Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4183/16.0T8VNG-E.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: ANA RESENDE
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
TRADIÇÃO DA COISA
POSSE
DETENÇÃO
ÓNUS DA PROVA
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário :

I- A traditio consubstancia-se como um poder de facto sobre a coisa que o promitente-vendedor confere ao promitente-comprador, traduzindo-se num conjunto de atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo da coisa.

II- Pode manifestar-se através de múltiplos comportamentos, cuja significação social e de acordo com as regras gerais da experiência, revelem o elemento negativo consubstanciado no abandono da coisa pelo seu anterior detentor, e que tenham como correspondência a apprehensio pelo novo detentor, enquanto elemento positivo.

III- No caso da entrega das chaves do imóvel, enquanto tradição simbólica, não deve entender-se que por si só se consubstancia em tal tradição da coisa, importando sim atender ao respetivo contexto, não só circunstancial, mas e sobretudo o que resulta dos termos negociados entre as partes

IV- Tendo ficado apurado que as chaves foram “facultadas” para os compradores iniciarem as obras no interior, não reunindo o imóvel todas as condições necessárias para o fim a que se destinava aquando da celebração do contrato-promessa, provado a disponibilidade das chaves tinha como finalidade permitir aos promitentes compradores realizarem obras no interior, e estabelecida uma forte restrição ao pretendido controlo material do imóvel, porquanto não podiam morar lá, enquanto não fosse realizada a escritura pública, operando então os efeitos decorrentes da venda efetuada, não se verificou assim relativamente aos Recorrentes, enquanto beneficiários, uma manifestação inequívoca do abandono da coisa pelo vendedor, não se configurando desse modo a traditio

V- A disponibilidade das chaves aos Recorrentes traduziu-se assim num ato instrumental com vista à realização das obras exigíveis, sendo que, ainda que as mesmas se mostrassem concluídas muito antes das sucessivas datas apontadas para a realização da escritura, não podiam aqueles, como detentores do imóvel, do mesmo fruir, maxime habitá-lo

Decisão Texto Integral:


REVISTA n.º 4183/16.0T8VNG-E.P1.S1

ACORDAM NA 6ª SECÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

           

I - Relatório

1. AA  e marido BB vieram deduzir verificação ulterior de créditos contra, CC, MASSA INSOLVENTE DE CC, representada pelo Senhor Administrador de Insolvência, DD, e CREDORES DO INSOLVENTE CC, pedindo:

a) Reconheça que o 1.º R. celebrou contrato-promessa pelo qual prometeu vender aos AA, livre de ónus e encargos, o prédio identificado;

b) Reconheça que nos termos do aditamento ao contrato-promessa, o 1.º R comprometeu-se a celebrar a escritura de compra e venda até ao dia 15.12.2016;

c) Reconheça que interpelada a massa insolvente, na pessoa do Administrador da Insolvência, não cumpriu tal contrato promessa, porquanto até à presente data não celebrou a escritura de compra e venda, por causas só a si imputáveis, e em consequência seja ordenada a outorga da escritura pública de compra e venda do prédio urbano acima identificado;

Caso assim não se entenda:

d) Reconhecerem os RR que os AA são credores da quantia de 88.000.00€, correspondente ao dobro do sinal entregue ao 1.º R, pelo incumprimento do contrato-promessa;

e) Bem como a reconhecerem os RR que os AA são credores da quantia de 28.706,02€, relativo ao valor das benfeitorias realizadas no prédio urbano;

f) Reconhecerem que os créditos descritos nas alíneas d) e e)  são créditos que gozam de direito de retenção, devendo o crédito no valor de 116.706,02€ verificado e graduado como privilegiado;

g) Reconhecerem os RR que os AA são credores de todas as despesas que vierem a ser realizadas, decorrentes da celebração do contrato-promessa, verificando-se e graduando-se tal crédito, o qual é de natureza privilegiada;

Caso assim também não se entenda:

h) Deve a 2ª R massa insolvente ser condenada a reconhecer que o sinal e reforço do mesmo entregue pelos AA ao 1.º R e as benfeitorias realizadas no prédio urbano consubstanciam um enriquecimento sem causa da massa insolvente, sendo esta condenada a devolver aos AA a quantia global de 72.706,02€, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a citação até efetivo pagamento.

2. Alegam para tanto, que por contrato-promessa de compra e venda, outorgado em 9.08.2016, o 1.º R, prometeu vender aos AA e estes prometeram comprar, livre de ónus e encargos, um prédio urbano, onde se encontrava implantada uma moradia, pelo preço de 220.000,00€, que seria pago, a título de sinal e princípio de pagamento a quantia de 19.000,00€, 25.000,00€, como reforço de sinal no dia 31.08.2016, e a restante parte do preço, 176.000,00€ na data da outorga da escritura definitiva de compra e venda, que seria outorgada até 15.10.2016, ficando o 1.º R. responsável pela marcação da escritura.

Os AA efetuaram os primeiros pagamentos acordados, de 19.000,00€ e 25.000,00€, a título de sinal e reforço do mesmo, tendo o 1.º R, dado a respetiva quitação.

Após a outorga do contrato-promessa de compra e venda, os AA ficaram imediatamente investidos na posse do prédio, iniciando o licenciamento camarário da edificação prevista para o prédio urbano, bem como as obras destinadas à conclusão do projeto camarário, pagando a suas expensas todas as despesas relacionadas com a construção da moradia.

