Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2974/04.3TVPRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: AVAL INCOMPLETO NO VERSO DO TÍTULO
VICIO DE FORMA
NULIDADE
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJASTJ, ANO XVIII, TOMO I/2010, P. 17
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Doutrina: Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, 1996, Vol. III, pág. 2); Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª ed., pág. 178
Legislação Nacional: LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): ARTS. 30º; 31º, 77º
Jurisprudência Nacional: AC. S.T.J. DE 29-6-04, COL. AC. S.T.J., XII, 2º, 122 ; AC. S.T.J. DE 14-10-97, COL. AC. S.T.J., V, 3º, 68
Sumário :
I – Está vedado ao tribunal recorrer a elementos extracartulares, no domínio das relações imediatas, tendo em vista determinação do avalizado, com mera assinatura aposta no verso de uma livrança.

II – A mera assinatura aposta no verso de uma livrança, sem qualquer outra indicação, não tem valor como aval.

III – Tal aval é nulo por vício de forma, ainda que o opoente tenha assinado a livrança em branco, se o portador do título, autorizado pelo pacto de preenchimento, não fez preceder ou seguir aquela assinatura da expressão “bom para aval”ou outra equivalente, convertendo o aval incompleto em aval completo.

IV- A nulidade do aval em branco, escrito no verso da livrança, subsiste nas relações imediatas, por não ter a forma cambiária.
Decisão Texto Integral:



Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



Em 7-3-05, AA deduziu oposição à execução comum contra si instaurada pelo exequente Banco BB, S.A., para dele e outros obter o pagamento da quantia de 113.174,19 euros, acrescida de juros legais vincendos, até efectivo pagamento.
Alegou, em síntese, que a sua assinatura está aposta no verso da livrança exequenda sem nenhuma indicação e, como tal, não tem validade como aval.
O Banco exequente contestou, onde invoca que celebrou um contrato de mútuo com a sociedade executada e que a livrança foi avalizada pelo opoente em branco, para garantir o cumprimento desse contrato.
Acrescenta que foi feito um aditamento onde consta a assinatura do opoente e a indicação de que dá o seu acordo e ainda que preencheu a livrança devido ao incumprimento do contrato.
Pede que se aprecie o sentido da assinatura no verso do título e que, mesmo a considerar-se existir um vício de forma, refere que o opoente estaria a litigar com abuso do direito, porque sempre agiu como garante das obrigações assumidas pela sociedade.

No despacho saneador, a Exma Juíza, conhecendo do mérito da questão, considerou que a simples assinatura no verso da livrança, sem menção alguma, não tem valor de aval e que, por outro lado, não se configura abuso do direito, pelo que julgou procedente a oposição à execução e, consequentemente declarou extinta a execução, relativamente ao opoente.


Apelou o Banco exequente, mas sem êxito, pois a Relação do Porto, através do seu Acórdão de 29-6-09, negou provimento à apelação e confirmou o saneador-sentença recorrido.

Continuando inconformado, o exequente pede revista, onde resumidamente conclui:
1 – A matéria alegada na contestação e corroborada com os documentos juntos aos autos permite concluir, aos olhos de um declaratário normal, que a assinatura aposta pelo opoente, no verso da livrança, é um aval prestado à sociedade subscritora da mesma.
2 – O princípio da literalidade dos títulos de crédito não pode valer com o sentido excessivo de impor a interpretação literal do texto, sendo, por isso, aplicáveis aos títulos de crédito os princípios da interpretação da declaração negocial estabelecidos nos arts 236 a 239 do C.C.
3 – No domínio das relações imediatas tudo se passa como se a obrigação cambiária deixasse de ser literal e abstracta.
4 – Não fica vedado ao tribunal recorrer aos elementos estracartulares, tendo em vista a determinação do avalizado quando está no domínio das relações imediatas, até porque nas relações imediatas não se coloca o problema da protecção de terceiros de boa fé.
5 – A assinatura do recorrido na face posterior da livrança, sem outra indicação, não pode ter o valor de endosso, desde logo, porque não figura a assinatura do tomador (1º endosso), que poderia desencadear a cadeia de endossos e, depois, porque nem o apelado indica sequer quem é o seu endossado, em endosso precedente.
6 – Nada obsta a que o tribunal considere a assinatura do recorrido como aval, se ele se quis obrigar como tal.
7 – Uma adequada e justa decisão jurídica impõe a revogação da decisão recorrida, devendo prosseguir os autos com a selecção da factualidade assente e controvertida, tendo em vista as várias soluções plausíveis da oposição à execução, de forma aos factos controvertidos serem apreciados em audiência de discussão e julgamento com a produção de prova por confissão, testemunhal e documental.

Não houve contra-alegações.


Corridos os vistos, cumpre decidir.


