Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
| ||
| Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
| Relator: | SANTOS BERNARDINO | ||
| Descritores: | SOCIEDADE POR QUOTAS DISSOLUÇÃO LIQUIDAÇÃO EXTINÇÃO DE SOCIEDADE | ||
| Nº do Documento: | SJ200806260011842 | ||
| Data do Acordão: | 06/26/2008 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
| Sumário : | 1. São realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, a dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção. 2. Dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação, mantendo ainda a sua personalidade jurídica, sendo os seus administradores os liquidatários, salvo disposição estatutária ou deliberação noutro sentido. 3. Com a extinção – que só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação – deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem. 4. As acções pendentes, em que a sociedade seja parte, continuam após a extinção desta, que se considera substituída pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários. 5. Os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha. 6. A declaração, feita na escritura de dissolução e liquidação de uma sociedade por quotas, pelos seus dois únicos sócios, de que a sociedade não tem activo nem passivo e de que não há bens a partilhar, não vincula os credores sociais, porque não coberta pela força probatória material que, no art. 371º do CC, é reconhecida aos documentos autênticos. 7. Em acção pendente contra a sociedade, uma vez operada, em consequência da sua extinção, devidamente registada, a substituição desta pelos dois sócios, impende sobre a autora – para lograr a responsabilidade destes, nos termos aludidos nos n.os 4 e 5 – o ónus de alegar e provar que a sociedade tinha bens e que esses bens foram partilhados entre os sócios, em detrimento da satisfação do seu crédito. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. AA, SA intentou, em 24.10.2005, na 6ª Vara Cível de Lisboa, contra BAR BB, L.da, acção com processo ordinário, pedindo fosse declarado resolvido, desde 16.02.2005, o contrato comercial entre ambas celebrado em 20.02.2003, por incumprimento da ré, e esta condenada a pagar-lhe a quantia de € 26.441,53, acrescida dos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a data da resolução do contrato, no valor de € 1.389,44, e dos vincendos, até integral pagamento. Alegou, para o efeito, que no exercício da sua actividade celebrou, em 20.02.2003, com a referida sociedade “Bar BB, L.da”, um contrato, que teve nessa data o seu início de vigência, o qual respeitava ao estabelecimento denominado "Bar BB", situado em S. João das ........, Sintra, de que aquela sociedade era titular, e onde se dedicava, designadamente, à venda de bebidas ao público. De acordo com o referido contrato, tal sociedade obrigava-se a comprar ao Distribuidor ......., L.da, ou a outro que lhe fosse indicado pela autora, determinados produtos para revenda ao público e consumo no estabelecimento, e a não vender e não publicitar no seu estabelecimento produtos similares aos fornecidos pela autora nem permitir que terceiros o fizessem; e a autora obrigava-se a fornecer, directamente ou através dos seus distribuidores, os produtos objecto do contrato. Foi ainda acordado que a autora entregaria à ré, a título de contrapartida pela celebração do contrato e de apoio à comercialização dos produtos negociados, a quantia de € 9.227,76, acrescida de IVA, e oferecer-lhe-ia 6 barris de cerveja Sagres de 50 litros por ano, num máximo de 30 barris. Ficou ainda estabelecido no referido contrato que este vigoraria até que a ré adquirisse 60.000 litros dos produtos (cervejas, refrigerantes e águas) constantes do Anexo 1, ou pelo prazo de cinco anos, desde a data da sua assinatura, consoante o que primeiro se verificasse. A autora cumpriu a sua parte, ao ter entregue o dinheiro e os barris de cerveja; no entanto, a partir de Setembro de 2003 a ré deixou de adquirir os produtos da