Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1584/20.2T8CSC-C.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
INCOMPETÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 05/20/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REJEITADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. - Nas providências cautelares nos termos do art. 370 nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação, sem embargo das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível.

II. - A violação das regras de incompetências que admitem o recurso nos termos do art. 629 nº 2 al. a) dizem respeito à própria competências do tribunal recorrido para conhecer da acção em razão da nacionalidade da matéria ou da hierarquia e não a outra competência que seja condição prévia a que o tribunal recorrido possa conhecer do mérito substantivo da pretensão deduzida.

III. - Referindo a decisão recorrida que o conhecimento da pretensão de a recorrente de ver canceladas duas inscrições de registo carece de ter sido decidida previamente em processo especial de retificação de registo ou (no caso de ser indeferido o pedido de retificação através de recurso hierárquico ou impugnação judicial) não configura uma violação das regras de competências que possa integrar o fundamento do art. 629 nº 2 al. a) do CPC, porque o tribunal não se declara incompetente mas sim, que há requisitos de apreciação do mérito que não se encontram verificados, qual seja o de não se ter obtido previamente a rectificação do registo.

IV. - A contradição de decisões que admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. do CPC tem de consistir numa oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, e com um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

V. - Não admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. d) do CPC a situação em que a apelação foi julgada improcedente com base em não se terem alegados factos concretos para sustentar a pretensão e a recorrente apresenta como acórdão fundamento para contradição de julgados um em que a questão decidida foi aquela cuja pretensão ela queria ver discutida no acórdão recorrido mas que o não foi porque se decidiu a improcedência com fundamento em não terem sido alegados factos que permitissem o conhecimento do pedido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Associação Humanitária de Bombeiros de Parede “Amadeu Duarte” propôs providencia cautelar não especificada contra “a administração provisória por natureza, constituída pelos seguintes membros constantes do Registo, em regime de litisconsórcio necessário,1. AA, 2. BB, 3. CC, 4 DD,5. EE, 6. FF, pedindo que

“a) Se intime os seis requeridos a abandonarem os cargos que ocupam na administração da Requerente na qualidade em que os ocupam pela eleição na Assembleia Geral Eleitoral de 27 de junho de 2019; a que alude a inscrição 10 do Registo Comercial, caso não tenha sido, ou sido ainda, cancelada;

b) Se ordene o cancelamento da inscrição 10;

c) Se ordene o cancelamento do AV 3 à inscrição 6;

d) Se ordene a apreensão de todas as atas e a sua entrega ao signatário para delas ficar fiel depositário”

O tribunal em primeira instância, considerando que inexistia alegação de matéria que sustasse o justo e fundado receio de que os requeridos causem lesão grave e dificilmente reparável aos interesses da requerente e, consequentemente, sendo o dano decorrente do decretamento desproporcional ao dano que (não clarificado no requerimento inicial) a requerente pretende acautelar, concluiu que sem necessidade de outras considerações, não se mostravam verificados os pressupostos de decretamento das providências requeridas, sendo inútil a produção das provas requeridas. Em consequência, julgou improcedente o procedimento cautelar e indeferiu as providências requeridas.

Inconformada com esta decisão a requerente interpôs recurso que veio a ser julgado improcedente pela Relação que confirmou a decisão recorrida.

De novo irresignada, a recorrente interpôs revista concluindo que:

“1 - Entende a Recorrente que o Acórdão recorrido está em contradição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que aqui se junta.

2 Isso foi alegado no requerimento de interposição, por contrariar, nomeadamente, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça quanto ao que dispõe o artigo 11 do Código de Registo Comercial (CRC), uma norma igual do ponto de vista da legalidade democrática, à existente no Código de Registo Predial, o regime subsidiário (artigo 115 CRC), aliás, às lacunas do CRC – a do artigo 7º do Código de Registo Predial (CRP) estabelece presunção igual à do artigo 11 do CRC

3 Ora, entendendo-se como a Requerente, que aqui pretende recorrer, entende, que o único registo definitivo existente à data da proposição do procedimento cautelar, em que foi proferida a sentença de primeira instância, tudo o que se alega judicialmente na sentença peca, salvo o modesto entendimento da requerente, por inversão da realidade, e o Acórdão recorrido parece concordar, ainda que por razões bem diversas.

