Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3581/16.3T8GMR.G1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: CABRAL TAVARES
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
IMOVEL
CONDIÇÃO
DOAÇÃO
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
CONTAGEM DE PRAZOS
REGISTO PREDIAL
Data do Acordão: 06/28/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS / RESOLUÇÃO OU MODIFICAÇÃO DO CONTRATO POR ALTERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS / CONDIÇÕES DE ADMISSIBILIDADE.
DIREITO DOS REGISTOS E NOTARIADO – NATUREZA E VALOR DO REGISTO / OBJECTO E EFEITOS DO REGISTO / FINS DO REGISTO / FACTOS SUJEITOS A REGISTO / OPONIBILIDADE A TERCEIROS.
Doutrina:
-Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª edição, p. 83;
-Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1972, 3ª reimpressão, pp. 445/6, 448/9 e 464;
-Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil, V, 2ª edição, 2015, p. 202 ; A posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3ª ed., 2005, p. 15;
-Vaz Serra, BMJ 105/146.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 437.º.
CÓDIGO DO REGISTO PREDIAL (CRPREDIAL): - ARTIGOS 1.º, 2.º, N.º 1, ALÍNEA A) E 5.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 16-01-2014;
- DE 22-09-2016.
Sumário :
O prazo para o exercício, pela autora, do direito a ser indemnizada pelo réu Município, com fundamento, de facto, em ter doado a terceiro o imóvel que lhe vendera sob obrigação de nele implantar uma escola profissional e, de direito, em alteração anormal de circunstâncias (art. 437.º do CC), conta-se a partir da data do registo predial da doação, na falta de prova da comunicação anterior da transmissão, por só então se verificar causa objetiva para o exercício do direito – arts. 1.º, 2.º, n.º 1, al. a) e 5.º, n.º 1, todos do CRPredial.
Decisão Texto Integral:

Acordam, na 1ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. AA intentou a presente acção contra o Município de ..., pedindo a condenação do Réu «a reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda identificado no artigo 1º desta petição e a pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infraestruturação, valor esse acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo pagamento».

Alegou, em síntese, que em 1981 vendeu ao Réu um prédio situado em ... e com a área de 11 650 m2; a venda foi feita para aí se implantar a Escola de Formação Profissional de ... e a autora «não tomou a iniciativa da venda antes foi convencida a vender sob a ameaça [por parte do Réu] de que senão anuísse seria expropriada para a construção da escola»; sucede que «o Réu não respeitou a razão de ser do negócio», pois «hoje no prédio estão implantadas residências universitárias - 3 corpos de construção em altura - e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão»; por isso, estão «preenchidos todos os requisitos previstos no art.º 437.º do CC para se exigir a modificação do contrato por alteração das circunstâncias».

O Réu contestou, defendendo-se por exceção, alegando a prescrição do direito invocado pela autora, por já ter decorrido o respectivo prazo de 20 anos e por impugnação (no relato do acórdão da Relação, tal defesa igualmente qualificada de exceção), juntando documentos, negando, relativamente à destinação do terreno, que o contrato contenha «qualquer condição vinculativa para com a vendedora (ora A.)» e afirmando, em suma, que, por escritura de 4.11.1989, doou o imóvel à Universidade ... para construção de uma residência universitária e apoio à realização das necessárias infra-estruturas urbanísticas, finalidade essa que tem também subjacente um interesse público – «Não houve, pois, por parte do Réu, violação do art.º 437.º do Código Civil que pudesse justificar a modificação do contrato celebrado de compra e venda, uma vez que não houve qualquer alteração anormal das circunstâncias que fundaram a decisão de contratar, antes estando coberta pelos riscos próprios do contrato».

Apresentado articulado pela Autora, requerendo, ao abrigo do disposto nos arts. 3º, nº 3 e 6º do CPC, que fosse autorizada a responder, desde logo – e não em audiência (CPC, art. 3º, nº 4) –, por escrito, sobre a exceção aduzida pelo Réu, impugnando os documentos por ele apresentados, designadamente em vista a contraditar a tese da alegada condição vinculativa, juntando ela própria dois documentos e requerendo a notificação do R. para juntar certidão de processo urbanístico em seu poder.

Admitido o articulado apresentado, integrada a pronúncia do mesmo constante e considerando-se não haver insuficiências ou imprecisões da matéria de facto a suprir, com dispensa de realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador, nos termos dos arts. 576º nº 3 e 595º nº 1, alínea b) do CPC, a julgar procedente a exceção de prescrição, absolvendo o Réu do pedido.

2. Apelou a Autora, tendo a Relação dado provimento ao recurso, por entender que «não estando alegados factos suficientes para se saber quando é que começou a correr o prazo de prescrição, não se está em condições de afirmar que esta se deu, o mesmo é dizer que a excepção tem que ser julgada improcedente, devendo os autos prosseguir a sua marcha».

3. Pede revista o Réu, a final da sua alegação formulando as conclusões seguintes:

«1.º A douta sentença recorrida não atendeu à matéria factual fixada no douto saneador-sentença, seguindo a tese da autora de que o contrato de compra e venda celebrado por escritura de 13/02/1981 continha a condição de que o terreno adquirido pelo Município de ... se destinava à implantação de uma Escola de Formação Profissional.

2.º Porém, a única condição que dessa escritura consta é que havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, seria a mesma da responsabilidade da Câmara Municipal de ..., sendo certo que da mesma escritura também consta que a venda era feita livre de quaisquer ónus e encargos.