A Relação considerou provados os factos seguintes:
1- Foi dada à execução a que a presente execução está apensa, uma livrança, no valor global de 12.864,97 euros, com vencimento para 22-4-04, subscrita pela executada BB - Indústria de Etiquetas, l.da, com a assinatura do oponente no verso desse título de crédito, sem qualquer outra indicação, conforme o teor do documento de fls 14 do processo principal, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

2 – Em 22 de Agosto de 1996, foi celebrado um contrato de mútuo (crédito em conta corrente com caução curto prazo) entre o Banco exequente e a executada BB – Indústria de Etiquetas, L.da, no valor de 15.000.000$00, correspondente a 74.819,68 euros.

3 – O referido contrato foi subscrito pela executada BB, Indústria de Etiquetas, L.da, e por CC e AA, ora opoente, na qualidade de avalistas.

4 – Posteriormente, no dia 28-1-96, foi elaborado um aditamento, junto como documento nº 2, na contestação à oposição, ao já referido contrato de mútuo, por forma a prorrogar a facilidade de crédito concedida à empresa executada, mediante a inclusão de uma nova cláusula.

5 – Este aditamento foi também assinado pelos avalistas, designadamente o ora opoente, cujas assinaturas são antecedidas da expressão “ damos o nosso acordo “ .


A questão a decidir consiste em saber se a simples assinatura do opoente no verso da livrança, sem qualquer indicação, tem valor como aval.


Vejamos:

Dispõe o art. 30º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL):
“O pagamento de uma letra pode ser no todo ou em parte garantido por aval.
Esta garantia é dada por um terceiro ou mesmo por signatário da letra”.

Por sua vez, o art. 31º da mesma Lei Uniforme prescreve:
“O aval é escrito na própria letra ou numa folha anexa.
Exprime-se pelas palavras “bom para aval “ ou por qualquer outra fórmula equivalente; é assinado pelo dador de aval.
O aval considera-se como resultado da simples assinatura do dador aposta na face anterior da letra, salvo se se trata da assinatura do sacado ou do sacador.
O aval deve indicar a pessoa por quem se dá. Na falta de indicação, entender-se-á pelo sacador”.

O mesmo regime é aplicável às livranças, por força do preceituado no art. 77º da LULL.

Assim, a natureza jurídica do aval é a de ser uma garantia.
Economicamente, não há dúvida quanto a ser a obrigação do avalista uma obrigação de garantia.
O fim próprio, a função específica do aval é garantir ou caucionar a obrigação de certo subscritor cambiário.
Ao estabelecer-se que o aval é escrito na própria letra ou em folha anexa (allongue), esta regra não é mais do que a consagração do princípio da literalidade.
Não sucedia o mesmo no regime do Código Comercial (art. 305º), onde se admitia até o aval por carta.
O aval pode ser completo ou incompleto (aval em branco).
O aval é completo, quando se exprime pelas palavras “bom para aval”ou formula equivalente e é assinado pelo dador de aval.
São fórmulas equivalentes: “dou o meu aval a favor de “, “por aval”, “por garantia”, “garanto”, “para segurança “ (Abel Delgado, Lei Uniforme Sobre Letras e Livranças, Anotada, 7ª ed., pág. 178).
O aval é em branco ou incompleto, quando resulta da simples assinatura do dador, aposta na face anterior da letra, desde que tal assinatura não seja do sacado, nem do sacador.
Deste modo, desde que na face anterior da letra nos apareça uma assinatura que não seja a do sacador nem a do sacado, tal assinatura é, por presunção legal, a de um avalista.

A propósito da autonomia da obrigação do aval que se mantém, salvo se a obrigação garantida for nula por qualquer razão que não seja um vício de forma, ensina o Prof. Ferrer Correia (Lições de Direito Comercial, Letra de Câmbio, 1996, Vol. III, pág. 206):
“Consideremos agora especialmente o caso de aceite ou de endosso em branco em que a assinatura não tenha a localização prescrita na lei: - a aposição da simples assinatura do sacado no verso da letra, a do endossante na face anterior do título, determinam a nulidade por vício de forma, respectivamente, do aceite ou do endosso. Consequentemente será nulo, nos termos do art. 32, II, o aval prestado a qualquer destes signatários.
Do mesmo modo, será nula a obrigação do avalista que se propuser garantir a responsabilidade de outro avalista que se limitou a pôr a sua assinatura no verso da letra ou no allongue. Na verdade, só se considera como aval a aposição da simples assinatura do dador na face anterior da letra. Logo, no caso figurado, o primeiro aval será nulo por vício de forma, e nulo, por consequência, o segundo “.
Daí advém que se a questionada assinatura do opoente tivesse sido aposta na face anterior da livrança (por oposição a face posterior), resultava do texto legal a validade do aval, através da simples assinatura do avalista, sem qualquer outra indicação.
Mas não foi o que aconteceu, no caso concreto, pois já vimos que a simples assinatura foi aposta na face posterior do título, ou seja, no verso da livrança.
Ora, o aval em branco ou incompleto tem de ser aposto na face anterior do título, como já se referiu.
Sem isso, não pode produzir-se outro efeito jurídico que não seja o endosso.
O aval completo é que pode ser escrito em qualquer lugar da livrança, incluindo também na sua face posterior.