4 Assim, deu-se no recurso de apelação, exemplo concludente da inversão da realidade o que consta de página cinco da sentença de primeira instância – página, aliás, não numerada – parágrafo terceiro, sequente às duas linhas do parágrafo anterior, que reza assim: “Ora, a ser decretada a providência, dela resultaria com grande probabilidade, atendendo à matéria invocada pela própria requerente, a paralisação imediata do seu funcionamento - sendo certo que, tal como se retira do requerimento inicial, se trata de uma Associação de Bombeiros, que presta, portanto, socorro em situações de emergência à comunidade e tem trabalhadores ao seu serviço”.

5. E a recorrente pasmou: Não! Senhora Juiza! É exatamente o contrário:

V. Exa. não reparou nos artigos 11, 14 nº 1 e 2 e 70 nº 2, conjugados com o artigo 5 nº 5 e o artigo 6 da Lei 32/2017, de 13 de agosto.

6 Acrescentando no recurso de apelação: Se repararmos, como devemos, verificaremos que eles determinam a ineficácia de tudo o que contrata e negoceia no exercício da administração em usurpação de funções a administração que V. Exa. Mª Juiza “a quo” lá pretende deixar em funções no cometimento de crimes não apenas de usurpação de funções,

7. Mas também de sumiço de atas e de incumprimento estatutário do dever de as dar a conhecer e verificar aos associados que pretendam conhecê-las enquanto não atende a quem é o legítimo presidente do conselho de administração para fazer obstar a essa realidade paralisante e altamente prejudicial, como é público e notório, do artigo 1º do C R C.

8. Foi a Requerente, no recurso de apelação, apontada na primeira instância, como não apresentando factos e sim conclusões relativamente a certos requisitos ou, antes, diríamos talvez melhor, pressupostos, quem se propôs por tentar alinhar factos, apesar de públicos e notórios e de pressuporem o conhecimento do que dispõem os Códigos de Registo Predial e Comercial.

9. “O artigo 11º do Código do Registo Comercial, na esteira de igual norma do Código do Registo Predial, constante do artigo 7 do mesmo, é um preceito de onde se extrai, pela via da interpretação, como consta do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, referido, a norma nos termos da qual o registo por transcrição definitivo – como o é o referido no artigo 34 dos factos alinhados, de onde consta GG -, constitui presunção de que existe a situação jurídica, nos precisos termos em que é definida, em AV 2 à inscrição 6. Isto é, pendentes os provisórios por natureza dos pedidos na ação registada pela inscrição 7 e seus averbamentos”.

10. Assim, este recurso parece-nos dever ser admitido, nos termos do artigo 671 nº 2 alínea b, 672 nº 1 alínea c), ambos do C. P. C. nomeadamente,

11. Tendo em atenção o que se alega judicialmente a página 16, do Acórdão recorrido, se bem contamos as páginas não numeradas, e, sob o nº 2, após o que se alega sobre a reapreciação da matéria de facto, sob o nº 1, e sob o título “Saber se podia ser convertido em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo” onde o Acórdão se refere, também, e, em primeiro lugar, à questão alegada pela recorrente, que no acórdão se transcreve, de que nenhuma inscrição provisória por natureza - estipula-se no C R C – por interpretação com base em lógica jurídica, como norma a extrair do mesmo artigo 11 e 7 do CRP – é passível de ilidir a presunção do artigo 11, como princípio fundamental de direito.

12. E a este propósito, depois de ter passado pela questão da caducidade prevista no artigo 18 do CRC, alega-se a final da página e princípio da seguinte: “O registo comercial tem, em regra, efeito declarativo, e, em consequência, a presunção legal dele decorrente é meramente iuris tantum: pode, em princípio, ser ilidida mediante em prova em contrário”

13. Ficou por apontar na decisão de que aqui se pretende recorrer a existência de prova em contrário, mas acaba o acórdão por concluir pela incompetência do tribunal para conhecer a questão.

14. Assim, e também, por força da regra geral em que os recursos podem ser admitidos, prevista no artigo 629 nº 2 alínea a), e 672 nº 2 alínea a) do C P C, a recorrente entende ter este fundamento para interpor recurso de revista, tal como supra justifica, aludindo aos nos termos do artigo 671nº 2 alínea b, 672 nº 1 alínea c), ambos do C. P. C. nº 2 do CPC.