3.º Aliás, essa única condição consta do contrato promessa de compra e venda junto aos autos, aí não se fazendo qualquer referência ao destino a dar ao terreno, ficando até expresso que a Câmara Municipal podia, desde logo, ou seja, desde 29/12/1980, dispor desse mesmo terreno, para a finalidade que entendesse.

4.º Acresce que na escritura de compra e venda de 13/02/1981, o Presidente da Câmara declarou aceitar o contrato para a sua representada na forma expressa cujas condições haviam sido aceites por deliberação da Câmara Municipal de ... de 12 de Dezembro de 1980 e firmadas em contrato promessa de 29 de Novembro do mesmo ano, acrescentando que o terreno se destinava à implantação de uma Escola de Formação Profissional.

5.º Com esta declaração final o Presidente da Câmara pretendeu tão somente dizer que havia um interesse público na referida aquisição, não tendo, com a mesma, visado a satisfação de qualquer pretensão ou pedido da autora, que nunca existiu, sendo certo que, a construção de uma Escola de Formação Profissional estava dependente da vontade do Ministério do Trabalho, que a não levou a efeito, mesmo após a transmissão, pelo Município, do direito de superfície do terreno, por falta de verbas.

6.º Assim, da análise dos termos do contrato celebrado, resulta, à luz dum declaratário dotado de diligência normal, que o mesmo não está subordinado a uma condição resolutiva ou a uma cláusula de resolução ou modificação, no que respeita ao destino a dar ao terreno, devendo também, na sua interpretação, serem considerados os termos do contrato promessa de compra e venda junto aos autos.

7.º Considerando a doutrina da impressão do destinatário, consagrada no artigo 236º do CC, qualquer declaratário normal, equilibrado, de bom senso e de diligência normal, colocado na posição do Município de ..., nenhumas dúvidas teria de que no contrato não estava mencionada qualquer condição, à excepção da indemnização ao caseiro.

8.º Assim, em homenagem aos princípios da protecção da confiança e da segurança do contrato em causa, não ficou o Município obrigado para com a vendedora a que o terreno objecto do mesmo tivesse por destino a construção de uma Escola de Formação Profissional.

9.º Para decidir sobre o mérito da excepção peremptória da prescrição, o Tribunal da Relação de ... não atendeu aos factos fixados no douto saneador-sentença, não atendeu aos contratos juntos aos autos, o Tribunal da Relação decidiu, como no próprio acórdão se refere, "à luz da causa de pedir', considerando a "tese" e a "perspectiva da autora", factualidade esta controvertida.

10.º Aliás, o próprio Acórdão recorrido, em nota de rodapé (6), refere que "a autora não chega a utilizar a expressão "condição", mas é isso que parece resultar do que alega", limitando-se a uma interpretação da tese da Autora, sem mais.

11.º Assim, a decisão do Tribunal da Relação de ... padece de erro nos pressupostos de facto, porque atendeu não à factualidade já fixada no douto despacho saneador, mas em pressupostos e elementos de facto controvertidos.

12.º Mesmo que porventura se entendesse que a escritura de compra e venda de 13/01/1981 continha, como condição, o Município de ... ser obrigado a construir no terreno adquirido, uma Escola de Formação Profissional, e essa obrigação não foi cumprida pelo Município, isso não significa que o direito de resolução ou modificação do contrato pudesse ser exercido sem dependência de qualquer prazo, ou seja, sem limite temporal.

13.º Na verdade, o direito de resolução ou o direito à modificação do contrato segundo juízos de equidade são direitos potestativos que, na falta de fixação, legal ou voluntária, de qualquer prazo, estão sujeitos às regras da prescrição ordinária (neste sentido, Acórdão deste STJ de 16.01.2014, proc. nQ367/2001.E1.S1).

14.º Dificilmente se compreenderia, aliás, que, sem distinção, um qualquer direito (potestativo ou não) pudesse ser accionado sem qualquer limite temporal, com toda a insegurança e incerteza que isso determinaria para o comércio jurídico. Rodrigues Bastos anota precisamente que “a prescrição tem o fim social de eliminar o estado de incerteza resultante da falta de exercício de um direito em prazo preestabelecido" - cfr. referido Acórdão deste STJ de 16.01.2014.

15.º À prescrição estão sujeitos todos e quaisquer direitos que não sejam indisponíveis ou que a lei não declare isentos dela (artigo 298º, nº 1, do CC), e assim ocorre com o direito potestativo de resolução regulado nos arts. 432º e segs. do CC, como se decidiu também no Ac. do STJ, de 25­-6-09 (www.dgsi.pt). ou o direito potestativo da modificação contratual, que corresponde a uma resolução parcial do contrato.

16.º Esta tem sido a solução defendida por vários autores, entre eles Antunes Varela, Romano Martinez e Brandão Proença, defendendo a solução de que não tendo sido exercido aquele direito no prazo convencionado ou no prazo razoável fixado pela contraparte ao titular do direito e na ausência de prazos legais de caducidade do direito ou da acção, aplica-se o prazo ordinário dos 20 anos de prescrição (cfr. mesmo Acórdão deste STJ de 16.01.2014).

17.º Assim, não existindo norma que fixe um prazo de caducidade para o exercício do direito de resolução ou modificação do contrato, não tendo sido convencionado pelas partes qualquer prazo para esse efeito e não tendo sido fixado pela autora um prazo razoável para a construção da Escola de Formação Profissional, o pretenso direito da autora à modificação do contrato por alteração das circunstâncias, fica sujeito à prescrição ordinária de 20 anos a contar da celebração do contrato de compra e venda.

