente dos rendimentos do trabalho de ambos e que constituíam, assim, bens comuns do casal;
3- Em 29-01-2003, o casal possuía, em conta sedeada no Banco Espírito Santo, agência do Campo Alegre, com o NIB ..., os seguintes valores em Euros:
- aplicações a prazo = 6 454,96 €
- fundos de investimento = 16 982,54 €;
4- Para além disso, até 2-12-2002, detinham o montante de 221 081,61 Euros aplicados em Certificados de Aforro emitidos pelo Instituto de Gestão do Crédito Público;
5- Em finais de 2002, o casamento começou a entrar em crise, sucedendo-se as discussões e as zangas;
6- O arguido, prevendo a separação eminente, decidiu apoderar-se das economias do casal, sem o conhecimento e autorização da sua esposa;
7- Para tal, aproveitou o facto de ser ele o administrador dos investimentos existentes, pois era o titular de todos os certificados de aforro, sendo também ele quem detinha em seu poder os ditos certificados e o único a movimentar, na prática, a conta conjunta sedeada no BES, dispondo em exclusivo dos cheques e dos dois cartões "Multibanco";
8- No dia 02-12-2002, o arguido procedeu ao resgate de parte do montante aplicado em certificados de aforro, concretamente a quantia de 204 878,06 Euros, que lhe foi paga na estação dos CTT da Boavista, através da emissão do cheque de fls. 241, sacado sobre o BES, agência da Rotunda;
9- De imediato, o arguido dirigiu-se à agência bancária referida onde procedeu ao levantamento do cheque, levando consigo a quantia em numerário;
10- Durante o mês de Fevereiro de 2003, o arguido procedeu ao levantamento das aplicações depositadas no BES;
11- Assim, em 7-2-2003 procedeu ao resgate dos fundos investidos na aplicação "Gespatrimónio Rendimento" no montante de 16 046,19 Euros, e à transferência do montante de 6 000 Euros da conta a prazo n° ...;
12- Ordenou o crédito dos referidos montantes na conta à ordem n° ..., e levantou-os através da emissão e saque do cheque n° ..., datado do mesmo dia - 7-2-2003 - no valor de 20 000,00 Euros;
13- Em 20-2-2003, o arguido actuando da forma acima descrita procedeu ao resgate do remanescente de 16 203,55 Euros titulado por certificados de aforro, recebendo o cheque emitido pelos CTT, junto por cópia a fls. 242 que levantou na agência do BES da Rotunda da Boavista e levou consigo a quantia levantada, em numerário;
14- No total arguido levantou valores pertencentes ao casal no montante de 241 081,61 Euros.
15- Em 25-03-2003, o arguido abandonou o lar conjugal e pouco tempo depois instaurou contra a sua mulher acção de divórcio litigioso que, sob o n° 721/03.6TMPRT, correu termos no 2o Juízo do Tribunal de Família do Porto;
16- Por sentença de 22-10-2004, foi decretado o divórcio do casal, ficando decidido:
«1o) julgar totalmente improcedente por não provado o pedido de divórcio formulado pelo Autor e em conformidade do mesmo absolver a Ré;
2o) julgar procedente por provado o pedido de divórcio formulado pela Ré e por culpa única e exclusiva do Autor (aqui arguido) declarar dissolvido o casamento entre ambos;
3o) julgar procedente por provado o pedido de indemnização formulado pela Ré e em conformidade condenar o Autor a pagar aquela e a tal título a quantia de 4.000 €;
4º) por fim considerar o Autor como litigante de má fé e em consequência condenar o mesmo no pagamento da multa de 4 UC e ainda numa indemnização à Ré que fixo em 500 €.»
17- No âmbito do Processo de Inventário que sucedeu ao divórcio, e depois de o arguido, na qualidade de cabeça de casal, ter apresentado a relação de bens omissa quanto aos montantes levantados, veio a assistente a confirmar que tinha sido efectivamente desapossada das economias pertencentes ao casal e, consequentemente, da sua meação;
18- Com efeito, o arguido aproveitou o facto de lhe estar tacitamente confiada a administração das poupanças do casal, para, em manifesto prejuízo da assistente, se apoderar dos valores correspondentes à meação desta nas referidas poupanças, como de facto se apoderou, e fez seus;
19- O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito consumado de fazer seus valores que não lhe pertenciam, e de causar prejuízo à sua mulher, ora assistente;
20- O arguido não tem antecedentes criminais;
21- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
22- Sobre o carácter, a personalidade e as condições pessoais do arguido apurou-se a seguinte factualidade:
O processo de desenvolvimento psicossocial do arguido decorreu em meio urbano, num contexto familiar estruturado. Sendo o único filho de um casal em que ambos os membros tinham uma situação profissional estável, usufruiu de uma condição económica satisfatória que lhe permitiu prosseguir o percurso escolar até ao ensino superior.
Concluiu o bachalerato na área da engenharia no Instituto Superior de Engenharia do Porto, após o cumprimento do Serviço Militar Obrigatório, integrando de seguida o mercado do trabalho.
A experiência e inserção laboral mais valorizada são os 25 anos de trabalho desempenhado na "C”, onde desempenhou funções como chefe de produção, o que implicou a sua integração num horário de trabalho por turnos. Foi neste contexto que reintegrou o sistema de ensino superior, obtendo a licenciatura em 1997.
Após ter abandonado o lar conjugal passou a residir sozinho na habitação da sua mãe, a qual se encontra num lar para pessoas idosas. Tem dois filhos desta união. Os filhos são ambos indivíduos adultos e detentores de títulos académicos de grau superior. O relacionamento com os descendentes são de proximidade afectiva.
Em termos sociais, junto das pessoas com quem se relaciona, goza de uma imagem muito positiva. Apesar de se encontrar reformado, continua a manter contactos frequentes com colegas e superiores, alguns dos quais fazem também parte de um grupo com quem é usual praticar desporto aos fins de semana.
2- FACTOS NÃO PROVADOS – Com relevância para a decisão da causa não emergiram provados quaisquer outros factos, designadamente que o arguido dividiu com a assistente a maior parte do dinheiro que o casal possuía.

