Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07P2268
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PARA A DECISÃO
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200706210022685
Data do Acordão: 06/21/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ORDENADA A REMESSA AO T. R. GUIMARÃES POR SER O COMPETENTE
Sumário :
1 – O ter um acórdão omitido pronúncia quanto a determinados factos alegados pelo arguido em sede de contestação, não os considerando como não provados, nem como provados não determina a nulidade prevista no art. 379.º, n° 1, al. c), 1ª parte do CPP
2 – O que releva é antes a ocorrência de um vício da matéria de facto: insuficiência da matéria de facto [art. 410.º n.º 2, a) do CPP], com o eventual reenvio para novo julgamento, insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4 do CPP.
3 – Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito
4 – Ora, como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça, não pode hoje ser fundado um recurso de revista na existência de vícios da matéria de facto, salvo se se tratar de recurso de decisão do tribunal de júri, caso em que sobe directamente ao Supremo. Nos restantes casos, designadamente quando a questão de facto já foi suscitada perante a Relação, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto e é a essa luz que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser apreciado.
5 – Não pode, pois, ser apreciada essa questão, enquanto fundamento do recurso trazido pelo arguido, devendo os autos ser remetidos à Relação competente, para dela.
Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:

Por acórdão de Vila do Conde, 6.6.2006, o Tribunal Colectivo de Vila do Conde decidiu:
— Absolver os arguidos AA e BB da prática de 7 crimes de abuso de confiança fiscal em relação à Segurança 1.
Social dos art.ºs 27°-B do RJIFNA aprovado pelo DL n.° 20-A/90, de 15 de Janeiro, com a redacção que lhe foi dada pelo DL n.° 140/95, de 14 de Junho e actualmente pelo art. 107°, n.° l e 2 da Lei n.° 15/2001 de 5 de Junho;
— Condenar cada um dos arguidos CC e DD pela prática, em co-autoria material, de 1 crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social dos art.ºs 107º, nº 1 e 105º, nºs 1 e 2, da Lei nº 15/2001, de 5/6 e art. 30º, nº 2 e 79º, do C. Penal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 7,00 Euros.
— Condenar a arguida EE, Lda. como co-autora material de um crime continuado de abuso de confiança contra a Segurança Social dos art.ºs 107º, nº 1 e 105º, nº 1 e 2, da Lei nº 15/2001, de 5 de Junho, nº 2 e 79º, do C. Penal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 20,00 euros.
— Julgar parcialmente procedente o pedido cível, por provado e, consequentemente, condenar os demandados EE, Lda., CC a pagarem, solidariamente, ao Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social Norte a quantia de 11.701,22 Euros, acrescida de juros de mora à taxa legal vencidos e vincendos até integral pagamento, conforme o peticionado.
Inconformado, recorre o arguido CC, pedindo seja ordenada a repetição do julgamento, para apuramento dos factos ínsitos nos itens 32, 34, 35, 38, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56 da contestação e, subsidiariamente, que seja o acórdão revogado com a sua total absolvição.
Aponta, na sua motivação, as seguintes questões:
— Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia (conclusões II, III e X);
— Falta de retenção das contribuições para a Segurança Social e de apropriação delas (conclusões IV a IX).
Respondeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido, que se pronunciou pelo improvimento do recurso e pela confirmação do julgado.
Distribuídos os autos neste Supremo Tribunal de Justiça a 6.6.2007, teve vista o Ministério Público.
No exame preliminar o Relator suscitou a questão prévia da competência, em razão da matéria de deste Supremo Tribunal de Justiça, pelo que, colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre conhecer e decidir.
2.
E conhecendo.
Vejamos em primeiro lugar a factualidade apurada:
2.1.
Factos provados:
1. A “EE, Lda.”, com sede em Monfroia, Vila do Conde, é uma sociedade por quotas que iniciou a sua actividade em Setembro de 1988, tendo por objecto o comércio de fios têxteis.
2. Sendo que a respectiva gerência, à data dos factos que iremos descrever, era exercida pelos arguidos CC e DD.
3. Os arguidos CC e DD, no desenvolvimento da actividade da empresa representada pelos mesmos (EE), nos períodos que adiante se indicam, geriam e administravam a empresa arguida e, em nome e no interesse desta, decidiam da afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações, sendo responsáveis pelo desconto das contribuições devidas à Segurança Social no montante dos salários pagos aos trabalhadores, bem como pelo preenchimento e entrega das respectivas folhas de remuneração no Centro Regional de Segurança Social do Porto.
4. Os arguidos, no desenvolvimento da actividade da referida empresa representada pelos mesmos, e nos períodos que a seguir se indicam, procederam a descontos nos salários pagos aos respectivos trabalhadores, a título de contribuições devidas à Segurança Social, nos seguintes montantes:

PERÍODOSalários pagosTaxaContribuições retidas e não entreguesRegime
Novembro 963.688.515$00 11% 132,90 Euros Geral
Dezembro 967.018.947$00 11% 3.851,14 Euros Geral
Setembro 983.568.489$00 11%772,09 Euros Geral
Março 99
Março 99
960.000$00
3.408.403$00
10%
11%
478,85 Euros
874,23 Euros
MembºEs
Geral
Setembro 993.343.232$0011% 1.834,36 EurosGeral
Junho 2000960.000$00
3.991.191$00
10%
11%
478,85 Euros
1.836,57 Euros
MembºEs
Geral
Julho 2000 3.309.681$0011% 1.815,95 Euros Geral

5. No entanto, pese embora tendo enviado as respectivas folhas de salários, no seguimento do propósito que formularam, os arguidos CC e DD não entregaram as quantias supra referidas, que totalizaram 13.074,94 Euros, no Centro Regional de Segurança Social, até ao dia 15 dos meses subsequentes àqueles em que foram descontadas, nem nos noventa dias posteriores, antes se apropriando das mesmas e integrando-as no património da sociedade nos períodos acima indicados e, ao longo dos períodos de tempo atrás indicados foram renovando a sua intenção de reter as contribuições devidas, utilizando-as na firma arguida para satisfação das despesas desta.
6. Os arguidos CC e DD agiram do modo descrito, sempre no quadro da mesma solicitação anterior, em face das dificuldades da sociedade arguida de obtenção de disponibilidades financeiras, tendo, por isso, decidido canalizar para pagamento de outras despesas da sua representada os montantes deduzidos e retidos nas remunerações pagas aos trabalhadores e colaboradores daquela a título de IRS, bem sabendo que era sua obrigação proceder à respectiva entrega naqueles Serviços.
7. Desta forma, a segurança social sofreu um prejuízo correspondente à soma dos montantes de que os referidos arguidos se apropriaram, verificado desde o momento da respectiva omissão de entrega.
8. Os referidos arguidos agiram na qualidade de representante legal, em nome e no interesse daquela sociedade.
9. Os arguidos CC e DD agiram livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
10. Os Arguidos BB e AA, por escritura pública celebrada no 1° Cartório Notarial de Vila do Conde, em 21 de Outubro do ano de 1996 renunciaram ao cargo de gerentes na sociedade arguida “EE, Lda.”.
11. Também nesta data, a Arguida AA transmitiu a sua participação social que detinha na sociedade Arguida.
12. Tal acto de renúncia à gestão da sociedade arguida foi registado em 20.12.1996.
13. A partir daquela data os Arguidos BB e AA nunca mais exerceram qualquer acto de gestão, nunca mais assinaram qualquer cheque, ou qualquer documento que vinculasse a sociedade, nem nunca mais deliberaram sobre a gestão da sociedade.
14. Desde o ano de 1993 os mesmos arguidos nunca mais compareceram na sociedade, exerceram qualquer acto de gestão, nem movimentavam a tesouraria da Arguida “EE, Lda.”, nem efectuaram qualquer pagamento a trabalhadores.
15. O arguido CC ingressou na sociedade como sócio minoritário em finais de Outubro 1993.
16. Desempenhou fungões de gerência desde Outubro de 1993 até Junho de 2003, altura em que renunciou à gerência, acto que foi registado em 21 de Julho de 2003.
17. A arguida EE, Lda., desde o ano de 1996, teve os seguintes resultados contabilísticos: No ano de 1996 um resultado positivo de 13.809.807$40; No ano de 1997 um resultado positivo de 11.006.870$50; No ano de 1998 um resultado negativo de 17.648.692$40; No ano de 1999 um resultado negativo de 7.620.087$70; No ano de 2000 um resultado positivo de 724.206$70.
18. No ano de 1995 a Arguida EE Lda. tinha um prejuízo acumulado no montante de 104.462.708$00.
19. A sociedade arguida detém créditos incobráveis que desde 1996 até 2001 ascendiam a cerca de 50.000.000$00.
