Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
480/09.9YFLSB
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: AZEVEDO RAMOS
Descritores: AVAL
RELAÇÃO CAMBIÁRIA
FIANÇA
ANALOGIA
RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 10/27/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDAS AMBAS AS REVISTAS
Doutrina: Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, AAFDL, Lisboa, 1988/89, pág. 74
Legislação Nacional: LEI UNIFORME RELATIVA A LETRAS E LIVRANÇAS: ARTIGO 32º
Sumário :
I – Não existem relações cambiárias entre os vários avalistas de um mesmo avalizado.
II – O recurso ao regime jurídico da fiança para regular as relações entre os avalistas do mesmo avalizado, nomeadamente entre o avalista que pagou e os demais avalistas do mesmo avalizado, só pode ancorar-se em relações extracambiárias que tenham sido estabelecidas entre os vários avalistas do mesmo avalizado.
III – Esta fiança extracambiária só existe se for convencionada e nada permite presumi-la.
IV- O regime jurídico do art. 32º da LULL, ao não permitir relações cambiárias entre a pluralidade de avalistas do mesmo avalizado, não contém uma lacuna que possa ser preenchida por analogia ao regime civil da fiança.
V- Em caso de pluralidade de avales pelo mesmo avalizado, se apenas for exigido o pagamento a um deles (ou a mais do que um, mas não a todos), o avalista que pagou só tem acção comum extracambiária contra os demais avalistas do mesmo avalizado que não tiverem pago, se tal tiver sido extracambiariamente convencionado entre eles e nos precisos termos do que tiver sido convencionado.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 20-11-00, AA instaurou a presente acção ordinária contra BB, CC e DD, pedindo a condenação destes a pagar-lhe a quantia de 55.643.750$00, a título da capital, e 1.268.750$00, a título de juros vencidos, acrescida de juros vincendos.
O autor alega que, durante o período em que foi director da sociedade EE, L.da, foi avalista de uma livrança, subscrita por esta, sendo tomador o FF, S.A., que veio posteriormente a endossar a referida livrança ao réu Duarte, vindo este, por sua vez, a endossá-la à GG, que a veio a cobrar ao autor, em processo executivo movido contra ele.
Na mencionada livrança, no valor de 181.732.357$00, foram também avalistas os réus.
Na pendência da execução, foi efectuada uma transacção entre a GG e o autor, em que a exequente reduziu o pedido para 72.500.000$00 e o executado/embargante, ora autor, desistiu do pedido que efectuara nos embargos de executado que deduziu e se confessou devedor da referida quantia.
Pretende o autor, em sede de direito de regresso, exigir dos réus, co-avalistas, o pagamento da quota parte destes.

O réu BB contestou, invocando que, na transacção efectuada no âmbito do aludido processo de execução, o autor apenas pagou parte do montante titulado pela livrança, mantendo-se a livrança em circulação quanto ao restante montante, pelo que não será ainda possível saber se o autor pagou mais do que devia.

O réu CC também apresentou contestação, dizendo, em síntese, que celebrou um contrato de cessão de quotas com o réu BB, tendo, por via disso, deixado de pertencer à EE, contrato este que, segundo o réu, o exime de responsabilidade emergente do aval prestado à EE, na livrança em causa.

Constatado no processo que o réu DD havia falecido, o autor requereu a habilitação dos respectivos herdeiros, prosseguindo a acção, na qualidade de herdeiras habilitadas deste último, contra HH e II, que contestaram, sustentando que o autor, como avalista, apenas pode pedir a cada um dos demais três avalistas um quarto do montante titulado pela livrança.
Por isso, defendem que a procedência da acção depende de ser produzida prova, pelo autor, de que a importância de 72.500.000$00, que pagou à GG, em cumprimento da sentença homologatória da referida transacção, excede a parte que lhe competia no pagamento da dívida cambiária da dita livrança.

Realizado o julgamento e apurados os factos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou cada um dos réus a pagar ao autor a quantia de 90.407,12 euros (18.125.000$00 em moeda antiga), acrescida de juros legais às taxas de 7% e 4%, nos termos referidos na mesma sentença, calculados desde a citação até integral pagamento.


Na sequência do óbito do autor AA, entretanto verificado, foram habilitados como seus herdeiros JJ, LL e MM, para com eles a acção prosseguir seus termos, no lugar ocupado pelo falecido.

Em recursos separados, apelaram II, HH, BB, por um lado, e CC, por outro.


O réu CC juntou um douto parecer do ilustre Professor de Direito, Doutor Pedro Pais de Vasconcelos ( fls 437 e segs).