QUESTÃO PENAL

Sobre esta questão, o tribunal recorrido – que confirmou os factos provados - disse o seguinte:
«Está provado que a assistente B e o recorrente casaram no regime de comunhão de adquiridos e que durante a constância do matrimónio, o casal acumulou poupanças que provinham única e exclusivamente dos rendimentos do trabalho de ambos e que constituíam, assim, bens comuns do casal. E os bens comuns do casal passam por aplicações a prazo, fundos de investimento e certificados de aforro. Estamos a falar de bens fungíveis e são estes os únicos bens que o casal - recorrente e assistente - possuíam não havendo bens trazidos por cada um deles para a constância do matrimónio.
É inquestionável que face aos factos dados como provados estamos perante bens comuns do casal o que permite dizer que tais bens pertencem a um património comum constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges que não estejam exceptuados por lei. Os bens referidos não estão entre as excepções consignadas na lei pelo que ambos os cônjuges têm sobre tais bens o domínio e a posse.
A propósito de um caso semelhante, embora se discutisse mais o crime de furto, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães proferido no processo n.º 141/01 do 1º Juízo da Comarca de Ponte de Lima relatado pelo Ex.mo Desembargador Francisco Marcolino cujo conteúdo se seguirá de perto e que se ajusta perfeitamente ao caso em análise. Aí se diz em dada altura “em vida do autor da herança, os herdeiros legitimários não têm o verdadeiro direito à herança mas antes uma expectativa jurídica “acompanhada de direitos menores, instrumentais, que precisamente permitem ao interessado agir concretamente neste ou naquele sentido em defesa do seu interesse” – Inocêncio Galvão Teles in Direito das Sucessões, Noções Fundamentais, 4ª edição, pág. 89. Mas podem por força dessa expectativa ainda em vida do “de cujus” por exemplo, arguir uma venda simulada, na doação como podem requerer a redução de doações por inoficiosidade. São tudo instrumentos jurídicos de ordem civil que nada têm a ver com o processo penal.”
Voltando ao caso dos autos, e como já disse, o arguido estava casado com a assistente em regime de comunhão de adquiridos e todos aqueles bens móveis já referidos, foram por ambos adquiridos na constância do matrimónio o que quer dizer que pertence a ambos em comum, não havendo uma presunção de metade para cada um deles. Quer isto dizer que um deles pode dispor da sua totalidade.
Ainda de acordo com os factos provados sob o n.ºs 3 e 4, o recorrente e assistente eram titulares dos mesmos, só que o recorrente conforme factos provados sob os n.ºs 8, 9, 10, 11, 12 e 13 e de cujos bens era “proprietário” tinha a sua posse podendo dar-lhe o destino que bem entendesse; e o recorrente de acordo com os factos dados como assentes sob os números 8 a 13, sozinho deu a tais bens o destino que bem entendeu.
E como se diz no acima citado acórdão da Relação de Guimarães “se o fez com intuito de prejudicar a legitima da assistente, deverá esta, no competente processo, forçá-lo a relacionar essas quantias”. Mas daqui não pode extrair-se a conclusão de que o arguido praticou um qualquer facto ilícito típico.
Ao encontro da tese desenvolvida no presente acórdão podemos ainda citar Comentário Conimbricense do CP, parte especial, Tomo II a folhas 98, onde se diz o seguinte:
