Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03A2692
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: AFONSO CORREIA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA CONCRETA
CULPA
CULPA EXCLUSIVA
CULPA PRESUMIDA DO CONDUTOR
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
DANOS MORAIS
INDEMNIZAÇÃO
INDEMNIZAÇÃO AO LESADO
MORTE
DIREITO À VIDA
SUCESSÃO MORTIS CAUSA
Nº do Documento: SJ200310070026926
Data do Acordão: 10/07/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 804/01
Data: 04/09/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


"A" e B, residentes na Argentina e, quando em Portugal, no lugar de ..., Castelo do Neiva, Viana do Castelo, intentaram acção declarativa de condenação, com processo comum sumário, emergente de acidente de viação, contra
1. Companhia de Seguros ... Seguradora, S.A., actualmente C, Companhia de Seguros, S.A., com sede na Rua ......, Porto, e
2. Companhia de Seguros D, S.A., com sede no Largo do ...., Lisboa, pedindo a condenação destas a pagar
a) - a quantia de 3.801.100$00 a cada um dos AA., acrescida de juros à taxa legal desde a propositura da acção até efectivo pagamento, e ainda
b) - a quantia que se liquidar em execução de sentença no que toca aos factos alegados nos arts. 109° a 117° da petição inicial, ou seja, despesas de trasladação dos restos mortais de seu filho para a Argentina, onde os AA estão radicados.

Alegaram para tanto - em síntese - ter ocorrido um acidente de viação entre o veículo de matrícula CZ, no qual era transportado o seu filho E, e o veículo de matrícula QP, aquele segurado na primeira Ré e este na segunda, cuja responsabilidade imputam a cada um dos condutores de cada um dos veículos, e do qual resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais, designadamente a morte do seu filho, danos que especificaram assim:

- danos não patrimoniais padecidos pelo falecido nos momentos que ante-cederam a sua morte ----------------------------------------- - 1.000.000$00;
- dano da morte, da perda do direito à vida -------------- 4.000.000$00;
- danos não patrimoniais sofridos pelo A. pai ------------ 1.000.000$00;
- danos não patrimoniais padecidos pela A. mãe ------ 1.000.000$00;
- despesas de funeral suportadas pelos AA -------------- 462.500$00;
- juros compensatórios sobre esta última quantia, desde 27.5.94, data em que a pagaram, a 12% e 10%, até à propositura da acção, no montante global de ----------------------------------------------------------------- 139.700$00.

A primeira Ré contestou, impugnando os factos alegados pelos AA. quanto ao modo de ocorrência do acidente, quanto à responsabilidade na eclosão do mesmo e quanto aos danos e seu montante, e ainda alegando que os danos sofridos pelos AA. estão excluídos da garantia do seguro quer por estes serem comproprietários do CZ, quer por o A. marido ser o condutor do CZ.

A segunda Ré também contestou, impugnando os factos relativos ao modo como ocorreu o acidente e à responsabilidade do seu segurado no mesmo, imputando-a ao condutor do veículo seguro na co-Ré, e os relativos aos danos e seu montante, alegando ainda a exclusão da garantia do seguro dos danos sofridos pelo A. marido, em virtude de ser ele o condutor do CZ e responsável pelo acidente.

Os AA. responderam, defendendo não se verificar a exclusão da garantia do seguro alegada pelas RR.

Saneado e condensado o processo, sem reparos, procedeu-se seguidamente a julgamento com decisão da matéria de facto perguntada no questionário, ainda sem reclamações, após o que o Ex.mo Juiz proferiu sentença que, na parcial procedência da acção,

- absolveu do pedido a D por entender que toda a responsabilidade pelo acidente cabia ao A. condutor do veículo seguro na C, que em nada contribuiu o segurado da D para a fatídica colisão;
- negou aos AA o pedido de despesas de funeral e trasladação por, sendo danos materiais, estarem excluídos da garantia de seguro;
- negou ao A. pai, pelo mesmo motivo, qualquer indemnização por danos não patrimoniais, tanto pelos sofridos pelo filho ou pelo direito à vida deste como os padecidos pelo próprio Autor; mas
- concedeu à A. mulher, mãe do falecido E, as seguintes indemnizações:
- 1000000$00 pelo desgosto por ela sofrido;
- 800.000$00 pelo sofrimento padecido pelo E nos momentos que precederam a sua morte;
- 6000000$00 pela compensação pelo dano da morte, no total de 7800000$00.

Porém, como este montante excedia o pedido (total) formulado, reduziu a condenação para 6.301.000$00, correspondente à soma dos danos não patrimoniais sofridos pelo falecido (5000000$00, totalidade devida à mãe por exclusão do pai) e dos danos próprios sofridos pela mulher (1.301.100$00, soma dos 1000 contos de danos não patrimoniais com metade das despesas de funeral e respectivos juros compensatórios, como discriminado em II do artigo 108º da petição).
Nada se disse quanto a juros por, como escrito na sentença, nada ter sido pedido nesse sentido.

Pelo que, em suma, se condenou a C a pagar à Autora B a quantia de 6.301.100$00

Inconformados, apelaram AA e Ré C.
Aqueles insistiam na concorrência de culpas, em 50%, do condutor do veículo segurado na D, no direito de ambos a haver o valor das despesas de funeral, do direito do A. pai a receber a parte que lhe cabe na indemnização pelos danos não patrimoniais atribuídos ao falecido (1000 contos pelo sofrimento anterior à morte e seis mil contos pela perda do direito à vida) de quem o A. e sua mulher são os únicos herdeiros, no direito do pai a ser indemnizado (em mil contos) pelos danos não patrimoniais próprios por não ter o acidente sido dolosamente causado, ser devida indemnização a liquidar em execução de sentença pela trasladação e juros.

A Seguradora pronunciou-se pela ilegalidade da condenação além do pedido, este de 3.801.100$00 e aquela de 6.301.100$00, além de que o valor de seis mil contos pela perda do direito à vida excedia, em muito e à época, os devidos e pedidos 4 mil contos.

A Relação do Porto considerou
- ser o acidente inteiramente devido a conduta culposa do A. condutor do CZ;
- não estarem as despesas de funeral (e eventuais de trasladação, em execução de sentença) excluídas do seguro por resultarem de lesões corporais sofridas pelo falecido, embora suportadas pelos pais e por estes pedidas a título hereditário;
- as exclusões do seguro bastam-se com o acidente culposo, não necessariamente doloso, mas apenas negligente;
- serem adequados os montantes de 4000 e 1000 contos atribuídos, respectivamente, pelo dano da morte e pelo desgosto sofrido (pelo finado e pela mãe);
- serem os juros devidos, por todos os danos, desde a citação;
- não ocorrer excesso de condenação por se conter ela dentro do pedido global.

