Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
274/07.6TTBRR.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: SOUSA GRANDÃO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO A TERMO
REMISSÃO ABDICATIVA
VÍCIOS DA VONTADE
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 11/25/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - A remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, assumindo natureza contratual, à luz do nosso ordenamento positivo (art. 863.º, n.º 1 do CC); ao contrário do que sucede com o “cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e com a “consignação” e “novação” (em que o interesse do credor é satisfeito por um meio distinto da realização da prestação), a “remissão – como a “confusão” e a “prescrição” – pressupõe que a obrigação não chegue sequer a ser cumprida: a sua extinção decorre da mera renúncia do titular.
II - Como contrato que é, a “remissão” exige o necessário consenso entre as partes e, daí a emissão de, pelo menos, duas declarações negociais: uma delas a cargo do credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e a outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia – podendo, esta, ser tácita.
III - Este tipo de declaração é normalmente emitido aquando do acerto de contas após a cessação do contrato: o empregador paga determinada importância, exigindo em troca a emissão daquela declaração, a fim de evitar futuros litígios e, por sua vez, o trabalhador aceita passar essa declaração em troca da quantia que recebe, evidenciando-se, assim, um verdadeiro acordo negocial, com interesse para ambas as partes.
IV - É entendimento deste Supremo Tribunal que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando as partes se dispõem a negociar a cessação do vínculo pois, nessa fase, já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho, o que não exclui que tal contrato não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, seja ele intrínseco ao agente ou motivado por terceiros.
V - A natureza publicista do direito processual civil – ainda que instrumental do direito substantivo – impõe ao tribunal o poder-dever de assegurar oficiosamente a conformação dos actos praticados pelas partes com as normas adjectivas de carácter injuntivo, designadamente aquelas que consagram princípios estruturantes do processo civil, como o da estabilidade da instância e o da preclusão.
VI - Tendo o A alegado, na petição inicial, que foi coagido a assinar a declaração abdicativa, não pode, no âmbito da revista, alegar, ainda, que só assinou essa declaração desconhecendo a subsistência do vínculo laboral com a R e que só produziu a declaração no pressuposto que o mesmo caducara. Tal comportamento adjectivo viola os referidos princípios da estabilidade da instância e da preclusão, e, ademais, integra duas versões que se contradizem entre si, pois se o A começa por impugnar a validade da declaração por ter sido coagido é insustentável que, logo a seguir, venha a afirmar a sua validade, ainda que circunscrita aos créditos eventualmente devidos até à assinatura do documento.
VII - Sendo apenas atendível a versão inicial do A. – de que foi coagido a assinar essa declaração – e não tendo o mesmo logrado provar os factos tendentes à sua demonstração, é de rejeitar qualquer vício que pudesse inquinar a vontade do A. ao emitir aquela declaração.
VIII - A declaração constante do documento junto aos autos intitulado “Recibo de Quitação”, em que o A. não só declarou ter recebido a quantia ali mencionada como ainda referiu que declara para todos os efeitos legais, nada mais será devido com referência a ordenados, férias, subsídios de férias, subsídios de Natal, horas extraordinárias, trabalho em dias de descanso semanal ou complementar, ou seja a que título for, ficando assim definitivamente liquidadas todas as contas entre o declarante e a referida sociedade, consubstancia uma quitação atinente à quantia recebida e integra o reconhecimento de que nada mais lhe cabia receber da R. por força do contrato que os ligou.
IX - A emissão dessa declaração é incompatível com a verificação causal de danos não patrimoniais, a qual só poderia entender-se no quadro de uma vontade viciada, que, no caso, não se provou ter existido.
X - A admissão da disponibilidade creditícia pós-laboral conforma-se com os parâmetros constitucionais, não só porque a sua inadmissibilidade levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes, apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades da cessação da relação laboral (art. 393.º CT de 2003) mas também porque, nessa altura, o trabalhador não está já sujeito aos constrangimentos da subordinação que o inibiam contratualmente durante o período vinculístico.
Decisão Texto Integral:


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


1- RELATÓRIO

1.1.
AA intentou, no Tribunal do Trabalho Barreiro, acção declarativa de condenação, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra “BB, S.A.”, pedindo que seja declarada ilícita a cessação, por caducidade, do contrato de trabalho a termo certo celebrado entre as partes – considerando-se o mesmo renovado por mais seis (6) meses – e que, por virtude disso, seja a Ré condenada a pagar ao Autor a quantia global de € 27.208,33, reportada a créditos emergentes do aludido contrato e da sua cessação, bem como a uma indemnização, que também reclama, por danos não patrimoniais, tudo acrescido de juros moratórios desde a citação até integral pagamento.
