Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B122
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
ALEGAÇÕES ESCRITAS
MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ200405200001227
Data do Acordão: 05/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 2372/02
Data: 07/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. O convite ao aperfeiçoamento de peças processuais tem lugar quando a lei assim dispuser;
2. Não há lugar, no âmbito do art.º 690º-A, n.º 1, proémio e n.º 2, do Código de Processo Civil, a convite prévio, em vista a suprir qualquer omissão do recorrente;
3. O art.º712º, nº1, al. a), do mesmo Código, dispõe que a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se... «tendo ocorrido gravação dos depoimentos, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 690º-A, a decisão com base neles proferida».
4. Mas para que se possa fazer uso desse poder, é preciso, segundo o artigo 690°-A, n.º1), ainda do dito Código, «que o recorrente, obrigatoriamente, impugne especificadamente quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo e gravação da prova nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida, e ainda que proceda à transcrição, mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que se funda».
Decisão Texto Integral: Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça:

1.Em 14 de Junho de 1999, e no Tribunal Judicial da Comarca de Albergaria - A - Velha, a autora A - CAIXAS ISOTÉRMICAS, LDA demandou, em acção declarativa de condenação sob a forma de processo ordinário, a ré, B, pedindo a sua condenação "(...) a pagar à Autora o montante de Esc.5.814.702$00 (Cinco milhões, oitocentos e catorze mil, setecentos e dois escudos), acrescido dos juros vincendos, contados à taxa legal supletiva para os juros moratórios e compensatórios aplicáveis às dívidas de empresas comerciais, desde a citação e até integral pagamento (...)".
2. Citada a ré, defendeu-se, por excepção, invocando a ineptidão da petição inicial (por não conseguir "vislumbrar qual é o pedido da A.") e a compensação de créditos; e por impugnação, contradizendo parcialmente os factos afirmados no articulado introdutório da lide, tendo ainda deduzido reconvenção que terminou com a formulação do pedido de condenação da autora reconvinda no pagamento da "(…) quantia de Esc.16.339.943$00.
Na audiência preliminar foi admitido o "registo de prova", fls. 161, então requerido por ambas as partes, fls. 150 e 161.
3. Realizada a audiência de discussão ( fls. 196 a 199 e 220 a 224) o tribunal respondeu à matéria de facto, nos termos constantes do despacho de fls. 226 a 230, que não suscitou qualquer reclamação.
4. A sentença decidiu nos termos seguintes ( fls. 234/240):
a) Julgou a acção procedente por provada, e, em consequência, condenou a Réu B a pagar à Autora "A - CAIXAS TÉRMICAS LDª", a quantia de Esc. 5.285.580$00 (cindo milhões, duzentos e oitenta e cinco mil, quinhentos e oitenta escudos), acrescida de juros vincendos desde a data de citação, neste momento de 12%.

b) Julgou improcedente por não provado o pedido reconvencional deduzido pela R. e dele absolveu a A.

c) Condenou a R. como litigante de má fé, na multa de Esc.100.000$00 (cem mil escudos) e Esc.50.000$00 (cinquenta mil escudos) a favor da A.

5. A ré/reconvinte apelou da sentença.

E o Tribunal da Relação de Coimbra julgou a apelação totalmente improcedente confirmando a sentença. (Fls. 340 a 347).

A ré recorreu (fls. 352), recurso que foi admitido e processado como agravo (fls. 364).

[Em cumprimento do despacho de fls. 398 e verso, do aqui relator, a ré juntou aos autos a alegação ("aperfeiçoada", praticamente igual - fls. 403 a 411].