Na sequência do que revogou a decisão recorrida na parte em que negara as despesas de funeral e trasladação, estas a liquidar em execução de sentença, e os juros que deviam ser contados desde a citação, confirmando-a em tudo o mais. Ou seja - e conforme aclaração a fs. 238 e ss) - a Seguradora ficou condenada a pagar os 6.301.100$00 da 1ª Instância, mais as despesas de funeral apuradas e as de trasladação a liquidar em execução de sentença, tudo com juros à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento.

Ainda inconformados, pedem revista AA e Ré C.
Os AA repetem anterior argumentação para obter decisão de que o acidente ficou a dever-se, ao menos em 50%, ao condutor do pesado seguro na D, que o A. pai tem direito a indemnização por danos não patrimoniais, próprios e, como herdeiro, dos devidos ao falecido seu filho, bem como aos juros pedidos e não apreciados;
a Seguradora a defender que a A. mulher tem direito a, apenas, metade dos danos em consequência do falecimento do filho, sendo que a indemnização pela perda do direito à vida não deve ser valorada em mais que os pedidos 4 mil contos, com juros desde a citação, ou seis mil contos, mas com juros desde a sentença.
Como se vê das alegações que coroaram com estas
CONCLUSÕES
A - Dos Autores

1ª - No acidente dos presentes autos, foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro misto de matrícula CZ, pertencente a F e outro e conduzido pelo A. marido;
2ª - E o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula QP, pertença da sociedade "Empresa de G" e conduzido por H;
3ª - O H era motorista da sociedade "Empresa de G," e conduzia o QP em cumprimento de instruções que a sua entidade patronal previamente lhe havia transmitido e seguia por um itinerário que a sua entidade patronal lhe havia previamente determinado;
4ª - Ou seja, conduzia o pesado de mercadorias de matrícula QP à ordem, com conhecimento, com autorização, por conta, no interesse e sob a direcção efectiva da sociedade "Empresa de G";
5ª. - A via, no local do sinistro, configura uma curva para o lado direito, atento o sentido do CZ, apresentava uma linha contínua e era de visibilidade reduzida;
6ª - E apresentava uma placa de proibição de exceder a velocidade de 50 quilómetros por hora, para quem por lá circulava em qualquer dos seus dois sentidos de marcha;
7ª - O veículo OP circulava na E.N. n.º 13 no sentido Esposende - Viana do Castelo, a velocidade inferior a 50 km/hora e dentro da hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha;
8ª - O Recorrente marido conduzia o veículo CZ a uma velocidade superior a 100 km/hora;
9ª - Invadiu a hemifaixa esquerda, atento o mesmo sentido, e, completa-mente atravessado nessa hemifaixa, foi embater contra o veículo QP;
10ª - O CZ atravessou-se à frente do OP quando este veículo se encontrava a uma distância de não mais de 30 metros;
11ª - O condutor do QP H nada fez para evitar o acidente ou para minorar as suas consequências;
12ª - Sobre o condutor do pesado de mercadorias de matrícula QP impendia uma presunção legal de culpa, tal como a mesma vem prevista no estatuído no artigo 503º, n.º 3, 1ª parte, do Código Civil e no Assento do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/83, de 14-0-83, in Diário da República, I Série;
13ª - Por essa razão, era sobre o condutor do pesado de mercadorias de matrícula de matrícula QP que recaía o ónus de provar que ele próprio não teve culpa na produção do acidente;
14ª - Não logrou, porém, o H provar que não teve culpa na produção do acidente;
15ª - Tem, por isso, de prevalecer a presunção legal de culpa, que recai sobre o condutor do pesado de mercadorias de matrícula QP: artigo 503º, n.º 3, 2ª parte, do Código Civil e Assento do STJ n.º 1/83, de 149-04-83, in Diário da República, I Série;
16ª - O dever de indemnizar os A.A. recai, assim, sobre o condutor do pesado de mercadorias de matrícula QP. H e, por força do contrato de seguro referido nos autos, sobre a Companhia de Seguros «D, S.A»;
17ª - Sempre se dirá que, pejo menos, parte da culpa na produção do sinistro, coube ao condutor do pesado de mercadorias de matrícula QP. H;
18ª - Pelo que se está em presença de uma situação de concorrência de culpas;
19ª - E, se for perfilhado este entendimento, reputa-se de equilibrado fixar a cada um dos dois condutores igual contributo (50%) para a eclosão do sinistro;
20ª - Já que o A violou o disposto nos artigos 24º, n.º 1, 25°, n.º 1 e 27°, n.º, do Código da Estrada e o H violou o estatuído no artigo 24º, n.º 1, do Código Civil;
21ª - O Apelante marido A tem todo o direito (na companhia da sua esposa), em receber as quantias que foram fixadas a título de:
a) de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos pela própria vítima, até ao momento da sua morte, no valor de 1.000.000$00;
b) de indemnização pelos danos decorrentes da perda do direito à vida por parte da vítima E 6.000.000$00.
22ª - Dado que o titular da indemnização por esses danos é a própria vítima E e não os seus pais;
23ª - Os Apelantes, entre os quais o Apelante marido A, têm direito, aos valores respectivos, não por direito próprio, mas sim por que são os únicos e universais herdeiros da vítima E, tal como estatui o artigo 496º, n.º 2, do Código Civil;
24ª - Deve, assim, ser fixada ao Recorrente A a indemnização que lhe cabe relativamente aos montantes de Esc: - 1.000.00$00 e de Esc:-6.000.000$00, que foram fixadas a título de danos de natureza não patrimonial sofridos exclusivamente pela vítima, até ao momento da sua morte e pela perda do seu direito à vida;
25ª - O acidente que deu origem aos presentes autos não ocorreu por facto voluntário ou culposo (com o sentido de doloso) do Apelante A;
26ª - Pelo contrário a deflagração do sinistro apenas lhe pode ser imputado a título de negligência;
27ª - Só pode ser sufragado o entendimento de que o termo "culposo", constante do texto do número 3, do artigo 7º, Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, apenas pode ter o sentido de "doloso", por contraposição a "negligente";
28ª - Assim sendo, o Autor/Recorrente A tem direito a ser indemnizado pelos danos de natureza não patrimonial por ele próprio sofridos, em consequência da morte do seu filho;
29ª - Pelo que lhe deve ser atribuída a indemnização por ele próprio peticionada, de Esc: - 1.000.000$00 (um milhão de escudos), que ele peticionou a este título;
30ª - A quantia de Esc: - 800.000$00 (oitocentos mil escudos), fixada a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, à Autora/Apelante B, pelo desgosto que ela própria sofreu em consequência da morte do seu filho é insuficiente;
31ª - Essa indemnização deve ser fixada na quantia de Esc: - 1.000.000$00 (um milhão de escudos), que a Recorrente peticionou, por se reputar de justa e equitativa, tendo em conta os factos provados;
32ª - Nos artigos 103º, 104º, 105º e 106º da petição inicial, os Recorrentes reclamaram o pagamento dos juros compensatórios, contados sobre a quantia de Esc:- 462.500$00 (quatrocentos e sessenta e dois mil e quinhentos escudos), paga pelo preço do custo do funeral;
33ª - Em alternativa, pediram que tal quantia fosse devidamente actualizada;
34ª - A Meritíssima Juiz do Tribunal "A Quo", nem o Tribunal da Relação do Porto - embora tal questão lhe tivesse sido colocada, no recurso interposto -, porém, não se debruçou sobre tal pedido e não se pronunciou sobre a pretensão formulada pelos Autores/Recorrentes, a tal propósito;
35ª - Não se pronunciou, assim, sobre questão que se lhe impunha apreciar e cometeu a nulidade prevista no artigo 668º, n.º 1, alínea d), do Código de Processo
Civil;
36ª - Deve, pois, ser suprida a referida nulidade pelo Tribunal de Recurso (artigo 715º, do Código de Processo Civil), concedendo-se aos Recorrentes as quantias referentes aos juros compensatórios, ou actualizando a quantia de Esc:-462.500$00 (quatrocentos e sessenta e dois mil e quinhentos escudos), com referência à data da propositura da presente acção;
37ª - Decidindo de forma diferente, fez o douto Acórdão recorrido menos boa aplicação do direito aos factos provados e violou, além disso, o disposto nos artigos 483º, 487º, 495º, 496º, 562º, 564º, 804º, 805º e 806º, do Código Civil, 661º, n°, 2, 668º, n.º 1, alínea d) e 805º e seguintes, do Código de Processo Civil, 7º, n.os 1, 2 e 3, do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro e 24º, n.º 1, do Código da Estrada.