Por aditamento ao contrato-promessa de compra e venda de 23.09.2016, acordaram em alterar a data da escritura, passando a ser realizada até 15.12.2016, tendo os AA despendido em obras para construir a moradia implantada no prédio urbano a quantia de 28.706,02€, encontrando-se a residir nessa moradia desde finais de Novembro de 2016.

Em 4.11.2016 tiveram conhecimento da insolvência do 1.º R, contactando este e o Administrador da Insolvência, dando conhecimento da existência do contrato-promessa, tendo por carta de 18.11.2016 notificado esse último para optar pelo cumprimento ou recusa da celebração da escritura pública de compra e venda, respondendo o mesmo em 20.22.2016 que não podia tomar qualquer decisão.

O contrato-promessa celebrado entre os AA e o 1.º R é válido e eficaz, se assim não se entender, existe um enriquecimento sem causa da massa insolvente.

Ademais tendo os AA obtido a traditio do imóvel, gozam do direito de retenção, relativamente ao crédito de 88.000,00€, correspondente ao dobro do sinal e reforço do mesmo decorrente do incumprimento do contrato-promessa de compra e venda, assim como quanto às benfeitorias no valor de 28.706,02€.

3. A massa insolvente veio contestar, alegando que se encontrava objetivamente impedida de fazer cumprir o contrato-promessa de compra venda, sendo até abusivo quanto aos demais credores, pois estaria a privilegiar um credor em detrimento do credor hipotecário.

Acresce que o contrato foi celebrado quando o Insolvente já estava privado dos poderes de administração e de disposição dos bens, geradora da ineficácia do ato praticado, não se mostrando preenchidos os pressupostos do art.º 81, n.º 6, a) e b) do CIRE.

No caso de se provar o pagamento pelos AA ao Insolvente do montante, de 44.000,00€, a título de sinal, devia ser tal quantia devolvida em singelo, desconhecendo o valor satisfeito e reclamado a título de benfeitorias.

Quanto à qualificação jurídica dos créditos reclamados, o pagamento a título de sinal deveria gozar de privilégio nos termos do art.º 755, n.º1, f) do CC, enquanto o valor relativo a benfeitorias, deveria ser reconhecido como crédito comum.

Mais invoca que o pedido a título de enriquecimento sem causa não pode ser apreciado nos presentes autos.

4. A credora Caixa Geral de Depósitos veio pronunciar-se no sentido da improcedência da ação.

5. Os AA vieram responder.

6. Realizado julgamento, foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e em conformidade:

- reconhece como eficaz em relação à massa insolvente o contrato-promessa de compra e venda celebrado em 9.08.2016, com efeitos meramente obrigacionais (sem eficácia real/tradição da coisa);

- reconhece o direito do crédito dos AA sobre a massa insolvente no montante de 44.000,00 correspondente à devolução em singelo do sinal e reforço de sinal prestado, qualificando-o como comum; e

- reconhece o direito de crédito dos AA sobre a massa insolvente no montante de, pelo menos, 28.706,02€, correspondente às benfeitorias realizadas no imóvel objeto de contrato-promessa de compra e venda, qualificando-o como comum.

7. Inconformados, vieram os AA interpor recurso de Apelação, tendo o Tribunal da Relação do Porto a julgado improcedente, confirmando a sentença sob recurso.

8. Novamente inconformados, vieram os AA recorrer de revista, formulando nas suas alegações, as seguintes conclusões: (transcritas)

I. Vem o presente recurso interposto do Acórdão do Venerando Tribunal da Relação do Porto proferido no pretérito dia 07 de Fevereiro de 2022, o qual decidiu julgar totalmente improcedente a Apelação interposta pelos Recorrentes, assim confirmando a decisão proferida pelo Mui Digno Juízo de Comércio de Vila Nova de Gaia – Juiz ....

II. A presente Revista é interposta ao abrigo da norma do artigo 14.º do CIRE, com fundamento na existência de um conflito jurisprudencial entre a Decisão recorrida e dois outros Acórdãos.

III. O Tribunal a quo deu como provado que o promitente-vendedor entregou as chaves do imóvel prometido aos promitentes-compradores, ora Recorrentes, aquando da outorga do contrato-promessa, tendo aqueles iniciado a realização de obras e passado a residir no imóvel cerca de dois meses após a celebração do único aditamento ao Contrato (vide factos provados sob os artigos 17, 23 e 30 do Acórdão recorrido).

IV. Assim, para o Tribunal a quo tais factos não são suscetíveis de integrarem o conceito de tradição («traditio»), tal como definido no artigo 1263.º alínea c) do Código Civil.

V.  O entendimento sustentado pela decisão recorrida – traduzido na questão de saber que factos integram o conceito de traditio – encontram-se em manifesto antagonismo com os seguintes arestos («acórdãos-fundamento»): (i) Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.01.2013, relatado pelo Desembargador Henrique Antunes, processo n.º 511/10.0TBSEI-E.C1; (ii) Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.03.2013, relatado pelo Conselheiro Azevedo Ramos, processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1;

VI. Ao contrário do que decidiu o Acórdão recorrido, os mencionados arestos consideram – perante factualidade essencialmente idêntica – que a aquisição da posse mediante tradição se basta com a mera entrega das chaves aos promitentes-adquirentes – posição essa desmentida pelo Acórdão a quo que, apesar de julgar provada tal factualidade, considerou-a insuficiente para concretizar o conceito de tradição.