6. São as seguintes conclusões, que, para evitar dúvidas ou menor entendimento, sobre, exactamente, o que a recorrente propõe no recurso, transcrevemos, por inteiro:
I - A recorrente interpôs no Tribunal da Relação de Coimbra recurso de apelação no qual colocava diversas questões para as quais pedia resolução, entre as quais, a instrumentalização de uma testemunha, a irregularidade do depoimento de parte do gerente da recorrida, bem como a irregularidade na produção desse mesmo depoimento.
II - Por lapso manifesto, a recorrente não fez, como lhe competia, a transcrição mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que fundamentava o seu recurso em termos de matéria de facto, conforme art. 690º-A, n.º 2, do C.P.C., com a redacção do D.L. 329-A/95, anterior à redacção do D.L. 183/2000, de 10/08, sendo que, por força dos artigos 7º e 8º deste último, ao acórdão proferido no tribunal "a quo" não se aplicava a nova redacção do n.º 2, do art. 690º-A dada por este diploma legal. (O sublinhado não pertence à transcrição, mas é interessante para se perceber o que mais para a frente vai ser explicado).
III - O Tribunal "a quo" não convidou, como lhe competia, a recorrente a aperfeiçoar as suas alegações, no caso, a proceder à transcrição dactilografada das passagens da gravação onde fundamentava o seu recurso, art. 690º, n.º 4, do C.P.C..
IV - No acórdão proferido, o Tribunal "a quo" não se pronunciou sobre a parte do recurso afectada pela omissão da transcrição dactilografada, como tal, igualmente não apreciou ou sequer se pronunciou sobre os concretos meios probatórios constantes da gravação da prova realizada no processo e que impunham decisão diversa da recorrida, aos quais a recorrente se referiu e fundamentou a sua defesa.
V - Ao omitir a notificação da recorrente para o aperfeiçoamento das suas alegações, foi o próprio tribunal que impediu a si mesmo o conhecimento de todas as questões que lhe foram colocadas, obstando pela mesma via à sua decisão.
VI - Deste modo, o Tribunal "a quo" deu lugar à nulidade consignada na al. d) do n.º 1 do art. 668º do C.P.C., aqui aplicável por remissão do art. 716º do mesmo diploma legal, no caso à nulidade por omissão de pronúncia.
VII - A nulidade de omissão de pronúncia ocorre, única e exclusivamente, porque o Tribunal "a quo" entendeu não convidar a recorrente ao aperfeiçoamento das suas alegações e, subsequentemente, alegando a falta de transcrição, não se pronunciou sobre a decisão da matéria de facto proferida em primeira instância.
VIII - Fundamentando a sua decisão numa omissão para a qual contribuiu, esquecendo que ele próprio havia preterido o dever de notificar a recorrente para o aperfeiçoamento das suas alegações, concorrendo, assim, para que se operasse a alegada nulidade.
IX - Verificada a falta da transcrição dactilografada e, previamente à decisão de não apreciar o recurso na parte prejudicada, deveria ter notificado a recorrente para proceder em conformidade com o art. 690º, n.º 4.
X - O convite ao aperfeiçoamento não é um poder discricionário do Tribunal, mas antes um dever vinculado que lhe é imposto pelo referido dispositivo legal, que lhe exige o convite prévio à recorrente para que aperfeiçoe as suas alegações, e só em caso de omissão de resposta por parte da convidada, poderá, então, não apreciar o recurso ou não o apreciar na parte prejudicada.
XI - Também neste aspecto, o Tribunal "a quo" deu lugar à nulidade prevista no art. 201º, uma vez que a irregularidade cometida influi necessariamente não só no exame como também na decisão da causa.
XII - O Tribunal "a quo" violou igualmente o princípio da cooperação, com previsão no art. 266º do mesmo diploma legal.
XIII - A nulidade aqui operante resulta, em primeiro lugar, da omissão do dever de convite ao aperfeiçoamento decorrente do n.º 4 do art. 690º do C.P.C., como também da omissão de pronúncia sobre a matéria do recurso, que ficou prejudicada pela falta de transcrição dactilografada, art. 668º, n.º 1, al. d), aplicável por remissão do art. 716º, ambos do C.P.C..
XIV - Assim já o entendeu o Supremo Tribunal de Justiça, para quem o princípio da cooperação, quando a situação compromete o conhecimento pelo tribunal de recurso da defesa do direito do recorrente, aponta como justa a aplicação da previsão do n.º 4 do art. 690º, que exige o convite prévio, antes da decisão de não se conhecer o recurso ou a parte do mesmo que se encontra prejudicada.
XV - Tem aqui actualidade a afirmação do Tribunal Constitucional Espanhol que a efectiva tutela judicial exige que o recurso defeituoso por omissão de requisito legal não deve ser repelido sem antes se conceder ao recorrente um prazo para sanar a falta.
XVI - Neste termos, o Tribunal "a quo" devia ter convidado a recorrente a aperfeiçoar a suas alegações, dando cumprimento ao dever vinculado previsto no n.º 4 do art. 690º do C.P.C., não se satisfazendo como fez, tanto mais que a sua decisão influencia e prejudica irremediavelmente a sorte da causa e o acórdão que proferiu e por decorrência as legítimas expectativas da recorrente.
XVII - O Tribunal "a quo" violou irremediavelmente as seguintes disposições legais:
- O art. 690º, n.º 4, do C.P.C., na medida em que deveria ter notificado a recorrente a completar as suas alegações e não o fez.
- O art. 660º, n.º 2, do C.P.C., na medida em que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e não as resolveu.
- O art. 266º, n.º 1, do C.P.C., na medida em que, na condução e intervenção no processo, devem os magistrados, os mandatários judiciais e as próprias partes cooperar entre si, o que não aconteceu por parte do Tribunal da Relação de Coimbra, violando assim o referido princípio.
- O art. 668º, n.º 1, al. d), do C.P.C., aqui aplicável por remissão do art. 716º do mesmo diploma legal, na medida em que o Tribunal "a quo" deixou de se pronunciar, quando o deveria ter feito, sobre questões que deveria decidir, o que é neste preceito cominado com a nulidade do acórdão proferido.
- O art. 20º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que a defesa dos direitos, liberdades e garantias das partes deve ser assegurada por um processo justo e equitativo, e não o foi, o que decorre igualmente do art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
XVIII - Sendo nulo o acórdão proferido, o presente processo terá de baixar à Relação de Coimbra, para que se faça a sua reforma, pelos mesmos juízes sendo possível, na medida em que as invocadas nulidades não poderão ser supridas pelo Supremo Tribunal de Justiça.
7. A delimitação objectiva e o conhecimento do recurso, a partir das conclusões da recorrente, vão ser tratados da maneira seguinte:
A) A rejeição do pedido de reapreciação da prova da matéria de facto, suportada no facto da recorrente não ter procedido à transcrição, mediante escrito dactilografado, dos depoimentos, ou parte dos depoimentos, que, na perspectiva da mesma recorrente, determinariam uma alteração de tal julgamento da matéria de facto;