B) - Da Ré

1ª - Sendo os Autores os pais do menor E, falecido no acidente dos autos, e estando o autor marido, por força do disposto no art. 7° n° 3 do Dec. Lei n° 522/85, de 31 de Dezembro, impedido de ser indemnizado pelos danos patrimoniais em consequência do falecimento do filho, a autora mulher apenas pode ser indemnizada na proporção de metade daqueles danos.
2ª - É o que decorre dos arts. 2142° n.os 2 e 3 e 2136° do Código Civil, dispondo este último que "os parentes de cada classe sucedem em partes iguais".
3ª - Em obediência a este preceito da lei substantiva, a Autora somente peticionou nos autos 50% dos danos não patrimoniais que fazem parte do acervo hereditário.
4ª - Ao condenar a Ré a pagar à Autora a totalidade dos danos que constituem a herança do menor falecido, a decisão recorrida violou o disposto nos arts. 2142° e 2136° do Código Civil, e o disposto no art. 661° do Código do Processo Civil.
5ª - Em obediência a tais disposições legais, deve a condenação da ré ser limitada ao montante peticionado pela autora, isto é, esc. 3.801.100$00 ou, caso assim se não entenda, a esc. 4.400.000$00 (3.000.000$00 + 400.000$00 + 1.000.000$00).
6ª - A decisão recorrida, ao condenar igualmente a Ré a pagar, apenas à Autora mulher, a totalidade das despesas do funeral do filho e a totalidade das despesas de trasladação, violou o disposto nos artigos do Código Civil já citados pelo que deve tal decisão ser alterada em conformidade com o aí prescrito, observando sempre o total do pedido da autora.
7ª - A quantia de esc. 6.000.000$00, considerada à data da citação em Setembro de 1996 (e dizemo-lo porque condenou nos juros de mora desde a citação), como indemnização pela perda do direito à vida do menor E, é manifestamente excessiva tendo em conta as indemnizações que se praticavam nessa data, violando, dessa forma, o disposto no art. 496° n° 3 do Código Civil.
8ª - Esse é o valor que começa a ser normal nos nossos dias, não em 1996. Nessa data, como alegam os próprios Autores desta acção, o valor normal era de esc. 4.000.000$00, que foi o peticionado e com o qual estamos de acordo.
9ª - A manter-se a quantia de esc. 6.000.000$00 como indemnização da perda do direito à vida, deve entender-se como indemnização já actualizada, sobre a qual apenas incidirão juros de mora desde a data da sentença, nunca desde a data da citação.

Houve recíproca resposta e a D pronunciou-se, também, contra a procedência do recurso dos AA, não só por nenhuma responsabilidade caber ao seu segurado mas também por ser incorrecta a leitura que os A.A. fazem do n.º 3 do art. 7º do Dec-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro.

Colhidos os vistos de lei e nada obstando, cumpre decidir as questões submetidas à nossa apreciação, as de saber, quanto à revista dos AA,

I - se o condutor do QP tem alguma culpa no acidente - como querem os AA - ou se, como decidiram as Instâncias, tal responsabilidade cabe unicamente ao A. marido - conclusões 1ª a 20ª;
II - se o A. condutor tem direito a ser indemnizado pelos danos não patrimoniais sofridos pelo seu filho antes da morte e pela perda do direito à vida - conclusões 21ª a 24ª - e pelos danos não patrimoniais por si próprio, A., padecidos com a morte do filho, em acidente de que foi, por negligência, único responsável - conclusões 25ª a 29ª;
III - Fixar a indemnização devida pelos danos não patrimoniais padecidos pela A. mãe - 30ª e 31ª;
IV - apreciar a nulidade por omissão de pronúncia quanto aos juros pedidos ou actualização sobre a quantia de 462.500$00, despesas de funeral - 32ª a 36ª.

Quanto à revista da Ré temos de apurar

I - se a A. mãe do falecido não pode receber mais de metade dos danos patrimoniais e não patrimoniais apurados - conclusões 1ª a 4ª -
II - nunca mais que os pedidos 3.801.000$00 ou 4.400.000$00 - conclusões 5ª e 6ª;
III - fixar a indemnização pela perda do direito à vida, entre os 4 mil contos pedidos e os 6 mil considerados nas decisões recorridas - conclusões 7ª a 9ª.