autora à empresa por esta indicada e a cuja aquisição se tinha contratualmente obrigado, sendo que, até esse mês, consumiu apenas cerca de 8.074 litros dos 60.000 que haviam sido estipulados no contrato. Apesar de a autora ter interpelado a sociedade ré para dar cumprimento ao acordado, esta não adquiriu mais produto, nem mesmo quando avisada, em 15.01.2005, por carta registada com A/r, recebida por um dos seus representantes, de que lhe era concedido o prazo de 15 dias para retomar a aquisição dos produtos da autora que constituíam o objecto do contrato, sob pena de se considerar este resolvido, decorrido tal prazo, sem necessidade de nova interpelação. Deve, por isso, o contrato ser considerado resolvido desde 16.02.2005 – data estabelecida na última carta como limite para a ré retomar o cumprimento do contrato – o que confere à autora o direito de haver da demandada, a título de cláusula penal contratualmente acordada, uma indemnização correspondente ao dobro da quantia que lhe tinha entregue, ou seja, € 18.455,52, e ainda, também por força do acordado, uma indemnização de valor correspondente à parte da mesma quantia proporcional ao volume de compras não efectuadas, e que monta a € 7.986,01, tudo acrescido dos peticionados juros vencidos e vincendos. Tentada, sem êxito, a citação da ré, veio a autora – que de tal foi notificada, por ofício expedido em 17.01.2006 – juntar, em 20.04.2006, uma certidão emitida pelo Registo Nacional de Pessoas Colectivas, comprovativa de que a ré se achava extinta, e requerer a concessão de prazo para apurar a causa da extinção e, no caso de ter sido a dissolução, obter a respectiva escritura. Decorrido o prazo que, para o efeito, lhe foi concedido, a autora veio alegar o seguinte: Após diligências encetadas para localizar o paradeiro da ré ou dos seus legais representantes, “descobriu que essa sociedade foi dissolvida e liquidada por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Mafra, em 28.07.2001 (1)”, tendo sido liquidatários, de acordo com o n.º 1 do art. 151º do CSC, os únicos sócios da sociedade,CC e DD. Incumbia-lhes, como liquidatários, liquidar todas as dívidas da sociedade ou acautelar os direitos dos credores, através de caução, caso essas dívidas fossem litigiosas. Não o fizeram, porém, em relação ao direito de crédito da autora, de que tinham seguro conhecimento, pelo que são, por força do disposto no art. 158º do CSC, pessoalmente responsáveis pela dívida da sociedade. Em consequência – rematou a autora – deve a acção passar a correr contra os aludidos liquidatários, agora colocados na posição da demandada, devendo, para tal, ser citados. Por despacho de fls. 58, o Ex.mo Juiz, invocando o preceituado no art. 162º do CSC, determinou a substituição da ré pelos seus identificados sócios, e ordenou a citação destes para contestarem, querendo. Pessoal e regularmente citados, os demandados não deduziram oposição, pelo que foi proferido despacho judicial, declarando confessados os factos articulados pela autora e ordenando o cumprimento do disposto no n.º 2 do art. 484º do CPC. De seguida, foi proferida sentença, pela qual o Ex.mo Juiz julgou a acção procedente, declarando resolvido o contrato celebrado entre autora e ré, com efeitos a partir de 15 de Fevereiro de 2005, e condenando os réus CC e DD, solidariamente, a pagar à autora a quantia de € 26.441,53, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, contados desde 16 de Fevereiro de 2005 e até integral pagamento. Da sentença recorreu, de apelação, o réu DD. Sem êxito, porém, já que a Relação de Lisboa, em acórdão oportunamente proferido, julgou improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida. Ainda inconformado, o réu traz agora a este Supremo Tribunal o presente recurso de revista, tendo, nas respectivas alegações, apresentado as conclusões que, em síntese, vão indicadas: 1ª - O facto de a sociedade “Bar BB, L.da” ter sido dissolvida e liquidada não significa, por si só, que as