Todavia, a Relação de Lisboa, através do seu Acórdão de 16-4-09, negou provimento aos dois recursos de apelação e confirmou a sentença recorrida.


Continuando inconformados, pedem revista, em recursos separados, II, HH e BB, por um lado, e CC, por outro.

Conclusões dos recorrentes II, HH e réu BB:

1 – A manutenção da GG –Indústria e Comércio de Calçado, S.A., como portadora da referida livrança implica a inexistência de direito de regresso do recorrido sobre os recorrentes.

2 – O recorrido não pagou integralmente o crédito cambiário da referida livrança.

3 – O crédito cambiário emergente da livrança ascendia a 195.550.997$00, na data da efectuação da referida transacção, pelo que a responsabilidade do recorrido, relativamente à quantia titulada pela referida livrança, ascendia a 48.887.749$00.

4 – Na hipótese mais favorável ao recorrido, este pagou, em excesso, a quantia de 23.612.251$00, correspondente à diferença entre a quantia de 72.500.000$00 que efectivamente pagou à GG, e a quantia de 48.877.749$00 correspondente a ¾ do crédito cambiário emergente da livrança.

5 – Mesmo na hipótese mais favorável ao recorrido, o direito de regresso do mesmo sobre cada grupo de recorrentes ascende apenas a 7.870.750$00 correspondente a 1/3 da quantia de 23.612.251$00 por ele paga em excesso.

6 – Impõe-se a integral procedência de cada uma das conclusões do presente recurso.

7 – Considera violados os arts 516, 524, 559, 649, 650, 804, 805 e 806, todos do C.C., 32 da LULL, 671 e 673 do C.P.C.

8 – Termina por pedir que os recorrentes sejam absolvidos da totalidade do pedido ou, quando assim se não entenda, sejam absolvidos do pedido formulado pelo recorrido, na parte excedente à quantia de 7.870.750$00 relativamente a cada grupo de recorrentes.

Conclusões do recorrente CC:

1 – O Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronúncia, pois deixou de se pronunciar sobre a questão de inconstitucionalidade arguida em sede de alegações e conclusões do recurso de apelação, de aplicação analógica do regime de fiança à relação entre avalistas, com violação do art. 8º da Constituição da República Portuguesa.

2 – A LULL é suficiente e regula e prevê o que pretende regular e prever.

3 – Prevê que entre avalistas não existe a figura de direito de regresso, nos termos do seu art. 32.

4 – Ainda assim, o recorrido não lega qualquer relação extra-cambiária, por inexistir, o que mais impede a aplicação do regime da fiança à relação entre co-avalistas.

5 – A aplicação analógica do regime da fiança extravasa as normas internacionais que regulam o regime das Letras e Livranças, nomeadamente a relação entre avalistas.

9 – Violando o art. 8º da C.R.P., porquanto tal interpretação permite que uma norma interna altere uma norma de Direito Convencional Internacional.

10 – A GG mantém-se como legítima portadora da livrança, para todos os efeitos legais.

11 – Não tendo a GG dado quitação e não tendo o seu crédito sido integralmente satisfeito, não pode, também por esta razão, o direito de regresso operar.

12 – Foram violados os arts 32 da LULL, 10, 341, 424, 516, 649 e 650 do C.C. e 8º, nº2, da C.R.P.

Não houve contra-alegações.


Corridos os vistos, cumpre decidir.


A Relação considerou provados os factos seguintes:

1 – Os réus foram sócios e gerentes da sociedade comercial por quotas denominada EE-Indústria de Calçado, L.da, que tem por objecto social a indústria de fabricação e comércio de calçado e seus componentes.

2 – A EE dirigiu ao autor, que a recebeu, uma carta, datada de 30-1-92, em que exarou “ conforme o acordado com o CC, vimos remeter a V. Ex.a dois cheques …
Os mesmos referem-se aos vencimentos auferidos por V. Ex.a referentes aos meses de …
Com este pagamento, fica V. Ex.a, conforme seu pedido, a partir desta data, dispensado de prestar quaisquer serviços à EE, L.da, e à NN, Lda, nada mais tendo delas a receber, seja a que título for.
A partir desta data, envidar-se-ão todos os esforços para libertar V. Ex.as dos avales por si prestados a favor da EE, L.da e NN, L.da, o que se admite não será difícil”.
Tal documento foi subscrito pelo réu CC.

3 – GG-Indústria de Calçado, S.A., foi constituída em Julho de 1997, conforme contrato de sociedade de fls 23 e segs, sendo um dos seus accionistas OO.

4 – Em 6-1-98, OO instaurou processo especial de recuperação de empresa, relativamente à EE.