Mas antes é mister ver que as Instâncias tiveram por assentes, sem reparos das Partes, os seguintes
Factos:

1 - No dia 5 de Abril de 1994, na E.N. n° 13, na freguesia de Antas, Esposende, ocorreu um acidente em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro misto de matrícula CZ, pertencente a F e outro e conduzido pelo A. marido, e o veículo automóvel pesado de mercadorias de matrícula QP, pertencente à sociedade "Empresa de G" e conduzido por H - [A) da especificação];
2 - O H era motorista da sociedade "Empresa de G" e conduzia o QP em cumprimento de instruções que a sua entidade patronal previamente lhe havia transmitido e seguia por um itinerário que a sua entidade patronal lhe havia previamente determinado - [B), C) e D) da especificação];
3 - No local referido no ponto 1, a E.N. n° 13 configura um traçado curvilíneo para a direita, atento o sentido Viana do Castelo-Esposende, a faixa de rodagem tem uma largura de 6,60 metros, o seu piso é pavimentado a asfalto e sobre o eixo divisório da via encontrava-se pintada a cor branca uma linha contínua - [E), F), G) e J) da Especificação];
4 - O tempo estava bom e o pavimento encontrava-se seco e em bom estado de conservação - [H) da Especificação];
5 - Devido ao traçado curvilíneo da E.N. n° 13, não é possível avistar-se a faixa de rodagem em toda a sua largura, para quem por ali circula em qualquer dos sentidos de marcha, ao longo de uma distância superior a 30 metros - [I) da especificação];
6 - Para quem circula em qualquer dos sentidos de marcha, existe a cerca de 100 metros do local do sinistro, situado dentro de uma localidade, um sinal, colocado em suporte vertical, a proibir a circulação a mais de 50 km/hora - [L) e M) da especificação];
7 - O veículo CZ circulava na E.N. n° 13 no sentido Viana do Castelo-Esposende, pela metade direita da faixa, atento o referido sentido, e sentado no banco da frente, ao lado do condutor, seguia E - [N) e O) da Especificação];
8 - O veículo QP circulava na E.N. n° 13 no sentido Esposende - Viana do Castelo, a velocidade inferior a 50 km/hora e totalmente dentro da hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha - [U) da Especificação e respostas aos quesitos 6°) e 7°)];
9 - O A. marido conduzia o veículo CZ de forma distraída e imprimia ao CZ uma velocidade superior a 100 km/hora - [P) e Q) da Especificação];
10 - Ao começar a descrever uma curva com um ângulo de cerca de 90° para o lado direito, atento o sentido Viana do Castelo - Esposende, o A. marido não reduziu a velocidade que imprimia ao CZ, perdeu, por isso, o controlo do veículo, entrou em derrapagem, invadiu a hemifaixa esquerda, atento o mesmo sentido, e, completamente atravessado nessa hemifaixa, foi embater contra o veículo QP - [R), S) e T) da Especificação] ;
11 - O CZ atravessou-se à frente do QP quando este se encontrava a uma distância de não mais de 30 metros - [resposta ao quesito 8°)];
12 - O embate verificou-se entre a parte frontal do QP e a parte lateral direita, do meio para a frente, do CZ - [V) da especificação];
13 - Como consequência directa e necessária do acidente, o E sofreu equimoses dispersas por ambos os membros superiores, equimose extensa localizada na face anterior do tórax com o diâmetro de 10 cms, hemorragia na cavidade torácica resultante de ruptura cardíaca e hematorax abundante à esquerda resultante de ruptura da crossa da aorta, lesões essas que determinaram a sua morte - [X) e Z) da especificação];
14 - Os AA. são os pais do E que contava então 13 anos de idade - [AA) e BB) da especificação];
15 - No momento do acidente e nos instantes que o precederam, o E sofreu um enorme susto, vindo a falecer cerca de 15 minutos após o embate [respostas aos quesitos 9°) e 15°)];
16 - O E era um jovem permanentemente alegre, bem disposto e muito
apegado à vida, irradiava a sua alegria de viver a todos os que o rodeavam, nomeadamente os pais, e dedicava aos pais um grande afecto e uma ternura incomensurável [respostas aos quesitos 16°), 17°) e 18°)];
17 - Os AA. e o E mantiveram-se sempre muito unidos ao longo das suas vidas e foram o amparo moral e afectivo uns dos outros - [respostas aos quesitos 19°) e -20°)];
18 - O E rodeava permanentemente de atenção os seus pais, sentimentos que estes careciam e que retribuíam ao seu filho - [respostas aos quesitos 21) e 22°)];
19 - A morte do E causou aos AA. um profundo desgosto que os prostrou e os deixou inconsoláveis para o resto das suas vidas - [resposta ao quesito 23°];
20 - Com o funeral e os serviços fúnebres, os AA. pagaram a 27 de Maio de 1994 a quantia de 462.500$00 - [resposta ao quesito 26°)];
21 - Os AA., por estarem radicados na Argentina, estão determinados a remover os restos mortais do E para aquele país, para o que vão ter de custear as despesas com as suas deslocações de avião a Portugal e com o transporte para a Argentina, de avião, dos restos mortais do E - [respostas aos quesitos 27°), 28°) e 29°)];
22 - A responsabilidade pelos danos causados a terceiros pelo veículo CZ foi transferida para a Ré Aliança Seguradora mediante contrato de seguro titulado pela apólice n° 04-40-0754532 - [CC) da especificação];
23 - A responsabilidade pelos danos causados a terceiros pelo veículo QP foi transferida para a Ré D mediante contrato de seguro titulado pela apólice n° 6871337 - [DD) da especificação].

Analisando o aplicável Direito

A - Revista dos Autores

IV questão - nulidade
Começaremos, para ir arrumando a casa, pela última questão suscitada, a da nulidade por omissão de pronúncia - art. 668º, n.º 1, al. d), do CPC - em que teriam incorrido ambas as decisões recorridas, tanto a do Tribunal de Esposende como da Relação do Porto, pois teriam silenciado sobre o pedido de juros compensatórios ou actualização da quantia pedida por despesas do funeral - conclusões 32ª a 36ª.
É evidente a sem razão dos AA recorrentes, como bem se vê da leitura do Acórdão recorrido e foi repetido pela Conferência, em cumprimento do disposto nos art. 744º, n.º 5 e 668º, n.º 4, do CPC, a fs. 313.
A Relação do Porto concedeu provimento à apelação no tocante às despesas de funeral que a 1ª Instância negara e, quanto a juros, decidiu (a fs. 225) que são devidos juros de mora sobre a totalidade da indemnização a contar da citação, condenando no montante de juros peticionados a partir da citação - fs. 226.
Pelo que sem mais considerações, por escusadas, se desatende a arguida e inexistente nulidade por omissão de pronúncia levada às conclusões 32ª a 36ª.