A Ré contestou os direitos accionados, alegando, em síntese, que o questionado contrato cessou validamente por caducidade, sendo que o Autor recebeu todas as quantias que lhe eram devidas, do que passou quitação geral e plena.
1.2.
Instruída e discutida a causa veio a 1.ª instância a julgar parcialmente procedente a acção, em consequência do que declarou ilícita a caducidade do contrato de trabalho a termo certo celebrado entre as partes, considerando-o renovado por mais seis (6) meses, e condenando a Ré a pagar ao Autor a quantia global de € 24.500,00 – reportando o montante de € 22.000,00 a créditos salariais e a compensação pela cessação do vínculo e os restantes € 2.500,00 à peticionada indemnização por danos morais – tudo acrescido de juros moratórios.
Sob apelação da Ré, a que conferiu integral procedência, o Tribunal da Relação de Lisboa revogou a sentença e absolveu a demandada do pedido.
1.3
Desta feita, o inconformismo provém do Autor, que pede a presente revista, onde reclama que seja repristinada a decisão da 1.ª instância.
Nesse sentido, convoca o quadro conclusivo que ora se reproduz:
1- o normativo inserto no art. 388.º do C.T. estipula que o contrato a termo certo caduca desde que o empregador ou o trabalhador comuniquem, respectivamente com 15 ou 8 dias antes do prazo expirar, por forma escrita, a vontade de o fazer cessar;
2- a carta que a Recorrida enviou ao Recorrente tem data do registo do dia 29-6-2006, pelo que a mesma não chegou ao seu destinatário no prazo legal de 15 dias, antes de expirar o prazo do contrato;
3- tal como decidiu a 1.ª instância por incumprimento do prazo legalmente previsto para a comunicação, a pretendida caducidade do contrato não é válida nem eficaz;
4- pelo que o contrato tem que se considerar renovado por mais seis meses, isto é, até 10/1/2007;
5- na sequência do que a Recorrida tinha de pagar ao Recorrente, aquela exigiu a este que assinasse o documento que designou “de recibo de quitação”, que foi passado no pressuposto que a relação laboral findava naquele momento;
6- a 1.ª instância considerou que o teor da declaração consubstancia uma verdadeira remissão abdicativa, mas somente em relação aos créditos laborais que se tivessem vencido até ao momento da sua assinatura;
7- e que, através da assinatura da declaração, o autor aceitou que o que recebeu liquidava todas as quantias que, até esse momento, lhe eram devidas;
8- a sentença salienta ainda que só tal entendimento garante a segurança jurídica que se impõe, após a assinatura de uma declaração de quitação;
9- só a surpresa e a pressão que o Recorrente sofreu por parte da Recorrida, agregada ao estado de necessidade em que o seu agregado familiar ficou com o despedimento do Recorrente, o levou a assinar tal declaração;
10- pelo que o recibo de quitação, nos moldes em que está elaborado, não corresponde à vontade real de recorrente, tendo por este sido assinado como forma de garantir, no imediato, o recebimento da importância nele mencionada, nada mais;
11- O acórdão posto em crise, ao ter decidido em sentido inverso da sentença, salvo o devido respeito, acaba por considerar que a declaração assinada pelo Recorrente e redigida pela Recorrida, consubstancia uma declaração de vontade do trabalhador em renunciar à renovação do contrato de trabalho, não tendo levado em conta a ilicitude do despedimento por não ter operado a caducidade do contrato de trabalho;
12- o referido acórdão vem considerar que o documento constante de fls. 21 contém uma declaração negocial emitida pelo autor no sentido de renunciar aos créditos laborais a que eventualmente pudesse ter direito;
13- a declaração de renúncia que integra o contrato de remissão pressupõe um certo conteúdo intelectual e volitivo, que pressupõe que o credor conheça o seu direito, que tenha consciência da sua existência e que tenha vontade de o abandonar;