20. Na década de 90 ocorreu uma crise no sector têxtil que se agravou desde 1996, tendo diminuído as encomendas, o que levou a que a capacidade produtiva da sociedade arguida fosse decrescendo e fosse encerrada em Fevereiro de 2002.
21. Em consequência, a partir de certa altura, deixou de pagar pontualmente as retribuições aos trabalhadores, inclusivamente os salários dos arguidos CC e DD.
22. A falta de pagamento das contribuições em causa ocorreu num contexto de dificuldades económicas da sociedade arguida, procurando a mesma evitar o seu encerramento e o despedimento de trabalhadores.
23. Para dar resposta a tais dificuldades, em 1996 a sociedade arguida celebrou um acordo com a Administração Fiscal ao abrigo do Decreto-Lei n°225/94 e Decreto-Lei n° 124/96 (Plano Mateus), o qual, englobava pagamentos de prestações.
24. A empresa arguida celebrou acordos sucessivos com a Administração Fiscal, relativos ao pagamento faseado de dívidas de contribuições que se iam vencendo e que a empresa ia requerendo ao abrigo do despacho 17/97.
25. A sociedade arguida celebrou acordos com as Finanças de Vila do Conde para pagamento das cotizações em atraso e efectuou nesse âmbito também pagamentos por conta.
26. Em 2000, a empresa encontrava-se a proceder ao pagamento das prestações relativas ao processo n° ......-97/.........1 e processo n°.....-99/........1.
27. A sociedade arguida sempre tentou cumprir as suas obrigações fiscais e perante a segurança social.
28. No ano de 1994 a Arguida “EE, Lda.” tinha nos seus quadros uma média de 41 trabalhadores, no ano de 2002 tinha 26.
29. Os arguidos CC e DD pagaram das suas contas pessoais alguns débitos para com fornecedores da sociedade arguida e efectuaram prestações suplementares (suprimentos).
30. O arguido CC encontra-se de baixa média, auferindo de pensão 150,00 Euros mensais.
31. Vive com a esposa e dois filhos e tem como habilitações literárias o curso comercial.
32. O arguido DD é reformado recebendo a quantia de 118,00 Euros mensais.
33. Vive com a esposa em casa de um filho e tem como habilitações literárias o 2º ano do curso de economia.
34. O arguido BB exerce a actividade de empresário auferindo mensalmente entre 3.000,00 a 4.000,00 Euros, além de reforma a quantia mensal de 1.400,00 Euros.
35. Vive com a esposa e tem como habilitações literárias a 4ª classe.
36. A arguida AA é doméstica, vive com o marido e tem como habilitações literárias a 4ª classe.
37. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais.
38. Os arguidos CC e DD confessaram os factos e mostraram-se arrependidos.
39. Em Dezembro de 2000 e Janeiro de 2001 os arguidos CC e DD procederam ao pagamento das cotizações referentes ao mês de Setembro de 1998 e acréscimos legais.
40. Os mesmos arguidos, em Outubro de 2001, procederam ao pagamento da totalidade das contribuições relativas ao mês de Junho de 2000, no que respeita aos membros estatutários e a parte (122,78 Euros) do regime geral.
Factos não provados:
Não se provaram os seguintes factos com relevo para a decisão:
― que os arguidos AA e BB exerciam de facto as funções de gerente da sociedade denominada “EE, Lda.”;
― que os mesmos arguidos procederam a descontos nos salários pagos aos respectivos trabalhadores;
― que tais arguidos retiveram, deduzindo aos trabalhadores, as quantias referentes às contribuições obrigatórias para a Segurança Social, que eram devidas em obediência ao disposto nos art°s. 5°/2 do D-L n° 103/80, de 9.5 e 24° da Lei nº 28/84 de 14.8;
― que os arguidos AA e BB tiveram o propósito de reter as contribuições respeitantes aos salários pagos aos trabalhadores, apoderando-se de todas elas e integrando-as no seu património, fazendo-as suas;