I questão - o acidente

Vem dito desde a 1ª Instância que a eclosão do acidente ficou a dever-se única e exclusivamente ao condutor do CZ, o ora A. pai do falecido E, pois «mostra-se provado que o A. marido conduzia o veiculo CZ de forma distraída e a uma velocidade superior a 100 km/hora - em local onde a velocidade máxima permitida era de 50 km/hora -, e ao começar a descrever uma curva com um ângulo de cerca de 90 graus para o lado direito, atento a sentido Viana do Castelo - Esposende, não reduziu a velocidade que imprimia ao CZ, perdeu, por isso, o controlo do veículo, entrou em derrapagem, invadiu a hemifaixa esquerda, atento o mesmo sentido, e, completamente atravessado nessa hemifaixa, foi embater contra o veículo QP, o qual circulava no sentido Esposende-Viana do Castelo, a velocidade inferior a 50 km/hora e totalmente dentro da hemifaixa direita, atento o seu sentido de marcha (Pontos 6. 8. 9 e 10 da matéria de facto).
Apurou-se ainda que o CZ atravessou-se à frente do QP quando este se encontrava a uma distância de não mais de 30 metros e que o embate ocorreu entre a parte frontal do QP e a parte lateral direita, do meio para a frente, do CZ (pontos 11 e 12)».
Apreciando esta factualidade concluiu o Ex.mo Juiz: «Resulta, pois, que foi a descrita actuação do condutor do CZ (o A. marido), o qual invadiu a faixa de rodagem destinada ao trânsito que circulava em sentido contrário, violando assim o disposto no art. 13º, n.º 1 do Cód. da Estrada, e foi embater no QP que seguia pela sua mão de trânsito, a causadora do acidente dos autos.
Além do mais, não resulta da matéria de facto apurada a existência de qualquer contributo do condutor do QP para a produção de tal acidente.
Verifica-se, pois, que a responsabilidade na eclosão do acidente dos autos cabe em exclusivo ao condutor do CZ ...
E uma vez que resultou comprovada a responsabilidade efectiva do condutor do CZ, ficou afastada a culpa presumida do condutor do QP, nos termos do art. 503º, n.º 3 do C.C., o qual comprovadamente em nada contribuiu para o acidente dos autos, pelo que também não há qualquer responsabilidade da segunda Ré, seguradora do QP, devendo a mesma ser absolvida do pedido».

A Relação confirmou esta conclusão do Tribunal de Esposende:
«De facto tendo em consideração a dinâmica do sinistro, concretamente o local onde ocorreu e os demais elementos carreados aos autos, concretamente a velocidade provada do condutor do CZ, não se nos afigura exigível e razoável qualquer outra conduta rodoviária ao condutor, padrão médio, passível de evitar a ocorrência tal como se verificou, não existindo qualquer violação estradal, concretamente a invocada, sendo o mesmo de inteira e exclusiva responsabilidade do Autor, que violou as mais elementares regras que se impõem em tais normativos, concretamente a de não circulação pela direita da faixa de rodagem, invadindo a faixa contraria de circulação, bem como a de moderação da velocidade que não reduziu, entrando descontrolado, como se demonstrou, não adaptada às condições da via no local, uma curva com condições de visibilidade mínimas, que impõe um especial dever de cuidado e atenção que não teve nem demonstrou, antes pelo contrário se tendo provado que conduzia o veículo CZ de forma distraída e imprimia ao CZ uma velocidade superior a 100 km/hora - alíneas P) e Q) da Especificação - sendo certo que existiam sinais verticais posicionados em lugar antecedente ao sinistro, uma localidade, proibitivos e limitadores de velocidade superior a 50 km/hora (cfr. al. L) e M) da especificação)».

São inteiramente exactas estas considerações que por isso acolhemos.
Contra a prova efectiva da culpa exclusiva do A. não vale invocar a presunção de culpa consagrada no n.º 3 do art. 503º do CC, com a interpretação dada pelo Assento n.º 1/83, no DR, IA, de 28.6.1983.
Como se sabe e resulta do art. 349º do CC, presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.
Certo é, também, que as presunções legais são, em regra, ilidíveis mediante prova em contrário - art. 350º, n.º 2, do mesmo diploma.
As presunções, meios de prova que são, servem para firmar factos desconhecidos. Se os factos a cuja prova tendem resultaram indemonstrados, se por outra via se apurou a forma como efectivamente ocorreu o acidente, ao contrário do que daquela presunção resultaria, ultrapassada ficou a fase da produção de prova para passarmos a ter em conta - não a presunção - mas o facto real, apurado, a verdade histórica do acontecido. A culpa presumida não pode prevalecer contra a culpa efectiva, provada.
Nem pode deixar de ser assim, sob pena de a presunção ilidível do n.º 3 do art. 503º do CC se volver em presunção juris et de jure contra a clara letra da lei e a lógica mais elementar. Ainda que, como aqui acontece, o A. fosse o único e exclusivo culpado do acidente, sempre o condutor por conta de outrem teria alguma parcela de culpa só pelo facto de ser condutor comissário!
É manifesta a sem razão do A. em quanto conclui de 1ª a 20ª, tirante na parte em que aí se reproduz factualidade assente.
Termos em que se decide a I questão e se desatende o concluído de 1ª a 20ª.

II questão - indemnização ao condutor A. pai do falecido

Não sofre dúvida que no acidente perdeu a vida o filho dos AA, trágico evento da inteira responsabilidade do pai agora A. que pretende ser indemnizado tanto pelos danos sofridos pelo finado e pelo dano da morte deste, por ser dele herdeiro, como pelos danos não patrimoniais por si próprio sofridos, por ter simples culpa - e não dolo - no acidente.
Em matéria de danos não patrimoniais e na responsabilidade extracontratual (não vem ao caso discutir-se a existência ou não de tais danos na responsabilidade contratual) dispõe a lei - art. 496º, n.º 1, CC - que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Tais danos são especialmente previstos em caso de morte da vítima: o n.º 2 deste art. 496º estabelece que o direito à indemnização por estes danos cabe, em conjunto e na falta do primeiro grupo de credores, ao pais ou outros ascendentes.
E o n.º 3, depois de indicar os critérios a que deve obedecer a fixação do montante da indemnização, esclarece, na segunda parte, que no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos do número anterior, ou seja e no caso concreto, os pais do falecido.
Daí que se distinga, na indemnização por danos não patrimoniais por morte de uma pessoa,
a) - os sofridos pelo falecido, enquanto vivo, como as dores físicas ou morais, a angústia da proximidade da morte - 496º, 3, início da parte final.
b) - sofridos pelas pessoas referidas no nº 2, especialmente chegadas ao finado - 496º, 3, in fine.
c) - Dano da própria morte, por violação do direito à vida - 496º, 2 - que cabe aos familiares referidos no nº 2 do art. 496º e pela ordem aí indicada.