14- o Recorrente desconhecia que o seu contrato de trabalho não se havia extinguido pela caducidade, uma vez que a mesma não tinha operado por falta de cumprimento do disposto no art. 388.º do C.T.;
15- tendo-se vindo a provar, como se provou não tendo tal matéria sido impugnada pela Ré, que esta não cumpriu o prazo mínimo de 15 dias a que estava obrigada, para comunicar ao Autor a não renovação do contrato, aquela declaração do Recorrente não pode ter a virtualidade de se considerar como uma remissão abdicativa de créditos provenientes da ilicitude do seu despedimento por não ter operado a caducidade do contrato de trabalho a termo certo;
16- o credor, para que a remissão abdicativa seja válida, tem de ter a consciência não só da existência do crédito como da sua natureza jurídica;
17- o recibo de quitação assinado pelo Recorrente não tem a virtualidade de valer como declaração de aceitação da não exigência dos créditos que se viessem a vencer por força da ilicitude do seu despedimento;
18- como consequência da não caducidade do seu contrato de trabalho;
19- do que o Recorrente tem consciência é que está a dar quitação das quantias que recebeu e que, por força disso, não pode a posteriori, reclamar créditos já vencidos, sejam eles a que título forem;
20- nos termos do n.º 1 do art. 863.º do C.C., remitir uma dívida não é o mesmo, nem compreende – como faz o acórdão recorrido – nessa remissão a questão da não caducidade do contrato de trabalho pelo não cumprimento de uma norma legal que, consequentemente, gerou a ilicitude do despedimento;
21- além do mais, tendo ficado provado que o despedimento foi ilícito, não tendo operado a caducidade do contrato de trabalho a termo certo, à data da assinatura da referida declaração de quitação a relação laboral não se encontrava extinta;
22- pelo que o recorrente não podia abdicar ou renunciar aos seus créditos laborais;
23- além do mais, não estamos aqui perante uma revogação por acordo das partes;
24- acordo, pressupõe uma conjugação de interesses com vista à obtenção de um determinado resultado;
25- diferentemente, no caso sub-judice, uma das partes, o empregador, tem o poder de fazer cessar o contrato de trabalho, ficando a outra parte, o trabalhador, num estado de quase sujeição;
26- a tutela conferida ao Direito do Trabalho deve sobrepor-se à tutela conferida aos direitos de crédito, já que o estado em que se encontra o trabalhador relativamente ao empregador não é o mesmo em que se encontram as partes numa relação creditória;
27- descurar esta realidade comporta uma desigualdade de tratamento, porquanto a base de que se parte está, ela mesma inquinada;
28 – tal posição encontra-se no limbo da inconstitucionalidade, chegando, por vezes, a pisar os seus terrenos;
29- com efeito, o art. 13.º n.º 1 da CRP (princípio da igualdade) impõe a obrigação de tratar de forma igual o que é igual e de tratar de forma desigual o que é desigual;
30- salvo o devido respeito, parece-nos que qualquer dos nossos tribunais partem, na formulação dos seus prejuízos, de um patamar posterior – do acordo e dos resultados que o mesmo produziu – olvidando a relação, essa sim desigual, que a ele deu origem;
Pois só assim se compreende que escorem a sua posição no argumento que terminando o contrato de trabalho, é lícito ao trabalhador renunciar a eventuais créditos nomeadamente aos créditos resultantes da ilicitude do seu despedimento, passando as retribuições correspondentes a serem um direito disponível;
32- o acórdão recorrido violou, omitiu ou fez errada interpretação dos artigos 388.º do C.T., 236.º n.º 1 e 247.º do C.C. e 13.º n.º 1 da C.R.P..
1.4.
A Ré não apresentou contra-alegações.
1.5.
A Ex.ma Procuradora-Geral-Adjunta, a cujo douto Parecer as partes não reagiram, entende que a este Supremo Tribunal está vedado apreciar a questão atinente à caducidade do contrato – por já resolvida em definitivo na sentença da 1.ª instância – devendo a revista ser concedida no mais.
1.6.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2- FACTOS
2.1.