VII. O desfecho de cada uma das orientações não é indiferente para os Recorrentes perante a insolvência do promitente-vendedor, na medida em que contende com a classificação do crédito que aqueles detêm na insolvência, variando desde a hipótese de se estar perante um crédito comum, tal como sustentado na decisão recorrida ou, ao invés, um crédito privilegiado, sabendo que a probabilidade de ressarcimento do credor é substancialmente distinta consoante a graduação que couber ao respetivo crédito.

VIII. Assim, deverá a presente Revista ser integralmente admitida, posto que se encontram observados os requisitos consignados no artigo 14.º do CIRE.

IX. Não podem os Recorrentes resignar-se com a interpretação preconizada pela decisão recorrida, na medida em que a factualidade dada como provada permite considerar a aquisição da respetiva posse mediante a tradição do bem prometido.

X.  Com efeito, aos Recorrentes foi imediatamente entregue as “chaves” do imóvel, iniciaram aqueles a realização de obras (benfeitorias), solicitando, ainda, as respetivas licenças camarárias.

XI. A simples entrega das chaves é um elemento inquestionavelmente revelador da intenção de desapossamento do bem e concomitante autorização para que outrem nele fique investida: trata-se, aliás, do exemplo copiosamente citado a propósito da denominada tradição ficta, amplamente consentida entre nós (art. 1263.º, alínea c) do Código Civil).

XII. De harmonia com a abundante jurisprudência citada ao longo das Alegações, não sobejam quaisquer dúvidas – perante a factualidade provada – que o promitente-alienante pretendeu “desapossar-se” do bem e, ao invés, os Recorrentes pretenderam exercer poderes de facto sobre o imóvel, comportando-se como veros proprietários.

XIII. Por isso, mal andou o douto Tribunal a quo ao considerar que não existiu tradição do bem, razão pela qual deverá este Mui Ilustre Tribunal considerar que o contrato em tela de juízo configura um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e com traditio do bem prometido.

XIV. Tal qualificação determinará, grosso modo, duas importantes consequências: (i) aos Recorrentes, enquanto consumidores, terá de ser reconhecido o direito de retenção sobre o imóvel prometido; (ii) o crédito resultante do incumprimento do contrato-promessa deverá ser tido como crédito privilegiado, graduado primeiramente que outras garantis reais, incluindo a hipoteca.

XV. Ao decidir conforme decidiu, o Tribunal recorrido violou, ou fez errada interpretação, das normas, designadamente, dos artigos 1263.º, alínea b), 755.º, número 1, alínea f), todos do Código Civil, e artigo 47.º, número 4, alínea a) do CIRE.

Nestes termos e nos mais e melhores de Direito que V.Exas. não deixarão de, doutamente, suprir, mui respeitosamente se requer a V.Exas se dignem:

a) Admitir a presente Revista em virtude da existência de contradição de Acórdão, nos termos e com os fundamentos explanados e ao abrigo do artigo 14.º do CIRE;

b) Admitida a Revista, requer-se a V.Exas. se dignem julgá-la totalmente procedente, por provada e, em consequência, se dignem revogar o Acórdão recorrido, substituindo-o por outro quer e reconheça a celebração de um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, com tradição do bem e que, em consequência:

c) Em cumulação com o pedido anterior, mais se requer a V.Exas. se dignem reconhecer que os Recorrentes gozam do direito de retenção sobre o bem objeto da promessa, ao abrigo do disposto no artigo 755.º, alínea f) do Código Civil, nos termos e com os fundamentos aduzidos;

d) Em cumulação os pedidos anteriormente formulados sob as alíneas b) e c), requer-se a V.Exas. se dignem reconhecer que o crédito dos Recorrentes, resultante do incumprimento do contrato-promessa, configura um crédito privilegiado, devendo o mesmo ser graduado no lugar que lhe competir.

9.  O Insolvente veio pronunciar-se no sentido da inadmissibilidade do recurso.

10. A credora Caixa Geral de Depósitos pronunciou-se, também pela inadmissibilidade do recurso, e sendo admitido, pela sua improcedência,

11. Ordenada a remessa à Formação, foi proferido Acórdão que concluindo pela verificação da oposição de acórdãos, admitiu a revista excecional.

12. O Insolvente veio recorrer para o plenário do Supremo Tribunal de Justiça do Acórdão da Formação que aceitou a revista excecional, sendo proferido despacho que rejeitou liminarmente o pretendido recurso de uniformização de jurisprudência, mantido integralmente por Acórdão da Formação, rejeitando ainda a convolação em julgamento ampliado de revista.

13. O Insolvente veio apresentar reclamação a subir ao Exmo. Presidente do Supremo Tribunal de Justiça para decisão sobre a admissibilidade do recurso ampliado de revista, que por Acórdão da Formação foi considerado como incidente manifestamente infundado.

14. O Insolvente por requerimento de 19.02.2023 veio requerer a inutilidade superveniente da lide, uma vez que em 30.12.2022, os Recorrentes tinham comprado à massa insolvente, na pessoa da Administradora da Insolvência, o imóvel em causa.