15. Tendo em atenção que foi pedida a consulta do processo principal à primeira instância a requerente ofereceu certidões do mesmo que foram recusadas…

16. Ora, nos termos do artigo 412 nº 2 do C P C, a recusa não parece ter sido legítima, como pressuposto para a decisão proferida no Acórdão, a propósito do periculum in mora…

17. E não porque este “periculum” resulta notoriamente, aliás, e. nos termos gerais, da circunstância prevista nos artigos 1, 11, 14 nº 1 e 2, 22 nº 1 alínea b), 64 nº 2, alínea b), confiram-se os seus números e alíneas, e 70 nº 2, todos do C R C, a aplicar aos factos, exemplificativamente, a saber:

18 a) facto - a inscrição 10

b) facto - a Inscrição 10 foi registada, sem reclamação, como provisória por natureza.

c) facto – a inscrição 10 foi registada posteriormente à Inscrição 7 e seus averbamentos… como provisória por natureza…

19. Perante a norma do artigo 64 nº 2 alínea b) do C R C, a determinar a dependência da referida Inscrição 7, para além de outras dependências, o que nos termos do artigo 22 nº 1 alínea b) do C R C, e, como se pediu no processo principal, e é do conhecimento oficioso, determina a nulidade da conversão.

20. E a existência do periculum in mora decorre da cominação da não produção ao de efeitos a que alude o artigo 14 nº 1 e 2, 70 nº 2 do C R C, em combinação com a Lei 32/2007, de 13 de agosto, nomeadamente artigo 5 nº 5 e artigo 6, como consequência (efeitos jurídicos decorrentes) da norma dos artigos 1 e 11 do C R C.

21. Parece-nos absolutamente notório que uma administração de uma Associação Humanitária de Bombeiros a ver preenchida a tipicidade do crime de usurpação de funções de forma continuada constitui, pelo decurso do tempo, prejuízos imensos, incalculáveis e de difícil reparação…

22. Desde logo por não ser de todo fácil a reconstituição natural, que, decorrente do acesso ao processo principal por parte do tribunal “a quo” e ao acesso colocado à disposição do tribunal “a quo” às certidões dele – processo principal - que se ofereceram e foram rejeitadas, estaria totalmente em evidência esse pressuposto previsto para os procedimentos cautelares do periculum in mora.

23. E se a recorrente aceitou que fossem desnecessárias tais certidões foi por ter confiança e esperança de que, uma vez pedido pela Veneranda Relação autorização ao tribunal recorrido para consultar o processo principal, não tivesse desperdiçado a oportunidade para verificar que a ofensa ao artigo 11, interpretada de acordo com o sentido que foi dado pelo Supremo Tribunal de Justiça a essa norma, igual à do artigo 7 do Código de Registo Predial, no confronto com as demais normas do C. R. C , determinava enorme perigo com a ofensa à posse de quem de direito, registado pela Inscrição 6, em AV 2 e tal como se alegou, perante o Tribunal da Relação….., era quem estava registado a título definitivo e publicitado como tal, como presidente do conselho de administração da autora, aqui requerente.

24. A alegada incompetência em razão da matéria decorrerá de equívoco na aplicação de normas pela Veneranda Relação - alheamento dos pressupostos da conversão em definitivo – aliás, em data posterior à da proposição do procedimento (ver ainda artigo 13 do C R C) – que se não dependia de um só dos registos, mas fundamentalmente do registo da Inscrição 7, registada antes de todos as outras registadas como provisórias por natureza.

25. A implicar a nulidade da conversão prevista no artigo 22 nº 1 alínea b) do C R C e não como se alega o artigo 81 e seguintes e o pedido de nulidade está registado em AV 1 à inscrição 11, como resulta notoriamente da certidão do Registo Comercial.

26. Também em relação aos factos alinhados pela recorrente se crê ter havido alheamento do que dispõe o artigo 607 nº 4 do C P C, 368 e 393 nº 23 do Código Civil 412 nº 1 e 2, 574 nº 1 e 2, ambos do C P C, este último preceito interpretado de acordo com o acórdão do S T J no processo 2359/06.7TVLSB.L1.S1 da 2ª Secção.

27. Posto isto, as consequências são as que constam do mesmo artigo 22 nº 2, 3 e 4 (havendo que ter em consideração o facto de estar a nulidade averbada à inscrição 11).

28. E o Tribunal da Relação ……. não é de todo incompetente para conhecer a nulidade.

29. Foram violadas todas as normas indicadas supra ao longo das conclusões e, nomeadamente, a norma do artigo 11 do C R C, interpretada de acordo com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que se junta cujas consequências (efeitos jurídicos) determinam a não produção de efeitos para os atos praticados pela administração usurpadora e os prejuízos acumuláveis dia a dia praticamente cada vez mais irreparáveis à medida que se vai consumando o crime continuado de usurpação de funções a que se nos afigura haver que colocar cobro como tarefa do tribunais.