B) A omissão de pronúncia sobre a invocada instrumentalização de uma testemunha arrolada pela autora, no sentido de que foi previamente dito a esta testemunha o que deveria responder na inquirição a realizar no tribunal, facto que ressalta, também na perspectiva da recorrente, do respectivo depoimento prestado em audiência;

C) Ainda a omissão de pronúncia sobre a arguida irregularidade na admissão do depoimento de parte prestado pelo gerente da autora;

D) Finalmente, a omissão de pronúncia sobre a arguida irregularidade na produção do depoimento de parte prestado pelo gerente da autora que recaiu sobre factos não alegados por qualquer das partes na acção.

Quanto à matéria da alínea A):

1. A resolução das questões que acabam de equacionar-se, exige reflexão mais desenvolvida sobre a matéria em título.

É o que iremos fazer.

A recorrente refere (conclusão II e conclusão III) que «só por lapso manifesto, a recorrente não fez, como lhe competia, a transcrição mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que fundamentava o seu recurso em termos de matéria de facto...».

E que «o Tribunal "a quo" não a convidou, como lhe competia, a aperfeiçoar as suas alegações, no caso, a proceder à transcrição dactilografada das passagens da gravação onde fundamentava o seu recurso, art. 690º, n.º 4, do C.P.C».
Trata-se, como já se deixou antever, da questão nuclear do agravo, e que condiciona as respostas aos demais problemas que vêm levantados nas transcritas conclusões.

Sobre ela, recentemente pronunciou-se este Tribunal, em termos que, no estado actual de evolução do direito do processo civil, da doutrina e da jurisprudência entretanto produzidas sobre a mesma matéria, não vemos razão para desvio.