18.º Ora, quando o recorrente foi citado para a presente acção, em 17 de Junho de 2016, já tinha ocorrido, e há muito (passaram mais de 35 anos), o referido prazo prescricional de 20 anos consignado no artigo 309º do Código Civil.

19.º Assim, pelo Acórdão recorrido foi violado este preceito, em conjugação com o disposto no artigo 298º do CC, uma vez que o direito invocado pela autora não é indisponível ou que a lei tenha declarado isento de prescrição, o que não ocorreu.

20.º Por outro lado, o nosso ordenamento jurídico consagra o sistema objectivo da prescrição, que dá primazia à segurança, começando o prazo a correr independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa a vir a ter, o respectivo credor.

21.º Porém, o douto Acórdão recorrido ao entender que o prazo de prescrição começou a correr a partir do conhecimento pela autora da existência das construções nos terrenos alienados, fez uma errada interpretação do artigo 306º do CC.

22.º Com efeito, a expressão "quando o direito puder ser exercido" constante desse normativo, tem o sentido de que o prazo de prescrição inicia-se quando o direito estiver em condições objectivas do seu titular poder actuar, sendo que a injustiça a que tal sistema possa dar lugar é temperada pelas regras atinentes à suspensão e interrupção da prescrição (artigos 318º e 327º do Código Civil), não relevando sequer a sua transmissão (artigo 308º do CC), cfr Acórdão deste STJ de 22/09/2016 (proc. nº 125/06.9TBMMV- C.C1.51).

23.º Constituindo a alegada obrigação do Município de ..., uma obrigação sem prazo, também chamada "obrigação pura" o cumprimento podia ser exigido a todo o tempo (art. 777º, nº 1do Código Civil).

24.º Assim, a autora podia ter exigido do Município de ... o cumprimento daquela obrigação - construção da Escola de Formação Profissional - sobretudo se durante um tempo razoável verificasse que tal obrigação não era cumprida ou formulado uma pretensão indemnizatória pelo incumprimento, o que não lhe era difícil, pois a autora reside na cidade ..., onde sempre viveu, e os terrenos situam-se numa zona central da cidade, factos estes notórios e do conhecimento geral.

25.º É que, segundo a doutrina dominante, o fundamento específico da prescrição reside precisamente na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual seria legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus)».

26.º Pois que a prescrição, tal como a caducidade e o não uso, exprimem a relevância do tempo (do seu decurso sobre as relações jurídicas), visando a certeza e a segurança do tráfego jurídico, tendo como fundamento a consideração de que não merece a protecção do ordenamento jurídico quem descura o exercício dos direitos que lhes assistem, porque a paz social não se compadece com a inércia, para lá de limites temporais impostos pelo legislador (Ac. STJ de 19.06.2012; Relator o Exmo. Cons. Dr. Fonseca Ramos; www.dgsi.pt).

27.º Ora, entre a data do contrato de compra e venda e a citação para a presente acção mediou um prazo superior a 35 anos, pelo que se verifica uma manifesta negligência da recorrente.

28.º Assim, o prazo ordinário da prescrição (20 anos) começou a correr no dia seguinte à celebração daquela escritura de 13/02/1981, pelo que, tendo o réu sido citado da pretensão indemnizatória da autora apenas 17/06/2016, tal (pretenso) direito encontra-se prescrito, por já ter decorrido o referido prazo prescricional (artigo 309º do CC).

29.º O douto acórdão recorrido ao considerar que o prazo só começou a correr na data da implantação no terreno das edificações, data essa que o réu ignora, porque já não era o detentor do terreno, porque só aí a autora poderia ter conhecimento dos elementos essenciais do seu direito, aplicou na decisão desta questão a interpretação do artigo 306º do CC segundo o sistema subjectivo, nos termos do qual o prazo se inicia apenas "quando o credor tiver conhecimento dos elementos essenciais relativos ao seu direito e joga com prazos curtos", conforme acórdão de 22/09/2016, atrás citado.

30.º Porém, em relação à prescrição ordinária, o sistema subjectivo não foi o adoptado no nosso ordenamento jurídico, tendo sido adoptado o sistema objectivo, que dá primazia à segurança e o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respectivo credor, sendo compatível com prazos longos.

31.º Ao assim não entender, o douto acórdão recorrido, salvo o devido respeito, fez uma errada interpretação do artigo 306º do CC.

32.º Por outro lado ainda, a transmissão do terreno para um fim diferente do alegado pela autora constitui uma realidade objectiva que permitia à autora reagir, exercendo o seu direito.

33.º Por isso, não se considerando que o inicio do prazo de prescrição para o exercício do direito pela autora começou após a compra e venda de 13/02/1981, conforme se alegou, ter-se-á de considerar que, pelo menos, se iniciou na data da doação, em 24/11/1989, como se considerou no saneador-sentença.

34.º Com efeito, a partir do momento em que o réu passou o imóvel e o colocou na esfera de disponibilidade da Universidade ..., declarando que a transmissão gratuita do direito de propriedade tinha em vista a construção de residências universitárias, a finalidade alegada pela autora - construção de uma Escola de Formação Profissional - ficou comprometida, já que, a partir dessa altura, o réu deixou de ter na sua esfera jurídica o imóvel e a decisão sobre o destino do mesmo deixou de lhe pertencer.