responsabilidades desta sociedade se tenham transmitido aos sócios; 2ª - Nas sociedades por quotas, a responsabilidade dos sócios é limitada à realização das entradas a que cada um se obrigou, sendo certo que cada sócio responde ainda, solidariamente, com os outros sócios, pelas prestações devidas à sociedade por algum ou alguns dos outros, até à realização integral do capital social; a partir do momento em que o capital social esteja inteiramente realizado, os sócios não são obrigados a quaisquer outras prestações; 3ª - Só o património social – incluindo os valores correspondentes às entradas de capital – responde para com os credores sociais pelas dívidas da sociedade, nisto consistindo o princípio da limitação da responsabilidade dos sócios, determinante não só durante a vida da sociedade, mas também no fim do ciclo de vida desta; 4ª - Decorre do art. 163º, n.º 1 do CSC que, após a extinção da sociedade, consequente à liquidação e partilha do património social, os sócios só são responsáveis pelas dívidas sociais até ao montante que tenham recebido na partilha, sendo certo que na escritura de dissolução e liquidação da sociedade “Bar BB” os sócios declararam que a mesma não tinha qualquer activo a partilhar; 5ª - Em face da matéria de facto provada, nenhuma responsabilidade pode advir ao recorrente pelo facto de a sociedade de que era sócio ter sido dissolvida e liquidada, já que não foi provado, nem sequer alegado, que existiam bens sociais quando a sociedade foi declarada dissolvida e liquidada, ou que o recorrente recebeu bens sociais na sequência da liquidação e partilha; 6ª - Ao confirmar a sentença da 1ª instância, o acórdão recorrido violou, por erro de interpretação, o disposto no art. 163º/1 do CSC; 7ª - Encerrada a liquidação e extinta a sociedade, aos credores sociais apenas lhes é permitido demandar directamente os antigos sócios se alegarem e provarem que existiam bens sociais quando a sociedade foi declarada dissolvida e liquidada, e que, na sequência dessa operação, os sócios receberam parte desses bens sociais, prova que aqui não foi feita; 8ª - O acórdão recorrido está ainda ferido de nulidade, pois os seus fundamentos estão em manifesta oposição com a decisão proferida, sendo indiscutível que aqueles conduziam logicamente a um resultado oposto àquele que integra o respectivo segmento decisório; 9ª - Enquanto os fundamentos do acórdão apontavam no sentido da adopção do princípio da limitação da responsabilidade dos sócios, ainda que o funcionamento deste operasse noutro momento processual – em execução da sentença – a decisão determinou o contrário, pois independentemente do valor efectivamente recebido na partilha, declarou a responsabilidade dos antigos sócios pela totalidade da dívida; 10ª - Verifica-se, assim, a nulidade prevista no art. 668º/1.c) do CPC. A autora/recorrida apresentou contra-alegações, defendendo o acórdão recorrido e pugnando pela improcedência do recurso. Corridos os vistos legais, cumpre conhecer e decidir do mérito do recurso. 2. Vêm, das instâncias, provados os factos seguintes: 1) A autora, no exercício da sua actividade, celebrou, em 20 de Fevereiro de 2003, com a ré, um contrato que teve nessa data o seu início de vigência, contrato esse que respeitava ao estabelecimento denominado “Bar BB”, situado em S. João das ........, Sintra, de que a ré era titular e onde se dedicava, designadamente, à venda de bebidas ao público. 2) Por força desse contrato, a ré obrigou-se a “...comprar ao Distribuidor ........., L.da, salvo se outro lhe for indicado, (...) para revenda ao público e consumo no estabelecimento, produtos constantes do Anexo 1 nas quantidades e prazos previstos na cláusula terceira”. 3) Por força do mesmo contrato, obrigou-se, ainda a “não vender e não publicitar no estabelecimento produtos similares aos constantes do Anexo II, nem permitir que terceiros o façam”. Ficou também estipulado que a ré não poderia ceder a terceiros a posição contratual decorrente do contrato, sem prévio consentimento por escrito da autora, qualquer que fosse o negócio e forma que servisse de base à cessão, incluindo transmissão do estabelecimento comercial ou da sua exploração, sob pena de incorrer em responsabilidade solidária pelo incumprimento. 