Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
283/09.0YFLSB.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: CONTRATO DE TRANSPORTE
CONVENÇÃO DE BRUXELAS
ACÇÃO CÍVEL
CADUCIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 04/14/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 258.º, 298.º, N.º2, 328.º, 1178.º
DL N.º 255/99, DE 07-07: - ARTIGO 1.º
Legislação Comunitária: CONVENÇÃO DE BRUXELAS: - ARTIGO 3.º, N.º6
Sumário :

- Em princípio e de acordo com o disposto no artigo 1º do Decreto-lei 255/99, de 07.07, o âmbito da actividade de um transitário não envolve o transporte de mercadorias, sem bem que tem sido entendimento comum que aquele não está impedido de o fazer;
- Configurando-se a actividade de transitário como um contrato de mandato – como quase pacificamente é entendido – daí resulta que quando uma sociedade transitária é contratada pela proprietária das mercadorias transportadas celebrou um contrato de transporte, o fez em representação da autora;
- Sendo assim e face aos disposto nos artigos 1.178º e 258º, ambos do Código Civil, é de concluir que a sociedade transportadora se vinculou para com aquela proprietária por virtude contrato de transporte que a transitária consigo celebrou como mandatária daquele autora.
- E, portanto, quanto ao prazo de caducidade do direito de propor uma acção com base em cumprimento defeituoso desse contrato, havia que se considerar o regime estabelecido na Convenção de Bruxelas.
- O prazo estabelecido no nº6 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas é patentemente um prazo de caducidade, na medida em que estabelece que o direito de indemnização aí referido só pode ser exercido dentro de um certo prazo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 06.01.05, no Tribunal Marítimo de Lisboa, AA Limitada instaurou contra BBSA a presente acção com processo ordinário

pedindo
a condenação da ré a pagar-lhe uma indemnização no montante de 24.959,94 €, acrescida de juros legais

alegando
em resumo que
- solicitou à ré as “operações” necessárias para que uma mercadoria que tinha adquirido nos Açores – diversas qualidades de queijo – fosse transportada para Lisboa por via marítima;
- por lapso da ré, tal mercadoria foi transportada em contentor com uma temperatura não adequada;
- em virtude disso, sofreu prejuízos que enuncia e no montante peticionado.

Contestando
e também em resumo
a ré invocou
- a ilegitimidade da autora;
- a caducidade do direito que a autora pretendia exercer, face ao disposto na Convenção de Bruxelas
e alegou que
- efectivamente houve lapso na indicação da natureza da mercadoria, que inicialmente se declarou ser manteiga, quando eram queijos;
- mas desse lapso não resultou qualquer deterioração ou desvalorização da mercadoria.

Replicando
a autora, para além de manter que era parte legítima, alegou que não se aplicava ao caso a Convenção de Bruxelas e o prazo de caducidade aí estabelecido, uma vez que o que estava em causa era apenas a responsabilidade civil extracontratual da ré para com a autora, que não era parte no contrato de transporte.

Em 08.03.14, foi proferida sentença no despacho saneador, no qual se decidiu julgar improcedente a excepção da ilegitimidade da autora deduzida pela ré e julgar procedente a excepção da caducidade deduzida pela ré.