As instâncias deram pacificamente como provada a seguinte factualidade:
1 - a R., por carta datada e assinada em 7/7/2005, assumiu o compromisso com o A. em efectuar um contrato de trabalho a termo certo;
2 - comprometendo-se, nessa mesma carta, a pagar ao A. o vencimento mensal líquido de € 1.900,00, bem como o direito a viatura de serviço;
3 - o A. foi admitido pela R., em 11/1/2005, através de contrato individual de trabalho a termo certo, pelo período de seis meses;
4 - para exercer a sua actividade profissional, por conta e sob a autoridade e direcção da R.;
5 - exercendo o A. as funções de “Chefe de Montagem”, sendo esta a sua categoria profissional;
6 - auferindo o A. a retribuição mensal ilíquida de € 2.500,00;
7 - o A. exercia as suas funções nas instalações da R., sitas na Av. … de A…, …, em Terrugem;
8 - podendo ser transferido para qualquer outro local de trabalho pertencente à R.;
9 - a prestação do trabalho por parte do A. à R. teve início em 11/7/2005;
10 - convencionaram as partes que o contrato se poderia renovar por duas vezes, por comum acordo ou se qualquer das partes não o denunciasse por escrito com a antecedência mínima de oito dias em relação ao termo de cada período de vigência;
11 - o contrato teve uma renovação pelo período de seis meses em 11/1/2006, por nenhuma das partes ter comunicado à outra a vontade de o mesmo contrato não se renovar;
12 - por carta datada de 27/6/2006, enviada ao A., a R. comunicou-lhe que não estava interessada em renovar o contrato, pelo que o considerava rescindido a partir de 11/7/2006;
13 - esta carta tem o registo dos CTT de 29/6/2006, tendo sido recebida pela esposa do A., uma vez que este se encontrava em Espanha ao serviço da R.;
14 – além do vencimento mencionado no ponto 6 supra, a R. pagava mensalmente ao A. o valor aproximado de € 300,00;
15 – que era transferido mensalmente para a conta bancária do A.;
16 – esses valores que a R. transferia mensalmente para a conta do A. visavam, juntamente com o valor líquido dos recibos de vencimento do A., que, este auferisse mensalmente o valor líquido aproximado de € 1.900,00;
17 – quando a carta, mencionada nos pontos 12 e 13 supra, foi recebida pela esposa do A., este encontrava-se em Espanha a montar a nova imagem da sede da Caixa Geral de Depósitos e tinha também por funções tirar fotografias a algumas lojas “”On Comunicações”, para se verificar a mudança de imagem das mesmas no âmbito do contrato celebrado entre a R. e essa entidade;
18 – o A. regressou a sua casa, na madrugada de 1/7/2006;
19 – na 2.ª feira, dia 3/7/2006, o A. foi falar com o Sr. Dr. F… M…, um dos Administradores da Ré;
20 – no gabinete deste, não tendo a conversa sido presenciada por mais ninguém;
21 – o A, no dia seguinte, voltou para Espanha, para continuar o trabalho que havia ficado pendente;
22 – por ter ficado sem trabalho, o A. viveu momentos de angústia;
23 – a família do A. é composta por mulher e filha menor, a estudar;
24 – o A. tem responsabilidades financeiras mensais para cumprir;
25 – o A. deixou de dormir;
26 – deixou de comer;
27 – deixou de querer sair;
28 – mostrava-se irritado e nervoso, sobretudo para com aqueles que mais perto com ele privavam;
29 – o A. teve mesmo necessidade de recorrer a acompanhamento médico, atendendo ao seu estado psicológico;
30 – a R. pagou ao A. a quantia de € 5.039,62, através do cheque n.º 8313501301, emitido pela R. sobre o BPI, em 17/7/2006;
31 – algum tempo depois, o A. contactou a empresa R., alegando que as contas não tinham sido bem feitas;
32 – a R. concordou e pagou ao A. ainda a quantia de € 768,65, através do cheque n.º 6419883860, também emitido pela R. sobre o BPI;
33 – por esse facto, foi emitido o recibo de quitação, o que faz fls. 21 dos autos, que englobou as quantias inicialmente recebidas (€ 5.035,62) e a recebida em 31/7/2006 (€ 768,65), tendo sido passada quitação pelo valor global de € 5.804,27, que o A. assinou em 31/7/2006 (embora datado de 11/6/2007), conferindo quitação nos seguintes termos:
“Mais se declara para todos os efeitos legais, nada mais lhe será devido com referência a ordenados, férias, subsídios de férias, subsídios de Natal, horas extraordinárias, trabalho em dias de descanso semanal ou complementar, ou seja a que título for, ficando assim definitivamente liquidadas todas as contas entre o declarante e a referida sociedade e dando o declarante pela presente à BB, S.A. quitação plena”.
2-2
Por eventualmente relevar no contexto da acção, consigna-se que a 1.ª instância deu expressamente por “não provado”, entre outros factos os seguintes:
a) que, quando o A. chegou a casa, vindo de Espanha se viu confrontado com a carta enviada pela R., dando-lhe conhecimento, sem que nada o fizesse prever, da não renovação do seu contrato de trabalho, pelo que o A. ficou surpreso;
b) que o A. assinou um primeiro recibo de quitação em 11/7/2006;
c) que o A. assinou o recibo de quitação, que faz fls. 21 dos autos, por estar a viver momentos difíceis e ter sido pressionado pelo Dr. F… M… .
3 – DIREITO
3-1
Examinando o petitório inicial, verifica-se que o Autor acoberta todas as suas pretensões na renovação, por mais seis meses, do contrato de trabalho a termo certo firmado entre as partes, extraindo dessa reclamada renovação a consequência de que a cessação do vínculo, operada entretanto pela Ré, configura um despedimento ilícito.