4) Por seu turno, a autora obrigou-se a “...vender através dos seus distribuidores,...” os produtos objecto do contrato e constantes do seu Anexo I. 5) Pelo referido contrato, a autora acordou ainda com a ré entregar-lhe, a título de contrapartida pela celebração deste e de apoio à comercialização dos produtos acordados, a quantia de € 9.227,76, acrescida de IVA à taxa legal, no valor de € 1.753,27, e a oferecer-lhe 6 barris de cerveja Sagres 50 litros, por ano, num máximo de 30 barris. 6) A autora entregou à ré a importância acordada, de € 10.981,03, que esta recebeu e da qual deu a respectiva quitação, tendo-lhe também entregue gratuitamente os produtos convencionados quando estes se tornaram devidos. 7) Ficou estabelecido no referido contrato, que este vigoraria até que a ré adquirisse 60.000 litros dos produtos constantes do Anexo I, ou pelo prazo de cinco anos, a contar desde 1 de Outubro de 2002, consoante o que primeiro se verificasse. 8) A ré deixou, desde Setembro de 2003, de adquirir os produtos, então já da autora, à empresa por esta indicada e a cuja aquisição se tinha contratualmente obrigado, tendo adquirido até àquela data apenas 8.074 litros. 9) Em 20 de Outubro de 2004, a autora enviou à ré uma carta registada com aviso de recepção, na qual lhe dá um prazo de 15 dias para que retome a aquisição dos produtos da autora e que constituíam o objecto do contrato. 10) Nela se referindo que “mantendo-se para além do prazo acima indicado a situação que agora se pretende ver sanada, consideraremos ter havido incumprimento definitivo do contrato e daremos o mesmo como resolvido sem necessidade de mais nenhuma interpelação para o efeito”. 11) Apesar de a carta ter sido enviada para a morada que havia sido indicada pela ré no contrato como sendo a sua, e a única que a autora dela conhecia, foi devolvida. 12) Em 15 de Janeiro de 2005, a autora enviou comunicação registada com aviso de recepção, de idêntico teor, a um dos legais representantes da ré, comunicação essa que foi efectivamente recebida. 13) A autora não retomou, no prazo que lhe foi facultado, a aquisição dos produtos em causa e nem regularizou a situação relativa ao contrato. 14) Por escritura pública de “Dissolução e Liquidação”, de 28.07.2005, a sociedade “Bar BB, L.da”, foi dissolvida e liquidada, sendo que em tal instrumento notarial se referia expressamente que: …a mesma não tem activo nem passivo. 15) A sociedade referida no ponto anterior encontra-se extinta, como resulta da certidão de registo da Conservatória do Registo Comercial, de fls. 40. 3. Na sentença da 1ª instância considerou-se, a fundamentar a decisão proferida, que: - a ré incumpriu o contrato que celebrou com a autora; - esta procedeu à resolução do contrato, que foi operada nos termos legais e que produziu efeitos a partir de 15.02.2003; - como consequência da resolução tem a autora direito a receber as indemnizações peticionadas, nos montantes de € 18.455,52 e de € 7.986,01; - atenta a extinção da ré e de acordo com o art. 162º e ss. do CSC, são os sócios responsáveis solidários pelo pagamento de tais quantias à autora. A Relação valeu-se de outro tipo de considerações, a saber: A sociedade ré foi dissolvida e liquidada pela escritura pública de 28.07.2005, na qual se referia que se dava a sociedade por liquidada e que a mesma não tinha activo nem passivo. Está também provado que foi registada a extinção de tal sociedade, o que quer dizer que a situação concreta retrata uma sociedade não ainda em fase de dissolução e liquidação, mas que se encontra já extinta. Ora, o regime de extinção das sociedades é distinto do referente à sua fase de dissolução e liquidação. Naquele, deixa de existir a pessoa colectiva, perdendo