Referimo-nos aos termos da fundamentação, e à decisão do agravo n.º 4739/02,de 6 de Fevereiro, desta secção, pelos mesmos subscritores, que viria a ser seguido pelo acórdão deste Tribunal proferido no agravo n.º 814/03, de 3 de Abril de 2003, para apenas indicar o mais recente. (Ambos podem ser consultados em www.dgsi.pt/jstj).

2. O art.º712º, nº1, al. a), do Código de Processo Civil dispõe que a decisão do tribunal da 1ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação se... «tendo ocorrido gravação dos depoimentos, tiver sido impugnada, nos termos do art.º 690º-A, a decisão com base neles proferida».
Mas para que se possa fazer uso desse poder é preciso ("deve o recorrente obrigatoriamente ..."- art.º690°-A, n.º1) «que o recorrente impugne especificadamente quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios constantes do processo ou do registo e gravação da prova nele realizada, que impunham decisão diversa da recorrida (o que se fez) e ainda que proceda à transcrição, mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que se funda». (O que a recorrente não se fez, por manifesto lapso, como revela, e se sublinhou).
Por isso, o tribunal ficou impedido de conhecer do recurso. (1)
Consequentemente - pergunta-se (?)- haveria o tribunal de a convidar, a apresentar a transcrição escrita da gravação, com as indicações pertinentes de que fala a norma reproduzida, convocada para solver a situação?
Convidar ou não - eis a questão!
É indiscutível que um dos princípio estruturantes do processo civil é o da cooperação entre todos os operadores judiciários, e, como tal, também entre o tribunal e as partes ( em especial, artigo 266º- B). (2)
É a tese em que suporta a agravante, reclamando o convite.
Por outro lado, afirmar-se -á ainda, em seu abono, que « A lei processual concede hoje ao juiz, bem mais do que anteriormente, poderes discricionários que lhe permitem impedir e sancionar abusos de direitos processuais... tão pouco se compreende que as causas continuem a ser decididas por razões exclusivamente processuais em muitos casos em que a nova legislação aponta uma decisão fundada no direito material. Apesar de uma evolução positiva, a reforma de mentalidades que a nova legislação postula, ainda não entrou, infelizmente, nos hábitos dos operadores judiciários». (3)
São fundamentos que poderiam levar à conclusão de que a recorrente, ao não cumprir o ónus de transcrição estabelecido 690º-A, poderia ter sido convidada pelo Tribunal a fazê-lo, em vez de lhe rejeitar o recurso.
É um possível caminho, de que este Tribunal também já se socorreu e alguma doutrina apoia. (4)
Mas não é esta a solução que vai defender-se! Vejamos, então qual, e o porquê da sua diferença:
3. O legislador não contemplou expressamente, e por forma genérica, o convite de aperfeiçoamento, embora o tenha feito em outras situações, adiante indicadas.
Não foi por imprevisão, mas por razões propositadas, facilmente sustentáveis e perceptíveis, preventivas de expedientes dilatórias que retardam a aplicação da justiça e não lhe trazem nada de eficiente.
Também este é o caminho dominante seguido pela doutrina e pela jurisprudência.
Embora sejamos sensíveis às razões de justiça material partilhando como postura profissional, que a forma não pode subverter a substância, certo é que, há regras e regras, sobretudo que são impostas por uma cultura judiciária de responsabilidade e não de laxismo, como mais adiante se verá.
O artigo 698º, n.º 6, fez acrescer um prazo geral de dez dias para a produção de alegações, sempre que se pretenda a reapreciação da matéria de facto (preceito aplicável ao agravo, por força do artigo 743º, n.º1). O que dá um prazo útil de 40 dias, somado a outro tanto para igualizar as partes do exercício do contraditório (artigos: 3º-3 e 3º-A).
Quem, recorre, tendo como causa a reapreciação, não pode deixar de tomar em conta, qual o segmento de matéria de apreciação pretendida; e para colocar ao tribunal para onde se recorre, semelhante pretensão, não pode deixar de equacionar a matéria que visa, transcrevendo-a, para da transcrição, retirar com seriedade intelectual, as inferências favoráveis à tese que, junto dele, se propõe demonstrar.
Este juízo avaliativo, em nosso pensamento, supõe uma estrutura lógica e deontológica de consistência inatacável!
Se é salutar a cooperação entre as partes, também se afigura importante a criação e desenvolvimento de uma cultura judiciária de responsabilidade, e de saber, que não tenha no juiz, o limite corrector dessa responsabilidade (ou irresponsabilidade: inconsciente ou provocada) ou desse saber, (ou ignorância: inconsciente ou provocada), quando se está perante uma clara ausência de um preceito legal, e de processo, que permita contar com a ajuda dos outros, suprindo faltas processuais graves, essenciais ao objecto do conhecimento, exactamente do que se pede ao tribunal, que conheça.
4. Fazendo de modo diverso, pode cair-se numa indisciplina de procedimento e arrastamento, tão impunes, quanto aleatórios, do exercício do direito de acção (ou de recurso) que nunca mais chega ao fim, com grave prejuízo para os interesses gerais da administração da Justiça e, em particular, para a contraparte - o cidadão, como pessoa singular, ou como pessoa jurídica - que outras o direito não conhece.