35.º Ora, conforme já se referiu, a expressão "quando o direito puder ser exercido" contida no artigo 306º do Código Civil, deve ser interpretada no sentido de que o prazo de prescrição começa a correr quando o direito estiver em condições objectivas de o titular o poder atuar, ou seja, desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação, dispensando-se qualquer conhecimento, por parte do credor, dos elementos essenciais referentes a esse seu direito.

36.º Aliás, nos termos da parte final do nº1 do artigo 498º do Código Civil, o direito de indemnização prescreve sempre nos termos da prescrição ordinária "se tiver decorrido o respectivo prazo a contar do facto danoso", confirmando-se, assim, que a ocorrência da prescrição ordinária faz, por si só, e independentemente do conhecimento do respectivo titular, extinguir o direito (cfr. anotação do Prof. Pires de Lima e Antunes Varela a esse preceito).

37.º Ao também não seguir este caminho, o douto acórdão recorrido fez uma errada interpretação do artigo 306º do CC.

38.º Tendo a autora alegado na petição inicial que o réu alienou a propriedade que adquiriu à autora e permitiu que em parte dela fosse construída habitação privada multifamiliar para venda e noutra parte blocos residenciais para estudantes universitários, competia-lhe fazer prova desses factos como constitutivos do direito que invoca, ou seja, a referida "alteração das circunstâncias".

39.º Tais factos (se as construções existem e desde quando), são um elemento fundamental para o cálculo da sua pretensão indemnizatória, medida "pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele foi implantada} deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infraestruturação".

40.º Assim, o douto Acórdão do Tribunal da Relação de ... enferma de manifesto erro ao julgar improcedente a excepção peremptória da prescrição por falta de alegação por parte do réu do momento em que as construções foram efectivadas, quando, como decorre dos factos assentes, o terreno onde alegadamente as mesmas foram construídas já não estava na esfera do réu e se encontrava fora da sua disponibilidade desde 1889, o que a autora mostrou ter conhecimento na sua petição inicial.

Há, assim, violação do artigo 342º do CC, tanto mais que em caso de dúvida, os factos devem ser considerados constitutivos do direito invocado (cfr. nº 3 do artigo 342º).»

Contra-alegou a Autora, suscitando, como questão prévia, a inadmissibilidade do recurso, já que «a presente decisão é interlocutória pelo que não cabe na previsão do n.º 1 do artigo 671º do CPC (não conhece do mérito da causa nem lhe põe fim)» e, quanto ao seu objeto, detalhadamente concluindo pela improcedência.

4. Vistos os autos, cumpre decidir.


II

5. Importa, antes do mais, declarar improcedente a questão prévia suscitada pela Autora, quanto à inadmissibilidade da revista.

Dispõe a 1ª parte – que ora releva – do nº 1 do art. 671º do CPC (realce acresc.): «Cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa, (…)».

Constitui jurisprudência pacífica deste tribunal o preenchimento do conceito decisão do mérito da causa, no sentido enunciado, anteriormente à reforma de 2013 do CPC, no nº 2 do então art. 691º: «A sentença e o despacho saneador que julguem da procedência ou improcedência de alguma excepção peremptória decidem do mérito da causa».

O apontado alcance do conceito mantém-se implícito na alínea b) do nº 1 do art. 595º do CPC vigente, disposição invocada na decisão da 1ª instância para decidir da exceção (realces acrescs.): «Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória».

Cabe, pois, conhecer do recurso.

6. Consideradas as transcritas conclusões da alegação do Réu, ora Recorrente (CPC, arts. 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2), a questão a decidir no presente recurso unicamente respeita a saber se deve, ou não, dar-se no processo por verificada a alegada exceção de prescrição – ou, dito de outro modo, diretamente incidindo sobre o controversiae punctum entre as instâncias, qual o facto determinante do início da contagem do respetivo prazo.

7. Para se pronunciar sobre a excepção de prescrição, o tribunal de 1ª instância, nos termos da citada alínea b) do nº 1 do art. 595º do CPC, considerou já estarem assentes os seguintes factos (transcreve-se do acórdão recorrido):

«1. Por escritura pública celebrada a 13 de Fevereiro de 1981, na Secretaria da Câmara Municipal de ..., perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, a Autora, casada no regime de separação de bens e comunhão de adquiridos com Dr. BB, declarou ser dona e legítima possuidora da propriedade denominada Assento do Casal do ... ou da ..., situada na freguesia de ... e que, pelo preço total de Esc. 7.200.000$00, vendia à Câmara Municipal de ..., representada pelo seu Presidente, os prédios rústicos dessa propriedade identificados como campos do Quintal, do Lameiro e do Fundo ou Campo Grande e leira do Lameirinho, inscritos na matriz rústica da freguesia de ... sob os artigos 452, 453, 454 e 455 e descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob parte do prédio n.º 36.090, a fls. 84 do Livro B-10 [documento de fls. 14 vº a 17].

2. Declarou, também, que aquele conjunto se situava à margem da estrada nacional 207-4 para ..., confrontava a norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. CC e DD, nascente com a estrada nacional 207-4, sul com terras de Dr. EE e caminho de servidão e do poente com Dr. EE, terminando em bico com o caminho para a Escola do Magistério Primário, tendo a área aproximada de 12.000 m2 [documento de fls. 14 vº a 17].

3. Declarou, ainda, que a venda era feita livre de quaisquer ónus ou encargos e com a condição de, havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, a mesma seria da responsabilidade da Câmara Municipal [documento de fls. 14 vº a 17].

4. Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal declarou aceitar o contrato para a sua representada na forma expressa cujas condições haviam sido aceites por deliberação de 12 de Dezembro de 1980 e firmadas em contrato promessa de 29 de Novembro do mesmo ano e que o terreno se destinava à implantação da Escola de Formação Profissional [documento de fls. 14 vº a 17].

5. Por escritura pública celebrada a 20 de Dezembro de 1983, na Secretaria da Câmara Municipal de ..., perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, FF em representação da Câmara Municipal de ... e a Autora declararam rectificar a escritura identificada em 1) a 4) do seguinte modo:

- a área dos terrenos transaccionados era de 11.650 m2 e não de 12.000 m2 como por lapso fora referido;

- as confrontações eram: norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. CC e DD, nascente com a estrada nacional 207-4 e a vendedora, sul com terras de Dr. EE e caminho de servidão e do poente com Dr. EE [documento de fls. 17 vº e 18].

6. Por escritura pública celebrada a 24 de Novembro de 1989, nas Primeiras Instalações do Campus Universitário da Universidade ..., em ..., ..., perante a Chefe de Divisão dos Serviços Administrativos e de Pessoal da Câmara Municipal de ..., enquanto Notária Privativa, o Presidente da Câmara declarou que, de harmonia com a deliberação efectuada em 6 de Março de 1989, fazia doação pura e simples à Universidade ..., representada pelo seu Reitor, do terreno de construção com a área de 11.650 m2, situado na Rua de S. Torcato, da cidade de ..., destinado a uma residência universitária, assim identificado:

- Propriedade denominada da Domada ou Assento do Casal do ... situada na Rua ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº 128-..., registado em G-1 a favor da Câmara Municipal e inscrito na matriz sob os artigos 451, 452, 453, 454, 455 e já participado para a sua inscrição como terreno de construção na 1ª Repartição das Finanças do Concelho no dia 22 de Junho do ano em curso, confrontando de norte com prédios de AA, de Dr. CC e DD, sul com terras de Dr. EE e caminho de servidão, do nascente com a rua da sua situação e do poente com Dr. EE, terminando em bico com o caminho da Escola do Magistério Primário [documento de fls. 79 a 81].

7. Mais declarou o Presidente da Câmara que conforme a deliberação citada, concedia à Universidade ..., atempadamente, o apoio com a realização de infra-estruturas necessárias no terreno doado [documento de fls. 79 a 81].

8. O Reitor da Universidade ..., em representação desta, declarou aceitar a doação e mais benefícios de forma expressa [documento de fls. 79 a 81].

9. O Réu Município de ... foi citado a 17 de Junho de 2016 [documento de fls. 41].»

8. Interessa, igualmente, para processualmente situar o alcance da exceção de prescrição aposta pelo Réu, precisar os termos em que a Autora indicou o pedido e a causa de pedir (transcreve-se, igualmente, do acórdão da Relação):

«A autora formula os pedidos de condenação do réu a:

- "reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda" de 13 de Fevereiro de 1981;

-"pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infraestruturação".

Para tal alega, nomeadamente, que:

"5.º Esta propriedade foi vendida pela Autora para a implantação da Escola de Formação Profissional de .... A Autora não tomou a iniciativa da venda antes foi convencida a vender sob a ameaça de senão anuísse seria expropriada para a construção da escola.

6.º Antes desta venda era intenção da Autora urbanizar a propriedade que se localizava, uma parte, a Nascente da Rua ... e uma outra, localizada a Poente desta Rua, com uma área total de 3 hectares, aproximadamente;

7.º Com a finalidade de construir prédios de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão;

16.º (…) a Autora acabou por ceder em vender tendo sido celebrada a escritura referida no art.º 1. O Réu sabia, porém, que a Autora não lhe venderia a propriedade se não fosse colocada perante a eminência de lhe ser expropriada;

17.º A Autora fez questão que o concreto destino do terreno vendido indicado pelo próprio Réu, ficasse a constar na escritura;

19.º De modo a que fosse obrigatoriamente respeitado;

21.º O concreto destino do bem foi decisivo para a Autora negociar. De outra forma não o venderia à Câmara e esta sabia-o;

25.º O preço pago não foi determinado em avaliação que o classificasse como apto para construção já que, como alegava o Município, se fosse expropriado seria, nos termos do Código das Expropriações, avaliado pelo potencial agrícola, já que seria classificado como para outros fins;

30.º Deduzindo-lhe os custos de infraestruturação fácil é de concluir que o valor do terreno era bem superior aos 600$00 por que foi pago;

32.º Porém, o Réu não respeitou a razão de ser do negócio, não respeitou a finalidade do negócio, em suma não honrou a sua palavra. Nem apresentou à Autora qualquer justificação ou satisfação para tal comportamento;

33.º Com efeito, hoje no prédio estão implantadas residências universitárias - 3 corpos de construção em altura - e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão.

35.º Deste modo, o Réu não só subverteu totalmente aquilo a que se obrigou, mas também permitiu que outros o subvertessem;

36.º E, para além desta subversão, defraudou o equilíbrio do negócio que celebrou com a Autora".

9. Do Direito.

9.1. Deve, liminarmente, na delimitação do objeto do recurso (supra, 6), ter-se dele por excluída a questão agora suscitada nos nºs. 1º a 11º das conclusões da alegação do Recorrente.