a sua personalidade jurídica e judiciária, consagrando a lei, para o caso de existirem ainda acções pendentes, um regime de substituição “pela generalidade dos sócios representados pelos liquidatários” e apenas para os efeitos do disposto nos arts. 163º, n.os 2, 4 e 5 e 264º, n.os 2 e 5, do Código das Sociedades Comerciais (CSC); no regime da fase de dissolução e liquidação, a sociedade persiste, continuando a ter personalidade jurídica e judiciária, sendo distinta da dos seus sócios (arts. 5º e 6º do CSC). No caso objecto dos presentes autos, a substituição deu-se já na fase posterior aos articulados apresentados pela autora. Ora, a escritura pública de dissolução, que esteve na base do registo da extinção da sociedade, sendo embora um documento autêntico, só faz prova plena dos factos que refere como praticados pelo notário, assim como dos factos atestados por este com base na percepção que deles directamente colhe (art. 371.º do Código Civil). Assim, as declarações emitidas pelos sócios – de que a sociedade não tinha activo nem passivo e de que não existiam bens para partilhar – são da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se duma declaração res inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais. Os credores sociais insatisfeitos podem provar a existência de passivo [situação que aliás ocorreu nesta nossa acção] … mas não estão obrigados a demonstrar que os sócios receberam certos e determinados bens pela partilha uma vez que nenhuma presunção decorre daquela declaração. A efectiva responsabilização em sede final afere-se em função do que tiverem recebido pela partilha. Se nada tiverem efectivamente recebido não será possível – em sede executória, entenda-se – efectivar a responsabilidade dos ora sucessores habilitados. Efectivamente, não tendo a autora, no âmbito do seu articulado, tido a possibilidade de alegar e provar a existência de bens sociais susceptíveis de serem partilhados pelos sócios da sociedade extinta, essa questão só poderá ser equacionada em momento posterior, em sede de execução de sentença, posto que nos termos do disposto no art.º 163.º do CSC, os sócios só respondem até ao montante que receberem em partilha. “A existência de responsabilidade e o montante da responsabilidade são aspectos distintos, pelo que a determinação, em concreto, do montante recebido pelos sócios na sequência da partilha é uma questão a aferir e a ter em consideração em momento posterior, na execução da sentença.” Com estes fundamentos, considerou a Relação não assistir qualquer razão ao apelante, confirmando a sentença recorrida. 4. A questão colocada à apreciação deste Supremo Tribunal consiste em saber se, extinta a sociedade demandada – uma sociedade por quotas – os seus antigos sócios, que procederam à sua dissolução e liquidação, respondem perante terceiros pelo passivo social não satisfeito. Recorde-se que a presente acção foi intentada em 24.10.2005, contra a sociedade. Gorada a citação da ré, e informada a autora, veio esta juntar certidão passada pelo RNPC, da qual se extrai que a sociedade demandada está extinta. Mais tarde, a autora veio trazer ao processo a informação de ter apurado, após diligências várias, “que essa sociedade foi dissolvida e liquidada por escritura pública celebrada no Cartório Notarial de Mafra”, na já referida data (28.07.2005); e requereu que a acção passasse a correr contra os liquidatários, os já nomeados CC e DD, que seriam, nos termos do art. 158º do CSC (2)., pessoalmente responsáveis pela dívida da sociedade. Do mesmo passo juntou certidão da escritura de dissolução e liquidação, na qual se lê que nela intervieram, como outorgantes, aqueles referidos CC e DD, e se consignou o seguinte: Disseram os outorgantes: Que intervêm nesta escritura como únicos sócios da sociedade comercial por quotas que usa a firma “BAR BB, L.DA”, (...), com o capital social de cinco mil euros, integralmente realizado, distribuído por duas quotas iguais, no valor