A autora apelou, sem êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 08.11.23, confirmou a decisão recorrida.
Novamente inconformada, a autora deduziu a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.
A recorrida contra alegou, pugnando pela manutenção do acórdão recorrido.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que
- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;
- nos recursos se apreciam questões e não razões;
- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido
são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:
A) – Responsabilidade invocada;
B) – Reconhecimento do direito.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:
1. A R. BB foi telefonicamente contactada pela empresa LIDERTRAFEGO - Navegação e Trânsitos, Lda., para efectuar o transporte em contentor frigorífico de diversos cartões de manteiga, do porto de Ponta Delgada para o porto de Lisboa, à temperatura solicitada de -20 graus centígrados;
2. A R. BB entregou o contentor ITLU - 781267/0 à referida LIDER TRÁFEGO para que procedesse à consolidação da mercadoria, o que esta veio a fazer;
3. Após a consolidação e devolução do contentor, os serviços da ora R.
BB em Ponta Delgada, na convicção de que a mercadoria a transportar era manteiga procederam, conforme solicitado pela LIDERTRÁFEGO, à regulação da temperatura para os -20 graus centígrados;
4. A agência da ora R. em Ponta delgada apresentou a bordo a respectiva Nota de Carga que designava a mercadoria como sendo manteiga e indicava como temperatura requerida para o transporte – 20º C;
5. A Nota de carga é feita em função da reserva de carga e da entrega do contentor ao cliente para enchimento, sendo que, regra geral, as instruções de
preenchimento do conhecimento de embarque só são elaboradas mais tarde, o que também veio a suceder no presente caso;
6. Em conhecimento de embarque nº 00000000, emitido pela BB
Navegação S.A., textua-se:
- Carregador- LIDERTRÁFEGO, LDA ( ... )
- Recebedor - TRANS ORION - Transportes Internacionais, S.A. ( ... ) Navio - S. Gabriel
- Porto de Carga - Ponta Delgada
- Porto de Descarga - Lisboa
- Quantidade e Qualidade de volumes: conteúdo - 1120 D/40'Container Sic Caixas 1 x 20'que se diz conter queijo Tem. + 4°
Data ............
7. Os produtos foram carregados no navio S. Gabriel, em Ponta Delgada, no dia .............., com destino a Lisboa.
8. Posteriormente, a LÍDER TRÁFEGO, no âmbito das instruções para preenchimento do conhecimento de embarque, veio referir que a mercadoria a transportar seria queijo e não manteiga e que, como tal, o contentor deveria ser regulado para a temperatura de + 4°C.

9. A agência da R. BB, em Ponta Delgada, fez constar do conhecimento de embarque novas indicações que lhe foram comunicadas pela LIDERTRÁFEGO quanto à carga e temperatura a observar durante o transporte.
10. Por lapso não informou os serviços de bordo do navio "S. Gabriel" dessas alterações.
11. Em ........, à descarga do contentor no porto de Lisboa, a R. BB veio a constatar o referido lapso;
12 . A R. por fax datado de ............., comunicou ao transitário
contratado pela A. - TRANS ORION, Transporte s Internacionais, S.A., que tinha sido detectada à descarga em Lisboa uma anomalia na temperatura do contentor, porquanto a temperatura deveria estar regulada para 4°C e estava regulada para - 20° C, temperatura que manteve durante a viagem e que se encontrava à chegada.
13. Para o transporte das mercadorias referidas e com o destino
mencionado, foi emitido e assinado pela R., na sua qualidade de transportador marítimo, o "Bill of Landing" - "Conhecimento do Embarque", o qual titula o contrato de transporte marítimo do contentor com a mercadoria da A.
14 . Em .........., estando presentes um responsável pelo
armazém do SPC, um representante da empresa UNILEITE, um representante da empresa TRANS ORION, um perito nomeado pela Companhia de Seguros Fidelidade, na qualidade de seguradora da UNILEITE e o perito da COMISMAR, indicado pela ora R., procedeu-se á abertura do contentor n." ITLU - 0000000 e efectuou-se vistoria conjunta do contentor e da mercadoria.
15. A ora R. BB, em face do lapso verificado e procurando preservar o seu bom-nome comercial, propôs à TRANS ORION, aceitar uma desvalorização de 5% em relação do preço de venda da mercadoria.

Na Relação, foi acrescentado mais o seguinte facto:
- a Autora contratou a “Trans Orion” para esta, como empresa transitária, lhe prestar serviços de expedição e envio de mercadorias e o transporte foi efectuado pela ora ré.