O Recorrente, nas referidas conclusões, contradita a tese da Autora, tal como vem enunciada na petição inicial, e afirma que o contrato com aquela celebrado «não está subordinado a uma condição resolutiva ou a uma cláusula de resolução ou modificação, no que respeita ao destino a dar ao terreno», razão pela qual o acórdão da Relação «padece de erro nos pressupostos de facto, porque atendeu não à factualidade já fixada no douto despacho saneador, mas em pressupostos e elementos de facto controvertidos».

É certo que a interpretação do contrato delimitará negativamente a aplicação do nº 1 do art. 437º do CC.

Mas tal questão, em tempo enunciada na contestação apresentada pelo Recorrente, impugnando que o contrato contivesse «qualquer condição vinculativa para com a vendedora (ora A.)», quanto à destinação do terreno (supra, 1), não foi apreciada pelas instâncias, sendo, em consequência, inidónea como objeto do presente recurso.

9.2. Importando determinar o facto, a partir do qual se deveria iniciar a contagem do prazo de prescrição, deram as instâncias respostas divergentes.

Julgou-se na 1ª instância que «(…) o ato causal da alteração anormal das circunstâncias em que a Autora alega ter fundado a sua decisão de contratar foi praticado em 24 de Novembro de 1989 [data em que foi lavrada a escritura de doação do terreno pela Câmara à Universidade ... – supra, 7, facto nº 6]; o prazo previsto no artigo 309.º do Código Civil iniciava-se de imediato por se tratar de uma realidade objectiva, sendo certo que o seu decurso não dependia do seu conhecimento. Importa concluir que a extinção do direito consagrado no artigo 437º do Código Civil em que se arroga ocorreu a 23 de Novembro de 2009, por prescrição» (realce acresc.).

Diversamente, considerados os termos do pedido e causa de pedir acima consignados, entendeu-se no acórdão da Relação (realces acrescs.):

«(…) à luz da causa de pedir, o facto que "subverteu totalmente" o contrato e "defraudou o equilíbrio do negócio" foi a construção de "residências universitárias - 3 corpos de construção em altura - e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão". Significa isso que só com essa construção é que o direito que a autora diz assistir-lhe passou a poder ser exercido, pois, na perspectiva da autora, só então é que, recorrendo à linguagem do artigo 437.º do Código Civil, se deu a "alteração anormal" das "circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar". Até aí ainda não tinha ocorrido facto algum que se traduzisse nessa "alteração anormal", "subversão" ou "desequilíbrio" do negócio.

A doação do prédio, a 24 de Novembro de 1989, à Universidade ... não corresponde, necessariamente, a tal "alteração anormal" ou "subversão" e "desequilíbrio" do negócio. Com efeito, se nessa ocasião ainda não estivessem "implantadas [as] residências universitárias (…) e [os] dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão" [E é isso que resulta implicitamente dos autos], que direito é que a autora podia no dia seguinte exercer contra o réu? [E se já estavam "implantadas", então não podia a autora uma semana antes da doação exercer o direito que diz ter]?

Por outro lado, tal doação não implica, por si só, que no terreno não se viesse a construir a Escola de Formação Profissional de ...; a Universidade ..., não obstante nada lhe ter sido imposto nesse sentido, podia vir a construir naquele local essa escola. E se isso tivesse acontecido não existiria a alegada "alteração anormal" das "circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar", que, segundo a autora, se traduz numa "subversão" e num "desequilíbrio" do negócio celebrado em 1981 entre ela e o réu.

Aqui chegados, conclui-se que a doação de 24 de Novembro de 1989 não tem, para os efeitos do artigo 306.º do Código Civil, a virtualidade que o tribunal a quo lhe atribuiu.

O prazo de prescrição do direito que a autora afirma assistir-lhe não começou a correr antes de, usando as palavras da petição inicial, no prédio serem "implantadas residências universitárias - 3 corpos de construção em altura - e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão."»

Assim determinado no acórdão o facto, a partir do qual se deverá iniciar a contagem do prazo de prescrição, prosseguiu-se:

«Ora, a data desse facto é desconhecida; ninguém a alegou.

O n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil determina que "a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita." Cabia, então, ao réu alegar, e depois provar, os factos relativos à excepção de prescrição que deduziu.

Não estando alegados factos suficientes para se saber quando é que começou a correr o prazo de prescrição, não se está em condições de afirmar que esta se deu, o mesmo é dizer que a excepção tem que ser julgada improcedente (…)».

9.3. No ensinamento de Manuel de Andrade, reportando-se à doutrina dominante, «o fundamento específico da prescrição reside na negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo indicado na lei. Negligência que faz presumir ter ele querido renunciar ao direito, ou pelo menos o torna (o titular) indigno de protecção jurídica (dormientibus non succurrit jus). (…) Outras razões, porém, se costumam invocar, num plano secundário, para justificação do instituto prescricional: 1) Uma consideração de certeza ou segurança jurídica, a qual exige que as situações de facto que se constituíram e prolongaram por muito tempo, sobre a base delas se criando expectativas e se organizando planos de vida, se mantenham, não podendo ser atacadas por anti-jurídicas. 2) Proteger os obrigados, especialmente os devedores, contra as dificuldades de prova a que estariam expostos no caso de o credor vir exigir o que já haja, porventura, recebido. O devedor pode realmente ter pago sem exigir recibo, ou pode tê-lo perdido. 3) Exercer uma pressão ou estímulo educativo sobre os titulares dos direitos no sentido de não descurarem o seu exercício ou efectivação, quando não queiram abdicar deles.» (Teoria Geral da Relação Jurídica, II, 1972, 3ª reimpressão, pp. 445/6, realce acresc.).[1]