“Algumas dificuldades podem suscitar a determinação do carácter alheio da coisa para efeito de abuso de confiança. Não pelo facto de o preceito em comentário não referir expressamente o carácter alheio da coisa… o elemento típico “apropriação” oferece base textual bastante à ideia de que se não pode verificar “apropriação de coisa própria”. Mas sim pela circunstância de – uma vez que a posse ou detenção da coisa tem que preexistir à apropriação – frequentemente o agente, já mesmo antes da apropriação, se comportar exteriormente, relativamente à coisa, uti dominus, como proprietário. Decisivo é em todos os casos o ponto de vista do direito civil: alheia é toda a coisa que, segundo este direito, pertence, pelo menos em parte, a outra pessoa que não o agente, sendo por isso integrado o elemento típico a exame por coisas que o agente é (apenas) comproprietário… Diverso será já o caso, de coisas postas na chamada comunhão de mão comum (vulgarmente bens comuns do casal, sociedades não personalizadas, associações sem personalidade jurídica, etc.) … nestes casos de “património colectivo” o direito cabe a cada uma das pessoa por completo sem que se verifique a sua divisão em quotas ideais; por isso, abuso de confiança só será aqui possível se e quando o agente, uma vez feita a divisão, ultrapassar a parte que lhe cabe”.
Ora, como já se disse, o arguido era “proprietário” ainda de tais bens e como tal podia dar-lhe o destino que bem entendesse.
Tudo visto e ponderado, é forçoso concluir que o recorrente não cometeu o crime de abuso de confiança porque aqueles bens móveis referidos não lhe tinham sido entregues por titulo não translativo de propriedade, antes eram dele. Obviamente que a questão não pode ser resolvida no foro penal mas antes no cível.
Por tudo quanto vem sendo exposto, procede o recurso do arguido.»
Aceita-se a solução acolhida na Relação, mas tal como estruturada pela doutrina ali citada, pois parte da fundamentação restante enferma de imprecisões dogmáticas (ao equiparar património hereditário a património conjugal comum; ao afirmar que os bens comuns «pertencem a ambos em comum» [e não ao património colectivo contitulado por ambos os cônjuges e constituído pelos bens comuns do casal]; ao afirmar – erradamente – que «um deles pode dispor da sua totalidade»; ao afirmar que o arguido «era “proprietário” de tais bens e como tal podia dar-lhe o destino que bem entendesse»).
A recorrente não adianta qualquer argumento válido contra esta tese, limitando-se a dizer que «os factos provados nos autos mostram que esta não é uma situação normal de administração de bens comuns do casal; deles resulta uma actuação por parte do arguido perfeitamente dirigida à apropriação do que não lhe pertencia, e disso tendo perfeita consciência »
Mas, se é certo que o arguido não agiu de acordo com um “modo normal de administração de bens comuns do casal”, não é possível afirmar-se que se apropriou “do que não lhe pertencia”, pois que os bens integravam-se na «chamada comunhão de mão comum (vulgarmente bens comuns do casal, etc.) [que] se insere, dogmaticamente, no chamado «património colectivo», em que «o direito cabe a cada uma das pessoas por completo sem que se verifique a sua divisão em quotas ideais» (Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I-224).
A questão, portanto, não pode colocar-se no plano criminal, através de um crime que tem como elemento típico a inversão do título de posse ou detenção, que no caso não de verificou, mas no plano cível, pois, ao contrário do que diz a decisão recorrida, o arguido, na qualidade de cônjuge, portanto, com legitimidade para a prática de actos de administração ordinária relativamente aos bens comuns do casal, não podia “dar-lhe(s) o destino que bem entendesse”, mas administrá-los no interesse do casal (art.ºs 1678.º, n.º 3 e 1682.º, n.º 4, do CC).
Note-se, contudo, que se no momento histórico a que se reportam os autos (o do levantamento pelo arguido dos certificados de aforro e dos depósitos a prazo do casal), os factos não podem configurar «abuso de confiança», isso não obsta a que, «uma vez feita a divisão», em curso, dos bens comuns do casal, esse crime venha a configurar-se caso o ora arguido – como prenunciam os «actos preparatórios» por ele já levados a cabo - «ultrapasse a parte que lhe cabe» (Comentário Conimbricense, Tomo II, anotação 10.º ao art.º 205.º).