Revogando o acórdão recorrido, farão V. Exas., salvo melhor opinião, inteira justiça”

… …

Não houve contra-alegações.

Colhidos os vistos cumpre decidir.

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Fundamentação

Os factos que servem a decisão são os contantes do relatório, designadamente o teor do requerimento inicial da recorrente, razão pela qual se dispensa a sua reprodução, sem embargo de a eles virmos a fazer por transcrição na medida em que se revelar necessário à exposição decisória

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver, delimitadas pelas conclusões, importa em saber se a decisão recorrida deve ser revogada e julga procedente a providência cautelar.

... …

Começando a análise pela admissibilidade da revista, a recorrente sustenta que a mesma deve conhecida por este STJ, e com o sentido da procedência que protesta, porque nos termos do disposto no art. 671 nº 2 al. b) do CPC existe contradição entre a decisão recorrida e outra proferida pelo STJ; porque nos termos do art. 672 nº 2 al. c) o acórdão recorrido está em contradição com outro já transitado e proferido pelo STJ e, também, por violação das regras de competência e por contradição do acórdão recorrido com outro sobre a mesma questão fundamental de direito - art. 629 nº 2 al. a) e d)  do CPC.

Esclarece-se que de harmonia com o disposto no art. 370 nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, a não ser que se verifique uma das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível, ou seja, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

Com esta primeira observação fica de imediato afastada a possibilidade de interposição de revista ao abrigo do art. 671 ou 672 do CPC porque as providências cautelares não a admitem, a menos que, como vimos, se verifique um dos casos previstos no art. 629 nº 2 do CPC, motivo para que só nesta perspectiva se possa abordar a eventual possibilidade da revista interposta pela recorrente.  

Neste âmbito, o primeiro fundamento invocado, o de se verificar uma violação das regras de competência, esbarra com a dificuldade de se saber em que consiste essa violação porque a recorrente, mencionando essa violação não a concretiza em que se traduz. Concluiu que o tribunal da Relação decidiu “pela (sua) incompetência do tribunal para conhecer a questão.

Assim, e também, por força da regra geral em que os recursos podem ser admitidos, prevista no artigo 629 nº 2 alínea a), e 672 nº 2 alínea a) do C P C, a recorrente entende ter este fundamento para interpor recurso de revista, tal como supra justifica, aludindo aos nos termos do artigo 671nº 2 alínea b, 672 nº 1 alínea c), ambos do C. P. C. nº 2 do CPC.”, mas não arguiu qualquer concreta violação das regras de competência do tribunal em razão da nacionalidade, da matéria ou da hierarquia, nem retirou quaisquer consequências.

Tentando perceber melhor a situação, o tribunal recorrido, em determinado momento da decisão, depois de assinalar os argumentos para a improcedência da apelação, coincidentes com a decisão de primeira instância, refere, sem que disso houvesse necessidade, que a questão de saber se pode ser convertido em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo, carece de ser discutida previamente em processo especial de retificação de registo e que só no caso de ser indeferido o pedido de retificação pode, então, interpor-se recurso hierárquico ou impugnação judicial, razão para que, sem antes solicitar tal pedido, o tribunal não pudesse dele conhecer. Esta consideração não constitui nenhuma decisão do tribunal quanto à sua competência ou incompetência para conhecer do mérito da providência cautelar, significando somente que, se porventura fossem conhecidas as questões de direito da providência (que não foram) haveria um obstáculo que impediria a procedência substantiva dessa pretensão. Com maior clareza, o tribunal recorrido sublinha que, independentemente da providência cautelar dever sempre ser julgada improcedente pelas razões reunidas na decisão em primeira instância e consistentes em não ter a recorrente alegado factos consubstanciadores do fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito, mesmo que tal não sucedesse, sempre a providência improcederia por existir um pressuposto do mérito, e não da competência do tribunal, que se oporia ao provimento da pretensão, qual seja o de o registo não se encontrar rectificado nos termos em que a recorrente pretendia que fosse entendido.