Mais sustenta que a sobredita renovação decorreu do incumprimento, pela demandada, do prazo – 15 dias – imperativamente imposto pelo artigo 388.º n.º 1 do Código do Trabalho de 2003.
E, não obstante reconhecer que veio a assinar o documento reproduzido a fls. 21, alega que só o fez por virtude das responsabilidades financeiras assumidas e pela pressão a que foi sujeito por um dos administradores da empresa (arts.º 59.º e 60.º da p.i.).
Em contrapartida, toda a defesa da Ré assenta no entendimento nuclear de que o contrato caducou no termo do prazo em vigor, sendo que o Autor deu à empresa quitação geral e plena por virtude dessa cessação, recebendo tudo o que lhe era devido.
Por ter considerado que a Ré inobservara, no caso, o prazo imperativo do falado artigo 388.º n.º1, a 1.ª instância decidiu que o vínculo se renovara por mais seis (6) meses, devendo considerar-se em vigor até 10/1/2007.
Debruçando-se, em seguida, sobre o mencionado documento de fls. 21, mais decidiu a 1.ª instância que o mesmo consubstanciava uma verdadeira “remissão abdicativa” mas, porque o seu teor “... foi passado no pressuposto que a relação laboral findara naquele momento”, os seus efeitos circunscreviam-se “... aos créditos laborais que se tivessem vencido até ao momento da sua assinatura”.
Em consonância com esse entendimento, veio a concluir que eram devidas ao Autor “... todas as retribuições que derivam da seguinte renovação do contrato” – num total de € 22.000,00 – e, bem assim, “... uma indemnização compensatória dos danos não patrimoniais sofridos”, que fixou em € 2.500,00.
Examinando o núcleo conclusivo da apelação, verifica-se que a Ré – a quem assistia, em exclusivo, legitimidade recursória para o fazer – não questionou minimamente o segmento da sentença que afirmou a renovação do contrato.
A sua tese nuclear – que já vem da contestação, como vimos – continua a incidir sobre a relevância que atribui ao documento de fls. 21 que, segundo ela, integra uma remissão abdicativa de todos os créditos porventura devidos aos Autor no âmbito da relação laboral que existiu entre as partes.
Certamente por também entender que a Ré não questionara a dita renovação é que a 2.ª instância reservou a sua pronúncia à questão de saber se a renúncia do Autor se restringia aos créditos constituídos até à assinatura do documento, ou se, pelo contrário, se alargava aos direitos emergentes de toda a relação laboral.
E, divergindo da 1.ª instância, veio a sufragar aquela segunda perspectiva: daí a sentenciada improcedência da acção.
Na presente revista, começa o Autor, de sua banda, por retomar a questão da renovação do vínculo para, de seguida, questionar o âmbito conferido pelo Acórdão à renúncia que produziu através do documento em apreço.
Relativamente à primeira questão, é assunto já resolvido em definitivo, face ao caso julgado que se formou sobre a matéria com a prolação da sentença inicial.
De resto, mal se entende que o tema seja agora repristinado, quando o Autor já obteve, nesse particular, completo ganho de causa.
Resta a segunda questão, no âmbito da qual também defende o recorrente que o entendimento perfilhado pela Relação viola o princípio constitucional da igualdade.
A tanto se circunscreve, pois, o objecto da revista.
3-2-1
A remissão abdicativa constitui uma das causas de extinção das obrigações, assumindo natureza contratual, à luz do nosso ordenamento positivo: “o credor pode remitir a dívida por acordo com o devedor” (artigo 863.º n.º 1 do Código Civil).
Ao contrário do que sucede com o “cumprimento” (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e com a “consignação” e a “novação” (em que o interesse do credor é satisfeito por um meio distinto da realização da prestação), a “remissão” – como a “confusão” e a “prescrição” – pressupõe que a obrigação não chegue sequer a ser cumprida: a sua situação decorre da mera renúncia do credor.
Como contrato que é, a “remissão” exige o necessário consenso entre as partes e, daí, a emissão de, pelo menos, duas declarações negociais: uma delas a cargo do credor – declarando renunciar ao direito de exigir a prestação – e a outra por banda do devedor – declarando aceitar aquela renúncia.
Porém, não sendo a “remissão” um negócio solene, nada impede que a declaração de aceitação seja tácita, bastando a simples existência de acordo.
Conforme se expressa no Acórdão desta Secção de 25/5/2005 – Revista n.º 480/05- “... tal tipo de declaração é normalmente emitida aquando do acerto de contas após a cessação do contrato de trabalho: o empregador paga determinada importância, exigindo em troca a emissão daquela declaração, a fim de evitar futuros litígios e, por sua vez, o trabalhador aceita passar essa declaração em troca da quantia que recebe, evidenciando-se, assim, um verdadeiro acordo negocial, com interesse para ambas as partes...”