QUESTÃO CÍVEL

A 1ª instância, na parte cível, condenou o arguido a pagar à assistente a quantia de 120 540,80€ (cento e vinte mil e quinhentos e quarenta euros e oitenta cêntimos), acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados sobre as quantias 102 439,03 € (cento e dois mil e quatrocentos e trinta e nove euros e três cêntimos), 10 000,00 € (dez mil euros) e 8 101,77€ (oito mil e cento e um euros e setenta e sete cêntimos), desde, respectivamente, 02.12.2002,07.02.2003 e 20.02.2003, às taxas legais sucessivas de 7% e 4%, estas nos termos do disposto nas Portarias nºs 263/99, de 12.04 e 291/2003, de 8.04, até integral e efectivo pagamento.
No recurso que o arguido interpôs para a Relação não impugnou a parte cível da sentença condenatória e, talvez por isso, a Relação não se pronunciou sobre tal matéria (cível), limitando-se a conceder provimento à parte criminal e a absolver o arguido/recorrente do crime que lhe era imputado.
Contudo, após recurso da Assistente, o STJ, por acórdão de 28 de Maio de 2008 (proc. n.º 131/08-3), considerou que, nos termos do artigo 403°, n° 3, do CPP, «A limitação do recurso a uma parte da decisão não prejudica o dever de retirar da procedência daquele as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida». O acórdão recorrido limitou-se a revogar a decisão recorrida absolvendo o arguido do crime de abuso de confiança pelo qual havia sido condenado, nada dizendo sobre o pedido cível. E, por isso, declarou a nulidade do acórdão da Relação na parte em que não se pronunciou sobre a condenação cível e mandou-o repetir para sanação desse vício.

A Relação, no acórdão recorrido, para sanar o vício, disse o seguinte:
«Como é sabído o pedido de indemnização cívíl apenas pode ser deduzido em processo penal se fundado na prátíca de um crime tudo ao abrígo do disposto no art.º 71.ºdo CPP e acórdão de uníformízação de jurisprudêncía de 17/06/99, in DR, I-série de 03/08/99.
De acordo com o disposto no art.º 129° do CPP "a indemnização de perdas e danos emergentes de um críme é regulada pela Leí civil". Certo é que esta norma deve ser interpretada no sentido de que a indemnização de perdas e danos emergente da práfica de um crime é regulada quantitativamente e nos seus pressupostos pela Lei civil e tais pressupostos são os dos arts. 483° e 562° e segs. do Código Civil.
Diz o art.º 483.°, n.º 1, do Código Cívíl: "aquele que com dolo ou mera culpa víolar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer outra disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação". E da análíse deste preceito conclui-se que os pressupostos da obrigação de índemnízação por factos ílícítos são o facto, a ilicitude, a imputação do facto causante, o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Como diz o Prof. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal de 1996, Volume I, pág. 11, "…o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, há-de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado".
No caso concreto dos autos entendeu-se a fls. 577 que sendo o arguido "proprietário" ainda de tais bens podia dar-lhes o destino que bem entedesse e assim concluiu-se que o recorrente não cometeu o crime de abuso de confíança porque aqueles bens móveis referidos não lhe tinham sido entregues por título não translativo de propriedade, antes eram dele.
Por tudo isto poder-se-á dizer que não estando verificados os elementos constitutivos do crime de abuso de confiança, e inverificado este, também o arguido não está obrígado a reparar os prejuízos ou danos que causou à assistente. Quer isto dizer que o pedido civil formulado pela mesma é obviamente improcedente.»