A delimitação precisa do objecto do recurso, isto é, saber o que foi decidido e do que se recorre, impõe-se como importante uma vez que parte da argumentação expendida no acórdão recorrido constitui um obiter dictum sem vinculação e de natureza acessória, cuja supressão não prejudicaria o fundamento da decisão que se manteria inalterada para se ter determinado que que a providência tivesse improcedido. E o fundamento desta improcedência resume-se em ter sido considerado que “Inexistindo alegação de matéria que sustente o justo e fundado receio de que os requeridos causem lesão grave e dificilmente reparável aos interesses da requerente e, consequentemente, sendo o dano decorrente do decretamento desproporcional ao dano que (não clarificado no requerimento inicial) a requerente pretende acautelar, conclui-se, sem necessidade de outras considerações, que não se mostram verificados os pressupostos de decretamento das providências requeridas, sendo inútil a produção das provas requeridas”.

Sem a alegação dessa matéria de facto que era essencial soçobrou a pretensão da recorrente e, por assim ser, temos por irrelevantes e inócuas quanto ao sentido da decisão as reflexões quando aborda a conversão em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo, ou se o direito a pedir que “se intime os seis Requeridos a abandonarem os cargos”, cabe à administração como órgão social e não à apelante.

No sentido de responder à questão suscitada na apelação, a decisão recorrida acabou por aludir a algumas razões ou argumentos invocados ou sugeridos pelas conclusões da recorrente e que não constituem a questão objecto do recurso definida pela sentença de primeira instância e apelação, questão essa que por dizer respeito à não alegação de matéria de facto capaz de fundar o pedido, se situa em momento anterior ao da aplicação do direito substantivo para julgar o mérito.  É sobre esta distinção entre questões e razões ou argumentos que unanimemente a jurisprudência deste STJ refere a propósito da nulidade da sentença do art. 615 nº 1 al. d) do CPC que “a expressão «questões» prende-se com as pretensões que os litigantes submetem à apreciação do tribunal e as respectivas causas de pedir e não se confunde com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os fundamentos, os motivos, os juízos de valor ou os pressupostos em que as partes fundam a sua posição na controvérsia. É em face do objecto da acção, do conteúdo da decisão impugnada e das conclusões da alegação do recorrente que se determinam as questões concretas controversas que importa resolver.” – ver por todos ac. STJ de 3-10-2017 no proc. n.º 2200/10.6TVLSB.P1.S1 in dgsi.pt.

Perante o que a recorrente enquanto recorrente configurou na acção como causa de pedir e pedido, as instâncias decidiram que não era possível prosseguir com o processo porque a ausência de matéria de facto que pudesse sustentar a pretensão deduzida determinava que a providencia fosse julgada improcedente por, em face daquela razão não se poderem certificar os pressupostos de que dependia a procedência. E se a decisão da primeira instância se assume como mais enxuta quanto à indicação dos motivos do não provimento, a decisão da Relação, no sentido de dar resposta a todas as razões que a recorrente suscitou na apelação não só confirmou a decisão recorrida, com base nos mesmos fundamentos, como acabou por se pronunciar sobre matérias que no caso eram irrelevantes. Assim é que, depois afirmar que nas conclusões da apelação não eram indicados os concretos meios probatórios constantes do processo que imponham a decisão pretendida aditar e que não se mostrava verificado o condicionalismo previsto no n.º 1, do art. 662º, do CPCivil, e que não se podia proferir sobre a matéria de facto impugnada porque a matéria pretendia continha matéria de direito, eram conclusivos, irrelevantes, ou versavam matéria nova, a decisão recorrida realiza considerações sobre a conversão em definitivo um registo provisório que caducou pelo decurso do tempo.

Na conformidade com o que antes afirmámos, temos por evidente essas observações contidas na decisão recorrida sobre o registo, sendo matéria de direito destinada ao conhecimento do mérito da pretensão da recorrente apenas teriam importância e relevo se tivessem sido alegados e provados os factos destinados a demonstrar os pressupostos da providência.  Se a questão do recurso é a de terem sido ou não alegados factos fundadores dos pressupostos da providência, inexiste razão para admitir o recurso nos termos do art. 629 nº 2 al. a) do CPC com base na competência do tribunal uma vez que nenhuma questão a este propósito foi suscitada ou decidida na apelação.

… …

 O segundo fundamento para a revista colocado pela recorrente é o que consta na previsão do art. 629 nº 2 al. d) do CPC que reporta á contradição de julgados e que reclama como imprescindível a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:

i) o não cabimento de recurso ordinário impugnativo do acórdão recorrido por motivo alheio à alçada do tribunal;

ii) a existência de, pelo menos, dois acórdãos em efetiva oposição, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão de direito fundamental, tendo por objeto idêntico núcleo factual, ali versados;

iii) – a anterioridade do acórdão-fundamento, já transitado em julgado;

iv) – a não abrangência da questão fundamental de direito por jurisprudência anteriormente uniformizada pelo STJ.