nominal de dois mil e quinhentos euros cada, pertencentes uma a cada um deles sócios (...). (...) Disseram ainda: Que na indicada qualidade de únicos sócios, pela presente escritura deliberam dissolver a dita sociedade para todos os efeitos legais, a partir de hoje, dando-a assim por liquidada e que a mesma não tem activo nem passivo, o que declaram sob sua inteira responsabilidade. Que ficam ambos depositários dos livros, papéis de escrituração e demais documentos da sociedade. Assim o outorgaram. Foi, então, proferido o despacho de fls. 58, que declarou substituída a ré pelos seus sócios – pelos sócios, enquanto tais, e não enquanto liquidatários, como pretendia a autora. Como bem assinala a Relação, são realidades distintas, sujeitas a regimes igualmente distintos, a dissolução e liquidação da sociedade e a sua extinção. Na verdade, uma sociedade dissolvida e em liquidação não está extinta: a extinção só se verifica com a inscrição, no registo, do encerramento da liquidação (art. 160º/2). Como refere o Prof. RAUL VENTURA, a fattispecie extintiva da sociedade é complexa, integrando um facto que coloque a sociedade na fase de liquidação e um processo de liquidação lato sensu (mais ou menos complexo): a extinção é um efeito legal do registo do encerramento da liquidação. Dissolvida a sociedade, esta entra em liquidação (art. 146º/1), mantendo ainda a sua personalidade jurídica (art. 146º/2). Os seus administradores passam a ser liquidatários, salvo disposição estatutária ou deliberação noutro sentido (art. 151º/1), competindo-lhes, em tal veste, ultimar os negócios pendentes, cumprir as obrigações da sociedade, cobrar os créditos, reduzir a dinheiro o património residual e propor a partilha dos haveres sociais (art. 152º/3). Com a proposta respectiva, submetem a deliberação da sociedade (art. 157º/4) um relatório completo da liquidação, acompanhando as contas finais (art. 157º/1). Aprovada a deliberação, será requerido o registo do encerramento da liquidação – e é com este registo que, finalmente, a sociedade exala o último suspiro, isto é, se considera “extinta, mesmo entre os sócios” e sem prejuízo das acções pendentes ou do passivo ou activo supervenientes (3).. Com a extinção, deixa de existir a pessoa colectiva, que perde a sua personalidade jurídica e judiciária, mas as relações jurídicas de que a sociedade era titular não se extinguem, como flui do disposto nos arts. 162º, 163º e 164º. Estes normativos tratam de matérias conexas, todas elas derivadas da subsistência de relações jurídicas depois de extinta a sociedade. Assim, no tocante às acções pendentes em que a sociedade seja parte, elas continuam após a extinção desta, que se considera substituída – sem que haja lugar a suspensão da instância, uma vez que não é necessária habilitação – pela generalidade dos sócios, representados pelos liquidatários. Foi o que aconteceu no caso em apreço. Repare-se que, nos termos da lei, a sociedade se considera substituída pela generalidade dos sócios: são estes que passam a ser parte na lide, representados pelos liquidatários. Os liquidatários, que já funcionavam no processo como representantes da própria sociedade, passam a ser considerados como representantes legais da generalidade (ou seja, da totalidade) dos sócios. A lei comete-lhes o encargo de defender interesses alheios, em continuação de uma função que, relativamente à sociedade, já vinham exercendo. E os antigos sócios respondem pelo passivo social não satisfeito ou acautelado, até ao montante que receberam na partilha. A sua responsabilidade pessoal (falamos de sócios de sociedades de responsabilidade limitada) não excede, pois, as importâncias que hajam recebido em partilha dos bens sociais: eles são responsáveis até esse montante. O n.