Em desfavor destas - das pessoas - vulneriza-se o princípio, igualmente respeitável, da preclusão processual civil, agravando o factor da incerteza do tempo da definição do direito; e introduz-se uma pedagogia processual negativa, a benefício do arbítrio ao convite, do uso e do abuso, sem critério, que em nada abona a confiança, a celeridade e a prontidão da justiça (5), acabando por conferir a esta, a imagem perigosa geradora do "deixar andar" ou do " erra que o Juiz corrige!"
Nem os "tempos novos da Justiça" correm ( ou, a nosso ver, não devem correr)a favor da sua marcha retardada, (6) "numa Sociedade da Informação e de Conhecimento" globalizada, de mercado aberto, competidor, de comércio jurídico electrónico, de tribunais cibernéticos...
5. A tese da recorrente, representando uma solução contra a corrente do tempo, pode assumir uma formulação modeladora como que, de homenagem ao desleixo ou, então, patrocínio da exortação à incúria. E por aí fora...!
Compreende-se que a lei não queira que a instância se inicie viciada (e permita o convite previsto pelo artigo 265º-2); que a instância não continue com os articulados desfocados do objecto da prova ( e permita o convite previsto no artigo 508º); que o recurso ordinário não se abra sem o objecto precisado nas conclusões (e permita o convite previsto pelo artigo 690.º- 4).
Mas já não se compreende outro tanto, quando, o recorrente « Por lapso manifesto, não fez, como lhe competia, a transcrição mediante escrito dactilografado das passagens da gravação em que fundamentava o seu recurso em termos de matéria de facto, conforme art. 690º-A, n.º 2, do C.P.C., com a redacção do D.L. 329-A/95...», e, daí, e afinal, não solicitou e indicou, em forma, em tempo e em lugar próprios, as peças e segmentos respectivos, para serem dactilografados por escrito e, assim, os levar ao conhecimento do tribunal para o qual recorre, exactamente para que disso mesmo (dessa mesma falta) conheça.
A seguir-se a tese da recorrente, poderíamos chegar ao absurdo de, depois de ser concedido, em primeira mão, à parte, um prazo de 40 dias para alegar (artigo 698º-2 e 3), e outro tanto à contra parte para, eventualmente, responder (artigo 698º-2), passarmos à segunda volta, repetindo a duração de prazos...!
E por absurdo ainda, agravando o descrédito, se figurarmos um cenário (que não é meramente académico) de novo e futuro recurso da decisão a proferir, então, lógico será concluir pela possibilidade ainda, de uma terceira ou quarta voltas, suportadas pela generosidade laxista, de aceitação do principio geral do convite ao aperfeiçoamento da peça processual essencial, que em questão estivesse, e sem lei expressa de processo civil, a admiti-lo. Seria um descarte, todo ele convocado e admitido, para além dos actos normais de adequação ou de gestão do expediente do processo (artigos 265º-A e 679º) e dos casos contemplados de convite, acima discriminados.
Uma perfeita "rebaldaria" ... - permita-se a licenciosidade da expressão - para, usando-a, dela trazer ao debate a mostra emergente do que seria um culto judiciário de irresponsabilidade!
A nosso ver, a abertura de semelhante precedente interpretativo, além de perigoso, sob o ponto de vista da justiça rápida e pronta, e da sua credibilidade junto do cidadão que a paga, perderia sentido e razoabilidade, atingindo mesmos os foros do caricato, perante os ordenamentos processuais dos Estados Membros da União Europeia, onde não conhecemos prática judiciária paralela. (7)
Precedente que teria a marca de um verdadeiro descrédito, criado por via jurisprudencial, (tanto pior!) ganhando na permissividade da dilação fútil, o que perde por falta de sinal ou lampejo de modernidade e de inovação, quanto ao sentido criativo de adaptação ao tempo - ao tempo útil - da administração de Justiça, enquanto função pública judiciária que serve a Sociedade - as pessoas faladas há pouco ( ponto 4).
A utilidade do tempo adequado da Justiça aponta necessariamente, em nosso entender, em outra direcção, que não a da doutrina e da jurisprudência que possibilitem o convite ao aperfeiçoamento, quase a esmo, sem preocupação, ou pelo menos indiferente, ao desvalor social da Justiça assim gerida, abrindo o precedente da lassidão inútil, contra o qual nos insurgimos.
A jurisprudência, enquanto exercício judiciário, realizador do direito "que vive para se realizar", tem de constituir um factor de evolução e de progresso na interpretação e aplicação das leis, tendo em conta as circunstâncias em que foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada ( artigo 9º-1, do Código Civil).
6. Vem a propósito citar o Conselheiro Amâncio Ferreira, em obra recente (8).
«Não há lugar no âmbito do art.º 690º-A, nºs 1, proémio e 2, a convite prévio, em vista a suprir qualquer omissão do recorrente, como erradamente se decidiu no Acórdão do STJ de 1/10/98 (...) Fosse essa a intenção do legislador e tê-lo ia declarado como o fez, para situações diversas, nos art.ºs 690°, nº4 e 75°-A, este do L.T.C. Compreende-se a rejeição imediata do recurso na situação que analisamos por os ónus impostos aos recorrente visarem o corpo da alegação, insusceptível de ser corrigido ou completado, no nosso ordenamento processual, por via do convite. A tese do Supremo, elevando o principio da cooperação a patamares indefensáveis, levaria igualmente ao convite prévio ao recorrente antes de ser julgado deserto o recurso por falta de alegação».
Claro que, conforme se desenvolveu, concordamos inteiramente com esta análise do ilustre e, felizmente, muito laborioso, magistrado jubilado.
Quanto à matéria das alíneas B), C e D):