15. Os Recorrentes vieram pronunciar-se no sentido do interesse no prosseguimento dos autos, invocando que sem os seus esforços financeiros nunca o imóvel teria condições de habitabilidade, que advêm das benfeitorias que realizaram e reconhecidas nos autos, tanto mais que o reconhecimento do direito de retenção sobre o imóvel, obstará a uma eventual demanda para pagamento de rendas e IMI, pelo que sempre relevará para a classificação dos créditos dos Recorrentes, legitimando sem dúvidas a ocupação do imóvel até à sua compra.

Considerando que se já se mostravam reunidos os pressupostos para a prolação nos presentes autos, face ao trânsito em julgado do Acórdão da Formação que rejeitou liminarmente o recurso para uniformização de jurisprudência, e também a requerida convolação para o julgamento ampliado de revista, requereram expressamente o prosseguimento dos autos.

16. A Administradora da Insolvência confirmou a aquisição do imóvel pelos Recorrentes[1], e embora admitindo o possível acolhimento da pretensão do Insolvente, deu nota de manutenção de litígio no que concerne à liquidação em sede do processo de insolvência, acerca da compra do imóvel e das benfeitorias realizadas no mesmo.

17. Cumpre assim apreciar e decidir, conforme o delineado no Acórdão da Formação proferido nos presentes autos.

*

II – Enquadramento facto-jurídico

1. da factualidade

O Tribunal da Relação, no Acórdão sob recurso, considerou como provada, a seguinte factualidade:

1. Por contrato-promessa de compra e venda outorgado em 09 de agosto de 2016, o 1º réu prometeu vender aos autores, livre de ónus e encargos, e estes prometeram comprar, o prédio urbano sito na Rua ..., da União de Freguesias ..., ... e ..., concelho ..., com área de 378 m2, onde se encontra implantada uma moradia de casa com cave, ..., andar e aproveitamento da cobertura, destinada a habitação, com a área de construção de 224 m2, a confrontar de Norte com Lote ...3, Sul com Lote ...1, a Nascente com Lote ...5, e de Poente com Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ..., com o número ...36, freguesia ..., concelho ..., e inscrito na matriz sob o artigo ...92 da referida União das Freguesias ..., ... e ... – cfr. documento nº... junto à PI.

2. O preço da prometida compra e venda foi de €220.000,00, quantia que seria paga da seguinte forma:

- A título de sinal e princípio de pagamento, a quantia de €19.000,00;

– A quantia de €25.000,00, como reforço do sinal, no dia 31 de agosto de 2016; e

– A restante parte do preço, a quantia de €176.000,00, na data da outorga da escritura definitiva do contrato de compra e venda – cfr. documento nº ... junto à PI.

3. Mais ficou convencionado entre o 1º réu e autores que a escritura de compra e venda seria outorgada até 15 de outubro de 2016, ficando estes responsáveis pela marcação da referida escritura- cfr. cit. documento nº ... junto à PI.

4. A prometida compra e venda foi sujeita a intervenção imobiliária pela P..., Lda., licença AMI nº ...54, a qual tratou da recolha dos elementos e informações necessárias à celebração do contrato-promessa, assim como elaborou o mesmo a fim de ser assinado pelas partes outorgantes – cfr. cit. documento nº ... junto à PI.

5. Por aditamento ao contrato-promessa de compra e venda referido, em 23 de setembro de 2016, o primeiro réu e os autores, acordaram em alterar a cláusula 4ª do referido contrato, passando a escritura de compra e venda a ter realização até ao dia 15 de dezembro de 2016 – cfr. documento nº ... junto à PI.

6. Em 04.11.2016, o 1º autor dirigiu um e-mail ao Senhor Administrador da Insolvência, dando nota da celebração do contrato-promessa de compra e venda da moradia sita na rua ... com o insolvente, solicitando uma reunião com carácter urgente – cfr. documento nº ...5 junto à PI.

7. O Senhor Administrador da Insolvência, Sr. Dr. DD, respondeu ao e-mail, em 05 de novembro de 2016, fornecendo informações sobre o processo de insolvência do 1º réu e diligenciando pela marcação de uma reunião em 08 de novembro de 2016 – cfr. doc. nº ...4, junto à PI.

8. Em 08 de novembro de 2016, os autores, através da aqui signatária, juntaram procuração forense ao processo a fim de consultar o mesmo – cfr. documento nº ...5, junto á PI.

9. No dia 08 de novembro de 2016, o 1º autor compareceu na reunião aprazada pelo Senhor Administrador da Insolvência que lhe fez uma resenha de todos os factos atinentes ao processo de insolvência do 1º réu.

10. Mais referiu o Senhor Administrador da Insolvência que tinha conhecimento do contrato promessa de compra e venda desde a Assembleia de Credores realizada no dia 28 de setembro de 2016 e que, em sua opinião, não lhe cabia optar pelo cumprimento ou recusa do contrato-promessa, quer pelo mesmo ter sido celebrado após a declaração de insolvência, quer pelo mesmo se encontrar apreendido nos autos de insolvência do 1º réu desde 23 de agosto de 2016.

11. Por carta datada de 18 de novembro de 2016, remetida por correio registado com aviso de receção, os autores notificaram o Senhor Administrador da Insolvência para optar pelo cumprimento ou recusa da celebração da escritura pública de compra e venda – cfr. documento nº ...6, junto à PI.