De resto, conforme explica Antunes Varela (in “Das Obrigações Em Geral”, Coimbra Editora, 7.ª edição, reimpressão, volume II, página 246), a declaração de aceitação da proposta do remitente, pode considerar-se especialmente facilitada pelo disposto no artigo 234.º do Código Civil, segundo o qual “quando a proposta, a própria natureza ou circunstâncias do negócio, ou os usos tornem dispensável a declaração de aceitação, tem-se o contrato por concluído logo que a conduta da outra parte mostre a intenção de aceitar a proposta”.
A jurisprudência deste Supremo Tribunal vem pacificamente entendendo que o contrato de “remissão abdicativa” tem plena aplicação no domínio das relações laborais, designadamente quando as partes se dispõem a negociar a cessação do vínculo.
Nessa fase, já não colhe o princípio da indisponibilidade dos créditos laborais, que se circunscreve ao período de vigência do contrato de trabalho.
O que se deixa dito não exclui, todavia e à semelhança do que acontece em qualquer contrato, que o mesmo não possa ser tido como inválido, sempre que concorra um vício na declaração da vontade, seja ele intrínseco ao agente ou motivado por terceiros.
3-2-2
Já sabemos que a 1.ª instância decidiu, com trânsito em julgado, que o discutido vínculo laboral se renovara por mais seis meses, devendo considerar-se em vigor até 10/1/2007.
Mas também decidiu que o documento de fls. 21 integrava uma verdadeira remissão abdicativa, cujos efeitos circunscreveu porém, “aos créditos laborais que se tivessem vencido até ao momento da sua assinatura”.
O Autor não questionou a qualificação assim operada, sendo que o podia fazer na apelação da Ré, requerendo a ampliação do objecto desse recurso, nos termos do artigo 684.º-A do Cód. Proc. Civil.
De resto, a presente revista vem esclarecer que o demandante aceita a mencionada qualificação – naturalmente com o limite temporal que lhe foi aposto – ao expressar, na conclusão 19.ª, do seguinte modo:
“ do que o Recorrente tem consciência é que está a dar quitação das quantias que recebeu e que, por força disso, não pode, a posteriori, reclamar créditos já vencidos, sejam eles a que título forem” (sublinhado nosso).
Em conformidade com essa postura adjectiva, também a nossa pronúncia deverá incidir, tão somente, sobre o âmbito de uma já firmada “remissão abdicativa “do Autor.
3.2-3
Retornando de novo ao petitório inicial, recordemos que o Autor justificou ali a questionada “declaração” com os compromissos financeiros que assumira e com a pressão de que foi alvo por parte de um dos Administradores da Ré.
Ao assumir uma tal postura, pretendeu Autor aduzir que foi “coagido” a assinar a declaração, o que corresponde, por necessário, ao propósito de invocar a invalidade da declaração, tanto quanto é certo que, segundo diz, a sua vontade se achava viciada por coacção.
Em parte alguma desse articulado se alude a qualquer outro vício da vontade, designadamente à existência de um erro sobre a pré-figurada caducidade do vínculo laboral.
E não podem restar dúvidas de que a declaração em causa se reporta a um outro documento onde se contabiliza a compensação inerente à cessação do contrato.
É o próprio Autor que dá notícia disso.
Com efeito, depois de aludir, no artigo 60.º da P.I., à importância global recebida, o demandante discrimina, no sequente artigo 61.º, as quantias que a integravam, entre as quais figura uma denominada “compensação por despedimento” no valor de € 2.768,64” (sublinhado nosso).
Esta referência ao “despedimento “dissipa qualquer dúvida que se pudesse eventualmente colocar sobre o âmbito objectivo da compensação acordada.
Tal como as partes configuraram as suas teses nos articulados, verifica-se que a decisão da renovação favorece o Autor, do mesmo passo que a qualificação, como remissão abdicativa, do documento reproduzido a fls. 21, favorece a Ré, desde que seja eliminado – como fez a Relação – o limite temporal que a 1.ª instância lhe fixou.
E, se vier a ser confirmada a eliminação desse limite temporal, a pretensão do Autor não poderá deixar de soçobrar: é que a apontada remissão sobrepõe-se à sobredita renovação, anulando os seus efeitos.
Vejamos, pois.
A existência de uma verdadeira e global remissão abdicativa constitui, no concreto dos autos, defesa exceptiva da Ré, sobre a qual haveria o Autor, por norma, tomar posição no articulado de resposta – artigos 502.º do Código de Processo Civil e 60.º do Código de Processo do Trabalho.