Tem sido objecto de forte polémica doutrinária e jurisprudencial a questão de saber se tais direitos a indemnização por danos não patrimoniais - até se apenas alguns ou todos - se radicam na esfera jurídica do finado e depois se transmitem, por via sucessória e de acordo com as regras da sucessão, ou se, ao contrário, nascem jure proprio, por direito originário, no património daquelas pessoas especialmente referidas no n.º 2 do art. 496º do CC.
Como se lê no Ac. deste STJ, de 9.5.96 (1), «o artigo 496º, nº 2, do Código Civil, refere-se aos titulares activos dos direitos de indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo de cujus em caso de lesão de que proveio a morte.
A este respeito, a doutrina tem-se dividido, defendendo: uns, que tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao de cujus e depois se transmitem sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários (Galvão Telles Direito das Sucessões, 1971, págs. 83 a 87); outros, que tais direitos após terem cabido ao de cujus se transmitem sucessoriamente para as pessoas mencionada no nº 2 do artigo 496º do Código Civil (Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág. 172; Leite Campos, A Indemnização do Dano da Morte, 1980, pág. 54), e ainda outros que esses direitos de indemnização são adquiridos directa e originariamente pelas pessoas indicadas no nº 2 do artigo 496º do Código, não havendo lugar por isso a transmissão sucessória (Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. I, 6.ª ed., pág. 583; Pires de Lima e Antunes Vareja, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 500.
Nesta polémica doutrinal (e também jurisprudencial, cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 16 de Março de 1973, Boletim do Ministério da Justiça nº 225, pág. 216, e de 13 de Novembro de 1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 241, pág. 204), propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade da pessoas designadas no nº 2 do artigo 496º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas. Esta adesão radica-se na argumentação utilizada quer por Antunes Varela - ob. cit., pág. 585 - quer por Capelo de Sousa - Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., págs. 298 a 304 - argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo 496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima (Capelo de Sousa, op. cit., 298, nota 433)».

Salvo o respeito devido por opinião adversa - e muito é - parece-nos fora de toda a dúvida que a razão está com o Professor Antunes Varela, responsável pela redacção definitiva do preceito em causa, como explica na RLJ 123º-191/192:

"Quem acompanhar atentamente os trabalhos preparatórios do Código Civil, sem nenhuma ideia preconcebida afivelada à cabeça, não poderá deixar de reconhecer que entre a tese da indemnização nascida no património da vítima e transmitida por via sucessória a alguns dos seus herdeiros e a concepção da indemnização como direito próprio, originário, directamente atribuído ao cônjuge e aos parentes mais próximos, à margem do fenómeno sucessório da herança da vítima, a lei adoptou deliberadamente a segunda posição.
No artigo 759º do Anteprojecto geral de VAZ SERRA sobre o «Direito das obrigações», ao regular-se a questão da «satisfação do dano não patrimonial», e depois de no n.º 2 dessa disposição se atribuir aos parentes, afins ou cônjuge da pessoa morta por culpa de outrem urna satisfação (pecuniária, é evidente) pelo dano não patrimonial que o facto lhes tivesse causado, prescrevia-se no n.º 4, relativamente aos danos não patrimoniais causados ao próprio lesado, o seguinte:
«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vítima transmite-se aos herdeiros desta, mesmo que o facto lesivo tenha causado a sua morte e esta tenha sido instantânea.»
Era a consagração inequívoca, na hora de ponta (ou seja, no caso extremo da morte instantânea) da aquisição derivada do direito à indemnização pelo dano da morte, através do puro canal da devolução sucessória.
Na 1ª revisão ministerial dos diversos anteprojectos, que foi, como todos sabem, mais uma tarefa de redução, expurgação e reordenação sistemática de textos do que um reexame substancial de afinação e uniformização de soluções, o artigo 476º (do Livro das Obrigações) continuava ainda a distinguir nos n.os 2 e 3 entre os danos não patrimoniais causados à vítima da lesão e os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima. E, quanto aos primeiros, o texto da disposição mantinha de igual modo, com suficiente clareza, a tese transmitida pelo Anteprojecto de VAZ SERRA.
«O direito de satisfação por danos não patrimoniais causados à vitima, dizia efectivamente o n.º 2 desse artigo (476º), transmite-se aos herdeiros desta, ainda que o facto lesivo tenha causado a sua morte imediata», numa clara aceitação da tese da aquisição derivada do direito à indemnização, por via hereditária, mesmo no caso de morte instantânea.
Porém, na 2ª revisão ministerial, na qual todas as normas seleccionadas pela 1ª revisão foram como que passadas a pente fino, com vista ao aperfeiçoamento substancial das soluções e à uniformização de critérios própria de toda a legislação codificada, a posição da lei perante a indemnização da morte da vítima sofreu uma alteração radical.
No artigo 498º saído dessa revisão (correspondente ao art. 496º da versão definitiva do Código) deixa de falar-se na transmissão do direito à indemnização (pelo dano da morte), não se alude mais à hipótese da morte instantânea e não se chamam sequer os herdeiros a recolher a indemnização colada à herança da vitima.
Tal como na versão final do n.º 2 do artigo 496º do Código, passou antes a dizer-se que, por morte da vitima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes, e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem.
Com esta eliminação da referência à transmissão do direito à indemnização, com a substituição dos herdeiros, na titularidade da indemnização, pelo cônjuge e familiares mais próximos da vitima, à margem da sucessão legítima, em termos diferentes da ordem normal da vocação sucessória, o legislador quis manifestamente chamar estas pessoas, por direito próprio, a receberem, como titulares originários do direito, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vitima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse. E é confrangedor verificar que ainda hoje há julgadores - e julgadores qualificados - que interpretam e aplicam o disposto no n.º 2 do artigo 496º do Código Civil, como se o preceito legal não tivesse história ou o intérprete desdenhosamente fizesse gala de a ignorar ou como se o texto da versão definitiva da disposição coincidisse integralmente com a redacção das normas correspondentes, quer do Anteprojecto de VAZ SERRA, quer da 1ª revisão ministerial».