5 – Em 2-7-99 foi decretada a falência da EE.

6 – A EE celebrou com a GG um acordo denominado Contrato de Prestação de Serviços.

7 – A GG instaurou contra o autor uma execução ordinária, que correu termos pela 13ª Vara Cível da comarca de Lisboa, com o nº 174/99, da 2ª Secção, fixando a quantia exequenda em 181.732.375$00.

8 – O título executivo desta execução era constituído por uma livrança, emitida em 5-2-99 e com vencimento em 11-2-99, avalizada pelo autor, sendo tomador o FF, S.A., estando subscrita pela EE.

9 – O FF veio a endossar a referida livrança ao réu BB e este veio a endossá-la à GG, que a veio cobrar ao autor, no mencionado processo executivo.

10 – No âmbito da referida execução, o autor acordou com a exequente, designadamente, que:
“… A exequente reduz o pedido ao pagamento, pelo embargante, da quantia de 72.500.000$00.
A presente transacção não extingue, nem prejudica ou afecta por qualquer forma os direitos da embargada, emergentes da livrança que serve de base à execução ordinária à qual os presentes embargos estão apensos, relativamente aos restantes obrigados cambiários, mantendo-se, assim, a embargada como legítima portadora desse título, para todos os efeitos legais e processuais, mesmo após a extinção da execução”.

11 – A GG declarou ter recebido a quantia referida em 10.

12 – Os réus também intervieram como avalistas na referida livrança.

13 – Entre o réu CC, como primeiro outorgante, e o réu BB, como segundo outorgante, foi celebrado um acordo, denominado “Contrato Promessa de Cessão de Quotas”, datado de 4-12-96, donde consta o seguinte:
“… o primeiro outorgante promete ceder ao segundo outorgante as suas indicadas quotas .
O segundo outorgante declara ainda que, com a celebração do presente contrato promessa, assume todas as responsabilidades pessoais, subsidiárias, legais ou voluntárias, que para o primeiro outorgante tenham derivado ou derivem ainda da ligação deste às referidas sociedades EE e NN, excluindo o primeiro outorgante de todas as referidas responsabilidades, de que assim fica expressamente liberto, sejam elas de que natureza forem, decorrentes directa ou indirectamente da sua condição de sócio e/ou gerente das sociedades EE e NN, Lda”.

14 – Em 24 de Janeiro de 1997, foi celebrada escritura de cessão de quotas, onde exararam, designadamente, que:
“ …o primeiro outorgante cede com todos os correspondentes direitos e obrigações ao representado do segundo outorgante, BB, a indicada quota …” .

15 – Durante um certo período de tempo, o autor foi director da sociedade, exercendo as suas funções em conjunto com qualquer um dos gerentes, réus nos autos.

16 – O autor cessou aquelas funções na data referida em 2.

17 – Data a partir da qual ficou afastado dos negócios da EE e da sua direcção e controlo dos respectivos negócios, não mais voltando a ter notícias do seu destino e assuntos.

18 – Quando o autor deixou a referida sociedade, esta gozava de saúde financeira e de pujança económica.

19 – OO, accionista da GG, adquiriu créditos sobre a EE.

20 – Quando o autor deixou a direcção da EE, fê-lo confiante nas promessas dos seus sócios gerentes de que iriam envidar todos os esforços para o libertarem dos avales prestados a favor da EE.

21 – O aval prestado pelo falecido autor data da altura em que o mesmo estava ligado à EE .

22 – Sem o consentimento do falecido autor, foi preenchida a livrança referida em 8, nela se apondo as datas que dela constam e a quantia nela exarada.

23 – Os réus bem sabiam que o falecido autor não subscrevera, nem avalizara na data constante da livrança, nem conhecia que estivesse em dívida.


A questão fulcral a decidir, em ambos os recursos, prende-se essencialmente com a responsabilidade do avalista perante o “co-avalista” que paga a dívida emergente do aval e, concretamente, em saber se o “co-avalista” que liquidou uma parte da dívida pode exigir dos restantes “co-avalistas” o pagamento da sua quota parte naquela dívida.