12. Por carta datada de 20 de dezembro de 2016, o Senhor Administrador da Insolvência respondeu aos autores que não poderia tomar qualquer decisão - documento nº ...7, junto à PI.

13. À data da outorga do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os autores e o 1º réu, não se encontrava averbada na certidão de nascimento a declaração de insolvência do 1º réu – cfr. documento nº ...8 junto à PI.

14. De igual modo, à data da outorga do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os autores e 1º réu, não se encontrava inscrita na certidão predial do prédio urbano identificado no artigo 1º supra a declaração de insolvência – cfr. cit. doc. nº ... junto à PI.

15. À data da outorga do contrato-promessa de compra e venda celebrado entre os autores e o 1º réu, encontrava-se averbada na certidão de nascimento a nomeação de um administrador judicial provisório num PER – averbamento n.º 3 de 22.04.2015 -, por despacho proferido em 18.03.2015 – cfr. doc. nº ...8 junto à PI.

16. O vendedor, ora insolvente, que foi aconselhado pelo seu advogado na altura, a vender a casa a qualquer custo porque se dissesse que estava insolvente não mais venderia a casa, pelo que, tendo o autor proposto €220.000,00, o seu advogado aconselhou-o a aceitar e o insolvente aceitou vender pelo montante proposto.

17. O contrato-promessa foi elaborado pela advogada da Imobiliária P... e o vendedor, ora insolvente, recebeu o total de €44.000,00 a título de sinal e reforço de sinal e facultou as chaves para os compradores iniciarem as obras no interior, mas não para morarem lá, isso, só quando celebrassem a escritura pública, e procederem aos procedimentos necessários junto da Câmara ....

18. O vendedor, ora insolvente, entregou os €44.000,00 que recebeu à mãe para pagamento de dívidas, nomeadamente, ao Corte Inglês e Barclays.

19. No contrato-promessa de compra e venda celebrado em 09.08.2016 e no aditamento ao mesmo efetuado em 23.09.2016, não ficou a constar a entrega das chaves, nem entrega do imóvel.

20. O A.I. procedeu em 05.08.2016 à apreensão para a massa insolvente, de dois imóveis – a residência do insolvente e o sito na ... e ora em crise – e um veículo automóvel.

21. O A.I. apenas teve conhecimento da existência do contrato-promessa em causa nestes autos celebrado em 09.08.2016, na data da realização da assembleia de credores, realizada em 26.09.2016.

22. Em novembro 2016, não havia ainda registo da insolvência na Conservatória Registo Predial. cfr. documento ... junto à PI.

23. Os autores estão a residir no imóvel desde, pelo menos, finais de novembro de 2016.

24. Na data indicada em 1), o valor de mercado do imóvel, no estado em que se encontrava, ou seja, por concluir, era, segundo as duas perícias realizadas por peritos nomeados pelo tribunal para avaliação do imóvel, a primeira de €260.000,00 e a segunda de €260.514,31, cfr. relatórios dos peritos de 20.12.2018 e 02.04.2019.

25. Na data indicada em 1), o imóvel encontrava-se em bruto, com divisórias e revestimento em tijolo e cimento, com janelas e divisórias no interior, sem portas, sem armários e exterior por acabar, sem água e sem luz, cfr. fotos juntas aos autos, nomeadamente, as juntas ao documento ...2 junto à PI, ao requerimento da CGD de 16.01.2019 e no relatório do perito de 02.04.2019.

26. Na data indicada em 1), os autores não tinham conhecimento que o vendedor EE tinha sido declarado insolvente.

27. O vendedor, ora insolvente, em momento algum, informou os autores ou a imobiliária ou quem quer que fosse, que tinha sido declarado insolvente.

28. O insolvente instaurou um PER em 09.03.2015, registado na Conservatória do Registo Civil, no qual não houve aprovação de um plano de recuperação, tendo sido proferido despacho em 30.03.2016 a ordenar a extração de certidão e remessa à distribuição como processo de insolvência, cfr. documento ...8 junto à petição inicial e apenso A.

29. Por sentença proferida em 06.07.2016 e transitada em julgado, foi declarada a insolvência de EE, cfr. processo principal.

30. Os autores, para remodelação do imóvel, despenderam, pelo menos, €28.706,50, cfr. documento nº ... junto à petição inicial.

Facto não provado:

a) Que o vendedor, ora insolvente, pretendeu entregar ou transferir a propriedade do imóvel para os autores, no momento da celebração do contrato-promessa.

2. do direito

1. Estando nós no âmbito de uma revista excecional, admitida conforme o Acórdão da Formação de 5.05.2022, no seu necessário atendimento, importa reter o que no mesmo se mostra consignado na situação sob análise:

“(…) No que respeita ao invocado fundamento da pretensão excecional deduzida, importa enunciar a questão jurídica sobre a qual incide a arrogada contradição de julgados a qual se prende em saber se a entrega das "chaves" do imóvel, acompanhada da realização de obras, é suscetível de configurar a causa de aquisição da posse traduzida na tradição ("traditio") da coisa, com vista ao direito de retenção, operada no âmbito do contrato de promessa de compra e venda (…)”.

 (…) Decorre, assim, de forma manifesta, que o acórdão fundamento e o acórdão recorrido encontram, no domínio da mesma legislação, divergentes soluções jurídicas para um quadro factual idêntico, encerrando orientações diferentes entre si, revelando uma oposição afirmada quanto às questões enunciadas.