― que os mesmos arguidos agiram livre, deliberada e conscientemente, com o intuito de fazer suas e da sociedade em causa a supra mencionada quantia em dinheiro;
― que sabiam ser a sua conduta proibida e punida por lei;
― que a sociedade arguida chegou a ser alvo de corte de energia eléctrica durante uma semana;
― que as funções do arguido CC se cingiam a dirigir a parte técnica de produção e a parte comercial de angariação de clientes, bem como a estabelecer os contactos com fornecedores;
― que a sociedade arguida nunca chegou a ter nos seus cofres a quantia necessária para proceder aos pagamentos das quantias devidas à segurança social;
― que a entidade patronal não tinha escolha ao efectuar os pagamentos prestacionais para a segurança social;
― que era a segurança social que escolhia o destino dado pelas quantias entregues pela sociedade arguida.
2.2.
Pretende o recorrente que é nulo o acórdão recorrido, por ter omitido pronúncia quanto a factos alegados pelo arguido em sede de contestação, nos itens 32, 34, 35, 38, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56 – não os considerando como não provados, nem como provados – o que determinaria a nulidade prevista no art. 379.º, n° 1, al. c), 1ª parte do CPP (conclusões II e X) e a repetição do julgamento, para apuramento dos factos em falta – factos estes indispensáveis e necessários para a justa decisão da causa. (conclusão III)
Sobre esta questão, entendeu o Ministério Público junto do Tribunal recorrido que, na sua decisão, o tribunal não tem que se pronunciar expressamente sobre a totalidade dos factos alegados na contestação se esses factos já estiverem incluídos noutros, se forem conclusivos ou se forem meramente argumentativos (conclusão 1.ª) e que os itens da contestação a que o recorrente se refere no seu recurso incluem-se nas supra mencionadas situações (conclusão 2.ª).
Independentemente de assistir ou não razão ao recorrente na questão que suscita, importa começar por caracterizá-la.
Pretende o recorrente que se trata de uma nulidade da decisão recorrida, por omissão de pronúncia [art. 379.º, n.º 1, a) «1 – É nula a sentença: (…) c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento»], que acarretaria a anulação dessa peça e a sua nova prolação com a pronúncia omitida.
Mas, no entanto, como se viu, pede não a anulação da decisão recorrida, mas sim que “seja ordenada a repetição do julgamento, para apuramento dos factos ínsitos nos itens 32, 34, 35, 38, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55 e 56 da contestação” e subsidiariamente a revogação do acórdão e a sua absolvição.
Ou seja, pressente o recorrente que afinal se não trata de nulidade de decisão, mas de um vício diverso e que conduz, se reconhecido, a consequência diversa da anulação: o reenvio parcial para novo julgamento.
E, na verdade, o Tribunal recorrido não omitiu pronúncia sobe a questão de facto, antes não se pronunciou – na óptica do recorrente – adequadamente sobre tal questão.
Efectivamente, o que releva na problemática que suscita é antes a ocorrência de um vício da matéria de facto: insuficiência da matéria de facto [art. 410.º n.º 2, a) do CPP], com o eventual reenvio para novo julgamento.
Com efeito, dispõe-se naquele normativo que, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; (…)»
Acrescentando o n.º 1 do art. 426.º do CPP que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objecto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio».
A insuficiência a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP decorre, pois, da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa. E dispõe o art. 339.º, n.º 4 do CPP, a propósito: (…) «a discussão da causa tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia(…)».