Assumidamente graduada como penalidade – e não estímulo educativo –, a prescrição emergiu no direito português nas Ordenações Manuelinas (Livro IV, Título LXXX, sendo desconhecida nas Ordenações Afonsinas e assim constante das Ordenações Filipinas (Livro IV, Título LXXIX):

«Se alguma pessoa fòr obrigada à outra em alguma certa cousa, ou quantidade, por razão de algum contracto, ou quasi-contracto, poderá ser demandado até trinta annos, contados do dia, que essa cousa, ou quantidade haja de ser paga, em diante. E passados os ditos trinta annos, não poderá ser mais demandado por essa cousa, ou quantidade; por quanto por a negligencia, que a parte leve, de não demandar em tanto tempo sua cousa, ou divida, havemos por bem, que seja prescripta a aução, que tinha para demandar. He a razão da prescripção extinctiva, e pena imposta ao credor que não cuidou do seu direito.»

Situada, na conhecida expressão de Savigny, entre as instituições jurídicas mais importantes e benéficas[2], a prescrição extintiva, desconhecida no antigo direito romano[3], apenas emergiu no Código de Teodósio (438 DC), na sequência da fixação do prazo de 30 anos para o acolhimento da actio, visando-se a estabilidade e certeza do direito.

Objetivo esse rejeitado depois pela doutrina canónica medieval, como instrumento contrário à moral.

Ainda nas palavras de Manuel de Andrade (cit., pág. 446), «Em rigor o instituto da prescrição não é justo, mas coonesta-se com razões de convivência ou oportunidade. No entanto, mesmo as considerações de justiça não são estranhas ao instituto de prescrição».

9.4. O art. 298º do CC operou uma clarificação legislativa, ao definir um critério diferenciador assente essencialmente na existência de um prazo de duração do direito (caducidade) ou na inércia do titular relativamente ao seu exercício (prescrição) – ASTJ de 16.1.2014 e de 22.9.2016, já citados na alegação do Recorrente (o segundo anteriormente considerado no acórdão da Relação).

Ultrapassada ou prejudicada a polémica acerca do âmbito da prescrição na vigência do Código de Seabra, em vista do nº 1 daquele artigo, passou ela a dimensionar-se como instituto geral, abarcando todos os direitos (não apenas os de crédito) que a lei não exclua ou que a lei ou a vontade das partes não submetam ao regime da caducidade – aplicável, como é o caso dos autos, ao direito potestativo de natureza modificativa, que a Autora pretende exercer, ao abrigo do art. 437º, nº 1 do mesmo código, disposição essa enquadrada pelos arts. 432º a 439º (correntemente entendida na doutrina a natureza geral do instituto, radicada nos Trabalhos Preparatórios de Vaz Serra, BMJ 105/146, de que se dá conta no ASTJ de 16.1.2014, cit.).

Completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito (CC, art. 304º, nº 1); configurada como exceção perentória, determina a absolvição do pedido (CPC, art. 576º, nº 3), como julgado em 1ª instância neste processo.

Enquanto facto extintivo autónomo do direito invocado pelo credor – no caso, aduzido por via de exceção pelo Réu, demandado para pagar – a prescrição deve ser alegada e provada por quem a invoca (CPC, art. 342º, nº 2).

9.5. Tendo-se o instituto da prescrição juridicamente firmado ao longo do tempo, com a nucleariedade que lhe é assinalada, também a sua aplicação tem suscitado dificuldades, designadamente quanto à fixação do dies a quo, precisamente a questão aqui em causa.

Observou-se já no referido acórdão de 22.9.2016, citando-se Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil, V, 2ª ed., 2015, pág. 202), que o início do prazo é decididamente «factor estruturante do próprio instituto da prescrição, dele dependendo, depois, todo o desenvolvimento subsequente, existindo, a tal propósito, no Direito comparado dois grandes sistemas: o objectivo e o subjectivo»; aquele primeiro «é tradicional, dá primazia à segurança e o prazo começa a correr assim que o direito possa ser exercido e independentemente do conhecimento que disso tenha ou possa ter o respectivo credor, sendo compatível com prazos longos».

Como aí se reitera, o legislador adotou, no art. 306º, nº 1, do CC, o sistema objetivo. A previsão dela constante quando o direito puder ser exercido «deve ser interpretada no sentido de o prazo de prescrição se iniciar quando o direito estiver em condições (objectivas) de o titular o poder actuar, portanto desde que seja possível exigir do devedor o cumprimento da obrigação (Ana Filipa Morais Antunes, Prescrição e Caducidade, 2ª ed., pág. 83), isto é, ocorre a partir do momento em que o credor tem a possibilidade de exigir do devedor que realize a prestação devida».

A apontada previsão normativa para o início da contagem do prazo é consequente com o fundamento acima considerado para a ocorrência da prescrição, a negligência do titular do direito em exercitá-lo: assim sendo, só quando o titular passe a estar em condições (condições objetivas) de exercer o direito se deve iniciar a contagem do prazo.

Nas palavras, ainda, de Manuel de Andrade (cit., pp. 448/9, com referência ao art. 536º do Código de Seabra onde se dispunha, para que a prescrição comece a correr é necessário que a dívida seja exigível): «Não pode dizer-se que haja negligência da parte do titular dum direito em exercitá-lo enquanto ele o não pode fazer valer por causas objectivas, isto é, inerentes à condição do mesmo direito».