Vejamos:

Estamos em presença de uma livrança, datada de 5-2-99, subscrita pela EE –Indústria de Calçado, L.da, em benefício do FF, como tomador, pelo valor de 181.732.357$00, com vencimento em 11-2-99, endossada sucessivamente ao réu BB, que, por sua vez, a endossou à sociedade GG.
Tal livrança foi avalizada por quatro pessoas singulares : o falecido autor AA e os réus BB, CC e DD.
A livrança não foi paga, tendo o portador movido execução, com base nela, apenas contra o avalista AA.
Na acção executiva, houve transacção, em que o referido avalista aceitou pagar ao exequente a quantia de 72.500.000$00.
Ao pagar a aludida quantia, o AA não recebeu o título da livrança, em virtude de ter ficado convencionado na dita transacção que a mesma ficaria em poder do exequente, que se reservava o direito de cobrar o remanescente do seu valor sobre os demais obrigados.
Posteriormente, o AA propôs a presente acção ordinária contra os três demais avalistas, na qual obteve a condenação de cada um dos réus a pagar–lhe a quantia de 90.407,12 euros ( correspondentes a 18.125.000$00), acrescida de juros legais.

A Relação, tal como a primeira instância, consideraram que, não obstante a inexistência de relações cambiárias entre os diversos co-avalistas do mesmo subscritor, não deixa de haver entre eles relações de direito comum, que possibilitam que aquele que pague a letra accione, não cambiariamente, os seus co-avalistas, para com eles repartir a parte não cobrada dos devedores principais.
Acrescentam as instâncias que tal obriga a que se recorra, para a resolução do problema, às normas reguladoras do instituto da fiança, como as que se apresentam mais próximas da figura do aval, designadamente ao disposto no art. 650º do C.C., relativo à fiança, que remete para as regras das obrigações solidárias.

Que dizer ?

A lei não define o aval, limitando-se a estabelecer o seu regime, na Lei Uniforme sobre Letras e Livranças (LULL).
Doutrinariamente, o aval pode ser definido como “o negócio cambiário unilateral e abstracto que tem por conteúdo uma promessa de pagar a letra e por função a garantia desse pagamento” (Pais de Vasconcelos, Direito Comercial – Títulos de Crédito, AAFDL, Lisboa, 1988/89, pág. 74).
O aval tem natureza jurídica muito diferente da fiança e não se confunde com ela.
Com efeito, o aval é um negócio jurídico cambiário, enquanto a fiança é um negócio jurídico extracambiário.
Como negócio jurídico cambiário, próprio dos títulos de crédito cambiários (letra, livrança, cheque), o aval tem como características a literalidade, a autonomia, a incorporação e a abstracção.
É frequente a prestação de mais de um aval para garantia da responsabilidade cambiária de um mesmo avalizado.
Esta pluralidade de avales, impropriamente designada por “co-aval”, não se traduz na prestação colectiva de um único aval, por uma pluralidade de “co-avalistas”, mas antes numa pluralidade de avales individuais e autónomos, prestados por cada um dos avalistas, a favor de um mesmo avalizado.
Se o dador de aval paga a letra, fica subrogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra, nos termos do art. 32º, parágrafo 3º, da LULL.
Assim, na hipótese de pluralidade de avales prestados a favor de um mesmo avalizado, a LULL não permite o estabelecimento de relações cambiárias entre os vários avalistas.
O citado art. 32º só concede ao avalista que paga a letra (ou livrança por força do art. 70º da LULL) acção cambiária de regresso contra o avalizado ou contra os intervenientes cambiários contra quem o avalizado tem direito de regresso, mas não contra os demais avalistas do mesmo avalizado.
O que está, de acordo com o principio da autonomia do aval, de tal modo que o avalista garante cambiariamente o pagamento pelo avalizado, mas não comunga da responsabilidade dos demais avalistas que, para além dele, tenham também prestado aval pelo mesmo avalizado.
Por isso, é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que não existem relações jurídicas cambiárias entre os vários avalistas de um mesmo avalizado.

Mas o aval pode ter uma relação subjacente que o fundamenta e que está na sua origem e uma convenção executiva que medeia e regula a coexistência e a influência recíproca da relação cambiária e da relação subjacente.
A relação subjacente e a convenção executiva não se presumem.
Têm de ser alegadas e provadas para poderem ser tomadas em consideração.
O recurso ao regime jurídico da fiança para regular as relações entre os avalistas do mesmo avalizado, nomeadamente entre o avalista que pagou e os demais avalistas do mesmo avalizado, só pode ancorar-se em relações extracambiárias que tenham sido estabelecidas entre os vários avalistas do mesmo avalizado.
Assim, é necessário que exista uma tal relação extracambiária que possa fundamentar a acção extracambiária de regresso.
Uma tal relação extracambiária de regresso não existe de per si, tendo antes de ser convencionada pelos interessados.
Nada impede que os avalistas do mesmo avalizado convencionem entre si que, no caso de um deles ser accionado a honrar o seu aval, todos contribuiriam com igual valor para custear essa responsabilidade.
Também nada obsta a que convencionem entre si uma diferente percentagem para cada um no correspondente encargo económico.
O que releva é que a acção extracambiária de regresso entre avalistas do mesmo avalizado só pode fundar-se em alguma convenção que entre eles tenha sido celebrada.