Na verdade, enquanto no acórdão fundamento se reconhece ser válida e eficaz a tradição para os promitentes compradores, ainda que meramente simbólica, do andar objeto do contrato promessa, por estar provado que através de aditamento ao contrato promessa inicial, a promitente vendedora transmitiu aos promitentes compradores a "posse" do referido andar em construção, e que, aquando da assinatura do mencionado aditamento, a mesma promitente vendedora entregou a estes as chaves de acesso ao prédio, onde se localizava o andar, e ainda que, a partir de então, os recorrentes acederam ao prédio em questão, fazendo uso da chave que lhes foi entregue, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém. O acesso ao prédio onde se localiza o andar prometido vender, por parte dos recorrentes, promitentes compradores, fazendo uso da chave que lhes foi entregue pela promitente vendedora, não pode ser interpretado como um ato de simples turismo ou recreio, mas antes como a expressão possível do domínio material sobre o espaço de implantação do dito andar.

Diversamente, no acórdão recorrido entende-se que a tradição do imóvel não se basta com a mera entrega das chaves e com a realização de obras no interior do imóvel, classificando o contrato ajuizado como um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional, sem tradição da coisa. (…)”

2 . Com efeito as Instâncias, nos presentes autos, convergiram no sentido da inexistência da tradição do imóvel.

            Em sede de sentença, na apreciação da validade e eficácia do contrato-promessa celebrado, considerou-se estarem reunidos os pressupostos do n.º 6, do art.º 81, do CIRE, porquanto se estava perante um negócio oneroso, celebrado pelos promitentes compradores de boa fé, antes do registo da declaração de insolvência, bem como o promitente vendedor, já então declarado insolvente, não alienava, apenas se obrigava a alienar, não transferindo a propriedade, existindo uma impossibilidade subjetiva que não afetava a validade do negócio.

Contudo tal não significava que pudesse ser cumprido pelo AI, estando o contrato-promessa sujeito ao regime especial do art.º 106, n.º1, do CIRE, a obrigação de celebração do contrato definitivo dependia da existência de uma promessa bilateral, com eficácia real, com tradição da coisa, sendo vendedor o insolvente.

No caso sob análise tais requisitos não estavam reunidos, por falta de eficácia real, não se concluindo dos autos que houvesse tradição da coisa, “pois nada consta do contrato-promessa, nem existe uma mera declaração das partes nesse sentido, de que os promitentes compradores entram na posse, pois não obstante o promitente-devedor ter entregue as chaves na data da celebração do contrato-promessa, apenas o fez para os AA terem acesso ao imóvel e concluir as obras e não à posse do imóvel para lá morarem”.

Desse modo caía-se no âmbito do disposto no n.º 1, do art.º 102, do CIRE, não estando o AI obrigado a cumprir, assistindo aos AA o direito ao sinal em singelo, acrescido valor das benfeitorias realizadas no imóvel, créditos esses qualificados como comuns.

Em sede do Acórdão recorrido, alude-se face ao factualismo e cuja impugnação foi afastada, que não foi feita qualquer referência no contrato à entrega das chaves, nem à entrega do imóvel, tendo tais chaves sido entregues para que os AA iniciassem as obras, mas não para lá ficar, o que decorreria apenas após a celebração da escritura, tendo em conta o estado do imóvel e a proximidade da escritura, não teriam colocado como necessidade premente a respetiva tradição, não ficando assim demonstrado que aquando a celebração do contrato-promessa a mesma ocorreu.

Foi assim entendido, que não estando reunidos os requisitos de eficácia real do contrato promessa e a tradição da coisa, era legal a recusa do cumprimento do contrato pelo AI, na aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 102, do CIRE, não ocorrendo a situação excecional em que essa recusa é vedada, art.º 106, n.º1, do CIRE, pelo que os AA apenas tinham direito à restituição do sinal e ao montante relativo a benfeitorias, enquanto créditos comuns, por não enquadráveis no art.º 47, n.º4, do CIRE e art.º 755, n.º1, do CC.

3. Importa ter presente que a aferição da existência da tradição do imóvel se reporta à celebração do contrato-promessa, sendo certo que nada mais resultou do aditamento realizado, mas e sobretudo face às posteriores vicissitudes que afetaram o imóvel, com a sua aquisição, pelos AA, importando contudo em termos da qualificação que possa ser atribuído ao crédito dos mesmos sobre a massa insolvente.

3.1. Resulta do art.º 754, e seguintes do CC, que o direito de retenção se traduz na faculdade de o devedor que esteja obrigado a entregar uma coisa, a reter quando disponha de um crédito sobre o seu credor, prevendo-se na alínea f), do n.º1 do art.º 755, do CC, que goza de tal direito o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442 do CC, existência de sinal, pelo que facilmente se compreende que a traditio se consubstancia num pressuposto indispensável do direito de retenção[2].

A traditio surge-se assim como um poder de facto sobre a coisa que o promitente-vendedor confere ao promitente-comprador, traduzindo-se num conjunto de atos materiais ou simbólicos demonstrativos do controlo da coisa[3].