Uma nota final: irreleva, no âmbito do presente processo, a situação prevista na parte final do nº 1 do art. 498º do CC, em que o momento a partir do qual se faz a contagem do prazo é pela lei indicado casuisticamente (regime invocado pelo Recorrente no nº 36 das conclusões, respeitante à responsabilidade extracontratual, de que aqui se não cuida).

9.5.1. Presentes estes considerandos, imediatamente se concluirá pela impossibilidade, para os efeitos previstos no nº 1 do art. 306º do CC, de se dever ter como início da contagem do prazo a própria data de celebração entre as partes do contrato de compra e venda – solução rejeitada, quer pela 1ª instância (de cuja decisão o Recorrente, subordinadamente, não recorreu), quer pela Relação –, como, em primeira linha, pretende o Recorrente, nas conclusões nºs. 12º a 31º.

Não se está perante uma obrigação pura (CC, art. 777º, nº 1), ou com prazo em benefício do credor, em que o cumprimento pudesse ser exigido a todo o tempo, pelo que a inércia do titular seria passível de ser aferida, desde logo, a partir da própria data da celebração do contrato do qual emerge a obrigação.

A obrigação só emergirá, ou não, com eventual incumprimento da condição relativa à destinação do terreno, tal como suposta no exame do caso, para cuja verificação o comprador não se obrigou com o cumprimento de determinado prazo (tratar-se-á, em derradeira análise, de cláusula cum potuerit, estabelecida ao abrigo do nº 1 do art. 405º do CC).

9.5.2. Dever-se-á, então, considerar que o prazo, nos termos da citada disposição legal, se inicia com a data da transmissão do terreno, por doação, do Réu para a Universidade ..., em 24.11.1989, como foi decidido em 1ª instância e, em segunda linha, sustenta o Recorrente (conclusões nºs. 32º a 40º)?

Diz a Recorrente que «a partir do momento em que o réu passou o imóvel e o colocou na esfera de disponibilidade da Universidade ..., declarando que a transmissão gratuita do direito de propriedade tinha em vista a construção de residências universitárias, a finalidade alegada pela autora - construção de uma Escola de Formação Profissional - ficou comprometida, já que, a partir dessa altura, o réu deixou de ter na sua esfera jurídica o imóvel e a decisão sobre o destino do mesmo deixou de lhe pertencer» (conclusão nº 34º).

Estariam, em suma, a essa data, reunidas as condições objetivas para o titular do direito poder atuar.

Considerara a Relação (supra, 9.2) que «tal doação não implica, por si só, que no terreno não se viesse a construir a Escola de Formação Profissional de ...; a Universidade ..., não obstante nada lhe ter sido imposto nesse sentido, podia vir a construir naquele local essa escola. E se isso tivesse acontecido não existiria a alegada "alteração anormal" das "circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar", que, segundo a autora, se traduz numa "subversão" e num "desequilíbrio" do negócio celebrado em 1981 entre ela e o réu».

Com o devido respeito pela posição expressa pela Relação e não se denegando a possibilidade de ocorrência do quadro hipotético considerado no passo transcrito, tem-se, em vista da nova destinação do prédio consignada na escritura de doação (supra 7, facto nº 6), contraditando a anterior – incumprindo-a, portanto –, que se verificou o preenchimento de causa objetiva para, com fundamento na mesma, o titular do direito poder exercitá-lo.

9.5.3. A transmissão do terreno, através da doação em causa, tendo embora a respetiva escritura sido lavrada em 24.11.1989, apenas foi levada ao registo em 27.9.1996, conforme é referido na contra-alegação da Recorrida e consta da respetiva certidão, a fls. 69 (registo a essa data lavrado provisoriamente por dúvidas e convertido em 10.1.1997).

Não tendo a Ré alegado (e demonstrado) que havia sido anteriormente dado conhecimento da transmissão com diferente destinação do terreno à Autora, só a partir da data de publicitação, da indicada data do registo, se verificaria causa objetiva para o titular poder fazer o seu direito [CRPredial, arts. 1º, 2º, nº 1, alínea a), 5º, nº 1].

Tendo o Réu sido citado a 17 de Junho de 2016 (supra 7, facto nº 9), não se tinha a essa data completado o prazo de prescrição.

III

Nos termos expostos, acorda-se em negar a revista, mantendo-se o acórdão recorrido, embora com diferente fundamento, devendo prosseguir o processo, conforme aí determinado.

Custas pelo Recorrente.


Lisboa,  28 de Junho de 2018

J. Cabral Tavares (Relator)

Fátima Gomes

Acácio das Neves

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[1]  Diferenciando-se, no sistema português, à luz desse específico fundamento, da caducidade – «o fundamento específico da caducidade é o da necessidade de certeza jurídica» (cit., pág. 464, com referência ao Código de Seabra). Razões de certeza e segurança jurídicas certamente presentes, pese a indicada diferente hierarquização, também no instituto da prescrição, tanto mais quanto, na matéria, se adotou no nº 1 do art. 306º do CC o sistema objetivo (infra, 9.5).

[2] «Die Klagverjährung gehört unter die wichtigsten und wohltätigsten Rechtsinstitute», System des heutigen römischen Rechts, vol. 5, Berlin, 1841, pág. 272.

[3]  Ao invés, a prescrição aquisitiva (usucapião) estava prevista desde a Lei das XII Tábuas (Menezes Cordeiro, A posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3ª ed., 2005, pág. 15).