Se este testemunho não fosse bastante, diríamos, ainda, que o cônjuge aparece aqui como beneficiário da indemnização, ao lado dos filhos ou outros descendentes quando só com a reforma de 1977, dez anos depois da vigência deste n.º 2 do art. 496º, ele passou a ser herdeiro.
Podemos, assim, concluir, com toda a segurança, que os pais do finado são chamados a receber, por direito próprio, como titulares originários do direito e não por serem herdeiros, a indemnização dos danos não patrimoniais causados à vitima da lesão mortal - e que a esta competiria, se viva fosse.

O facto de a lei afirmar (no n.º 2) que a indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e aos descendentes da vítima não significa que o tribunal não deva discriminar a parte que concretamente cabe a cada um dos beneficiários, de acordo com os danos por eles sofridos. Terem direito à indemnização em conjunto significa apenas que os descendentes não são chamados só na falta do cônjuge, como sucede com os beneficiários do 2º e 3º grupos indicados no mesmo n.° 2, para os quais vigora o princípio do chamamento sucessivo (2).
«E também lhe não será lícito repartir o montante global da indemnização em partes desiguais, com o fundamento de que foi diferente o desgosto ou o abalo nervoso que a morte da vítima causou no cônjuge e no descendente, ou em algum dos descendentes ou dos ascendentes que requereram a indemnização (3)».
Nada se apurando em contrário, o dano não patrimonial sofrido por cada um dos pais com a morte do filho é igual e por isso receberão, em partes iguais, a indemnização que ao caso couber.

O Código Civil não tem o monopólio do direito material de responsabilidade civil, que algumas normas conformadoras do regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel têm também natureza de regras de direito material (4).
Uma dessas normas, revogatória do visto regime de indemnização por danos emergentes de acidente de viação, é o art. 7º do Dec-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, que no seu número 1, al. a), exclui da garantia do seguro quaisquer danos causados, entre outros, ao condutor do veículo e cujo n.º 3, também antes (5) da alteração introduzida pelo art. 1º do Dec-lei n.º 130/94, de 19 de Maio, dispõe que no caso de falecimento, em consequência do acidente, de qualquer das pessoas referidas no numero anterior (concretamente descendentes) é excluída qualquer indemnização ao responsável culposo do acidente por danos não patrimoniais.

Que aqui não quis a lei dizer doloso é ponto que não suscita qualquer dúvida, assim como temos por certo que a exclusão prevenida neste n.º 3 do art. 7º ocorre quando haja culpa, mera culpa, negligência, do responsável pelo acidente e não quando o acidente tenha sido dolosamente provocado.

Como bem disse o Ex.mo Juiz, «afigura-se-nos que, e tendo até em conta o disposto no art. 9º n.º 3 do C.C. onde se determina que na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, ao referir-se a culposo o legislador está a utilizar o termo no seu sentido jurídico, não ignorando que a culpa pode ser negligente ou dolosa, que dolo e negligência são duas modalidades da culpa, pelo que não se pode considerar, como pretendem os AA. que a expressão culposo foi utilizada como sinónimo de doloso.
Aliás, tal é o que resulta se compararmos essa redacção com a redacção do art. 8º n.º 3 do mesmo Decreto-Lei, onde se fala em casos dolosamente provocados.
Efectivamente, o legislador não iria utilizar duas expressões diferentes para significar a mesma coisa, principalmente sabendo que cada uma delas tem um significado técnico-jurídico preciso e diferente - se utilizou doloso por contraposição a negligente no art. 8º e culposo no art. 7º é porque quis utilizar esta última expressão no seu sentido técnico abrangendo tanto o dolo como a negligência».
Entender como quer o A. seria fazer forte injúria ao legislador que se deve ter por avisado, sabedor e conhecedor das várias modalidades da culpa.

Por via do disposto no art. 7º, n.º 1, al. a), do Dec-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, o condutor do veículo aqui A. não pode ser indemnizado por quaisquer danos por si sofridos e por força do n.º 3 do mesmo art. 7º também está excluída qualquer indemnização por danos não patrimoniais - sofridos por ele ou pelo falecido mas para si transmissíveis ou na sua esfera jurídica directamente nascidos - pelo falecimento de seu filho, em consequência do acidente devido a culpa sua.
Termos em que se desatende o concluído de 21ª a 29ª.

III questão - a indemnização pelos danos padecidos pela mãe A.

Não têm qualquer razão os recorrentes quando pretendem se atribua à mãe A. a indemnização de mil contos, em vez dos oitocentos considerados, pelo desgosto por ela sofrido em consequência da morte do filho.
É que, apesar de se ter julgado adequado o montante de 800 contos pelo dano não patrimonial padecido pelo finado, porque nada se atribuiu ao A. pai, foi à A. mãe atribuído o total de 6.301.100$00, sendo quatro mil pelo dano da morte, 1000 contos do dano não patrimonial sofrido pelo falecido, outros mil do dano dela própria e o restante por metade das despesas do funeral.
Total a que a Relação somou os juros e metade das despesas do funeral devidas ao A.
Termos em que se desatende o concluído em 31ª e a revista em apreço.

B - Revista da Ré

I - direito da mãe a metade dos danos apurados

Ficou dito, a propósito da natureza do direito a indemnização das pessoas referidas no n.º 2 do art. 496º CC, que tal direito se radica na esfera jurídica dos seus titulares por direito próprio e à margem das regras de direito sucessório. Nesta perspectiva, não é certo dizer-se que a A. mãe do falecido tem direito a herdar metade da indemnização pelos danos não patrimoniais que fazem parte do acervo hereditário do falecido, nos termos dos art. 2136º e 2142º do CC.
Enquanto ascendente não excluída da indemnização por danos emergentes da morte do seu filho, tem ela direito a receber metade (da outra metade está excluído o pai A) da indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais referidos no princípio da 2ª parte do n.º 3 do art. 496º - dano da morte e danos anteriores à morte, todos padecidos pelo falecido - ou, como as despesas do funeral e trasladação, indissociáveis da morte, nos termos do n.º 1 do art. 495º CC, e a totalidade dos danos não patrimoniais próprios, ditos na parte final do n.º 3 do art. 496º.

II - limite do pedido

Nos termos do art. 661º do CPC,
1 - A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.
2 - Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que se liquidar em execução de sentença, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida.
3...