Acolhe-se, deste modo, o entendimento que tem vindo ser seguido por este Tribunal[4] de “ A tradição de coisa exprime, na disciplina dos direitos reais, a transmissão da detenção de uma coisa entre dois sujeitos de direito, sendo constituída por um elemento negativo (o abandono pelo antigo detentor) e um elemento positivo, a tradicional chamada apprehensio (ato que exprime a tomada do poder sobre a coisa).

A alínea b) do artigo 1263 do CC, na esteira de uma velha tradição romanista, confere igual valor à tradição material e à tradição simbólica.

É no elemento positivo da traditio (apprehensio) que se verificam as variações que explicam a distinção entre a tradição material e tradição simbólica.

A tradição material[5] é, portanto, a realizada através de um ato físico de entrega e recebimento da própria coisa; a tradição simbólica é o resultado do significado social ou convencional atribuído a determinados gestos e expressões.

A relevância atribuída à tradição simbólica foi a natural consequência de nem a apprehensio poder ser materialmente realizada, por impossibilidade objetiva ou subjetiva, mas o seu uso generalizou-se e diversificou-se de acordo com as necessidades do comércio jurídico.

O valor simbólico de um ato depende, naturalmente, do tipo de coisa que se transmite (…)

A traditio material, suposta pelo legislador, não implica, portanto, um ato plasticamente representável, de largar e tomar, bastando-se com a inequívoca expressão do abandono da coisa e a consequente expressão de tomada de poder material sobre a mesma, por parte do beneficiário”.

Reafirmando-se, deste modo o traço essencial da traditio, como uma entrega da coisa, no que concerne a sua existência no âmbito do contrato promessa de compra e venda de prédios urbanos, enquanto cedência da coisa prometida a alienar, de modo a proporcionar ao beneficiário da promessa o uso e/ou a fruição da mesma, com a amplitude que seja concretamente acordada[6], tem sido também entendimento deste Tribunal, que podendo a mesma manifestar-se através de múltiplos comportamentos, cuja significação social e de acordo com as regras gerais da experiência, revelem o elemento negativo consubstanciado no abandono da coisa pelo seu anterior detentor, e que tenham como correspondência a apprehensio pelo novo detentor, enquanto elemento positivo.

Desta forma, no caso da entrega das chaves do imóvel, enquanto tradição simbólica, não deve entender-se que por si só se consubstancia em tal tradição da coisa, importando sim atender ao respetivo contexto, não só circunstancial, mas e sobretudo o que resulta dos termos negociados entre as partes[7].

4. No caso dos autos ficou provado que por contrato-promessa de compra e venda outorgado em 09 de agosto de 2016, o Recorrido/insolvente prometeu vender aos Recorrentes, livre de ónus e encargos, e estes prometeram comprar, o prédio urbano onde se encontrava implantada uma moradia destinada a habitação, mediante o preço da de €220.000,00, quantia que seria paga, a título de sinal e princípio de pagamento, a €19.000,00; como reforço do sinal, no dia 31 de agosto de 2016, €25.000,00, e a restante parte do preço, €176.000,00, na data da outorga da escritura definitiva do contrato de compra e venda.

Ficou convencionado que a escritura de compra e venda seria outorgada até 15 de outubro de 2016, ficando os Recorrentes responsáveis pela marcação da mesma.

O imóvel encontrava-se em bruto, com divisórias e revestimento em tijolo e cimento, com janelas e divisórias no interior, sem portas, sem armários e exterior por acabar, sem água e sem luz.

 Por aditamento ao contrato-promessa de compra e venda de 23 de setembro de 2016, foi acordado alterar a cláusula 4ª do referido contrato, passando a escritura de compra e venda a ter realização até ao dia 15 de dezembro de 2016.

À data da outorga do contrato-promessa de compra e venda celebrado, não se  encontrava averbada na certidão de nascimento a declaração de insolvência do devedor, nem inscrita na certidão predial do prédio urbano em causa.

O contrato-promessa foi elaborado pela advogada da Imobiliária P... e o vendedor, ora insolvente, recebeu o total de €44.000,00 a título de sinal e reforço de sinal e facultou as chaves para os compradores iniciarem as obras no interior, mas não para morarem lá, isso, só quando celebrassem a escritura pública, e procederem aos procedimentos necessários junto da Câmara ....

No contrato-promessa de compra e venda celebrado em 09.08.2016 e no aditamento ao mesmo efetuado em 23.09.2016, não ficou a constar a entrega das chaves, nem entrega do imóvel.

Os autores estão a residir no imóvel desde, pelo menos, finais de novembro de 2016.

Na data da celebração os Recorrente não tinham conhecimento que o vendedor tinha sido declarado insolvente, não tendo este último, em momento algum, informado aqueles ou a imobiliária ou quem quer que fosse, que tinha sido declarado insolvente, por sentença proferida em 06.07.2016 e transitada em julgado.

Recorrentes, para remodelação do imóvel, despenderam, pelo menos, €28.706,50.

Pretendem os Recorrentes que a simples entrega das chaves é um elemento inquestionavelmente revelador da intenção de desapossamento do bem e concomitante autorização pelo vendedor para que ficassem nele investida, como tradição ficta, inexistindo quaisquer dúvidas – perante a factualidade provada – que o promitente-alienante pretendeu “desapossar-se” do bem e, ao invés, os Recorrentes pretenderam exercer poderes de facto sobre o imóvel, comportando-se como verdadeiros proprietários.