Há uma tendência para se recorrer ao regime da fiança para permitir ao avalista que pagou o exercício de uma acção de regresso contra os demais avalistas do mesmo avalizado, por forma a não ter de suportar sozinho o encargo financeiro do aval ( Ac. S.T.J. de 7-7-99, Col. Ac. S.T.J., 1999, 3º, 14 ; Ac. S.T.J. de 24-10-02, Col. Ac. S.T.J., 2002, 3º, 121; Ac. Rel. Évora de 28-4-1994, Col. Jur., 1994, 2º, 267, Gonçalves Dias, Da Letra e da Livrança, VII, 2ª parte, pág. 589).

A principal doutrina portuguesa não trata da matéria (José Gabriel Pinto Coelho, Mário de Figueiredo, Ferrer Correia, Fernando Olavo, Oliveira Ascensão, Pereira de Almeida, Pinto Furtado e Paulo Sendim), como nos dá conta o douto Parecer, junto aos autos (fls 465).

Todavia, não é de sufragar o aludido entendimento dessa jurisprudência que recorre ao regime da fiança para permitir ao avalista que pagou o exercício de uma acção de regresso contra os demais avalistas do mesmo avalizado, por forma a não ter de suportar sozinho o encargo financeiro do aval, como bem se evidencia no douto Parecer do Professor Pedro Pais de Vasconcelos, atrás citado, cuja doutrina entendemos perfilhar.
Com efeito, é lícita a estipulação de convenções extracambiárias pelas quais os vários avalistas do mesmo avalizado acordam entre si a partilha do encargo económico decorrente do pagamento do aval.
Subjacente ao aval ou à pluralidade de avales pode ter sido convencionada extracambiariamente uma fiança, destinada a funcionar no caso de extinção do aval e a reger o modo de partilha do encargo financeiro entre os vários avalistas, quando haja uma pluralidade de avales prestados em favor de um mesmo avalizado.
No entanto, como bem observa o Professor Pedro Pais de Vasconcelos, nas conclusões do seu mencionado Parecer, pág. 489/490:
“Esta fiança extracambiária só existe se for convencionada formal e expressamente, e nada permite presumi-la.
O regime jurídico do art. 32 da LULL, ao não permitir relações cambiárias entre a pluralidade de avalistas do mesmo avalizado, não contém uma lacuna que possa ser preenchida por analogia ao regime civil da fiança.
O aval não é uma fiança especial e o seu regime jurídico não constitui uma espécie de um género que seria a fiança civil.
O regime jurídico da fiança civil não pode, por isso, ser aplicado, como regra geral, às relações entre pluralidade de avalistas do mesmo avalizado.
Em caso de pluralidade de avales pelo mesmo avalizado, se apenas for exigido o pagamento de um deles (ou a mais do que a um, mas não a todos), o avalista que pagou só tem acção comum extracambiária contra os demais avalistas do mesmo avalizado que não tiverem pago, se tal tiver sido extracambiariamente convencionado entre eles e nos precisos termos do que tiver sido convencionado.
Em caso de pluralidade de avales pelo mesmo avalizado, se apenas for exigido o pagamento a um deles (ou a mais do que um, mas não a todos), o avalista que pagou, ao accionar os demais avalistas do mesmo avalizado, tem o ónus de alegar e provar a convenção extracambiária em que funda o seu pedido, a qual não se presume.
Os réus (os avalistas que não pagaram) não ficam onerados com a alegação e prova de se não terem obrigado perante aquele a comparticipar no custeio do sacrifício financeiro inerente ao aval “.

Como no caso concreto, o falecido autor, que era um dos avalistas, não alegou, nem provou qualquer convenção extracambiária para fundamentar o seu pedido de condenação dos demais avalistas a custearem uma quota parte do valor que pagou, impõe-se que a acção seja julgada improcedente, com a consequente revogação do Acórdão impugnado.

Termos em que, concedendo ambas as revistas, revogam o Acórdão recorrido e, com ele, a sentença da 1ª instância, e julgam improcedente a acção, absolvendo os réus do pedido.

As custas da acção ficam a cargo dos recorridos (herdeiros habilitados do autor), que também pagarão as custas de cada um dos recursos, quer no Supremo, quer na Relação.


Lisboa, 27 de Outubro de 2009

Azevedo Ramos (Relator)
Silva Salazar
Nuno Cameira