º 1 do art. 163º pressupõe que a liquidação esteja encerrada e extinta a sociedade – só neste caso é que se verifica a substituição da sociedade pela generalidade dos sócios. No caso em apreciação, a ré era uma sociedade por quotas, tinha um capital social de € 5.000,00, dividido em duas quotas iguais, pertencendo uma a CC e outra a DD, já acima referenciados e que tiveram intervenção na escritura dita de dissolução e liquidação da sociedade. Nessa escritura, declararam que não havia activo nem passivo e que, por isso, davam a sociedade por liquidada. O que leva a concluir que não houve uma verdadeira fase de liquidação, tal como esta vem desenhada nos arts. 146º e seguintes, e cujos trâmites se deixaram acima referidos. Isto, porém, não significa, como acentua a Relação, que não houvesse bens para partilhar, e que os dois sócios, que fizeram aquela declaração, não tenham recebido bens do património da sociedade. Na verdade, tal declaração é da mera responsabilidade daqueles, não representando a escritura prova plena quanto a esses factos. Trata-se duma declaração res inter alios acta, não vinculativa para os credores sociais, porque não coberta pela força probatória material que, no art. 371º do CC, é reconhecida aos documentos autênticos. Daí que apenas esteja plenamente provado que os sócios, outorgantes na escritura, fizeram aquela declaração, não se tendo já por provado que os factos nela referidos sejam verdadeiros. Podiam, consequentemente, tais factos ser impugnados pela autora, por não estarem cobertos pela força probatória plena do documento. Todavia, esta – que foi quem apresentou o documento e que dele se valeu para fazer prosseguir a acção – não o fez, não provou (nem sequer alegou) que a sociedade tinha bens e que esses bens foram partilhados entre os sócios, em detrimento da satisfação do seu crédito. E, no contexto da acção, operada a substituição da sociedade pelos sócios, e estando a responsabilidade destes legalmente definida, cumpria à autora, quando requereu a substituição, alegar e provar aqueles factos, que se apresentam como constitutivos do seu direito a obter deles o montante do seu crédito, «até ao montante que receberam na partilha». Neste sentido decidiu já este Tribunal, em recente acórdão (4).. Não colhe, pois, a argumentação da Relação, de que não tendo tido a autora, no âmbito do seu articulado, a possibilidade de alegar e provar a existência de bens sociais susceptíveis de serem partilhados pelos sócios da sociedade extinta, essa questão só poderá ser equacionada em momento posterior, em sede de execução de sentença. Desde logo, porque a autora, como vimos, podia ter feito a alegação em articulado superveniente, nos termos do art. 506º do CPC, logo que tomou conhecimento da extinção da sociedade. Depois, porque na execução de sentença não se cura de “obter a declaração judicial da solução concreta resultante da lei para a situação real trazida a juízo pelo requerente”. Essa é a função do processo declaratório, o processo de cognição, em que se pede “que o tribunal pronuncie a solução jurídica concreta aplicável ao caso submetido a julgamento”. O processo executivo emprega-se para dar realização material coactiva às decisões judiciais que dela necessitem: não para reconhecer o direito, mas antes para o actuar, para lhe dar execução. Significativo não deixa de ser o facto de a acção – contra a sociedade – ter sido intentada cerca de três meses depois da data da escritura de dissolução e liquidação, e quiçá, também já depois de efectuado o registo da sua extinção (a autora guardou-se de indicar a data em que tal registo foi efectuado, que também não consta da certidão de fls.40). De qualquer modo, não estando demonstrado que os sócios da extinta receberam quaisquer bens, não podem ser condenados, atento o disposto no já referido n.º 1 do art. 163º. Sustenta, porém, a autora, aqui recorrida, que a responsabilidade daqueles se funda no disposto no art. 158º. Eles foram os liquidatários da sociedade, por serem os seus únicos sócios e por imposição do n.