1. A questão da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia relativa à instrumentalização de uma testemunha arrolada pela autora; a irregularidade na admissão do depoimento de parte prestado pela autora; e a prestação de depoimento que recaiu sobre factos não alegados por qualquer das partes, são questões que ficam prejudicadas.
Mas ainda que assim não fosse, diremos o seguinte, por razão de explicitude, que, porventura até seria dispensável:
Está documentado na acta de fls. 220 a 224 o despacho judicial proferido em pleno decurso da audiência de discussão e julgamento, perante os mandatários judiciais das partes, ora em litígio, e cujo teor é o seguinte: "Por se encontrar presente C, sócio-gerente da Autora foi pelo Mmº Juiz decidido chamá-lo para prestar esclarecimentos ao abrigo do artigo 266º, n.º 2, do Código de Processo Civil".
Consta ainda da mesma acta o seguinte: "O depoimento da testemunha D, bem como os esclarecimentos prestados por C ficaram registados na cassete n.º 2- Lado B: 2140 até cassete n.º 3 - Lado B: 0705".
A legalidade de tal despacho judicial apenas foi questionada, pela primeira vez, na alegação de recurso endereçada ao Tribunal da Relação de Coimbra, portanto, em momento processual em que já havia, há muito, decorrido o prazo legal para a arguição de nulidade do mesmo despacho ou para a interposição do respectivo recurso de agravo (art. 205º, n.º 1, e art. 685º, n.º 1, ambos do C.P.Civil. (9)