No entanto, o Autor optou por antecipar na P.I. a sua versão sobre o discutido documento, expressando-a nos termos que deixámos consignados.
Nessa medida, está-lhe completamente vedado oferecer mais tarde uma nova versão.
Referimo-nos, em concreto, à tese que o recorrente, veio trazer à presente revista, onde refere que “... o contrato de remissão pressupõe... que o credor conheça o seu direito, que tenha consciência da sua existência e que tenha vontade de o abandonar”, sendo que”... o Recorrente desconhecia que o seu contrato de trabalho não se havia extinguido pela caducidade...”(conclusões 13 e 14).
Se o Autor desconhecia efectivamente a subsistência do vínculo e só produziu a “declaração” no pressuposto de que o mesmo caducara, era esse concreto vício (erro nos pressupostos da contratação) que lhe cabia aduzir em tempo útil – e não qualquer outro (designadamente, como fez, a mencionada coacção).
A natureza publicística do direito processual civil – ainda que instrumental do direito substantivo – impõe ao tribunal o poder-dever de assegurar oficiosamente a conformação dos actos praticados pelas partes com as normas adjectivas de carácter injuntivo, designadamente aquelas que consagram princípios estruturantes do processo civil, como o da estabilidade da instância e o da preclusão.
Acresce que as duas versões se contradizem entre si.
Se o Autor começa por impugnar a validade da declaração por ter sido coagido, como, aliás volta a insistir na revista (cfr. conclusão 9.ª), mas se aceita que, logo a seguir, venha a afirmar a sua validade, ainda que circunscrita aos créditos eventualmente devidos até à assinatura do documento (cf. conclusão 19.ª).
Ou bem que se invoca a invalidade global fundada em coacção, ou bem que se invoca a invalidade meramente parcial fundada em erro: a sua conjugação é que se forma patentemente insustentável.
De qualquer modo, a versão atendível é apenas a inicial, que o Autor não logrou provar, conforme se evidencia da factualidade dada como não provada e acima reproduzida em 2-2 (alínea c)).
Essa omissão probatória leva-nos a rejeitar qualquer vício que pudesse inquinar a vontade do subscritor da declaração.
3-2-4
Aqui chegados, cabe definir então o âmbito da questionada declaração.
Sobre o tema, decorreu como segue o Acórdão em crise:
“... No caso concreto, constata-se que na declaração constante do documento inserido a fls. 21, intitulado “Recibo de Quitação”, o Autor não apenas declarou ter recebido a quantia ali mencionada (a importância global líquida de € 5.804,27), mas também referiu que “declara para todos os efeitos legais, nada mais será devido com referência a ordenados, férias, subsídios de férias, subsídios de Natal, horas extraordinárias, trabalho em dias de descanso semanal ou complementar, ou seja a que título for, ficando, assim, definitivamente liquidadas todas as contas entre o declarante e a referida sociedade”.
Assim, afigura-se-nos que estamos perante uma remissão que, nos termos do supra citado artigo 863.º do Código Civil, fez extinguir todas as obrigações decorrentes da relação laboral em apreço.
E nem se argumente que a declaração em causa é susceptível de outra interpretação.
Os artigos 236.º a 238.º do Código Civil consagram, embora de forma mitigada, o princípio da impressão do destinatário.
Ora, tal como resulta do n.º 1 do artigo 236.º a impressão do destinatário deve corresponder àquela que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, deduziria do teor da declaração em causa e do contexto factual em que a mesma é emitida.
Ora, o sentido a conferir à supra citada declaração afigura-se-nos ser o de renunciar a todos os créditos que pudessem emergir da relação de trabalho. Cabe recordar que, inicialmente, a Ré pagou ao Autor a quantia de € 5.035,62, através do cheque n.º 8313501301, emitido pela Ré sobre o BPI em 11/7/2006 (30).
Porém, algum tempo depois, o Autor contactou a Ré, alegando que as contas não tinham sido bem feitas (31), sendo certo que a Ré concordou e pagou-lhe a quantia de € 768,65, através do cheque n.º 6419883860 (32).
Daí que tenha emitido o recibo referido em 33.
Afigura-se, assim, que ao receber esta última importância e ao produzir uma declaração daquele teor, o Autor não se limitou a fazer uma mera declaração de ciência.
Através da declaração em apreço, renunciou aos créditos a que eventualmente ainda tivesse direito.
Afigura-se ser esse o sentido que usualmente é dado à expressão “nada mais será devido... ou seja a que titulo for, ficando, assim, definitivamente liquidadas todas as contas entre o declarante e a referida sociedade”.
(...)