º 1 do art. 151º, sendo que, como decorre da apurada matéria de facto [cfr. factos dos n.os 12) e 13)] tinham conhecimento da resolução do contrato e da consequente dívida da sociedade para com a autora. Daí que, ao declararem que a sociedade não tinha passivo, prestaram, conscientemente, falsas declarações, pelo que é a sua qualidade como liquidatários que está aqui em causa e não a sua qualidade de sócios “de uma sociedade por quotas sujeita ao princípio da limitação da responsabilidade dos mesmos até ao valor total das entradas efectuadas”. São duas situações distintas, às quais se aplicam regimes distintos: o art. 163º “disciplina a responsabilidade dos sócios de uma sociedade dissolvida e liquidada para com os credores sociais para com o passivo superveniente, mas até ao limite do valor recebido em partilha”; já o art. 158º “disciplina a responsabilidade dos liquidatários da sociedade para com os credores sociais, quando indicarem falsamente que todos os credores da sociedade estão satisfeitos e acautelados. E nos termos desta disposição, qualquer credor que não tenha tido o seu crédito assegurado, poderá exigir directamente ao liquidatário a satisfação do seu crédito, não estando o valor exigível limitado”. Isto diz a autora. Todavia, embora se reconheça a argúcia da explanação, não se pode sufragar tal entendimento. Antes de mais, porque – como claramente flui do despacho de fls. 58, contra o qual a autora não reagiu – os dois réus foram chamados, enquanto sócios, em substituição de sociedade extinta, nos termos do art. 162º, e não como liquidatários, em representação de sociedade em liquidação, nos termos do art. 151º. E foi naquela aludida qualidade que, “atenta a extinção da ré e de acordo com o art. 162º e ss.”, foram, na sentença da 1ª instância, declarados responsáveis solidários pelo pagamento das quantias reclamadas pela autora. Acresce que, ainda que assim não fosse, sempre se teria de concluir pela inaplicabilidade do art. 158º. Por força deste normativo, o liquidatário é responsável pessoalmente para com os credores sociais - se indicar falsamente, nos documentos apresentados à assembleia nos termos do art. 157º – ou seja, no relatório, contas finais e projecto de partilha do activo – que os direitos de todos os credores estão satisfeitos ou acautelados, nos termos da lei; - se, para tanto, agir com culpa; e - se a partilha se efectivar, isto é, se tiver havido entrega de bens aos sócios. Não estando provado, no caso em apreço, este último requisito (como também não está o primeiro, visto que não houve liquidação), jamais poderia lograr aplicação o invocado art. 158º. O recurso terá, pois, de proceder. E, na sua procedência, com a revogação do acórdão recorrido e da sentença por ele confirmada, segue-se que a acção deverá ser julgada totalmente improcedente, e os réus absolvidos do pedido. O recurso interposto pelo réu DD aproveita, assim, ao seu co-réu, uma vez que foram condenados como devedores solidários e os fundamentos do recurso não são de índole exclusivamente pessoal do recorrente. Com a procedência do recurso fica prejudicado o conhecimento da outra questão suscitada pelo recorrente – a da nulidade do acórdão recorrido, por alegada oposição dos fundamentos com a decisão. 5. Nos termos que se deixam expostos, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido, e julga-se a acção improcedente, absolvendo-se do pedido os réus DD e CC. Custas, aqui e nas instâncias, pela autora. Lisboa, 26 de Junho de 2008 Santos Bernardino (Relator) Bettencourt de Faria Pereira da Silva _______________________ (1)- A referência a 2001 constitui lapso evidente: a autora juntou certidão da escritura de dissolução e liquidação, da qual resulta ter sido lavrada em 28.07.2005. (2)- Pertencem ao Código das Sociedades Comerciais (CSC) os normativos referidos na exposição subsequente sem menção do diploma em que se inserem. (3)- Cfr. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades, 3ª ed., pág. 546 (4)- Acórdão de 23.04.2008, Proc. n.º 07S4745, disponível em www.dgsi.pt. No mesmo sentido, o Ac. Rel. Porto, de 30.04.98, sum. no BMJ 476/490.
|