Assim, os efeitos decorrentes deste despacho judicial passaram a estar cobertos pela força típica do chamado caso julgado formal (art. 672º do C.P.Civil), subtraídos, portanto, ao poder jurisdicional do Tribunal da Relação que, de forma igualmente acertada, não apreciou a arguida irregularidade. (10)

2. Ainda uma observação: na conclusão V, a recorrente referiu que, "Ao omitir a notificação da recorrente para o aperfeiçoamento das suas alegações, foi o próprio tribunal que impediu a si mesmo o conhecimento de todas as questões que lhe foram colocadas, obstando pela mesma via à sua decisão".
Isto é, a própria recorrente reconhece que, não tendo o Tribunal da Relação de Coimbra acesso ao conteúdo dos depoimentos prestados na audiência de discussão e julgamento realizada na 1ª instância, em consequência de omissão imputável à parte interessada, tornam-se insindicáveis as irregularidades identificadas nas precedentes alíneas b) e d) (suposta instrumentalização de uma testemunha e arguida irregularidade na produção do depoimento de parte prestado pelo gerente da autora e ora recorrida), motivo porque, de forma correcta, sobre elas não se pronunciou o Tribunal da Relação de Coimbra no acórdão posto em crise pelo recurso em análise.
3. Finalmente ( e para que nada fique por responder), uma questão, ligada a todas as anteriores - esta última subliminarmente levantada pela recorrente, de modo formalmente incorrecto, (conclusões: XV e XVII), apontando a violação do artigo 20º, n.º 4, da Constituição (direito a um processo equitativo a decidir em prazo razoável).

Não se percebe bem a razão de queixa!

Vejamos, no entanto, o que tem dito o Tribunal Constitucional sobre esta matéria, na parte para aqui mais significativa, e que eventualmente poderia ocorrer. (11)

Da jurisprudência do Tribunal Constitucional resulta que não é incompatível com a tutela constitucional do acesso à justiça a imposição de ónus processuais às partes, desde que não sejam, nem arbitrários, nem desproporcionados, quando confrontada a conduta imposta com a consequência desfavorável atribuída à correspondente omissão; sendo legalmente imposta a notificação do recorrente para alegar e figurando expressamente na lei a consequência da falta de alegação, não viola seguramente o princípio do acesso ao direito e à tutela judicial efectiva que a lei ligue à abstenção do recorrente o significado da deserção do recurso (12).

No acórdão n.º 122/02 do Tribunal Constitucional, de 14/03/2002, publicado no DR, II Série, de 29 de Maio de 2002, decidiu-se que não viola o disposto no art. 20º da CRP um preceito "que exija ao recorrente que impugna a matéria de facto em processo cujos meios probatórios constaram de gravação nele realizada e sob pena de rejeição do recurso, que proceda à transcrição, em escrito separado da alegação das passagens da gravação em que se esteia".

Em processo civil, o princípio da igualdade traduz-se em, quer o autor, quer o réu, estão subordinados às mesmas obrigações e têm os mesmos direitos processuais.

Tal é o sentido de "processo equitativo" vertido no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (invocada pela recorrente), sem benefício processual de qualquer das partes, em identidade objectiva de situações, e sem nenhuma imposição injustificada, de arbítrio judicial a qualquer delas, ou a ambas.

Logo, não ocorrem as alegadas violações do art. 20º da CRP e do art. 6º da mencionada Convenção, em cuja demonstração a recorrente é muito parca, para não dizer, totalmente omissa.

Valha a verdade!