«Enquanto que o art. 660º se refere ao âmbito do poder de cognição do tribunal, este preceito traça os limites da condenação a proferir, de modo que, por respeito ao princípio dispositivo, a decisão se contenha (em substância e quantidade) dentro do pedido formulado. É regra que já figurava, com pequena diferença de forma, no Código de 1876 (art. 281º). Aqueles limites entendem-se referidos ao pedido global apresentado; nada obsta a que, se esse pedido representar a soma de várias parcelas, que não correspondam a pedidos autónomos, como habitualmente acontece nas acções de indemnização, se possam valorar essas parcelas em quantia superior à referida pelo autor, desde que o cômputo global fixado na sentença não exceda o valor do pedido total.

O Supremo Tribunal de Justiça, pelo seu acórdão de 15 de Outubro de 1996 (U.J.), decidiu que o tribunal não pode, nos termos do n.º 1 do preceito em análise, quando condenar em dívida de valor, proceder oficiosamente à sua actualização em montante superior ao valor do pedido do autor.
É claro que isto não impede, como do próprio aresto resulta, que o autor não possa, oportunamente, ampliar o pedido.

Dispõe o art. 569º do Código Civil que quem exigir a indemnização não necessita de indicar a importância exacta em que avalia os danos, nem o facto de ter pedido determinado quantitativo o impede, no decurso da acção, de reclamar quantia mais elevada, se o processo vier a revelar danos superiores aos que foram inicialmente previstos.
Uma primeira leitura desta disposição poderia levar a supor que ela constituiria excepção à regra do n.º 1 do art. 661º, na medida em que viria a permitir uma condenação em quantidade superior à que se tivesse pedido. Mas não é assim. O preceito é terminante em consentir à parte reclamar quantia mais elevada. Sem essa reclamação, que processualmente se traduzirá numa ampliação do pedido, não poderá o tribunal condenar em quantia superior à referida no pedido inicial. Parece que esta situação não foi encarada pela ilustre Comissão Revisora do Código, dada a redacção que continuam a ter os arts. 272º e 273º. No entanto, parece incontestável que, face àquele art. 569º do Código Civil, o pedido, nas acções de indemnização, pode ser ampliado enquanto estiver pendente a causa, mesmo sem acordo da parte contrária. É o que se infere do seu texto. Deveria ter-se feito a correspondente modificação na lei de processo.

A condenação no que se liquidar em execução de sentença é de proferir tanto no caso de ter sido formulado pedido genérico, como no de ter sido apresentado pedido específico e não ter sido possível determinar o objecto ou a quantidade da condenação (6)».

À vista daquela norma e deste ensinamento - que jamais suscitou dúvidas de vulto - é certo e seguro que o Juiz não pode condenar em quantidade superior ao pedido. É preceito velho esse de que ne eat judex ultra petitum.
Também é certo poder o Juiz valorar em quantidade diferente do pedido pelo Autor parcelas que não correspondam a pedidos autónomos, como será o caso de se atribuir pelo direito à vida ou dano da morte cinco mil contos quando o Autor pedira, tão só, quatro mil. Ponto é que o cômputo global fixado na sentença não exceda o valor do pedido total.
No caso em apreço, os AA pediam por este direito à vida, pelo dano da morte, a indemnização de quatro mil contos; o Tribunal de Esposende entendeu adequado o valor de seis mil contos que, somado aos danos próprios da A. (mil contos) e do falecido filho (800 contos), ultrapassava o pedido formulado (3.801.100$00 x 2). Como ao pai não podia ser nem fora atribuída qualquer indemnização, toda esta seria devida à mãe. E foi-lhe fixada a indemnização de 6.301.100$00, como se a mãe tivesse direito de acrescer.

Está bem de ver que o assim decidido não está conforme ao até agora dito.
Conjugando aqueles preceitos (art. 7º, n.º 1, a) e n.º 3) do Dec-lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro) reguladores da exclusão do pai de qualquer indemnização com os comandos dos art. 495º, n.º 1 e 496º do CC, a A. mãe tem direito a
- metade dos valores indemnizatórios pedidos e encontrados para os danos não patrimoniais sofridos pelo filho (4.000.000$00 pelo direito à vida, 1.000.000$00 pelos danos que antecederam a morte), - a metade das despesas de funeral e seus juros, até à propositura da acção (602.200$00: 2 = 301.100$00) e
- à totalidade da indemnização pelos danos não patrimoniais próprios (1.000.000$00), tudo no valor de 3.801.100$00, como pedido, com juros às taxas legais sucessivamente em vigor, desde a citação até efectivo pagamento.
Acresce metade das despesas de trasladação, conforme vier a ser liquidado em execução de sentença.

III - Indemnização pelo direito à vida

Esta questão está prejudicada pela decisão anterior. Ainda que se valorasse a perda do direito à vida nos seis mil contos encontrados pelas Instâncias, quantia mais próxima dos valores actualmente atribuídos por este Tribunal, bastava somar a metade deste valor o dos danos não patrimoniais próprios para logo se ultrapassar o total pedido pela A., caindo na previsão e proibição do n.º 1 do art. 661º do CPC. Não vale a pena, pois, cogitar na questão - art. 660º, n.º 2, do CPC.

Decisão

Termos em que se decide:
a) - negar a revista pedida pelos AA;
b) - conceder a pedida pela Ré e, como tal,
c) - condenar a C - Companhia de Seguros, S.A., a pagar à A. B a quantia de dezoito mil e novecentos e cinquenta e nove Euros e oitenta e um cêntimos, com juros de mora às taxas legais sucessivamente aplicáveis, desde a citação até efectivo pagamento,
d) - bem como metade das despesas de trasladação, a liquidar em execução de sentença.

Custas, nas Instâncias e neste Supremo Tribunal, na proporção do vencido.

Lisboa, 7 de Outubro de 2003
Afonso Correia
Ribeiro de Almeida
Nuno Cameira
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(1) - no BMJ 457-280.
(2) - P. Lima e A. Varela, CC Anotado, nota 7 ao art. 496º.
(3) - Antunes Varela, RLJ 123º-279.
(4) - Como bem lembra Calvão da Silva, na RLJ 134º-197 e ss.
(5) - A aqui aplicável, dado que o acidente ocorreu em 5 de Abril de 1994 e as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n.º 130/94 só entraram em vigor em 31.12.95, como disposto no n.º 2 de seu artigo 5º.
(6) - Rodrigues Bastos, Notas a CPC, III, notas ao art. 661º do CPC.