Considera-se, assim, verificada a existência de uma remissão, com a consequente extinção de todos os créditos peticionados pelo Autor, nomeadamente a título de danos não patrimoniais.
E nem se argumente que a declaração em causa apenas podia implicar uma renúncia àqueles direitos que o A. sabia que lhe assistiam, não tendo, assim, efeitos em sede dos peticionados danos não patrimoniais.
Tal afirmação carece de suporte factual, sendo que também não se provou que o Autor não tivesse conhecimento da globalidade dos direitos que lhes assistia.
(...)
Desta forma, cumpre concluir que com a declaração em apreço o Autor abdicou de exigir da Ré mais fosse o que fosse, na sequência do contrato de trabalho que os ligara, nomeadamente a título de danos não patrimoniais (aliás, a declaração refere seja a que título for).
(FIM DE TRANSCRIÇÃO).
3-2-5
Subscrevemos, no essencial, a fundamentação transcrita e o juízo decisório subsequente.
A anteceder a declaração reproduzida no ponto n.º 33 da matéria de facto (parte final), o documento de fls. 21, intitulado “RECIBO DE QUITAÇÃO”, expressa o seguinte:
“O abaixo assinado, AA, declara ter recebido de BB, S.A. a importância global líquida de € 5.804,27 (cinco mil oitocentos e quatro euros e vinte e sete cêntimos), discriminado no respectivo recibo de Julho de 2006, que à presente declaração se junta e que dela faz parte integrante”.
Torna-se manifesto que o transcrito documento contém duas declarações negociais do Autor: a primeira delas, ora reproduzida, consubstancia uma quitação atinente à quantia recebida; a segunda, reproduzida no ponto 33 da matéria de facto, claramente separada da anterior, integra o reconhecimento de que nada mais lhe cabe receber da Ré por força do contrato que os ligou.
Não se trata de uma simples e vulgar “quitação” – em que o credor se limita a atestar que recebeu aquela determinada prestação – trata-se de algo mais abrangente (aquilo a que a doutrina chama – em que o “quitanec pour solde de tout compte”) em que o credor declara ter recebido todas as prestações a que tinha direito.
Por outro lado, a emissão de uma tal “declaração” é incompatível com a verificação causal de danos não patrimoniais: essa verificação só poderia entender-se ao quadro de uma vantagem viciada, que não se provou for existido.
3-3
Se bem entendemos a sua argumentação no âmbito da inconstitucionalidade aduzida, pretende o recorrente significar que a problemática da renúncia a créditos laborais não deve ser tratada de modo diverso, consoante se esteja na pendência do contrato ou em fase posterior à sua cessação: em ambos os casos – assim percebemos s sua tese – a renúncia não deve ser consentida, na justa medida em que os créditos devem continuar a ser entendidos como indisponíveis.
É manifesto, desde logo, que esta argumentação não se compatibiliza minimamente com a tese, também sustentada pelo recorrente na vertente revista, de que o documento de fls. 21 representa uma renúncia “... aos créditos já vencidos [até ao momento da assinatura da declaração], sejam eles a que título forem”.
Onde está, neste caso, a brandida indisponibilidade?
E como entender também que, no pressuposto da subsistência do vínculo, o Autor já aceite a dita renúncia a créditos anteriores, quando é pacífico o entendimento de que os créditos são indisponíveis na vigência do contrato de trabalho?
Por outro lado, e conforme se sublinha no Acórdão desta Secção de 11/10/2005 (proc. nº 1763/05), o entendimento da indisponibilidade creditícia pós-laboral “... levaria ao absurdo de se concluir que os acordos de cessação do contrato de trabalho entre a entidade empregadora e o trabalhador seriam sempre irrelevantes – porquanto o trabalhador nunca poderia dispor dos seus direitos – isto apesar de estarem expressamente previstos na lei como uma das modalidades de cessação da relação laboral (cfr. arts.º 7.º e 8.º da L.C.C.T. [artigo 393.º do Código do Trabalho de 2003])”.
Finalmente, dir-se-á que bem se compreende, à luz do texto Fundamental, a distinção entre a indisponibilidade “ex ante” e a disponibilidade “ex post”, certo que o trabalhador não está sujeito, no último caso, aos constrangimentos da subordinação, que o inibiam contratualmente durante o período vinculístico.
Trata-se, enfim, de modo desigual aquilo que é desigual, nos precisos termos comandados pelo artigo 13.º da Constituição.

4 – DECISÃO
Em face do exposto, nega-se a revista e confirma-se o Acórdão impugnado.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 25 de Novembro de 2009
Sousa Grandão (Relator)
Pinto Hespanhol
Vasques Dinis