Aquele vício (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada) ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.

Daí que a insuficiência a que alude a al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP decorra da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito (cfr. neste sentido, os AcSTJ de 18.3.04, proc. n.º ....../03-5, e de 8/6/06, proc. n.º ....../06-5, ambos com o mesmo Relator)
Ora, como é jurisprudência pacífica deste Supremo Tribunal de Justiça, não pode hoje ser fundado um recurso de revista na existência de vícios da matéria de facto, salvo se se tratar de recurso de decisão do tribunal de júri, caso em que sobe directamente ao Supremo.

Nos restantes casos, designadamente quando a questão de facto já foi suscitada perante a Relação, considera-se definitivamente fixada a matéria de facto e é a essa luz que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça deve ser apreciado.

No entanto, este Tribunal pode entender oficiosamente que a decisão recorrida padece de algum desses vícios, como resulta da Jurisprudência fixada pelo acórdão nº ../95 de 19/10/1995, DR IS-A de 28-12-95, BMJ 450-72 (“é oficioso, pelo Tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.

Não pode, pois, ser apreciada essa questão, enquanto fundamento do recurso trazido pelo arguido. Mas deverá ser apreciada oficiosamente pelo Supremo Tribunal de Justiça, como também o consente o art. 729.º, n.º 3 do CPC (“O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito”).

Pode ver-se, por todos, o Ac. de 18.10.01 (proc. n.º 2537/01-5, com o mesmo Relator): «(3) - A norma do corpo do artigo 434.º do CPP só fixa os poderes de cognição do Supremo Tribunal em relação às decisões objecto de recurso referidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 432.º, e não também às da alínea d), pois, em relação a estas, o âmbito do conhecimento é fixado na própria alínea, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito. (4) - Assim, o recurso que verse [ou verse também] matéria de facto, designadamente os vícios referidos do artigo 410.º, terá sempre de ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação de uma e outro, sem prejuízo de o Supremo poder conhecer, oficiosamente, daqueles vícios como condição do conhecimento de direito. (5 - Não se verifica contradição entre esta posição e a possibilidade que assiste ao STJ de conhecer oficiosamente dos falados vícios. Enquanto a invocação expressa dos apontados vícios da matéria de facto visa sempre a reavaliação da matéria de facto que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado. O conhecimento oficioso pelo STJ é imposto pela sua natureza de tribunal de revista, que se vê privado de matéria de facto adequadamente provada e suficiente para constituir a necessária base de aplicação do direito. Um remédio, que, ao contrário do que em regra sucede na Relação, terá de ser solicitado a quem de direito (art.º 426.º, n.º 1, do CPP).»

No caso vertente, tendo o recurso sido dirigido directamente ao Supremo Tribunal de Justiça, quando se funda também num dos vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP, impõe-se a remessa para o Tribunal da Relação de Guimarães a quem cabe, nos termos das disposições citados resolver definitivamente as questões de facto, mesmo se abrigadas no n.º 2 do art. 410.º do CPP.

3.

Pelo exposto, acordam os juízes da (5.ª) Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente a mencionada questão prévia e em consequência, ordenar a remessa dos autos à Relação de Guimarães, para conhecimento do recurso por ser o Tribunal materialmente competente.

Sem custas.
Lisboa, 21 de Junho de 2007
Simas Santos (Relator)
Santos Carvalho
Costa Mortágua