Ora tendo presente o entendimento delineado, a mera entrega das chaves não permite concluir que foi atribuído o controlo material do imóvel, por parte dos promitentes compradores.

Com efeito, nada tendo sido convencionado em sede do contrato quanto à entrega de chaves, bem como do imóvel, nem mesmo após o aditamento efetuado, certo é que ficou apurado que as chaves foram “facultadas” para os compradores iniciarem as obras no interior, tendo em conta certamente o facto apurado de o imóvel se encontrar em bruto, com divisórias e revestimento em tijolo e cimento, com janelas e divisórias no interior, sem portas, sem armários e exterior por acabar, sem água e sem luz.

Sendo certo que o facto de, como descrito aquando da celebração do contrato-promessa, o imóvel não reuniria todas as condições necessárias para o fim a que se destinava, não constitui por si um obstáculo para um exercício de um poder de facto exclusivo pelos promitentes compradores, enquanto beneficiários da promessa resultante do acordado, tal contudo não se configura na situação sob análise.

Na verdade ficou apurado que a disponibilidades das chaves tinham como finalidade permitir aos promitentes compradores realizarem obras no interior, ficando estabelecida uma forte restrição ao pretendido controlo material do imóvel, porquanto não podiam morar lá, enquanto não fosse realizada a escritura pública, operando então os efeitos decorrentes da venda efetuada.

Não se verificou assim relativamente aos Recorrentes, enquanto beneficiários, uma manifestação inequívoca do abandono da coisa pelo vendedor, pois foi estabelecida  uma limitação severa no que concerne ao poder material que enquanto promitentes compradores podiam exercer sobre o imóvel, sem prejuízo, porque para tanto autorizados, de iniciarem as obras, solicitando as respetivas licenças camarárias.

A disponibilidade das chaves aos Recorrentes traduziu-se assim num ato instrumental com vista à realização das obras exigíveis, sendo que, mesmo que as mesmas se mostrassem concluídas muito antes das sucessivas datas apontadas para a realização da escritura, não podiam aqueles, como detentores do imóvel, do mesmo fruir, maxime habitá-lo, não se consubstanciando, deste modo, a pretendida traditio.

Este entendimento não resulta contrariado face ao facto de os Recorrentes estarem a residir no imóvel, pelo menos, desde finais de novembro, de 2016, porque o fizeram à revelia do estabelecido pelos contratantes, o que não transmuta a disponibilidade das chaves realizada aquando da celebração do contrato, tendo-se também presente que em 04.11.2016, os Recorrentes encetaram um processo de diligências junto do A.I., da massa insolvente do Recorrido, visando a resolução do caso, considerando que o imóvel fora apreendido para aquela em 5.08.2016.

5. Improcedem, assim, as conclusões formuladas pelos Recorrentes.

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III – DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar a revista, mantendo o decidido no Acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

Lisboa3 de maio de 2023.

Ana Resende (Relatora)

Maria José Mouro

Amélia Alves Ribeiro

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Sumário, art.º 663, n.º 7, do CPC.

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Após o trânsito comunique junto da Formação.

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[1] Juntando cópia da escritura de compra e venda do imóvel, celebrada pela AI com os Recorrentes, em 30.12.2022.
[2] No Acórdão Uniformizador de Jurisprudência, n.º 4/2014, in DR. I.ª Série, de 19.05, consignou-se: “No âmbito da graduação de créditos em insolvência o promitente-comprador em contrato ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art.º 755, n.º1 alínea f) do Código Civil”.
[3] Cf. Acórdão do STJ de 16.02.2016, processo n.º 135/12.7TBMSF.G1.S1., in www.dgsi.pt.
[4] Cf. Acórdão do STJ de 25.03.2014, processo n.º 1729/12.6TBCTB-B.C1.S1., (Acórdão fundamento), do Acórdão do STJ de 16.02.2016, acima aludido, e Acórdãos de 14.10.2014, processo 986/12.2TBFAF-G.G1.S1, e de 28.09.2022, processo n.º 98/12.9TYVNG-C.P1.S1, com notas jurisprudenciais e doutrinárias.
[5]quando, p. ex. o livreiro entrega em mão o livro ao comprador, ou o vendedor de uma casa leva o comprador a entrar nela abandonando-a de seguida; será simbólica quando o vendedor de um apartamento entrega as chaves ao comprador, ou o vendedor de uma quinta entrega ao comprador os títulos ou os documentos que justificam o seu direito, ou nos antigos costumes, lhe entregava uma porção de terra do prédio ou, p. ex. uma cepa de uma vinha”.
[6] Cf. Acórdão do STJ de 10.01.2019, processo n.º 3596/16.3T8GMR.G1.S1., referindo que pode “reconduzir-se a uma mera detenção por parte daquele beneficiário, configurável em princípio como um atípico direito pessoal de gozo ou até, em casos mais raros, a uma cedência de posse em nome próprio, operando-se uma entrega antecipada da coisa em relação ao contrato prometido”, in www.dgsi.pt.
[7] Cf. Acórdão do STJ de 10.01.2019, processo n.º 3596/16.3T8GMR.G1.S1., de 7.01.2010, processo n.º 860/03.3TLBGS-B.E1.S1., de 21.01.2016, processo n.º 9400/06.1TBCSC-A.L1.S1, de 28.09.2022, processo n.º 98/12.9TYVNG-C.P1.S1, in www.dgsi.pt.