Os factos, o direito e o recurso

A) – Responsabilidade invocada

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que a autora recorrente pretendia, com a presente acção, ser indemnizada por prejuízos derivados do cumprimento defeituoso de um contrato de transporte de mercadorias por mar e que por isso, devia ter instaurado aquela acção, o que não fez, no prazo de um ano a contar da entrega da mercadoria, conforme o estabelecia o nº6 do artigo 3º da Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimento de Carga, assinada em Bruxelas em 25 de Agosto de 1924, a que Portugal aderiu por Carta de 5 de Dezembro de 1931, publicada no Diário do Governo, I Série, de 32.06.02 e que foi tornada direito interno pelo Decreto Lei 37.748, de 50.02.01 e, subsidiariamente, pelas disposições do Decreto Lei 352/86, de 21.10.

Na Relação houve o mesmo entendimento, escrevendo-se que “o que está em causa não é a inexecução do contrato de transporte, antes a indemnização por perdas e danos de mercadorias transportadas e relativamente às acções contra o transportador, aplica-se a Convenção de Bruxelas e o mencionado prazo.

A autora recorrente entende que não é de aplicar aquela Convenção, uma vez que requereu a indemnização por via do prejuízo sofrido na qualidade de proprietária e importadora da mercadoria transportada e não de parte contraente em qualquer contrato de transporte, motivo pelo qual o que estava em causa era responsabilidade extracontratual da ré, não sendo assim aplicável a Convenção de Bruxelas e o prazo de caducidade acima mencionado, mas antes o “prazo de prescrição ordinário”.
Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

A autora recorrente instaurou a presente acção alegando que “solicitou à ré as “operações” necessárias para que a mercadoria chegasse ao seu destino, o que foi por esta aceite”.
Invoca, pois, a existência de um acordo, de um contrato, que se pode classificar de transporte, na medida em que a ré se teria obrigado a transportar, deslocar, uma mercadoria, com segurança e exactidão de uma lado para o outro.
E esse transporte seria feito por via marítima, conforme decorre do todo o articulado pela autora.

Na sua réplica, a autora vem alegar que a relação que tinha com a ré não podia ser qualificada como um contrato, não sendo o seu pedido fundamentado numa relação contratual mas antes numa relação extracontratual.
Não pode ser.

Em primeiro lugar, porque rigorosamente a autora não alterou a causa de pedir.
Na verdade, consistindo esta no facto jurídico de que decorre a pretensão que o autor deduz em juízo, ou seja, um facto concreto de que promana em efeito jurídico, não há dúvida que a autora continuou a entender, mesmo na réplica, que tinha encarregado a ré de proceder às “operações” necessárias aos transporte das mercadorias por via marítima.
Logo, a base do seu relacionamento com a ré era o tal contrato de transporte marítimo.
A ser realizado pela ré ou por quem esta tivesse mandatado para tal.

Em segundo lugar, está demonstrado que o transporte foi efectuado pela ré.
Mas seria efectuado pela ré sem a intervenção da autora e apenas com intervenção da sociedade transitária “Trans Orion”, por si contratada?
Cremos bem que não.
Na verdade e como bem se acentua no acórdão recorrido, o que se sabe é que a autora contratou com a dita transitária serviços de expedição e envio de mercadorias.
Em princípio e de acordo com o disposto no artigo 1º do Decreto-lei 255/99, de 07.07, o âmbito da actividade de um transitário não envolve o transporte de mercadorias, se bem que tem sido entendimento comum que aquele não está impedido de o fazer.
De qualquer forma, no caso concreto em apreço, não o fez, uma vez que as mercadorias foram transportadas pela ré.

Mas foram transportadas pela ré por virtude de um contrato que aquela sociedade transitária consigo teria efectuado.
Configurando-se a actividade de transitário como um contrato de mandato – como quase pacificamente é entendido – não nos resta outra conclusão, como também se conclui no acórdão recorrido, que quando a sociedade transitária contratada pela autora celebrou o dito contrato de transporte, o fez em representação da autora, como aliás, esta invoca no artigo 2º da sua réplica.
Sendo assim e face aos disposto nos artigos 1.178º e 258º, ambos do Código Civil, não podemos deixar de concluir que a ré se vinculou para com a autora por virtude contrato de transporte que a transitária consigo celebrou como mandatária daquele autora.
E, portanto, quanto ao prazo de caducidade do direito de propor a presente acção com base em cumprimento defeituoso desse contrato, havia que se considerar o regime estabelecido na Convenção de Bruxelas, atrás citada.