V

Decisão

Conclui-se, pois, pela inexistência das ofensas constitucionais e legais que vêm apontadas na conclusão XVII, transcrita, das alegações do agravo, que, assim, se julga improcedente, confirmando-se o julgado.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 20 de Maio de 2004.
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) A recorrente deveria, para o efeito, ter apresentado as transcrições dos depoimentos, nos termos da redacção anterior do artigo 690º do C.P.C.
(2) Pereira Baptista, Princípio Fundamentais da Reforma do Processo Civil, páginas 70/77.
(3) Professor Lebre de Freitas, Estudos sobre Direito Civil e processo Civil, Coimbra Editora, páginas 130/131- edição de 2002.
(4) Ver nota n.º 6.
(5) Trata-se de causas de morosidade funcional provocadas (Os tribunais nas sociedades contemporâneas - o caso português, do Professor Boaventura de Sousa Santos e outros, páginas 432, em especial, nota 83, fazendo apelo a uma Comunicação do saudoso Juiz Carlos Matias).
(6) O saber popular traduzido no aforismo "A Justiça tarda, mas não falha" está hoje radicalmente subvertido, e por inteiro, revendo-se na versão actualizada "Se a Justiça tarda, falha"!
(7) Também o regulamento do T.J. C. E. e o regulamento do T.PI não conhecem o expediente do convite ao aperfeiçoamento de peças processuais, preclusivo de direitos processuais da contraparte.
A mais recente publicação compilada destes dois regulamentos processuais integra o recente "Contencioso Comunitário do Professor Mota Campos e João Luiz Mota Campos, edição de 2002, páginas 715 e seguintes). Algumas alterações foram já introduzidas pela nova redacção do Estatuto do Tribunal às normas de processo - títulos III e IV- agora na versão do Tratado de Nice (D.R. de 18 de Dezembro de 2001, Decreto Presidencial ratificador n.º 61/2001), a vigorar na União Europeia, desde 1 de Fevereiro de 2003. (Aviso 34/2003, de 30 de Janeiro, 1ª série). O convite que os regulamentos possibilitam é apenas para apresentação de documentos ou suprimento de certas faltas que não impedem a celeridade do processo (artigos 21º e 53º).
(8) Manual dos Recurso em Processo Civil, nota 345, página 161, 5ª edição (Abril de 2004).
Outras fontes no sentido do texto, que a decisão recorrida, a justo título reporta: Miguel Teixeira de Sousa in Estudos sobre o Novo Processo Civil, 415 e 561, e Carlos Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Coimbra Editora, 1999, página 466, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 12/01/99, BMJ 483º, 282, da Relação do Porto de 4/02/99, na Colectânea de jurisprudência, ano XXIV, tomo, I, 210.
Contra, com base em que a norma do artigo 690º, n.º 4, é o afloramento de um principio geral de cooperação, o Ac. do STJ de 1/10/98, BMJ 480°, páginas 348 e seguintes. (É o acórdão mencionado no texto, apreciado desfavoravelmente pelo Conselheiro Amâncio Ferreira, conforme se explicou); acórdão proferido no processo n.º 1032/98, de 12 de Janeiro de 1999 (Conselheiro Sousa Inês); acórdão proferido no processo n.º 1553/02, de 14 de Maio de 2002 (Conselheiro Lopes Pinto); Na doutrina: Conselheiro do T.C, Ribeiro Mendes, Os Recursos no Código de Processo Civil, página 84. ( Edições LEX, 1998).
(9) No mesmo sentido, acórdão do STJ de 02/10/2003, processo nº 1909/03, publicado em www.dgsi.pt/jstj).
(10) Sobre o poder do tribunal de pedir esclarecimentos às próprias partes, previsto no n.º 2 do art. 266º do C.P.Civil, vide o decidido no acórdão do STJ de 06/02/2003, processo n.º 3664/02, publicado em www.dgsi.pt/jstj
(11) Para citar os mais recentes: o n.º428/03, de 24 de Setembro, publicado no DR., de 2 De Novembro de 2003; , em especial, os acórdãos 40/00 e 374/00, in Acórdãos do TC, volume 46º, página 307; e volume 47º, páginas 713, apreciados pelo Dr. Lopes do Rego em " Estudos em homenagem ao Conselheiro Cardoso da Costa", páginas 845 e seguintes, Coimbra Editora, ano 2003.
(12) Acórdão do Tribunal Constitucional de 09/10/2002, processo 496/01, publicado em www.tribunalconstitucional.pt).