Esta doutrina ficou inequivocamente definida, como nos relata o Prof. Pinto Coelho (Letras, Vol. II, Fascículo V, pág. 57), quando se discutiu o citado art. 31º do texto da Comissão de Redacção.
Na sessão de 1-6-1930, o delegado italiano, Arcangeli, sugeriu que se modificasse o texto, de forma a permitir considerar igualmente como aval a simples assinatura aposta no verso do título, pois de contrário ficaria destituída de valor jurídico quando não representasse um endosso.
Mas logo se pronunciaram contra o presidente da Comissão, o belga Vallée Poussin, e o polaco Sulkowski, mantendo-se o texto primitivo com o sentido inequívoco de adopção intencional do princípio de que só a simples assinatura aposta na face anterior da letra é apta a traduzir aval, nenhum valor jurídico tendo a assinatura simples aposta, sem mais, no verso, desde que não signifique um endosso.

No mesmo sentido opina Gonçalves Dias ( Da Letra e Da Livrança, VII, pág. 422 e segs), depois de proceder à análise do regime do velho Código Comercial e da discussão havida aquando da votação, por unanimidade, do mencionado art. 31º da LULL, ao escrever :
“ Podemos, pois, concluir com certeza e tranquilidade, que o aval por simples assinatura, escrito no verso, é redondamente nulo e apenas válido o aposto na face anterior.
O princípio cominatório desta nulidade não sofre excepções, ainda quando o aval em branco não possa confundir-se com os endossos por simples assinatura, como aconteceria se todos os endossos fossem completos e só o último em branco. A lei estabeleceu um princípio geral e absoluto e não aquela regula lesbia das soluções casuísticas: quer o aval em branco sempre na face anterior do título ou do allongue, como quer o endosso em branco no verso do título ou do allongue “.

E mais à frente conclui Gonçalves Dias ( Obra citada, pág. 430):
“1…
2- Só é válido o aval em branco por simples assinatura se for escrito na face anterior do título ou na do allongue.
3 – É nulo o aval em branco por simples assinatura, quando escrito na face posterior do título ou na do allongue.
4 – Ainda que seja para aval, a simples assinatura no verso tem de reputar-se necessariamente ( por uma presunção que também é juris et de jure). como um endosso em branco, se essa assinatura não repugnar à cadeia dos endossos. E, assim, o aval em branco no verso transforma o avalista em endossante, como o endosso em branco no anverso transforma o endossante num avalista. Repugnando à cadeia dos endossos, a assinatura no verso nem é boa para aval, nem para endosso: portanto é nula.
5- A nulidade do aval em branco, escrito no verso, subsiste nas relações imediatas por não ter a forma cambiária. O caso é semelhante ao de uma assinatura privada de válida forma (assinatura de chancela, a rogo ou de cruz”.

Neste sentido também tem decidido a melhor jurisprudência (Ac. S.T.J. de 29-6-04, Col. Ac. S.T.J., XII, 2º, 122; Ac. S.T.J. de 14-10-97, Col. Ac. S.T.J., V, 3º, 68).

Assim sendo, não pode deixar de entender-se que não é de seguir a jurisprudência citada pelo Banco recorrente, nem tão pouco a doutrina do Prof. Vaz Serra (R.L.J. Ano 108, pág. 78), segundo a qual se alguém tiver aposto no verso de uma letra ou livrança a sua assinatura, sem outra indicação, e se verificar que não pode tê-lo feito como endossante, cabe ao tribunal apreciar se quis obrigar-se como avalista.

Com efeito, é ainda Gonçalves Dias (Obra citada, pág. 428) quem informa que à proposta do delegado Arcangeli, em que se apoia Vaz Serra, esclareceu o presidente da Comissão que o objectivo da alínea III do citado art. 31º da LULL era não permitir o aval em branco no verso do título.
“Arcangeli replica: que vale então uma simples assinatura no verso, que não pertença à série de endossos?
O Presidente responde: não vale nada, por ser írrita e nula “.

Por isso, está vedado ao tribunal recorrer a elementos extracartulares, no domínio das relações imediatas, tendo em vista a determinação do avalizado, com simples assinatura aposta no verso de uma livrança.
A mera assinatura do opoente aposta no verso da livrança, sem qualquer outra indicação, não tem valor como aval.
Tal aval é nulo por vício de forma, ainda que o opoente tenha assinado a livrança em branco, como vem alegado pelo Banco exequente, se o portador do título, autorizado pelo pacto de preenchimento, não fez preceder ou seguir aquela assinatura da expressão “bom para aval“ ou outra equivalente, convertendo o aval incompleto em aval completo.
A nulidade do aval em branco escrito no verso (face posterior) da livrança subsiste nas relações imediatas, por não ter a forma cambiária.

Termos em que negam a revista.
Custas pela recorrente.
Lisboa, 12 de Janeiro de 2010
Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Sousa Leite