No caso concreto em apreço e de acordo como o disposto no nº6 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas, a presente acção deveria ter sido instaurada no prazo de um ano a partir de 14 de Novembro de 2001, data em que foram entregues as mercadorias.
Foi instaurada em 5 de Janeiro de 2005.
Muito para além do prazo, portanto.
Assim e tendo já em conta a decisão da questão que a seguir se vai apreciar, o exercício do direito que a autora invocou na presente acção já tinha caducado, conforme bem se decidiu no acórdão recorrido.

Apenas mais uma nota.
A recorrente entende que seria aplicável ao caso o prazo de prescrição ordinária.
Como a seguir vamos ver, o prazo estabelecido no nº6 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas é um prazo de caducidade e hão um prazo de prescrição.
No entanto, mesmo que se considerasse um prazo de prescrição e que estava aqui em causa uma indemnização com base em responsabilidade extracontratual, mesmo assim o prazo de prescrição não era o prazo ordinário de vinte anos estabelecido no artigo 309º do Código Civil, mas antes o prazo de três anos estabelecido no artigo 498º do Código Civil.
Prazo este que, tendo em conta a data que a autora ou o transitário seu representante tiveram conhecimento do direito – Novembro de 2001 – já estava decorrido na data da instauração desta acção.

B) – Reconhecimento do direito

Entende a recorrente que o facto de a ré ter reconhecido ter havido um lapso na indicação da temperatura para o transporte da mercadoria em causa e que as mercadorias teriam sofrido um determinado grau de desvalorização, teria interrompido o prazo de prescrição, face ao disposto no artigo 325º do Código Civil, na medida em que se teria que concluir que a ré teria reconhecido o direito que a autora pretende exercer na presente acção.
Não tem razão.

O prazo estabelecido no nº6 do artigo 3º da Convenção de Bruxelas é patentemente um prazo de caducidade, na medida em que estabelece que o direito de indemnização aí referido só pode ser exercido dentro de um certo prazo – cfr. nº2 do artigo 298º do Código Civil.
Trata-se de um prazo que se explica por razões objectivas de segurança jurídica, bem como na necessidade de definição, dentro de um prazo razoável, das situações jurídicas, evitando-se uma tendencial “vinculação perpétua “ por parte do devedor que, caso contrário, poderia ser interpelado, a todo o tempo, pelo credor para efectivação do seu direito.

Ora, nos termos do disposto no artigo 328º do Código Civil ,“o prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine”, sendo, pois, inaplicável o regime da prescrição respeitante a esta matéria estabelecido nos artigos 318º e seguintes e 323º e seguintes, ambos do mesmo diploma.

No caso em apreço, a lei não admite qualquer excepção a esta regra, pelo que o prazo em causa não se podia interromper com os factos invocados pela autora, acima enunciados.

Mas mesmo que se entendesse que se aplicavam aqui as regras da prescrição e da sua interrupção, teríamos sérias dúvidas em considerar que a ré teria reconhecido o direito da autora de ser indemnizada por prejuízos causados por si.
Na verdade, esse reconhecimento teria que ser inequívoco.
Ora, dos factos dados como provados não se pode concluir que do lapso reconhecido pela ré tenha resultado qualquer anomalia na mercadoria transportada, sendo que a aceitação de uma desvalorização de 5% proposta pela ré à “Trans Orion” não é inequívoca sobre o reconhecimento dessa anomalia na medida em que é explicada como meio de a ré procurar preservar o seu bom nome comercial.

Em conclusão, não é de censurar o acórdão recorrido.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em negar a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 14 de Abril de 2011

Oliveira Vasconcelos (Relator)

João Bernardo
Serra Baptista