Em acréscimo, a admissibilidade do recurso de revista, pela via especial da contradição jurisprudencial, não prescinde, porém, da verificação dos pressupostos gerais da recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pelo que, tratando-se de acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de um procedimento cautelar, é de exigir que o valor do procedimento exceda a alçada da Relação e que a sucumbência do recorrente revelada pelo confronto entre a providência pedida e a que foi decretada seja superior a metade dessa alçada.

Por outro lado, a contradição de julgados que releva como condição da admissibilidade do recurso de revista é a oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, no sentido de as decisões em confronto terem convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e terem subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

No concreto da presente revista, a providência cautelar foi julgada improcedente por razões distintas do conhecimento do seu mérito de direito por se haver entendido (em primeira instância e na Relação) que a requerente não tinha alegado factos necessários à verificação dos pressupostos da providência e, assim sendo, nenhuma questão de direito foi apreciada e decretada para que possa ser confrontada com qualquer outra que em sentido contrário tenha sido proferida pelos tribunais da Relação. A recorrente não apresenta para registo de contradição jurisprudencial qualquer decisão que contrarie o que foi decidido nas instâncias quando consideraram que sem factos não é possível conhecer da pretensão deduzida ou que os factos que foram julgados conclusivos, contendo matéria de direito ou irrelevantes deveriam ser considerados verdadeiros factos, e só uma decisão neste sentido poderia justificar a contradição por ter sido esta a única questão fundamental de direito fundamental versada na decisão recorrida.

Porque as questões de registo que a recorrente pretende suscitar não foram objecto de decisão ou conhecidas nos autos como fundamento da decisão proferida inexiste qualquer contradição de julgados que releva como condição da admissibilidade do recurso de revista por a questão fundamental decidida nestes autos nenhuma referência ter com a que consta do acórdão indicado como fundamento.

Assim, deve ser rejeita da revista por não se verificarem os requisitos em que nos termos do art. 629 nº 2 do CPC a revista podia ser admitida.

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 Síntese conclusiva

- Nas providências cautelares nos termos do art. 370 nº 2 do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação, sem embargo das situações previstas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, em que o recurso é sempre admissível.

- A violação das regras de incompetências que admitem o recurso nos termos do art. 629 nº 2 al. a) dizem respeito à própria competências do tribunal recorrido para conhecer da acção em razão da nacionalidade da matéria ou da hierarquia e não a outra competência que seja condição prévia a que o tribunal recorrido possa conhecer do mérito substantivo da pretensão deduzida.

- Referindo a decisão recorrida que o conhecimento da pretensão de a recorrente de ver canceladas duas inscrições de registo carece de ter sido decidida previamente em processo especial de retificação de registo ou (no caso de ser indeferido o pedido de retificação através de recurso hierárquico ou impugnação judicial) não configura uma violação das regras de competências que possa integrar o fundamento do art. 629 nº 2 al. a) do CPC, porque o tribunal não se declara incompetente mas sim, que há requisitos de apreciação do mérito que não se encontram verificados, qual seja o de não se ter obtido previamente a rectificação do registo.

- A contradição de decisões que admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. do CPC tem de consistir numa oposição frontal sobre a mesma questão fundamental de direito, e com um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

- Não admite a revista nos termos do art. 629 nº 2 al. d) do CPC a situação em que a apelação foi julgada improcedente com base em não se terem alegados factos concretos para sustentar a pretensão e a recorrente apresenta como acórdão fundamento para contradição de julgados um em que a questão decidida foi aquela cuja pretensão ela queria ver discutida no acórdão recorrido mas que o não foi porque se decidiu a improcedência com fundamento em não terem sido alegados factos que permitissem o conhecimento do pedido.

… …

Decisão

Pelo exposto acorda-se em rejeitar a admissão do recurso.

Custas pela recorrente.

Lisboa,  20 de Maio 2021

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Nos termos e para os efeitos do art.º 15º-A do Decreto-Lei n.º 20/2020, verificada a falta da assinatura dos Senhores Juízes Conselheiros adjuntos no acórdão proferido, atesto o respectivo voto de conformidade da Srª. Juiz Conselheira Maria dos Prazeres Pizarro Beleza e do Sr. Juiz Conselheiro Tibério Silva.


Manuel Capelo (relator)