O raciocínio do acórdão recorrido, neste ponto, não se mostra de acordo com as normas processuais relativas ao pedido cível conexo com o criminal.
Na verdade, se é certo que, conforme o disposto no art.º 71.º do CPP, o pedido de indemnização civil, a deduzir no processo penal, tem de ter por causa de pedir os mesmos factos que são também pressuposto da responsabilidade criminal e pelos quais o arguido é acusado, não é por não se apurarem na sentença os elementos constitutivos do crime que desaparece, automaticamente, o dever de indemnizar.
Com efeito, o art.º 377.º, n.º 1, do mesmo código, dispõe que a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo de, nos termos do n.º 3 do art.º 82.º, poder remeter as partes para os meios comuns.
Portanto, tendo o STJ ordenado que a Relação retirasse da procedência do recurso quanto à parte criminal as consequências legalmente impostas relativamente a toda a decisão recorrida, teria aquele tribunal de verificar se, tendo deixado de subsistir a responsabilidade civil fundada na prática de um crime, poderia persistir responsabilidade civil fundada na prática de um acto ilícito de outra natureza ou injunção prevista no C. Civil.
O próprio STJ havia dado sinais nesse sentido, ao afirmar que “os factos imputados ao arguido, mesmo que na óptica de simples demandado, configuram ilícito civil, violador de direitos da demandante e causador de prejuízos à mesma, estando-se manifestamente fora do campo da responsabilidade contratual.”
As consequências que a Relação devia ter retirado da absolvição criminal quanto à parte cível (de que não fora interposto recurso) eram as de que já não subsistia responsabilidade civil fundada na prática de um crime, antes a obrigação do arguido repor, [do modo legalmente previsto], o «equilíbrio» patrimonial entre os cônjuges que com a sua actuação pusera em causa.
A 1ª instância dissera o seguinte:
« No caso vertente, o arguido prevendo a sua separação eminente da assistente, com a qual era casado no regime de comunhão de adquiridos, sem o conhecimento e a autorização dela, procedeu ao resgate dos certificados de aforro de uma conta de aforrista do Instituto de Gestão do Crédito Público que era titular, e ao levantamento das quantias que se encontravam depositadas no BES em conta de que eram co-titulares.
O arguido aproveitou-se do facto de ser ele o administrador das poupanças do casal, pois era o detentor de todos os certificados de aforro e o único a movimentar, na prática, quer o dinheiro titulado em certificados de aforro, quer a conta conjunta sedeada no BES, dispondo em exclusivo dos cheques e dos dois cartões "Multibanco", para, em manifesto prejuízo da assistente, se apoderar dos valores correspondentes à meação desta nas referidas poupanças, como de facto se apoderou, e fez seus. Na verdade, o arguido para além de ter efectuado o resgate dos certificados de aforro e procedido ao levantamento das quantias do BES, no inventário para separação de meações que se seguiu ao processo de divórcio, não incluiu os valores em causa na relação de bens que apresentou, como lhe competia, uma vez que constituíam economias efectuadas pelo casal ao longo dos anos e provinham exclusivamente de rendimentos do trabalho, sendo, pois, bens comuns do casal conforme se resulta do disposto nos artigos 1722º e 1724º, al. a) do Código Civil.
In casu, como se vê, apenas está em causa dinheiro, o qual constitui um bem de natureza fungível e facilmente divisível, sendo certo que, por tal motivo, cada um dos cônjuges sabia desde logo e à partida quanto lhe cabia na futura divisão. O arguido agiu de forma voluntária, livre e consciente, com o propósito consumado de fazer seus valores que não lhe pertenciam e de causar prejuízo à sua mulher, ora assistente. E bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.»

Nos termos do art.º 1682.º, n.º 4, do CC, «Quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais».
«Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente (...) qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação» (art.º 483.º, n.º 1, do CC). Ora, «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» (art.º 562.º). No caso, a forma de reparar o dano causado é, especificamente, a fixada pelo art.º 1862.º, n.º 4: a atribuição à meação do cônjuge administrador (dos bens móveis comuns alienados gratuitamente sem consentimento do outro) do «valor dos bens alheados». Ante a «reconstituição natural» configurada por esta disposição legal, torna-se dispensável, pois, a indemnização em dinheiro (art.º 566.º, n.º 1) a que as instâncias, escusadamente, lançaram mão.
Assim sendo, o arguido não deve ser condenado na indemnização fixada na 1ª instância, mas a ter de relacionar no processo de inventário em curso, por conta da sua meação, o valor dos bens alheados (€ 241 082).
Quanto à questão cível, portanto, tem procedência parcial o recurso da demandante.

6. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso da Assistente e, em consequência, manter a absolvição do arguido pelo crime que lhe era imputado, mas condená-lo a relacionar no processo de inventário em curso, na sequência do divórcio do casal, o valor dos bens alheados, que aí se decidirá se deve ou não ser actualizado e a conferi-lo na sua meação.
Quanto à parte criminal, fixa-se em 5 UC a taxa de justiça a cargo da Assistente (art.º 515.º, n.º 1-b, do CPP).
Quanto à parte cível, as custas ficam a cargo do arguido-demandado.
Notifique.

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Maio de 2009
Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa
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